O cabo de guerra pela Mata Atlântica em Porto Alegre (RS)

No Dia Nacional da Mata Atlântica, 27/05, às indefinições sobre as áreas de remanescentes de Mata Atlântica na capital gaúcha seguem e atestam o descaso da prefeitura

A Mata Atlântica é um bioma que abriga florestas tropicais e outros tipos de vegetação que abarcam, principalmente, a costa leste, nordeste, sudeste e sul do Brasil. O bioma é considerado Patrimônio Nacional pela Constituição Federal de 1988 e abrange total ou parcialmente 17 estados brasileiros. É, também, o bioma com menor percentual  de remanescente, cerca de 12%, além de apenas 7% da sua cobertura original em bom estado de conservação. Para piorar o quadro, o desmatamento cresceu 66% entre 2020 e 2021, de acordo com o Atlas da Mata Atlântica, em levantamento junto ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). 

Dentro do mapa  do IBGE, Porto Alegre (RS) está inserida no bioma pampa, mas este incorpora formações de Mata Atlântica, e isso é legalmente reconhecido. Por assim dizer, a área é um ecótono, região de transição entre biomas. Dito isso, é preciso que a governança do município compreenda essa definição, pois até hoje existem entraves por conta do setor imobiliário, que exerce pressão dentro da prefeitura para burlar as legislações que protegem as áreas de preservação, garantidas por lei. Além da garantia pela Constituição, há ainda uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), além da Lei da Mata Atlântica de 2006 e de um decreto de 2008 que contempla formações da Mata Atlântica. 

A prefeitura de Porto Alegre propôs uma licitação para o mapeamento da Mata Atlântica, em setembro de 2021, em que a empresa Profill Engenharia e Ambiente S.A. foi aprovada para realizar. A problemática surge no conflito de interesses, uma vez que a mesma empresa presta serviços para o setor imobiliário com a realização de Estudos de Impacto Ambiental e Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/RIMA). A situação se torna mais complexa por haver denúncias relativas a estudos de resultados duvidosos. É o caso do projeto realizado na área da Ponta do Arado, em Belém Novo, uma das últimas áreas naturais da cidade. O EIA/RIMA realizado pela empresa foi declarado como “falso/enganoso/omisso”, em laudo do Instituto Geral de Perícias (IGP), em inquérito da Polícia Civil concluído em maio de 2021. Mesmo com todo o imbróglio, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aprovou uma liminar que autorizou a tramitação do Projeto de Lei Complementar 024/202, aprovado na Câmara, que viabiliza a instalação do empreendimento Fazenda Arado Velho. 

Vale destacar que, em 2021, expirou o prazo do Convênio Mata Atlântica, entre Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (SEMA) e o município, para que Porto Alegre continuasse fazendo licenciamento em áreas onde tem remanescentes da Mata Atlântica. O convênio é uma exigência legal e delega a competência da Secretaria do Meio Ambiente a gestão florestal, através do licenciamento e fiscalização das atividades e empreendimentos localizados no município.

Por estes e outros motivos, o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) e o Instituto Curicaca, outra entidade ambientalista do RS muito ativa na questão da Mata Atlântica, ficaram apreensivos ao saber que a primeira consulta com a sociedade tinha sido marcada para a montagem deste plano. É sabido que isto tem que ser feito, mas não ocorreu de forma correta, pois no momento planejado para a exposição, em 9 de março deste ano, não foram apresentadas as diferentes etapas a serem realizadas e os objetivos por parte desse mapeamento. 

Tal projeto seria a primeira ponta para a posterior realização do Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica (PMMA) de Porto Alegre/RS. Em documento enviado à prefeitura pelo InGá sob forma de pedido de esclarecimento acerca de dúvidas que ficaram em aberto quanto ao desenrolar do projeto, o Instituto constatou que “a consulta pública e a oficina virtual realizadas sobre o PMMA de Porto Alegre, pelos instrumentos disponibilizados, limitaram-se a averiguar a percepção de parte da população quanto à importância do tema. Houve pronunciamentos de membros de entidades ambientalistas e de representantes da FEPAM que observaram a ausência de metodologia, cronograma de atividades, disponibilização prévia de mapas, dados e outras informações básicas, incluindo os marcos legais e diretrizes já existentes, para o público contribuir ao diagnóstico e ao futuro PMMA”. Os questionamentos foram posteriormente respondidos pela prefeitura, contudo, as respostas foram vagas e desprovidas de resoluções concretas. 

Em entrevista à Amigos da Terra Brasil, Paulo Brack, que é biólogo, professor da UFRGS, ex-técnico da Coordenação do Ambiente Natural da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Porto Alegre (RS), mestre em Botânica e Doutor em Ecologia e Recursos Naturais e membro do InGá, abre um panorama geral acerca da atual situação do plano de mapeamento da Mata Atlântica em Porto Alegre:

Como o InGá e o Instituto Curicaca se sentem hoje em relação à escolha da Profill como executora do Plano de Mapeamento da Mata Atlântica em Porto Alegre?

Nós temos uma apreensão, uma dúvida grande em relação ao resultado deste mapeamento, porque já houve outros mapeamentos feitos que nos deixaram preocupados no sentido de reduzir o que consideramos que, com base na lei, corresponde à Mata Atlântica. Como é que a mesma empresa que faz trabalhos falhos vai fazer um  levantamento da Mata Atlântica em Porto Alegre? Para nós, não precisaria ter mapeamento que não fosse para comparar o que se perdeu e as áreas mais sensíveis que precisam de ações urgentes. Isso não ficou claro na proposta. Todas formações florestais estariam protegidas independente de um mapeamento. Ou seja, paira no ar quais formações florestais não seriam identificadas ou perderiam o status de florestas importantes, o que  muito provavelmente poderá ser uma forma de redução. A Profill não pode dizer que alguns espaços já estão degradados, inclusive a proposta que foi apresentada é a de dizer aqueles que  têm alta relevância. E os que não tiverem relevância, quem é que vai fazer esse juízo de valor? As áreas que a empresa avalia para o setor imobiliário teriam valor?

O que esse levantamento significa na prática, por que foi colocado como importante e para que a Profill foi contratada?

A nível acadêmico, nós já temos o diagnóstico ambiental de Porto Alegre com muitas dessas formações vegetais marcadas, feito pelo prof. Hasenack, do Centro de Ecologia da UFRGS, que tem todo o equipamento, geoprocessamento e fez todo o mapeamento em 2008, quando foi publicado, principalmente em relação à cobertura da vegetação de Porto Alegre além da geologia. Estamos pedindo que se faça uma avaliação do que está sendo perdido. Outra questão é em relação às áreas prioritárias para biodiversidade, que estão na lei e não estão sendo consideradas. Então, não são consideradas outros tipos de vegetação protegidos pela Lei da Mata Atlântica, como restingas, banhados junto ao Guaíba ou Delta do Jacuí, enquadrados como formações pioneiras, além das Áreas Prioritárias para a Biodiversidade. Estas áreas são um instrumento do Ministério de Meio Ambiente, existente desde 2004, que afeta também o território  de Porto Alegre, não sendo feita nenhuma referência a trabalhos anteriores, como o Atlas Ambiental de Porto Alegre, do colega Rualdo Menegat, que já possui  importantes elementos a serem tratados. Parece que se vai partir do zero e isso significa jogar para escanteio qualquer informação que possa  eventualmente  trazer inconvenientes para empreendimentos, situação constrangedora para a mesma empresa que trabalha pras grandes incorporadoras… A Profil não poderia ter recebido este tipo de trabalho porque tem conflito de interesse evidente, tem acusações graves, inclusive a própria perícia da polícia mais ligada à área ambiental, constatou irregularidades no estudo do Arado Velho. É uma empresa que deveria prestar contas do que fez e deixou de fazer. Ela vem fazendo um trabalho que, mesmo com as tentativas de explicação da SMAMUS, não se sabe qual o objetivo final, e se os dados de desmatamento, que não são baixos, serão disponibilizados e analisadas suas causas. 

O que seria esse mapeamento na prática?

Para nós, se não houver este esclarecimento, poderá se tornar uma vitrine para a prefeitura tentar demonstrar  que está fazendo um mapeamento de formações da Mata Atlântica em Porto Alegre, com um zelo que na prática não ocorre, e seguiremos perdendo estas formações …. Por outro lado, no pior cenário, que esperamos não ocorrer, poderia-se desconsiderar a importância de algumas formações florestais e também não necessariamente florestais (restingas, juncais e vegetação ciliar não florestal) com base em indicadores de degradação questionáveis, e enquadrá-las como de não relevância. Aí entra a questão do juízo de valor que nos preocupa, o que é relevante, para ser protegido, e o que consideram que não é… 

Esse mapeamento é para mapear o que exatamente?

A ideia da SMAMUS seria mapear as florestas e outras formações da Mata Atlântica em Porto Alegre, mas com base em um jogo de palavras que, em vez de focar nos níveis de proteção para todas as formações, poderia cair nas palavras com ou sem “relevância”. Aí fica a questão: relevância para proteger ou para desproteger? As Áreas Prioritárias para a Biodiversidade (Portaria MMA nº 463 de 18 de dezembro de 2018) são uma forma de zoneamento daquilo que é mais prioritário, correspondendo a “um  instrumento de política pública para apoiar a tomada de decisão, de forma objetiva e participativa, no planejamento e implementação de ações como criação de unidades de conservação, licenciamento, fiscalização e fomento ao uso sustentável” . Este instrumento do MMA foi ignorado, pois não desconsidera nada e coloca em níveis de “extrema”, “muito alta” e “alta” importância, e isso consideramos o correto. O mapa já foi feito pelo Ministério do Meio Ambiente, e parte de Porto Alegre está nessas áreas, as quais não foram consideradas e nem lembradas. Para nós, a questão central é: o governo está dizendo que está fazendo uma coisa, quem lê o jornal vai pensar: ‘oh, eles estão preocupados com a Mata Atlântica’, mas aí tem uma questão. Ficou nas entrelinhas deste trabalho, que algumas formações florestais podem não ser consideradas relevantes. Se não tem relevância, significa que se uma empresa do ramo imobiliário pode lotear, fazer construções, condomínios fechados, etc. Não foi demonstrado por parte da Secretaria, até agora, um plano ou intenção verdadeira de proteger os remanescentes da Mata Atlântica, mas sim de se fazer propaganda de uma proteção não existente. Se uma área está supostamente mais degradada, se poderia supor que não valeria a pena sua proteção. Essa é a principal incógnita desse projeto até agora. Na prática, vemos atualmente a devastação de muitos hectares de floresta no local previsto para o Shopping Belvedere, do grupo Zaffari- Bourbon, entre as avenidas Salvador França e Cristiano Fisher.  

Considerando que a Profil atua com a prestação de serviços dos estudos de impacto ambiental, EIA/RIMA e etc, o Ingá e o senhor enxergam que esse levantamento feito por eles poderia ajudar de alguma forma na preservação das áreas da Mata Atlântica?

Na primeira audiência, não apresentaram nenhum documento prévio para que pudéssemos analisar. Fomos para a audiência pública virtual da proposta sem ter acesso a nenhum documento, só a intenção de fazerem algo. Este fato foi criticado também por técnicos da FEPAM que participaram da audiência.  Em determinado momento, um representante da secretaria, em conjunto à empresa, disse assim: ‘Agora vamos pegar o mapa de Porto Alegre e vamos ver com vocês o que tem maior importância, por bairro…’ Aí eu disse: ‘Não, eu não vou falar isso ou aquilo, sem uma análise técnica prévia. Primeiro eu queria ter previamente um mapa, que vocês estão apresentando somente agora.’ Nos pegaram de queima roupa lá com um mapa. Tomara que tenhamos resultados bons, mas até agora o que a gente vê são intenções pouco claras e resultados muito menos. Nós fizemos uma série de perguntas para a prefeitura para ver se esse plano vai ter resultados positivos. Eles argumentaram que estão no caminho certo, mas não demonstram de forma transparente como é que a sociedade pode se envolver com essa questão. Esse projeto de mapeamento da Mata Atlântica tinha previstos 2 milhões de reais como recurso para sua realização. O valor, pelo que nos explicaram, será menor do que isso. E, além de caro, o que já que pouco objetivo, ficamos apreensivos de que uma empresa como a Profill, que já presta serviços ao setor imobiliário, venha a se constranger em enquadrar como de grande relevância um remanescente ou uma área prioritária que corresponda a uma área de uma empresa ‘x’ que ela mesma atua no desembaraço de prestação de serviços de licenciamento ambiental. Ou seja, existe evidente conflito de interesse aqui. Este mapeamento deveria ser um estudo independente, feito por instituições de pesquisa desvinculadas do setor imobiliário.

Já se tem audiências públicas previstas, alguma divulgação sobre os próximos passos?

Não existem datas pras etapas previstas, o governo não falou nada. A gente não sabe como vão ser as próximas, e como a sociedade vai participar disso… Não tem nenhum elemento claro, transparente de como a sociedade vai participar. Eles estão dizendo que está tudo ok, que estão fazendo tudo certo e que estão cumprindo os cronogramas do projeto… Então, até segunda ordem, consideramos um discurso descontextualizado da realidade. Queremos que os técnicos concursados da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade participem do processo, e não que venha alguém de fora, com cargo de confiança e decida o que é ou não “relevante”. As respostas aos nossos questionamentos não provêm de técnicos da casa, e sim de agentes políticos, cargos de confiança, que estão ali provisoriamente, juntamente com respostas da empresa consultora. 

Desconheço os documentos de universidades e de outras instituições de pesquisa que tenham sido incorporados como elementos prévios no diagnóstico necessário deste mapeamento. O ideal seria nos reunirmos com a Secretaria, com a Profil, com o governo, com instituições de pesquisa e conversarmos, conjuntamente, do ponto de vista técnico, para superarmos a superficialidade cartorial (para cumprir a etapa) da precariedade da primeira audiência pública. Outro elemento a considerar, que de certa forma obrigou a SMAMUS a providenciar este mapeamento, é que já tinha expirado, no ano passado, o prazo do convênio Mata Atlântica, entre SEMA e Prefeitura, para que  Porto Alegre continuasse fazendo licenciamento em áreas onde tem remanescentes da Mata Atlântica, já que este convênio é uma exigência legal. Nós temos uma profunda apreensão em relação a esse processo porque ele não está permitindo que a sociedade o conheça e participe de suas etapas, que saiba de maneira transparente o objetivo final e como ela poderá participar em cada etapa. Eu diria mais! Nós temos os povos e comunidades tradicionais, os indígenas também, e eles têm que  participar desse processo porque os povos originários são aqueles que mantiveram e protegem esses remanescentes aqui, que os manejaram, então eles devem também ser consultados para demonstrar aquilo que tem maior significado e que ficar eventualmente definido como de maior relevância. Nós vamos continuar trazendo à Secretaria que nós não nos sentimos contemplados com as respostas genéricas que nos deram ao nosso ofício. Desejamos que eles nos apresentem dados numéricos, e abram a discussão e a participação. Nós queremos um debate franco e uma construção para melhoria do que seria o mapeamento das prioridades da proteção da biodiversidade da Mata Atlântica em Porto Alegre.

Paulo, tem mais alguma coisa que queiras destacar?

Sim, acredito que a sociedade tem que cobrar a participação maior neste mapeamento, maior transparência e inclusão de instituições de pesquisa, como no caso das universidades, a FEPAM, a SEMA, etc, e de técnicos da SMAMUS, atualmente alijados do processo, de forma a todos contribuírem para a melhoria do mesmo. E que, sob o controle da área técnica interna (Secretaria) e dos atores técnicos de fora, não exista espaço para o pior cenário, que seria o eventual rebaixamento de remanescentes enquadrados como “sem importância” , que desapareceriam do mapeamento. E que, a partir do mapeamento da Mata Atlântica em Porto Alegre, sem conflitos de interesse, se exerçam planos de proteção, fiscalização e ampliação e fortalecimento das unidades de conservação por parte da Secretaria, em integração com as demais instituições, as comunidades tradicionais e a população de nosso município. 


Articulação de movimentos sociais lança campanha pela aprovação da lei marco de direitos humanos e empresas

O lançamento ocorre nessa terça-feira (31), a partir das 17h, na sede da CUT-DF, com a participação de organizações e movimentos, como Amigos da Terra Brasil, MAB e FES-Brasil.

O Brasil é palco de inúmeras violações dos direitos humanos nos locais de trabalho por parte das empresas. O rompimento das barragens de rejeitos de mineração em Mariana (MG), Brumadinho (MG) e Barcarena (PA), e a eliminação de postos de trabalho com o deslocamento de fábricas, como foi o caso da Ford, são exemplos claros desse tipo de violação.

Para garantir que os direitos humanos sejam respeitados e que, nos casos de descumprimento, os responsáveis sejam punidos, a CUT e movimentos populares, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Amigos da Terra Brasil, e a Fundação Friedrich Ebert – Brasil (FES-Brasil), apoiam o Projeto de Lei (PL) nº 572/2022, que estabelece a Lei Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas e diretrizes para a promoção de políticas públicas no tema. O lançamento da Campanha pela aprovação da lei será nesta terça-feira (31), na sede da CUT-DF, a partir das 17h.

Em março deste ano, apresentamos na Câmara dos Deputados o PL 572/22, resultado de anos de debate de movimentos sociais, organizações e mandatos parlamentares. A proposta é estabelecer um Marco Direitos Humanos e Empresas, para instrumentalizar populações atingidas, trabalhadoras e trabalhadores diante das violações de direitos humanos praticadas pelas empresas.

A mobilização popular é essencial para fortalecer essa luta! Por isso, nessa terça-feira, será lançada a campanha pela aprovação da Lei Marco de Direitos Humanos e Empresas. O evento terá transmissão ao vivo, a partir das redes da CUT e da Amigos da Terra Brasil. Acompanhe e participe!

Data: 31.05.22
Horário: 17h
Local: Brasília/DF – Sede da CUT / SDS -Edifício Venâncio V Subsolo, Loja 14 Asa Sul
Online: Facebook e Youtube da CUT e Amigos da Terra Brasil

Direitos para a população, regras para as empresas!

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Desenvolvimento para quem? Transnacional Fraport expulsa famílias em Porto Alegre

Como povo brasileiro, nos acostumamos a questionar as narrativas de desenvolvimento. Em nossos territórios, junto a elas, instalam-se uma série de promessas não cumpridas, reproduzindo a triste realidade da marginalização social. Terras ocupadas por gente que depende delas para viver, trabalhar, se reproduzir, são consideradas desabitadas, relegando comunidades inteiras à invisibilidade. 

Essa crítica reflete o que se passou, e ainda acontece, com a comunidade da Vila Nazaré, zona norte de Porto Alegre (RS). Expulsas pela primeira vez em razão do avanço do agronegócio no campo, durante os anos 1960, as famílias que ocuparam a Vila vieram do fenômeno do êxodo rural para a periferia da Capital gaúcha. Uma área desabitada, sem qualquer serviço público, sob a qual dezenas de trabalhadores e trabalhadoras foram organizando suas vidas, tecendo seus laços sociais e culturais por meio do território. Com a força da organização popular, conquistaram acesso à água, luz, posto de saúde, escolas

Mas eis que um dia, o tal do desenvolvimento chegou. Em março de 2017, a prefeitura municipal começou a expandir seus interesses pela zona norte de Porto Alegre. Uma área de banhado que vem sendo aterrada para avanço do “setor produtivo”, no qual se insere a obra de ampliação do Aeroporto Salgado Filho para cargas, e não pessoas. 

Nessa época, ocorreu a concessão do aeroporto para a empresa alemã Fraport. Talvez a palavra concessão represente um imaginário mais consensual, no entanto, na prática, o que se estabelece é a brutalidade da privatização de um serviço público por 25 anos. Trazendo todas as implicações que isso determina na vida cotidiana do povo, entre elas o aumento dos custos da prestação do serviço, com o estabelecimento de tarifas adicionais, como as cancelas que estão sendo instaladas. A lógica da maximização dos lucros prevalece sobre os interesses populares. 

Para esse projeto, a Fraport investiu R$ 382 milhões, visando atender aviões com capacidade para cargas maiores. A narrativa governamental que se estabeleceu era a da promoção do desenvolvimento regional com a facilitação da ampliação da logística de transporte, o que implicaria na ampliação do aeroporto. Não houve preocupação do poder público com o destino das 2 mil famílias que viviam ali. O único órgão estatal a manifestar preocupação com a responsabilidade pelos impactos, realocações e desocupações foi a FEPAM (Fundação Estadual de Proteção Ambiental). Cabe mencionar que, segundo a ação movida pelas instituições de justiça, consta no contrato de concessão a responsabilidade da empresa alemã com os custos da realocação da comunidade

Submersas num cenário de incertezas, sem diálogo com a empresa, as famílias começaram a vivenciar um violento processo de expulsão. Reproduziram-se na região todas as mazelas dos grandes projetos de infraestrutura: falta de negociação coletiva, sobretudo, por meio do estímulo à individualização do conflito; criminalização de lideranças e promoção de uma imagem negativa da comunidade; falta de acesso à informações; não pagamento de indenizações. 

A prefeitura, desconsiderando a responsabilidade assumida pela empresa, destinou os loteamentos Nosso Senhor do Bom Fim e Irmãos Maristas, longe da região da Vila, para a levar as famílias. A opção que só foi oferecida de forma precária no fim do processo de remoção, depois que as famílias aguentaram a falta de água, coleta de lixo, ficaram sem iluminação pública, retiraram-se escolas e postos de saúde. Inclusive, durante a remoção, a Fraport não reconheceu a associação de moradores legalmente constituída e contratou a empresa de engenharia ITAZI, especializada em remoções, para realizar o processo, terceirizando sua responsabilidade e, assim, evidenciando seu descaso. A condução das remoções ilegais contou com a cumplicidade do Estado por meio da Brigada Militar (nome dado à polícia militar no Rio Grande do Sul).

Famílias foram expulsas da Vila Nazaré. As que ficavam, viviam em meio aos escombros e sem ter acesso adequado aos serviços públicos / Crédito: Gabrielle de Paula/ Arquivo Amigos da Terra Brasil

Vários equívocos são apontados em relação à postura da prefeitura: a não utilização de áreas próximas à região, para diminuir o impacto da perda do território; o fato de que os loteamentos, construídos com recursos do programa federal “Minha Casa, Minha Vida”, estavam destinados para atender ao déficit habitacional da cidade, não para atuarem como política compensatória. Além do que os loteamentos não possuem acesso à plenitude dos serviços públicos como escolas, hospitais e transporte público, e apresentam falhas na edificação. 

Como no capitalismo a história se repete como tragédia, as famílias da Vila Nazaré foram expulsas para dar lugar às obras de ampliação da pista. Cada uma que deixava a vila, tinha sua casa destruída, dando o aviso aos demais de que as terras tinham novos donos. O proprietário, sem a posse, foi devidamente indenizado; aos pobres, apenas a realocação forçada. E na triste saga dos desterrados, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) tem feito esforços para juntar os removidos da zona norte, na ocupação Povo Sem Medo, demonstrando a viabilidade de outras áreas próximas na região, e resistindo aos despejos. 

De aeroporto à airport

A privatização do serviço público retira a orientação da destinação social e coletiva do mesmo, perdendo ainda mais seu caráter com a isenção fiscal, uma vez que não há retorno social e nem financeiro à coletividade, que perde o poder do controle e gestão comum. À medida que prevalece a lógica do lucro, tudo passa a ser objeto de mercantilização. Assim, após a privatização, o Aeroporto Salgado Filho passou a se chamar “Airport Salgado Filho”, sendo administrado por uma empresa transnacional que não tem qualquer comprometimento com a realidade local. 

Dados apurados pelo mandato do vereador Mateus Gomes (PSOL) apontam que a Fraport, entre isenções de IPTU, anistia de multas e juros, recebeu de presente o abono de R$ 71 milhões em 2022. Enquanto as famílias deslocadas para os loteamentos sofrem da precariedade de serviços. Se compararmos as contrapartidas dadas pela empresa, como a construção da escola primária no loteamento Irmãos Maristas, no valor de R$ 4 milhões, na verdade estão sendo financiadas pelas isenções e anistias fiscais. 

Cabe ressaltar que o transporte aéreo contribui para o aumento das emissões de gás carbônico na atmosfera, não se constituindo num eixo ecológico de logística. Representa apenas a maior viabilidade para corporações integrarem suas cadeias produtivas. Acerca disso, alternativas ambientais têm demonstrado a importância de problematizar a logística a longa distância e estimulado o comércio e consumo de produtos locais como ponto-chave para redução de emissões de gases do efeito estufa, e desta forma contribuir efetivamente com a redução das mudanças climáticas. 

Na contramão disso, a Fraport busca promover-se com uma imagem verde, anunciando que será empresa “carbono zero” até 2045, algo bastante difícil de se reconhecer já que se sustenta no tráfego de aviões. Isso só é possível porque a empresa alemã faz uso de um esquema de compensação e redução de carbono (Carbon Offsetting and Reduction Scheme – CORSIA), ou seja, mantém outros territórios florestais como compensação para a neutralização das emissões. Em verdade, estendendo seus danos a outras áreas, cometendo múltiplas violações: com a comunidade da Vila Nazaré pela remoção compulsória; com a população de Porto Alegre, pela apropriação do serviço público, cobrança de tarifas; e com os povos do Acre e outras partes que sofrem com as políticas de carbono.

A rede global Stay Grounded (SG) tem denunciado os impactos da indústria da aviação no mundo. Além da promoção da injustiça climática, o acesso à aviação é concentrado numa minoria rica. Segundo dados, os habitantes da América Latina e Caribe, em sua maioria, nunca colocaram os pés em um avião, como os moradores da Vila Nazaré. Em seu mapa das injustiças, demonstra como a construção de aeroportos e infraestruturas não promovem o desenvolvimento local, pelo contrário, expulsam pessoas de suas terras, destroem meios de subsistência, pilham água, solo fértil e devastam ecossistemas. 

Na esteira da crítica proposição em rede global, o caso da Vila Nazaré ganhou repercussão na Alemanha, com o apoio da Bund Amigos da Terra Alemanha e da KOBRA (cooperação Brasil-Alemanha), que levaram à mídia alemã a atuação suja da Fraport em terras brasileiras. Tal iniciativa se deu articulada com um processo de denúncia junto aos acionistas da empresa, a partir de um trabalho de levantamento de violações aos direitos humanos realizado por empresas alemãs no Brasil

Famílias mobilizadas em 2018 contra as remoções forçadas e para exigir seus direitos / Douglas Freitas/ ATBr

Ainda segue o trabalho de denúncia da brutalidade com que a empresa alemã conduziu a expulsão das famílias da Vila Nazaré, no qual não assumiu qualquer responsabilidade, nem mesmo as de devida diligência que anuncia. Pelo contrário, beneficiando-se da estrutura da arquitetura da impunidade, destacadamente da morosidade do processo judicial que discute os direitos das famílias, consolidou a retirada de toda a comunidade, externalizando o problema para outras regiões da cidade, justamente longe do aeroporto.

Conclusões

A expansão aeroviária está intimamente ligada à disputa territorial, sendo o caso da Vila Nazaré exemplar. Com o violento silêncio de autoridades e o lobby corporativo, pistas de aeroporto e imensos complexos industriais expulsam a população pobre sempre para mais longe nas cidades. A fim de impedir a desapropriação, a poluição, a destruição, a apropriação privada dos serviços públicos e o ecocídio causados pela indústria da aviação e atividades conexas, os direitos dos povos, especialmente das comunidades locais e de camponesas e camponeses em relação à governança e posse de suas terras e territórios devem ser totalmente reconhecidos e respeitados. Isso também ajuda a garantir a soberania alimentar e a proteger os meios de subsistência, o trabalho, a cultura e os costumes dos povos.

O sentimento de injustiça socioambiental que paira sobre o caso lança luzes à urgente e necessária reflexão sobre a mudança do paradigma de impunidade corporativa no Brasil. Tal como propõe o PL 572/2022, deveria ser considerada a centralidade do sofrimento dessas vítimas no manejo do conflito, assegurando a elas o direito de participar do debate sobre o empreendimento, sendo resguardado o direito à reparação integral. De igual modo, o Poder Judiciário deveria atuar para preservar os direitos delas, prevenindo-os da exposição à marginalidade e equalizando a assimetria de poderes entre a Fraport e a comunidade.

Também se acende o alerta para o avanço da privatização de serviços públicos. Estão em curso diversos projetos de lei que, caso aprovados, entregam a empresas o serviço de saneamento e distribuição de água, o controle da produção de petróleo e gás, o que pode implicar em aumento de tarifas para a vida do povo. Mas não apenas marcos normativos tradicionais, há o risco do avanço do Acordo Comercial União Europeia-Mercosul, que impactará na abertura de possibilidade de privatização de serviços públicos essenciais, como medida de contrapartida.

A saga do pobre na sociedade capitalista é sempre ser empurrado para as fronteiras, a tal ponto que a ele lhe cabe apenas um “não lugar” no espaço. Nessa terra das desigualdades, somos um mar dos que não existem para o Estado, que se situam na externalidade de qualquer projeto de direitos. Servimos para carregar sobre as costas o peso de todos os danos. É triste, mas ainda somos os desterrados em nossa própria terra.

Crédito da imagem de destaque: Reprodução/ ATBr

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/23/desenvolvimento-para-quem-transnacional-fraport-expulsa-familias-em-porto-alegre

Câmara protocola projeto que prevê a entrega de 157 imóveis à iniciativa privada

O projeto cria o Programa de Gestão do Patrimônio Imobiliário de Porto Alegre (PGPI), o qual regulamenta a compra e venda dos 157 imóveis, e foi aprovado nesta segunda-feira (16). Na lista de imóveis para desestatização, novo termo para a já conhecida privatização, estão incluídos terrenos onde não existem informações precisas sobre utilização destes por famílias pobres e negras, assim como suas finalidades.  Estão incluídas também moradias para expressões societárias e culturais de matriz Negra e Popular, sedes municipais de secretarias, e pode ainda impactar diretamente  três escolas de samba próximas ao Estádio Beira-Rio, na Avenida Padre Cacique, zona sul da Capital.

Representantes de movimentos sociais, torcidas organizadas e quilombolas manifestaram-se contra o programa aprovado na Câmara de Vereadores de Porto Alegre que prevê a venda de 157 imóveis para o capital especulativo. Foto: Assessoria Vereadora Karen Santos/Divulgação 

O Projeto de Lei Complementar 002/2022, que autoriza a venda de 157 imóveis, entre eles, terrenos ocupados por famílias e comunidades periféricas, foi aprovado na Câmara Municipal dos Vereadores de Porto Alegre. Chamado de “Liquida Porto Alegre” por vereadores da oposição, o projeto possibilita que a Prefeitura de Porto Alegre repasse para a iniciativa privada as sedes da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Smamus),  ex-Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam), no bairro Três Figueiras,da Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (Smoi, ex-Smov), na Avenida Borges de Medeiros, hoje desocupada, e da extinta Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (Smic), na entrada do Túnel da Conceição. Além disso, também foram colocados à venda para o capital especulativo áreas de lazer, como quadras de tênis no bairro Moinhos de Vento e terrenos em frente ao Trecho II da Orla do Guaíba. 

É importante destacar que três terrenos ocupados por escolas de samba – a Banda de Saldanha, a Praiana ou a Imperadores do Samba –  também estão na lista. Em entrevista ao jornal Zero Hora, o secretário municipal de Administração e Patrimônio, André Barbosa, afirmou que “neste momento, não se cogita removê-las”. Contudo, a ação da prefeitura abre essa possibilidade futura, colocando novamente em risco os espaços de cultura popular. Os imóveis serão vendidos em leilão público com edital montado pelo Executivo e também é possível manifestar o interesse na compra de qualquer imóvel com envio de ofício à Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (SMAP). Isto é, o repasse de terrenos municipais é direcionado a quem quer que possa pagar. Movimentos sociais denunciam que os terrenos estão sendo vendidos abaixo de seu preço original.

Ainda, em um dos terrenos que irá a leilão, observa-se a presença de tapumes da construtora Melnick Even, em imagem retirada do Google Maps com captação de 2019. Vereadores de oposição protocolaram pedido de informação quanto à presença da construtora em um imóvel supostamente sem uso social, como previsto na elaboração do PLCE 002/2022. Não há pronunciamento da Prefeitura de Porto Alegre sobre o assunto. 

Um dos terrenos à venda está tapado por tapumes com o logo da construtora Melnick Even. Foto: Google Maps/Reprodução

Os quilombolas foram  atingidos de forma direta e indireta pelo Projeto de Lei aprovado de autorização de venda dos Imóveis. “O programa é uma declaração de guerra à população afro-indígena da cidade e foi feito com uma tramitação legal duvidosa e aprovado de forma relâmpago”, declara Onir Araújo, da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul. Assim, a votação abre um precedente legal para outras desapropriações, ou seja, ela é um marco, caracterizada como o primeiro leilão praticamente completo de terrenos de uma Capital. “Seria como uma reedição de uma Lei de Terras Municipal nos moldes daquela editada no Brasil Império em 1850, ou seja, entregando as terras ‘Públicas’ para quem tem dinheiro e para os amigos do Imperador “, afirma o representante da Frente Quilombola RS.

Em outros empreendimentos envolvendo a venda de terrenos habitados por populações indígenas em Porto Alegre, como é o caso da Ponta do Arado, também se vê o processo de não consulta às comunidades, reforçando um modelo colonizador, em desrespeito à Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tradicionais em Estados Independentes. No entanto, só se havia aprovado a venda de um território por vez. Agora, com o leiloamento de 157 imóveis, as previsões, de acordo com Onir, são que, cada vez mais, a cidade pertença à iniciativa privada e prive seus cidadãos de habitarem-na. 

O processo de retirar o direito à cidade das populações periféricas é chamado de gentrificação e já ocorre em Porto Alegre

A gentrificação é o processo que revitaliza para as classes mais altas uma região antes em estado de pobreza, expulsando os moradores das classes mais baixas da região. Em áreas centrais, é comum que se perceba o processo de retirada do acesso à cidade das populações mais pobres para formar condomínios, hospitais, aeroportos, áreas de lazer para a classe média e alta. Os antigos moradores da região, por conta do aumento do custo de vida, como o preço do aluguel, não conseguem mais acessar o local no qual moravam. 

Em Porto Alegre, por exemplo, existiam 22 hectares próximos ao Parque Farroupilha (Redenção), denominados “região da Ilhota”, ocupados por pessoas de classe baixa. No final dos anos 1970, em um plano de reformar a cidade, os habitantes foram expulsos de suas casas por ordem da Prefeitura e forçados a se mudar para o bairro Restinga, na Zona Sul de Porto Alegre. O bairro hoje é um dos mais populosos da cidade e sofre com problemas estruturais, como a precariedade de transporte. 

Artur Klassmann, professor de Geografia, caracteriza a gentrificação como um processo que mudou de característica ao longo dos anos. Ao longo da história, explica Klassmann, a gentrificação contribuiu muito para a expansão horizontal das cidades, periferização urbana e criação de novas comunidades periféricas, pela tutela do governo no processo, como no caso da Ilhota, em que os moradores foram realocados pelo poder público. 

No entanto, agora são observadas essas remoções em aspectos difusos, em que, por exemplo, parte da comunidade é colocada em uma área e outra parte em local diferente. Como o caso da Nazaré onde os moradores foram para dois condomínios, ou pior como o caso da obra da copa onde os removidos pela prefeitura foram pulverizados na cidade com o mecanismo do aluguel social, que gasta em aluguel e não produz moradia além da desorganização dos moradores. Isso acarreta na perda dos laços comunitários que antes existiam e tinham seus meios de composição coletiva. 

Prefeitura cria planos mirabolantes para revitalizar partes da cidade enquanto retira direito de participação dos cidadãos nas decisões municipais

Apesar da precariedade de habitação de seus habitantes, a prefeitura de Porto Alegre insiste em lançar em suas redes sociais planos como o da revitalização do Arroio Dilúvio, que não especifica o que será construído e quando, apenas de que, no futuro, a cidade terá prédios semelhantes ao de filmes de ficção científica dos anos 2000. Também percebe-se o alinhamento da prefeitura com setores de construtoras e indústrias, que são citadas no projeto. “É muito fácil vender uma ideia de cidade para daqui a 30 anos. Na prática, um ou outro projeto de interesses específicos serão construídos agora e mais nada no futuro. Qual cidade queremos para agora?”, questiona Rafael Passos, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil em programa na RDC TV.

Conta oficial da Prefeitura de Porto Alegre emite pronunciamento em redes sociais sobre a implementação da revitalização do Arroio Dilúvio. Foto: Twitter/Divulgação

A participação dos habitantes de Porto Alegre em processos envolvendo sua cidade já é parca. Após a extinção do Orçamento Participativo e a deliberação de um Conselho Deliberativo em substituição a este, permitindo apenas a emissão de opinião dos cidadãos. Isto é, tornando os cidadãos cada vez menos sujeitos atuantes do processo de tomada de decisões e tornando a administração pública um balcão de negócios para o lobby empresarial. “Estes imóveis estão sendo vendidos no Projeto de Lei Complementar aprovado pela Câmara por preços abaixo do mercado e excluindo a população do processo de participação nas cidades”, argumenta Fernando Campos Costa, da coordenação da Amigos da Terra Brasil. 

A venda de territórios já é prática comum em outros níveis da autarquia do Governo Brasileiro

A Amigos da Terra Brasil denunciou em uma série de reportagens, um conjunto de projetos de entrega para a Iniciativa Privada em setores estratégicos do país, entre eles bens comuns que pertencem a toda a população e a nação para além dos habitantes atuais, ou de quem quer que queira usufruir em benefício próprio. A série apresenta o projeto neoliberal de entrega dos bens públicos da nação a empresas e empreendimentos nos diversos níveis Federal, Estaduais e Municipais, como ocorre em Porto Alegre. 

Da aldeia para o mundo: pesquisadora Balatiponé Umutina é a primeira indígena doutora do seu povo no Brasil

Eliane Monzilar conclui doutorado em antropologia e é exemplo de garra e de luta pelo acesso à educação para  os indígenas

Ixota Ixipana (boa tarde). “Meus pais sempre me incentivaram a estudar.  Vejo que isso foi uma inspiração. Sempre quis aprender o novo, em princípio tenho receio, mas me encanta. Foi o novo que me levou a trilhar estes caminhos, e a oportunidade que meus pais não tiveram serviu de inspiração. Ver a realidade de outras mulheres, de lutar pela sua independência e principalmente por ser mulher e indígena. Essas inspirações fizeram com que eu abdicasse de muitas coisas para eu seguir este processo da academia. Não foi fácil mas foi possível, apesar de todas as dificuldades psicológicas, logísticas e financeiras. Saí da aldeia para estudar em um outro contexto, uma outra vivência e você tem que se adaptar. Mas valeu muito a pena”.  Eliane Monzilar Umutina fala de sua trajetória acadêmica com amor, respeito e valorização. A doutora em antropologia  é parte do povo Balatiponé Umutina e tem contato com o universo da pesquisa desde muito jovem. 

Eliane Monzilar em sua aldeia, no Estado do Mato Grosso. Foto: Edna Monzilar

Ela conta que em sua aldeia natal, Umutina, costumeiramente, vinham acadêmicos para  pesquisar os anciãos, com o objetivo de compreender a história do seu povo. Eliane explica que isso lhe chamou muito a atenção desde a época de sua graduação pois, historicamente, o povo Umutina vem de um processo de colonização muito brutal de violência, não só física, de modo que quase chegara a ponto de ser exterminado, mas também de violência cultural e linguística. Isso a teria despertado para que ela, enquanto indígena, pudesse realizar sua pesquisa, voltada para as narrativas da educação escolar indígena, pois sua tese é uma etnografia do processo da educação escolar e da escola do povo Balatiponé Umutina, de como era antes com os não indígenas e a partir  do momento da conjuntura onde estes novos autores atuam e ficam à frente desta nova escola. “A graduação me motivou para que eu pudesse conhecer minha própria identidade e fortalecer os saberes do povo Balatiponé Umutina. E a antropologia colabora nesse sentido na minha pesquisa. Porém, quando entro me deparo com a questão do espaço, do engessamento, do sistemático, da radicalidade. Eu imaginava que a antropologia era algo, mas me deparei com um pensamento eurocêntrico. Tive que quebrar várias barreiras, com os professores, com os docentes, com os colegas mesmo.”

Eliane trabalha na aldeia Umutina, localizada dentro do território inígena Umutina, no Estado do Mato Grosso, e o município próximo à cidade de Barra dos Bugres. A aldeia Umutina fica a cerca de 120  quilômetros da capital Cuiabá. O território tem cerca de 28.120 hectares e abarca cerca de 14 aldeias, as quais foram se construindo no decorrer dos anos, e ainda hoje algumas estão em processo de construção. O povo Umutina tem cerca de 700 pessoas, sendo a maioria crianças, jovens e adultos. A aldeia é multiétnica e subdividida pelos nove povos que ali residem. O povo originário é o Balatiponé Umutina, Bakairi, Bororo, Parecis, Nambiquara, Terena, Manuke, Chiquitano e recentemente, Suruí. Entre os integrantes do espaço, existem indígenas casados com outras etnias e também com não indígenas.  A organização política do povo é: o cacique, que representa a comunidade, tem as lideranças e as organizações locais, que tem a associação, a organização do povo, a escola, a equipe da escola, a equipe da saúde e a comunidade. As pessoas vivem da seguinte forma: tem os funcionários públicos, que são da área da saúde e tem também os funcionários da educação, divididos entre estado e município. Tem ainda alguns funcionários da FUNAI (Fundação Nacional do Índio)  e a maioria da população vive sobrevivendo com suas roças familiares, fazem seus negócios, o pescado e o artesanato também são formas de sobrevivência. 

A indígena é professora da rede estadual de educação da secretaria SEDUC e está, atualmente, na gestão desde 2021 como diretora à frente da Escola Jula Pare. Esta é assistida pelo município das séries iniciais, da alfabetização ao quinto ano, que são servidos pelo município de Barra dos Bugres. Além desta, existe ainda uma segunda instituição, a escola do Estado, responsável por atender a educação básica do sexto ao nono ano, o ensino médio e a modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos). 

Escola indígena na qual Eliane atua até hoje, em prol da educação para todos. Foto: Arquivo Pessoal

Na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em Porto Alegre, recentemente, estudantes indígenas conquistaram a CEI (Casa do Estudante Indígena). Já na UNB (Universidade de Brasília), o espaço para estudantes indígenas, a “Maloca”, já se consolidava nos anos de 2012/2013. “Entre 2002 e 2005, começam os primeiros ingressos de indígenas na graduação. Quando entrei no mestrado já era uma demanda da graduação na UNB, lutando por um espaço. Em 2012/13, já estava consolidada a ‘Maloca’, espaço próprio dos indígenas. Ela tem toda uma estrutura de apoio de secretaria para este estudante, logística, pedagógica e social também. Apesar do desafio, que hoje ainda tem, esta foi uma conquista positiva”, conta Eliane Monzilar. O cenário de luta também é motivado pelo preconceito que permeia a vida do estudante indígena. A doutora em antropologia destaca que, quando precisou escolher quem a iria orientar no seu TCC (trabalho de conclusão de curso), uma professora queria a orientar.

Contudo, devido à recusa de Eliane, a professora chegou a lhe dizer que “se meu trabalho não fosse com ela, não seria bom. Senti que o ego dela ficou ferido por não ter sido escolhida por uma indígena.”

Por esses e outros motivos, a jornada de Monzilar é considerada motivo de celebração. “É um marco importante, não só na minha história pessoal, mas uma conquista coletiva. Por passar por vários momentos de encantos e desencantos, mas aprendi, tive resistência. Por trás de Eliane não estava só Eliane, estava um povo, uma ancestralidade; meus avós maternos e paternos, e isso me fortaleceu. Esta minha experiência foi a primeira e pode ser uma abertura para que outras experiências, principalmente de mulheres, não só indígenas, mas mulheres que têm limitações de acessar espaços como a universidade.” Formada na área de Ciências Sociais, Monzilar foi da primeira turma do Projeto Terceiro Grau Indígena, iniciativa pioneira a nível local, nacional e até internacional, responsável pela formação de 200 professores indígenas. O projeto foi uma demanda das lideranças da época, principalmente dos caciques do movimento indígena, com destaque para aqueles enraizados no Mato Grosso, onde foi executado esse projeto durante cinco anos. 

Formada em 2005, Eliane participou também da primeira e única turma contemplada com um concurso diferenciado para professores indígenas. “Eu fiz a especialização em Educação Escolar Indígena, e em 2012 eu finalizei e tive a oportunidade de fazer o projeto, fiz o meu mestrado profissional em Desenvolvimento Sustentável e também fui a primeira indígena do povo Balatiponé Umutina a ganhar o título de mestra. Eu o fiz no Departamento de Turismo e de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. Também foi um momento importante por ter sido uma das primeiras vezes em que o departamento se lançou em um mestrado profissional onde estavam presentes indígenas e indigenistas.”

Monzilar finalizou o mestrado em 2012 e, em 2015, apareceu a oportunidade de fazer doutorado. Esta etapa era um sonho da jovem Umutina, mas ela nunca imaginara que um dia o alcançaria. Ela se superou e, em 2019, defendeu sua tese, o que foi muito importante durante todo esse processo de luta, de busca e de fortalecimento pessoal para a acadêmica. “O doutorado me proporcionou também a estar em vários contextos culturais linguisticamente, pois tive a oportunidade de fazer um doutorado ‘sanduíche’. Fiquei 12 meses em um projeto de intercâmbio cultural de diálogo de saberes entre Brasil e Suriname. Tive a experiência de conviver com os indígenas do Suriname, não somente conhecendo, mas fazendo essa convivência bem próxima e também apresentando a cultura indígena do Brasil, especialmente a do povo Balatiponé Umutina, da qual eu pertenço.” Ela participou também de  um projeto de intercâmbio com os indígenas da Colômbia.

“Foi uma experiência muito significativa de poder interagir em contextos, culturas e línguas diferentes. Tanto Suriname quanto Brasil e Colômbia foram experiências muito marcantes na minha vida, tanto  acadêmica quanto  profissional.”

Eliane tem como sonho para o futuro: trabalhar com indígenas na formação de professores. “Acho que são caminhos que estão se abrindo para, posteriormente,  consolidar-se. Hoje faço parte, fui convidada no ano passado para ser professora na faculdade indígena intercultural.” A etnografia foi um sonho realizado em sua vida pois, como destaca, seu povo e os indígenas, no geral, sempre foram pesquisados, e hoje se abriu então a oportunidade de eles mesmos se pesquisarem e também de o fazer com os não indígenas. “Quem sabe no pós doc eu possa fazer isso!”.

A água como um bem comum: desafios para um projeto de país

Os conflitos ao redor da água têm se intensificado no mundo. Nos últimos anos, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), 70% da demanda por água é proveniente de atividades agrícolas, 22% para uso industrial e 8% para a população, isso representa que triplicamos a extração dela na última metade de século.

Ocorre que as mudanças climáticas, a velocidade da extração do bem e a poluição têm afetado sobremaneira a disponibilidade de água no mundo, gerando uma intensa disputa. 

De um lado, interesses corporativos que avançam para a mercantilização da água; de outro, povos unidos reivindicando seu reconhecimento como patrimônio comum à serviço da humanidade. Assim, a água é sem sombra de dúvidas um dos eixos “suleadores” das lutas por justiça social e ambiental, o qual é atravessado pela crise econômica, política, ambiental e cultural.

Desse modo, apresentar soluções para a crise da água num programa de governo é tarefa urgente. Basta observar que o Brasil concentra 13% da água do planeta, se tornando território estratégico da disputa geopolítica da água. Sob nossas terras pairam os interesses no acesso às águas dos maiores aquíferos, rios e lagos do mundo, bem como nas possibilidades de negócios e da ação da especulação financeira sobre a prestação do serviço de acesso à água para a população.  

Nesse cenário de disputa, as grandes capitais brasileiras têm sofrido as consequências da ausência de planejamento estratégico sobre o uso das águas, como também os efeitos da deficiência da proteção ambiental.

Em muitas das cidades se implementou regimes de contingenciamento, que variam entre dias da semana e horas sem abastecimento. Tal medida afeta desigualmente os bairros das cidades, uma vez que zonas periféricas estão condicionadas a sofrerem mais essas medidas, chegando em alguns casos à precária prestação do serviço por meio de caminhões pipa

CasaNat, sede da Amigos da Terra Brasil, em Porto Alegre (RS), instalou uma pia na calçada da rua para que as pessoas tenham acesso à água potável / Foto: Arquivo ATBr

Além desses, há a parcela da população brasileira que sequer tem acesso. Estamos falando dos cidadãos que vivem em ocupações urbanas, nas quais a inexistência da regularização fundiária urbana cria entraves burocráticos para o fornecimento de serviços básicos essenciais, como água potável. Essa realidade é semelhante à enfrentada por muitas comunidades rurais nas quais o serviço de abastecimento não é fornecido. E ainda, a parcela ainda mais pauperizada, as populações em situação de rua, que não dispõe de espaços públicos para beber água, lavar-se, coletar água. 

O direito humano à água é um direito essencial para desfrutar da vida e de todos os demais direitos humanos. No entanto, 5,5 milhões de brasileiros e brasileiras são privados dele cotidianamente.

Situação que se agravou na pandemia, quando lavar as mãos constitui-se na principal medida preventiva. Ao contrário de reconhecer e buscar solucionar essa problemática, as ações do governo parecem ir na contramão da garantia do direito, já que nenhum programa foi desenvolvido nos últimos anos sobre o tema. Destaca-se que durante a pandemia, os governos dos estados se limitaram às políticas de não corte de acessos, não abarcando, portanto, os que não acessam o serviço.

Não apenas a problemática do acesso tem se colocado, como o desafio de fornecer água de qualidade. Isso se deve à falta de preservação das nascentes e à contaminação dos cursos de água com poluentes da indústria, com resíduos das atividades extrativas e com agrotóxicos. Em geral, as estações de tratamento de água nas cidades não dispõem de equipamentos de análise sofisticados para pesquisas mais complexas de poluentes químicos, como a presença de metais pesados, logo, estudos qualificados sobre os impactos do consumo dessa água para a saúde humana não estão sendo realizados.

Um dos exemplos é o Rio Guaíba, que abastece toda a cidade de Porto Alegre (RS), no qual estudos recentes têm revelado índices elevados de poluição. 

Como se não bastasse, está em curso uma estratégia de mercantilização das águas no país, que vem sendo confrontada por movimentos populares, os quais defendem a água como bem comum. Dentre as medidas, encontramos a privatização dos serviços de saneamento (distribuição de água, esgoto, limpeza urbana e resíduos sólidos), por meio do avanço de projetos legislativos, e a financeirização das águas.

Se a privatização dos serviços de saneamento avançar, implicará na mudança da orientação da prestação do serviço como público essencial para a lógica capitalista da maximização dos lucros. Isso resultará, em curto prazo, no aumento do preço das tarifas, podendo dificultar ainda mais o acesso da população à água. É importante mencionar que pequenos municípios, e até alguns bairros mais distantes, não apresentam rentabilidade para a prestação do serviços.

No modelo atual isso é compensado por meio da relação de solidariedade do sistema, onde regiões mais rentáveis compensam menos rentáveis, assegurando a universalidade da prestação. Caso ocorra a privatização isso se quebra, relegando essas regiões a ficarem sem o serviço, ou criando um maior ônus ao Estado para sua prestação.

A crise hídrica é uma realidade no Brasil que precisa ser analisada sob a ótica da responsabilização das empresas transnacionais pelo uso indevido do bem comum, bem como dos atores públicos pela sua cumplicidade e má-gestão. Nessa esteira, a falta de acesso à água está diretamente relacionada à não concretização de direitos, bem como à distribuição desigual das riquezas. Não podendo se desconsiderar, nesse cenário, os impactos ambientais. Assim, pensar um programa de governo que dê respostas à crise do povo precisa enfrentar a urgência do tema da água.

A água no Brasil que queremos

Movimentos e organizações populares têm buscado construir a agenda da defesa da água como um bem comum, identificando-se como “guardiões e guardiãs das águas” tal como posto na Declaração Final do Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), em 2018: “Água é um bem comum e deve ser preservada e gerida pelos povos para as necessidades da vida, garantindo sua reprodução e perpetuação. Por isso, nosso projeto para as águas tem na democracia um pilar fundamental.

As mudanças climáticas, a velocidade da extração do bem e a poluição têm afetado sobremaneira a disponibilidade de água no mundo, gerando uma intensa disputa / Foto: Joka Madruga

Existem excelentes exemplos latino-americanos que podem inspirar o Brasil a tomar um novo rumo sobre as águas, desde a perspectiva da gestão pública até um uso mais sustentável do meio ambiente. Nesta esteira, é urgente reverter a possibilidade de privatização do abastecimento de água e manter o Estado no controle da administração pública, em parceria com as comunidades.

No Uruguai e em El Salvador foram realizados plebiscitos populares que mantiveram a água no controle público. Também tivemos aprendizados na Bolívia, em Cochabamba, quando a privatização resultou em tarifas extraordinárias, criando o cenário para a “guerra da água”, que resultou na re-municipalização do serviço. De igual modo, a cidade de Paris, na França, e outras 235 cidades, em 27 países, retomaram ao controle municipal a distribuição da água, avançando para uma maior universalização e qualidade do serviço, partindo do reconhecimento do fracasso da privatização.

Também, nesse caminhar, têm sido reconhecido o papel das organizações comunitárias em gerir a água. Em muitos países, tem se reconhecido a importância de se falar numa função social da água, a partir da afirmação desta como bem comum e patrimônio do povo. São mais de 80 mil comunidades que preservam as nascentes, colocando-as como públicas, de acesso livre às populações de seus territórios, e com cuidado compartilhado, tendo como premissa a universalização, sustentabilidade e democratização.

O direito à água em si ainda não foi reconhecido na Constituição e precisa ser revisto, uma vez que associá-lo apenas ao direito à alimentação adequada não contempla sua complexidade relacional com a saúde, a cultura, a soberania alimentar e hídrica, a garantia dos direitos à natureza. Precisamos avançar na inspiração de outras constituições da região e conectar esse direito aos da natureza, trazendo centralidade para os povos como sujeitos. 

Essas são apenas algumas das iniciativas que podem ser incorporadas em programas e plataformas durante o processo eleitoral deste ano, não se constituindo como o fim do debate, pelo contrário, ainda temos um longo caminho para pensar o controle, a distribuição e gestão popular das águas no Brasil. Seguimos trabalhando, no ressoar da aglutinação do FAMA, entoando que “a água não é mercadoria. A água é do povo e pelos povos deve ser controlada”.

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 9/05/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/09/a-agua-como-um-bem-comum-desafios-para-um-projeto-de-pais . Crédito da foto de destaque: Joka Madruga

Amigos da Terra lança informe Lucrando com Veneno – o lobby das empresas de agrotóxico da União Europeia no Brasil

A publicação pode ser conferida clicando AQUI

A Amigos da Terra lança nesta 5ª feira (28 de Abril), na Europa e no Brasil, novo informe das autoras Audrey Changoe e Larissa Mies Bombardi, expondo como as empresas transnacionais, entre elas a Bayer/Monsanto e a BASF, que lideram a fabricação de agrotóxicos na Europa, têm promovido o acordo comercial entre a UE (União Europeia) e o Mercosul (bloco econômico formado atualmente por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) para vender seus produtos químicos perigosos.

Por meio de grupos de lobby, as gigantes farmacêuticas têm buscado aumentar o acesso ao mercado para alguns de seus agrotóxicos mais danosos ao unir forças com associações brasileiras do agronegócio. Assim, têm apoiado uma agenda legislativa que procura minar direitos indígenas, remover proteções ambientais e legitimar o desmatamento.

Utilizando-se dos poderosos grupos de lobby do agronegócio do Brasil – como o CropLife Brasil, fundado pela Bayer – as empresas europeias de agrotóxicos apoiam esforços que enfraquecem medidas de proteção ambiental, incluindo o “PL do Veneno”, que minará a atual regulamentação de agrotóxicos e enfraquecerá fundamentalmente o processo de aprovação para uso de agrotóxicos no país. Ao mesmo tempo, o que o governo brasileiro deixa de coletar por conta de isenções de impostos sobre agrotóxicos é quase quatro vezes o valor total do orçamento do Ministério do Meio Ambiente em 2020.

Gráfico do relatório Lucrando com Veneno – o lobby das empresas
de agrotóxico da União Europeia no Brasil

O informe da Amigos da Terra é apresentado na véspera da assembleia anual de acionistas da Bayer, que será transmitida ao vivo nesta sexta-feira (29/04). O evento de lançamento será simultâneo às demonstrações contra os agrotóxicos na Alemanha, com a participação da professora brasileira, especialista e pesquisadora da USP (Universidade do Estado de São Paulo) na área, Dra. Larissa Bombardi, uma das autoras.

As denúncias e propostas trazidas por este novo estudo dialogam também com as demandas de uma frente brasileira crescente de organizações e movimentos sociais contra o Acordo de Comércio entre o Mercosul e a UE, que em recente carta a parlamentares e candidatos/as, apresentada em evento no Congresso Nacional, alerta: “Alinhada ao processo de desmonte que vem acontecendo, com a liderança do governo federal, perpetuar e aprofundar a agenda de violação e retrocessos nos direitos é o que está em jogo nos capítulos dos acordos comerciais com a Europa”. Para a Frente, este acordo em particular acentua a reprimarização e a desindustrialização da economia brasileira e atualiza os dispositivos coloniais que mantêm a dependência do país em relação à Europa, incentivando a violência racista contra povos indígenas, comunidades negras, camponesas e tradicionais, destacando que “o dano ambiental, associado à expansão do desmatamento e do agronegócio, recai desproporcionalmente sobre os povos negro e indígena e, em particular, sobre as mulheres”.


No lado Europeu, o posicionamento das organizações e alguns parlamentos contra este acordo colonial e desigual foi apresentado pelo europarlamentar Miguel Urban no final de março em Brasília. “Eu tomo partido contra este acordo porque creio que seja nefasto para os povos do Mercosul e da Europa, para ambos, por diferentes razões. (…) A questão dos pesticidas vai ser um elemento central, com o aumento da importação de agrotóxicos proibidos na Europa”, disse o parlamentar. ​​

E nos territórios, quem ganha e quem perde com estes acordos e com o aumento da importação e uso de agrotóxicos? Para Fernando Campos Costa, conselheiro da Amigos da Terra Brasil e coordenador do Programa de Soberania Alimentar e Biodiversidade, os maiores atingidos são o povo brasileiro trabalhador e o meio ambiente: “O caso  do enfrentamento à pulverização aérea de agrotóxicos, sendo usados como arma química contra comunidades camponesas na região metropolitana de Porto Alegre (RS), é uma realidade em todo o país, exacerbada pela liberação de armas e de novos venenos e pelo desmonte da legislação ambiental, de saúde e de direitos humanos no Governo Bolsonaro”.

Gráfico do relatório Lucrando com Veneno – o lobby das empresas
de agrotóxico da União Europeia no Brasil

No fim de março, no II Seminário sobre Polígonos de Exclusão de Pulverização Aérea de Agrotóxicos na Região Metropolitana, na Zona Sul de Porto Alegre (RS), que contou com a presença de assentados atingidos pelos ataques de pulverização aérea de agrotóxicos, movimentos sociais e entidades ambientalistas, foi apresentado um manifesto contra a impunidade ao agronegócio e que reforça a luta para garantir a produção de alimentos saudáveis, sem veneno, e proteger a biodiversidade e a população nos municípios de Nova Santa Rita e Eldorado do Sul. Semanas antes, com a realização da 19ª Festa da Colheita do Arroz Agroecológico em Nova Santa Rita, na sede da Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita (Coopan), marcou-se o início da colheita pelas famílias camponesas assentadas. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina e contribui para a soberania alimentar dos povos e para uma alimentação saudável, sem veneno, no Brasil e na região.

São com ações concretas como essas, com organização e mobilização internacionalista, que os movimentos sociais do Brasil, da América do Sul e da Europa, que defendem a democracia, os direitos dos povos, os territórios, a biodiversidade e a vida, se contrapõem ao modelo neoliberal e ao “livre” comércio destruidor da vida e da natureza e tomam partido contra o agronegócio, seus venenos e o lobby tóxico das empresas transnacionais.

DESTAQUES E DADOS DO ESTUDO 

Lucrando com Veneno – O lobby das empresas de agrotóxico da União Europeia no Brasil :

  • Somente em 2019, a União Europeia exportou mais de 6,5 milhões de quilos de agrotóxicos proibidos ou que nunca foram autorizados em seu território para países que formam o Mercosul. 
  • A prática de exportar agrotóxicos banidos na UE foi considerada um abuso aos direitos humanos por 36 relatores das Nações Unidas e oficiais dos direitos humanos em julho de 2020. 
  • Pesquisadores e acadêmicos que expuseram os impactos na saúde têm sido atacados por seu trabalho sobre agroquímicos, o que inclui assédio, ameaças à carreira e ataques pessoais. Instituições que identificaram as conexões com os problemas de saúde viram seu financiamento pelo governo ser cortado.
  • CropLife International, a poderosa associação de lobby de empresas agroquímicas que inclui BASF e Bayer, mostrou preocupações quanto às propostas para acabar com a exportação de agrotóxicos banidos na UE, dizendo que governos e agricultores dependem dos agrotóxicos importados para proteger suas economias agrícolas.
  • Grandes associações de agronegócio que representam a Bayer, a BASF e a Syngenta contribuíram com cerca de 2 milhões de euros para apoiar as atividades de lobby do “Instituto Pensar Agro”. 
  • A plataforma Agrosaber e o Pamagro são apoiados por associações do agronegócio financiadas pela Bayer e pela BASF, como o grupo de lobby de agrotóxicos SINDIVEG e a Croplife Brasil, ambos apoiadores cruciais do acordo comercial UE-Mercosul.
  • A BASF viu um aumento considerável em aprovações de seus produtos comerciais desde a eleição de Bolsonaro, com 60% de seus novos produtos aprovados desde 2016.
  • Juntas, Bayer e BASF tiveram 45 novos agrotóxicos aprovados nos últimos três anos, sendo que 19 deles contêm substâncias proibidas na União Europeia.
  • As empresas de agrotóxicos também aproveitam as generosas isenções de impostos sobre agrotóxicos. A quantidade que o governo brasileiro deixa de coletar por conta de isenções de impostos sobre agrotóxicos é quase quatro vezes o valor total do orçamento do Ministério do Meio Ambiente em 2020.
  • Empresas de agrotóxicos têm conseguido esconder esses benefícios por trás de um véu de “confidencialidade comercial”. Os consumidores brasileiros são mantidos no escuro quanto a que substâncias vão parar em seus pratos.

Ver mais detalhes e fontes na publicação clicando em https://bit.ly/lucrandocomveneno

REPERCUSSÃO DO ESTUDO NA MÍDIA:

DW (Deutsche Welle/ Alemanha): Intoxicação por agrotóxicos mata um brasileiro a cada 2 dias

Portal Sul 21: Estudo analisa os caminhos do lobby das empresas europeias de agrotóxico no Brasil

Fórum: Agrotóxicos: Bolsonaro se alia a Bayer e Monsanto em política do veneno, mostra estudo

Yahoo Notícias: Intoxicação por agrotóxicos mata um brasileiro a cada 2 dias, diz relatório

Quem fez a sua roupa? A luta contra o poder das corporações

A fragmentação das cadeias produtivas em diversos negócios espalhados pelo mundo construiu grandes cadeias globais de valor. Nós, consumidores finais, não temos consciência de todo o caminho que é percorrido de uma roupa até a loja onde as compramos. Até mesmo os Estados não conseguem ter o controle sobre a totalidade da produção, ficando limitados a regular partes da cadeia que estão em seus territórios. A totalidade desse processo está na mão de grandes corporações transnacionais, as quais concentram riquezas maiores que muitos desses países, juntando poderes político, econômico, cultural. 

Na ponta das cadeias globais estão as maiores violações aos direitos humanos, é precisamente no processo de extração de recursos, e no processo produtivo em si, quando a matéria bruta ganha valor agregado com o trabalho, que são ocultadas as maiores barbáries. Isso porque nossa economia, estando sob o controle das empresas transnacionais, é centrada na obtenção de lucro. Esse afã é sustentado na externalização dos danos socioambientais aos povos, como alguns denominam de espoliação, e na superexploração da força de trabalho. Assim, trabalho precarizado e subalternizado, em condições inadequadas, é a lógica estrutural. As grandes marcas, por sua vez, não querem sua imagem diretamente associada a essa violência, por isso atuam por suas terceirizadas, criando obstáculos para sua responsabilização direta.

Essa é a realidade da indústria têxtil. Recordemos, que em 24 de abril de 2013, desabava o edifício de oito andares Rana Plaza, na cidade de Daca, capital de Bangladesh. O prédio abrigava uma parte da cadeia de produção têxtil de grandes empresas transnacionais fragmentadas em diversas fábricas de precárias instalações. No desastre morreram 1.134 pessoas, das quais 80% eram mulheres que trabalhavam na costura. Restaram, ainda, 2.500 pessoas feridas. 

Em termos de responsabilização, o proprietário do prédio foi responsabilizado penalmente. Algumas das vítimas foram indenizadas por corporações da indústria têxtil, com valores por volta de 200 dólares por família, contudo era obrigação dos parentes conseguir provas de DNA. Uma das respostas construídas ao caso, pela comunidade internacional, foi o Acordo sobre Segurança de Fábrica e Predial em Bangladesh. Das 29 marcas identificadas com produtos das fábricas do edifício, apenas 9 participaram das negociações e da assinatura do acordo, e somente 7 contribuíram para o Fundo Fiduciário do Doador Rana Plaza apoiado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

Como o desastre de Bangladesh, vários setores da indústria operam dessa forma cotidianamente, evidenciando que não foi um caso eventual, mas é estruturante do sistema. As grandes corporações têm ditado a lógica econômica centradas na maximização de seus lucros, por meio do estabelecimento de condições precárias de trabalho, da promoção da informalidade dos trabalhadores e das trabalhadoras, da exigência de extensas jornadas de trabalho, entre outros. São elas que acumulam todo o lucro gerado ao longo da extração, produção e circulação de bens e serviços, acumulando o domínio, cada vez mais intenso, dos territórios e o controle da vida. Contam ainda com a constituição de um minucioso sistema de proteção de seus direitos por meio da captura corporativa, dos tratados de livre-comércio e das comissões de arbitragem internacional, compondo a arquitetura da impunidade corporativa global. 

Contra o silêncio que o tempo poderia dar a essa história, a Marcha Mundial de Mulheres (MMM) escolheu o dia 24 de abril como dia de ação global pela solidariedade contra o poder das corporações sobre o trabalho das mulheres, seus corpos e suas vidas. Sendo um dia de luta para desnaturalizar a impunidade, ao colocar rosto e nome nos agentes do mercado que causam violações aos direitos humanos, ao evidenciar a gravidade do controle do poder por parte das empresas transnacionais e em promover a defesa da natureza, da vida digna, do trabalho justo e livre de superexploração. As ações pensadas escracham a hipocrisia da responsabilidade social corporativa, ao passo que constroem exemplos concretos de alternativas ao neoliberalismo, ao organizar processos de construção de soberanias centrados no direcionamento de uma economia para a vida. 

No dia 24 de abril deste ano, está incluída também a denúncia da guerra e de quem se beneficia com ela. O custo de vida no Brasil aumentou exponencialmente nos últimos anos, levando centenas de mulheres a perderem seus trabalhos e se encontrarem sem condições de moradia digna, sobrecarregadas pelas tarefas de cuidado. A solução neoliberal para a crise é o aumento do autoritarismo e o avanço fascista, expresso na guerra “contra o narcotráfico” e na violência da flexibilização da legislação protetiva ambiental para extração de minérios e expansão da fronteira agrícola. Por trás dessas políticas estão empresas transnacionais se beneficiando das políticas de “austeridade” e destruição ambiental. Assim, neste 24 de abril de 2022 as ações são para recordar que existem alternativas à guerra e que tais crises sistemáticas podem ser superadas por meio da solidariedade de classe, com promoção de justiça para todos. É possível construir um mundo no qual todas as mulheres e territórios sejam livres, sem destruir o planeta.

Por onde vamos com esperança: solidariedade feminista em ação

No mês de março um importante passo para a responsabilização das empresas foi dado no Brasil com o PL 572/2022, que prevê a criação de um marco nacional de empresas e direitos humanos. Cláudia Ávila, coordenadora nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), avalia que o PL é uma ferramenta importante para efetivar a aplicação dos mecanismos de responsabilização cível criminal e administrativa de proteção dos direitos humanos não só no âmbito da reparação, mas também, e principalmente, para prevenção das violações de direito. Em sua justificativa, o projeto reconhece a assimetria e os impactos da atuação de empresas na vida das mulheres, bem como prevê mecanismos que podem representar mudanças estruturais no acesso à justiça para atingidas.

A urgência de um PL é para evitar casos como da concessão do Aeroporto Salgado Filho à Fraport, em Porto Alegre (RS), no qual para ampliação da pista do aeroporto removeu, sem nenhuma escuta, nenhuma participação ou chance de escolha da comunidade cerca de 2.000 famílias da Vila Nazaré para local distante, em moradias não condizentes com a realidade das famílias com todo um modo de vida rururbano que há mais de 50 anos construíram não apenas moradias, mas cidade naquela região.

Destaca-se a previsão, no PL, da criação de um Fundo Emergencial para as vítimas, que possa assegurar a recomposição da renda das famílias; previsão de custos para assessorias técnicas; garantias de acesso à água potável, que permitiriam a continuidade de condições de vida digna até a conclusão da reparação integral. Outra previsão fundamental é a inversão do ônus da prova, já que as empresas dispõem de melhores condições de acesso à prova. Se pensarmos essas medidas aplicadas ao caso, por exemplo, de Rana Plaza, os familiares das trabalhadoras mortas não teriam ficado desamparados durante meses posto que contariam com o Fundo. Ademais, a sobrecarga de provar a perda se inverteria à empresa, facilitando o acesso às indenizações. 

A construção de esperanças também nasce das resistências concretas nos territórios, assim a luta contra o poder corporativo é também momento de construção de alternativas desde os povos. Inspirados nisso é que se organiza, desde 2020, a Aliança Feminismo Popular no RS, composta pela MMM, MTST e Amigos da Terra Brasil (ATBr), com apoio do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). Uma das propostas é a construção de hortas agroecológicas  na ocupação do Morro da Cruz, na capital gaúcha, no apoio à soberania alimentar da comunidade. A militante da MMM e moradora da comunidade, Any Moraes, considera as atividades realizadas neste dia 24 de abril no local, marcado pela Ação de Solidariedade Feminista, como “um momento de nos encontrarmos na horta comunitária do Morro da Cruz num espaço que foi construído por meio dessas ações de solidariedade durante o período da pandemia, quando agravou ainda mais a situação de insegurança alimentar, principalmente das mulheres. É um espaço que tem sido importante para construção de reflexões, e a atividade desse domingo foi o momento da nossa resistência, a nossa luta no enfrentamento às transnacionais e a esses governos de extrema direita que aprofundam cada vez mais o autoritarismo, e avançam com a exploração das nossas vidas, dos nossos corpos e dos nossos territórios”.

Investir na construção de soberania alimentar nas ocupações é uma forma de tecer alternativas concretas para a vida prática das mulheres. Ao longo do dia 24 de abril de 2022, as mulheres da Aliança destacaram a importância do direito à moradia e da alimentação como bens comuns,  afirmando a urgência de avançarmos na produção de alimentos com qualidade e soberania. Letícia Paranhos, militante da Amigos da Terra Brasil e membra da Aliança, esteve presente na atividade do Morro da Cruz. Para ela, foi uma felicidade encontrar o avanço na continuidade da organização pela soberania alimentar na comunidade com o estabelecimento de uma cozinha comunitária, num momento em que no Brasil há tanta fome. Frente ao descaso do governo para com essa agenda, é de suma importância conseguir conversar e organizar, sendo esse um dos propósitos da Aliança Feminismo Popular, o de construir possibilidades dentro dos próprios territórios. 

Feminismo Popular

Há muitos feminismos hoje, inclusive o corporativo. Diversas das marcas envolvidas no desastre em Rana Plaza vendem camisetas de slogans feministas; financiam projetos para “empoderamento” das mulheres; promovem políticas de equidade de gênero em seus códigos de conduta; algumas até incorporam debates LGBTQIA+. Todas essas iniciativas fazem crer que as soluções são individuais, na tomada de autoconsciência do indivíduo, não necessitando de mudanças profundas nas estruturas e práticas de poder. 

O dia 24 de abril é também uma crítica a esse movimento. Pensar que as roupas amplamente vendidas pelas grandes marcas possuem trabalho de alguma mulher do Sul global incorporado. É precisamente essa trabalhadora sem direitos e mal paga que conferiu a costura da peça que você veste, trabalho alienado e invisibilizado (que produz a sua roupa). 

Assim, lutar por um verdadeiro reconhecimento da mulher é pensar um projeto político coletivo que rompa a estrutura do poder corporativo global, que possa trazer dignidade a essa trabalhadora, de tal forma que ela se reconheça no produto do seu trabalho e receba as condições para uma existência plena do esforço do seu trabalho, contando com toda uma rede de proteção social gratuita. Letícia, da Amigos da Terra Brasil, considera que aprofundar os laços de um trabalho coletivo, organizado, para a continuidade das vidas no mundo, é redefinir o direcionamento dos lucros extraordinários para serem distribuídos entre os despossuídos, até que todos e todas possam viver com dignidade. Esse é o feminismo que queremos, popular, por ser feito pelo povo, para o povo e com o povo e, portanto, um projeto de libertação de todas as mulheres, porque como indivíduos somos apenas corpos e territórios expostos a brutas estruturas, mas como coletividade somos sujeitas centrais da transformação da sociedade.  

Resistimos para viver, marchamos para transformar!

* Este é um artigo de opinião publicado no site do jornal Brasil em Fato em 25 de Abril (link aqui).

Confira mais fotos:

Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil
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Retomada Guarani da Ponta do Arado em Porto Alegre (RS) constrói sua casa de reza e fortalece sua cultura e tradição

Apesar dos constantes reveses, a construção de um espaço de conexão com a espiritualidade traz os Mbyá Guarani para dentro de sua cultura e tradição. Pelo fim da injustiça contra aqueles que chegaram primeiro na Ponta do Arado Velho!

Entre idas e vindas, a área da fazenda do Arado Velho é território Mbyá Guarani. Apesar do modelo econômico neoliberal que prioriza as privatizações estar tomando o espaço, a resistência se mantém forte.  No mês de junho de 2022, fecham quatro anos de Retomada Guarani em meio às terras ocupadas. Em 2018, o local contava com três famílias e hoje existe uma parentela, composta por sete famílias. A situação judicial que se coloca atualmente é a mesma de antes do início da pandemia da COVID-19. Os juízes desembargadores da Justiça Federal são os responsáveis por tomar a decisão final sobre a situação dos Mbyá Guaraní. O questionamento que fica é: até quando os Mbyá ficarão nas areias da Ponta do Arado Velho esperando o processo de demarcação territorial?

Crianças guaranis brincam na orla do Guaíba, nas areias da retomada. Foto: Carmem Guardiola

Hoje, as famílias que residem no território vivem um cotidiano colorido pela ancestralidade, por um presente vivido em sua potência máxima da manutenção de um modo de viver que lhes confere autonomia cultural. Por estes e outros motivos, o apoio de aliados à causa do povo Guarani no decorrer dos últimos anos tem possibilitado uma maior sensação de segurança e apoio por parte do povo atingido. Após momentos de risco de morte e recorrentes ameaças voltadas para a desestabilização emocional dos indígenas, se tornou essencial o trabalho em prol de sua segurança. Para tanto, a comunidade amiga e a organização Amigos da Terra Brasil vêm atuando continuamente na instalação e manutenção de sistemas fotovoltaicos com painéis solares, voltados para a geração e distribuição de energia. O que proporciona aos Guarani uma maior segurança, lâmpadas quando estas se fazem necessárias e comunicação com aliados. Entre outros projetos, foi instalado um sistema de captação e tratamento de água do Guaíba. Esta infraestrutura de raízes fortes que auxilia os indígenas diante das tentativas permanentes de desterritorialização e o convívio com familiares, vai trazendo aos poucos o sentimento de aldeia, o tekoá, espaço para ser um Mbyá. Neste “território” não podem faltar os encontros com Nhanderu Mirim, os deuses menores, na Opy’i, a casa de ligação com os deuses, casa de concentração, casa de “reza”, espaço de contato com a espiritualidade. Na Opy’i, além dos encontros com Nhanderu Mirim, o conhecimento dos ancestrais se faz na celebração de eventos que fortalecem o modo de ser Mbyá.

Desde o início das invasões neste território orquestradas  pelos colonizadores, o local se tornou palco de histórias de tristeza, perdas de parentes, doenças, perda de autonomia, escravidão, perda de territórios, desestruturação emocional e sobretudo, de tentativas de apagamento da herança cultural dos Guarani. As lutas desiguais os levaram à busca por terras e por autonomia por meio das leis dos não indígenas. Na Constituição de 1988, esses povos conseguiram garantir, por meio de instrumentos jurídicos ocidentais, alguns direitos básicos. Entre eles, o direito a viverem conforme seus costumes e tradições, mas também direito à saúde e educação diferenciados.

Guarani reunidos em frente à construção da Opy’i. Foto: Carmem Guardiola

Apesar dos recentes avanços, a situação dos Guarani na Ponta do Arado já vem complicada desde que a ideia de construção de um bairro planejado na Fazenda do Arado Velho começou. Mesmo os órgãos tendo identificado inconsistências técnicas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) apresentado pela Arado Empreendimentos Imobiliários Ltda, proprietária da fazenda e responsável pelo empreendimento, o prefeito Sebastião Melo moveu montanhas para tirar o bairro do papel. Essa construção acarretaria a entrada de condomínios de luxo na área. Isso mobilizou a implantação de um sistema de captação e tratamento de água, o Sistema de Abastecimento de Água (SAA) Ponta do Arado, uma adutora subaquática de captação de água bruta supostamente pensado para melhorar o abastecimento para Belém Novo e arredores. O conjunto de sete obras, sendo de grande relevância também a Estação de Tratamento de Água (ETA) Ponta do Arado, tem previsão de serem concluídas em 2024. No pouco tempo de atuação dessas obras, o desgaste e os estragos feitos no cotidiano dos Guarani  já são visíveis. Em 2021, três anos após o início da retomada das terras ancestrais pelos Mbyá Guarani da Ponta do Arado, ocorrida em 15 de junho de 2018, os indígenas tiveram finalmente acesso à água potável e adquiriram autonomia energética

Bóias colocadas pela prefeitura no trecho de travessia Guarani sem nenhuma explicação. Foto:  Carmem Guardiola

Hoje em dia, os Mbyá continuam desassistidos pela prefeitura. Segundo a cientista social Carmem Guardiola, pesquisadora do LAE/UFRGS (Laboratório de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que acompanha a situação dos Guarani desde a retomada em 2018, “O que acontece ali na área é uma arrogância racista por parte da administração do município de Porto Alegre. Ela não se comunica com os Guarani da Retomada que navegam pelas águas, e este fato é conhecido por todos na região. A administração não entrou em contato com as comunidades, tanto com os Mbya quanto com os pescadores que ali mantinham uma rotina de navegação. O processo de trabalho para a construção da obra do DMAE, nas águas, não foi esclarecido. Bóias são colocadas em diversos lugares, variando de localização e os Mbya não sabem o que elas sinalizam.. Foram colocadas pequenas placas na praia dizendo que é proibido o acesso devido ao perigo”. Ela explica que aquelas boias vão trocando de lugar e a terra também. Assim, não se tem conhecimento do que acontece ali, e Guardiola observa que “não tem ninguém da prefeitura disposto a explicar o processo”. 

Draga trabalhando na beira  da prainha de Copacabana. Foto: Carmem Guardiola

Em conversas realizadas na Ponta do Arado (investigações entre os moradores), a cientista social descobriu que “a draga faz um buraco enorme para colocação de canos que vão levar a água até a estação de tratamento. Essa areia que eles deslocam é jogada para um lugar, depois colocam o cano e cobrem de areia. Mas ela fica muito na superfície, fiquei sabendo que deu prejuízo para alguns pescadores ali, porque bateram seus motores nessa areia.” Em meio ao caos, os Guarani arranjaram um jeito. Eles não estão deixando de fazer a travessia, fazem a passagem indo por onde eles acham que podem ir, ou seja, onde não tem boias. Eles atracam em um outro lugar ao lado da prainha de Copacabana onde podem atracar. Fica a reflexão, pois o descaso é ainda mais visível dado que hoje, é de conhecimento geral que os Guarani “moram ali na Ponta do Arado e transitam bastante, inclusive agora tem adolescentes Mbyá indo e voltando da escola todos os dias.”

Hoje, a retomada dos Guarani se dá pelas mãos do cacique Mbyá Guarani Timóteo Karai Mirim, personagem central na atual retomada. Esta semana, Timóteo ergue sua Opy’i, casa de reza, que deve chamar o kokué, a roça, plantação de sementes e alimentos sagrados. Na Retomada do Arado Velho a comunidade ergue a Opy’i, com ela deve vir o kokué, mas também educação e saúde diferenciadas.

Confira a entrevista com o cacique Timóteo Karaí Mirim:

Golpe Verde: falsas soluções para o desastre climático

Publicação organizada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Amazônia Oriental, Amigos da Terra Brasil e World Rainforest Movement (WRM) reúne artigos que analisam criticamente o processo da implementação da chamada “economia verde” no estado do Acre.

O material faz parte de uma série histórica composta por outros dois materiais: o dossiê O Acre que os mercadores da natureza escondem, lançado na Cúpula dos Povos (RJ), em 2012, e a revista 30 anos pós-assassinato de Chico Mendes e destruição oculta de florestas e vidas no Acre, publicada em 2018. Aliadas a uma série de outras ações e produções, estas publicações resultaram em um processo de articulação entre mulheres e homens indígenas, extrativistas, ribeirinhos, militantes da academia e organizações sociais dentro e fora do Acre.

Com o programa REDD+ no Acre completando 10 anos, e frente ao caos generalizado que no mundo – e especialmente no Brasil – vivenciamos hoje, em 2021, nos vimos impelidos a escrever mais este dossiê. Apresentamos, em oito textos, um panorama desse processo histórico no Brasil. Transitando pelo vasto horizonte das violações e desmandos do capitalismo verde, começamos 33 anos atrás, com o assassinato de Chico Mendes, e seguimos analisando os impactos do REDD em comunidades indígenas e extrativistas no Acre, e para além do Acre. Desnudamos, também, a mais nova roupagem do REDD: as Soluções baseadas na Natureza (SbN), promovidas em conferências do clima da ONU.

Entre artigos acadêmicos, depoimentos de militantes de base, entrevistas e cartas públicas, refletimos sobre os acontecimentos e as políticas às quais somos submetidos, e assim nos preparamos melhor para o porvir. Esperamos, com este material, dar continuidade no debate público sobre a resistência aos projetos de economia verde que tentam enganar a população brasileira e o mundo, fingindo plantar árvores ou mantê-las em pé – enquanto, na realidade, passam o trator e a boiada.

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