Nota de Solidariedade da Amigos da Terra Brasil ao Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST)

 

No dia 17 de maio de 2023, instalou-se, na Câmara dos Deputados no Brasil, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sem objetivo determinado para perseguir e criminalizar o MST. A proposta vem de Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente do Governo Bolsonaro, hoje deputado, que conjuntamente com o Tenente Coronel Zucco, estão conduzindo os trabalhos da CPI. Ricardo Salles, que usou a expressão “passar a boiada” enquanto o Brasil vivia, lutava, resistia e morria com a pandemia, responde por investigações pelo suporte à extração ilegal de madeira na Amazônia brasileira, favorecimento ao desmatamento e à grilagem de terras, opondo-se historicamente às lutas travadas pelo MST em prol da Reforma Agrária e da produção de alimentos saudáveis no país.

O único propósito da CPI é criminalizar a luta histórica do MST. Um dos maiores movimentos sociais do mundo, que há 40 anos luta contra as desigualdades sociais no Brasil, especialmente no campo. Ao longo de sua história, o MST esteve à frente das denúncias contra o avanço ilegal dos latifúndios sobre terras públicas, o uso indiscriminado de agrotóxicos e os danos ambientais provocados pelo modelo do agronegócio, e ao trabalho escravo. Ações como esta, da CPI, relembrando a brutalidade da violência que se instala contra camponeses e camponesas, cujo 14 de abril, Massacre de Eldorado dos Carajás, é uma data para recordar.

Os acampamentos e assentamentos do MST são responsáveis pela produção dos alimentos saudáveis que chegam a casas de centenas de brasileiros e brasileiras. Recordamos que são nesses territórios que se realiza a maior produção de arroz orgânico da América Latina. Durante a pandemia, o MST distribuiu inúmeras “marmitas da terra” em solidariedade às famílias da cidade que passavam fome, no total foram mais de 7 mil toneladas de alimentos da reforma agrária doados. A luta do movimento é pela efetivação do direito à Reforma Agrária, ao cumprimento da função social da propriedade e à preservação do meio ambiente.

Entendemos que os crimes que deveriam ser investigados pelo Congresso Brasileiro envolvem os escândalos de trabalho escravo, a atuação predatória de empresas transnacionais nos casos de desastres de mineração, a violência no campo, a criminalização de defensores e defensoras de direitos humanos, a grilagem de terras, o desmatamento ilegal, não a um movimento social e à luta popular. 

Estamos unidos ao MST cuja única ação ao longo dos 40 anos é lutar pelos seus direitos e por condições de vida digna ao povo brasileiro. Não nos calaremos em mais uma tentativa de criminalização ao movimento. Denunciamos a má-fé dos envolvidos na proposição da CPI. 

 

Vida longa às lutas do MST ! Viva o MST!

A biodiversidade que se constrói no território do campo à cidade

 

biodiversidade, ou diversidade biológica, tem a ver com a variedade de espécies, sejam plantas, microrganismos ou animais que habitam a Terra. Desse modo, no núcleo central da noção de biodiversidade está a vida em suas mais variadas formas. Se partimos da centralidade da vida, certamente iremos reconhecer que no sistema capitalista, cujo eixo condutor é a obtenção de mais lucro, não há possibilidade de compatibilizar com um projeto político pela proteção da vida e pela preservação da biodiversidade.

Desde os anos 70, os escândalos da contaminação ambiental e da emergência do tema das mudanças climáticas têm impulsionado a construção de uma agenda internacional de proteção à biodiversidade. Nesse sentido, o dia 22 de maio é reconhecido como Dia Internacional da Biodiversidade, com a intenção de alertar para a importância da proteção da mesma. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 25% da biodiversidade do planeta, hoje, encontra-se ameaçada de extinção. Dentro de uma ideia de usar a natureza como biblioteca de saberes e formas que o ambiente se relaciona e constrói soluções, a observação é fundamental. E mais: ter ambiente natural para observar é ter de onde buscar essas soluções, assim como andar e observar a vida se resolvendo.

A partir do Relatório de Brundtland (1987) se desenvolveu a noção de desenvolvimento sustentável, criando um terreno argumentativo para justificar a continuidade do modelo de desenvolvimento econômico sob a narrativa da possibilidade de harmonização com o meio ambiente. De igual modo, as agendas que se seguiram – Agenda 2030 e os acordos firmados nas Conferências das Partes – refletem a linha conciliatória. Inclusive, durante a ECO-92 se desenvolveu a Convenção sobre a Diversidade Biológica (1993), com o fim de promover a proteção da diversidade biológica por meio do uso sustentável da biodiversidade, com a repartição justa e equitativa de benefícios. No entanto, até que ponto essas narrativas sobre o meio ambiente refletem uma real proteção da biodiversidade?

As políticas ambientais tratam a preservação da biodiversidade no que chamamos de “conservadorismo ambiental”, no qual a Natureza é algo distante do sujeito, circunscrito a um espaço delimitado (à floresta, à reserva ou à unidade de conservação), reiterando um paradigma colonialista. Tal visão não integra as relações sociais urbanas, como a de produção alimentar, como parte da totalidade da biodiversidade, ignorando, muitas vezes, o papel que povos e comunidades têm na construção de relações de proteção, em uma visão mais completa da vida natural. Com isso, não queremos afirmar a não importância de criar espaços de proteção integral da biodiversidade, pelo contrário, inclusive denunciamos os riscos à biodiversidade da privatização e aluguel dos parques. O que se quer chamar a atenção é que a criação de espaços de proteção não coloca em xeque o modelo de produção que destrói a biodiversidade, apenas serve como uma política de compensação.

Se olharmos para o campo da produção de sementes, as formas de produção e distribuição, o ingresso de novas tecnologias ligadas à modificação genética tem destruído a diversidade de cultivos. Isso afeta diretamente a saúde humana, na falta de nutrientes. De outro lado, a produção do agronegócio demanda intensa utilização do solo, água, desterritorialização de comunidades, promovendo um desequilíbrio nas condições de reprodução das formas de vida.

Diante disso, organizações ambientalistas, como a Amigos da Terra Brasil, têm convidado a repensar as propostas de preservação da biodiversidade, entendendo o campo e a cidade como parte do mesmo sistema e que, somente juntas e juntos, podemos construir a Soberania Alimentar, difundindo a crítica aos mecanismos de falsas soluções e promovendo direitos conquistados pelos povos.

Nesse sentido, em Porto Alegre (RS), no dia 22 de maio, festeja-se desde 2007 o Dia da Biodiversidade, com a Festa da Biodiversidade (foto acima da atividade em 2012). Um encontro no qual buscamos mostrar a nossa diversidade na capital gaúcha e Região Metropolitana. Em 2023, estamos na nona edição do encontro, que festeja a biodiversidade de nossos corpos e territórios. Desde a última alteração do Plano diretor de Porto Alegre, em que se extinguiu a zona rural, viemos lutando pelo entendimento da importância desta área da cidade, evidenciando o quanto ela é estratégica para a soberania alimentar. Quando ampliamos esta realidade para a região metropolitana, essa capacidade se expande e se complexifica de tal modo a pensar a origem do que bebemos, comemos e respiramos.

Sabemos que nossa água está contaminada com agrotóxicos. Nossa comida também, e apresenta índices assustadores. E o nosso ar, ainda que não tenhamos medidores, certamente está contaminado por agrotóxicos pulverizados no entorno da cidade e pela combustão dos transportes ou das chaminés das empresas. Certos de que essa contaminação precisa ser medida e informada, precisamos de uma proteção para garantir um ambiente saudável no nosso território.

Essa luta vem sendo construída pelas agricultoras e pelos agricultores dos assentamentos da reforma agrária, que, de forma corajosa, mais uma vez, enfrentam o agronegócio e a trama de impunidade que cerca esse setor. Dentre os instrumentos utilizados está a denúncia da deriva criminosa de agrotóxicos, na qual o agronegócio pulveriza o veneno para além de suas terras, contaminando a produção camponesa; fazendo uso do agroquímico em sua função de criação, como arma da guerra. O propósito da deriva criminosa é eliminar a esperança presente na produção de alimentos saudáveis que não fazem uso de agrotóxicos, destruindo com a possibilidade de se construir outras formas de produção autônomas às grandes corporações e tornar impossível a soberania alimentar. Sem pessoas no campo, o conhecimento, as terras, as sementes serão deles, das corporações, e para lutar contra a fome vamos depender das mesmas corporações.

O Campo e a Cidade

Os movimentos sociais e as organizações pautam que o repensar a nossa relação com a biodiversidade é também um refletir sobre as relações entre o campo e a cidade. Na vida urbana, desconsideramos a presença da biodiversidade no nosso dia a dia, como nos alimentos que consumimos. Entender de onde vem a nossa água ou os alimentos em nossa mesa, ou a qualidade do ar que respiramos, e saber que práticas e formas de produção da indústria da alimentação estão destruindo o planeta e evitando que outras formas coexistem, para começar a consumir alimentos locais, de produção camponesa, que causam menor impacto ao ambiente.

Um exemplo concreto dessa relação é dado pela parceria do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) com os movimentos do campo, nas cozinhas solidárias. Durante a pandemia de covid-19 agravou-se a crise alimentar brasileira, quase 33 milhões de pessoas passaram fome. Diante disso, o MTST organizou até hoje 40 cozinhas solidárias nas grandes cidades brasileiras, distribuindo almoço grátis para trabalhadoras e trabalhadores que passavam fome.

Os alimentos utilizados na produção das marmitas são provenientes, em parte, da produção camponesa de base agroecológica – agroecologia é difundida como uma tecnologia social de produção de alimentos realizada pelos camponeses, na qual a relação estabelecida com a terra é de reciprocidade, por isso não se usam agrotóxicos, as sementes são compartilhadas e se preservam as nascentes de água. Assim, além de comerem, os trabalhadores comem produtos de qualidade nutricional, contribuindo para formas de produção alimentar que estão em harmonia com a biodiversidade.

A iniciativa obteve tanto êxito que foi apresentado o projeto de lei nº. 491/223, o PL das Cozinhas Solidárias, em trâmite na Câmara dos Deputados. Dentre os objetivos do PL, estão: a construção de práticas alimentares promotoras de saúde, ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis e o fomento à agricultura familiar.

Denunciar os mecanismo de falsas soluções

Nos últimos anos, no debate internacional, o tema da biodiversidade encontra-se secundarizado, aparecendo nos impactos de mudanças climáticas. Majoritariamente, colocam-se como foco central de investimentos as políticas da economia verde, nas quais se transfere a preservação a entes privados e se cria uma série de narrativas, como os créditos de carbono, a mineração sustentável e a agricultura climaticamente inteligente, como respostas à destruição da biodiversidade.

Todavia, essas políticas estão gerando efeitos ainda mais perversos à biodiversidade. A proposta do “carbono zero” reúne compromissos assumidos para anular as emissões de gases do efeito estufa, assim, em vez de reduzir as emissões e promover mudanças na produção, as grandes empresas passam a financiar áreas de preservação do seu interesse, para compensar. Dentro das “soluções baseadas na natureza”, pode-se incluir plantações de monocultivos de árvores, como eucalipto; os cultivos com organismos geneticamente modificados; as áreas de parques e de unidades de conservação que estão sendo privatizadas. Essas iniciativas têm ganhado a adesão de grandes empresas, que passam a pressionar as terras e os direitos de camponeses.

As empresas transnacionais também aderiram a uma narrativa sustentável constituindo políticas de responsabilidade social corporativa no tema, dentre elas a mineração sustentável e a agricultura climaticamente inteligente. Em todos esses discursos, as empresas não mudam suas práticas de produção, apenas incorporam medidas de compensação que mascaram os efeitos de suas atividades. Desse modo, a mineração tem usado da extração de metais importantes para transição energética, como lítio e níquel, para se colocar como atividade sustentável, desconsiderando que isso implica numa expansão da fronteira extrativa, destruindo territórios.

Já a agricultura climaticamente inteligente envolve a conciliação entre segurança alimentar, produção de alimentos e mudanças climáticas. No entanto, o que as organizações apontam é que o mecanismo consiste unicamente nas negociações do mercado de carbono. Inclusive, no Brasil, o agronegócio, em razão da expansão da fronteira agrícola, tem sido um dos principais responsáveis pela destruição dos biomas nacionais, do Pampa à Amazônia.

As falsas soluções que hegemonizaram os debates nos mecanismos multilaterais são controladas pelas empresas transnacionais, que buscam reconfigurar suas narrativas ideológicas para seguir justificando as práticas expropriatórias da biodiversidade. Por isso, movimentos ao redor do mundo têm erguido bandeiras de luta em torno da palavra soberania, assumindo uma crítica ao sistema produtivo como causador dos danos socioambientais e exigindo o controle popular sobre outras formas de constituição de relações com a Natureza.

Direitos por efetivar: um horizonte para lutar

A afirmação e a efetivação de direitos aos povos são um caminho para um diálogo da constituição de outras relações com a biodiversidade, entende-se como parte desta totalidade. Assim, a Declaração de Direitos Camponeses (2018), uma construção popular – com destaque à Via Campesina Internacional, estabelece claramente a relação dos camponeses com a preservação da biodiversidade, assegurando o acesso à terra, território, ao compartilhamento da sabedoria tradicional na troca de sementes, do cuidado com a terra e água.

Na mesma esteira, os direitos estabelecidos na Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhecem o papel que povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais têm na preservação da sociobiodiversidade. E que, portanto, são sujeitos que devem ser consultados sobre projetos que afetem suas terras e territórios. Igualmente, sobre o direito à participação e informação no Acordo de Escazú, ainda não ratificado pelo Brasil, que garante tais direitos para a promoção da justiça ambiental.

Que possamos reconhecer o chamado das organizações e movimentos para assumir que a preservação da biodiversidade envolve um projeto político de mudança do atual sistema de produção, no qual a vida da humanidade é parte integrante do todo da vida do planeta. Que possamos dar um basta na separação entre sujeitos e natureza, romper com as políticas de compensação e construir um novo paradigma que não produza exclusões de nenhum tipo.

Conteúdo publicado na integra no Jornal Brasil de Fato, em https://www.brasildefato.com.br/2023/05/23/a-biodiversidade-que-se-constroi-no-territorio-do-campo-a-cidade

 

Confira, abaixo, algumas fotos da 9ª Festa da Biodiversidade, que aconteceu nessa 2ª feira (22/05/2023), no Largo Glênio Peres, em Porto Alegre (RS). Crédito das fotos: ATBr

 

A água sempre encontra um caminho: A caminhada da CoMPaz pelo respeito ao seu Direito de Ser e Existir

“É que nós sabemos: tem portas que só se abrem pelo lado de dentro. Então fomos cavar as brechas, cavar os caminhos arduamente percorridos por pessoas como nós. E nós somos água, senhoras e senhores. E a água sempre encontra um caminho”, referiu-se Yashodhan Abya Yala, Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz. . Sua menção foi realizada ao contar a história viva da luta desta comunidade para ser ouvida e consultada durante o processo de ampliação de uma rodovia. Obra que ameaça o território, os corpos de matas, rios, animais e de gentes, assim como impõe uma lógica perversa que busca minar os modos de vida dessa diversidade que pulsa, tomando o seu direito de ser e existir. Frente a um processo colonizatório marcado por violência, existe outra possibilidade de estar no mundo, com a potência de nascentes que vão de encontro ao mar. Contada dos tempos de lá atrás que são também esse instante, ela narra a realidade da resistência dessa comunidade negra em permanecer em seu território, com seus costumes e práticas. De seguir existindo na sua terra fincada no município de Triunfo, às margens da BR 386. Uma importante estrada para escoamento da soja no Rio Grande do Sul que está sendo ampliada, rodeada ainda pela monocultura do eucalipto – duas atividades do agronegócio gaúcho.

Em 9 de março, mês conhecido por suas águas, a Comunidade Kilombola Morada da Paz (ComPaz) abriu caminhos na primeira sessão do ano do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH/RS), na Assembleia Legislativa (AL/RS). Som do berrante. A sua chegada em cantos para Ogum, anunciada por vozes que faziam coro ao batucar de tambores, já trazia como horizonte a força de uma história que tem uma demanda e uma proposição. A demanda é pelo comprometimento do Conselho de Direitos Humanos e Cidadania, para que se coloque como órgão atuante em defesa de que as comunidades sejam ouvidas, especialmente em casos de violações de direitos. Como proposição, para além de alianças possíveis e de compromissos firmados para garantir a justiça dos povos, a Comunidade apresentou o seu Protocolo de Consulta Livre Prévia Informada e de Boa Fé, contido no Dossiê Quilombo: Proteger, Defender e Vigiar, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A Comunidade Morada da Paz (CoMPaz) enfrenta, há pouco mais de dois anos, as ameaças de dois grandes empreendimentos na região: à frente do território, a obra de ampliação da BR 386 e, na parte dos fundos, a proposição de instalação de um aterro industrial às margens do rio Caí. Opressão, exploração e uma série de conflitos são desencadeados pelo avanço desses empreendimentos, que nem sequer realizaram consulta às comunidades afetadas por sua instalação, pautando uma lógica violenta de progresso que pela primazia do lucro se propõe a uma política de morte. Mas a resistência e a ancestralidade são raízes fortes, que fazem o caminho entre solos pavimentados e indicam outras trilhas, com outros valores éticos. Foi na boa fé da articulação coletiva, organização e luta, que recentemente a Comunidade conquistou mais uma vitória por seu direito de Ser e Existir. No início de janeiro, a Justiça Federal no RS concedeu tutela de urgência suspendendo a obra de ampliação da rodovia no trecho que compreende os Km 405 a 415, onde fica a Comunidade Kilombola Morada da Paz. A obra só poderá ser retomada após a realização de novo processo de licenciamento ambiental pelos órgãos competentes, em que a comunidade seja consultada previamente conforme dispõe a Convenção 169 da OIT. Os réus, entre eles o governo federal (Ibama e Incra) e as empresas concessionárias (CCR Via Sul e Empresa de Planejamento e Logística / VALEC), ainda podem recorrer da decisão.

A decisão judicial, um importante precedente para as lutas dos povos kilombolas em todo país, se deu em resposta à Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pela Comunidade Morada da Paz em dezembro de 2022, e que teve como um dos seus embasamentos a Recomendação nr. 43 aprovada por ação no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em Novembro de 2021. Na ação, a comunidade kilombola requereu liminar que suspendesse a obra de ampliação da BR 386 no determinado trecho. Também pediu a anulação do licenciamento, já que não foi chamada a participar dos termos de referência do estudo e nem foi citada no relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) realizado pela empresa consultora contratada pela concessionária e apresentado ao IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), apesar de seu território localizar-se a menos de 500 metros da margem da rodovia. 

Saiba mais sobre o processo na matéria: Justiça Federal reconhece o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé de comunidade kilombola no RS

Comunidade Kilombola Morada da Paz, na primeira sessão do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul | Foto: Carolina Colorio – ATBr

Além de abordar a decisão mencionada, a participação da Comunidade na sessão de abertura do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) também representou um passo importantíssimo nas lutas por território e possibilidade de ser e de existir no mundo. Yashodhan Abya Yala proferiu em sua fala o que a comunidade exigia no momento: “Chegamos ao Conselho Estadual de Direitos Humanos com uma demanda: nós queremos que esse conselho tenha grupo de trabalho, um grupo de trabalho que seja mais que um observatório. Porque um observador, pode ser um traidor. Um grupo de trabalho nessa comissão que seja escutatório, um grupo de trabalho nessa comissão que demande, que dê conforto, que dê encorajamento, que vigie, que proteja, que seja um espaço de resiliência, resistência e potência de força. Um grupo de trabalho que seja feito com senhores e senhoras desta casa, mas também com senhores e senhoras das comunidades quilombolas do estado do Rio Grande do Sul, com comunidades indígenas do estado do Rio Grande do Sul, com o povo das ocupações do Rio Grande do Sul, com os refugiados e refugiadas do estado do Rio Grande do Sul.”

É preciso ir além do reconhecimento da existência das comunidades e de dar o direito em decreto, é preciso assegurar na prática esse direito e dar as condições para a sua defesa. “Nós estamos aqui hoje para demandar desse Conselho Estadual de Direitos Humanos que ele seja o que ela se propõe na sua missão: resistência, reexistência. Um espaço em que a gente possa ser mais do que corpos contados ao chão. O Conselho não pode servir para contar as nossas mortes, deve servir para impedir a morte moral, a morte espiritual, a morte cultural e a morte histórica e política de povos e pessoas comuns”, expôs Yashodhan.

A demanda levada ao CEDH-RS, reunido na Assembleia Legislativa, é para que o Estado Brasileiro e o Estado do Rio Grande do Sul de fato deem recursos e condições para a existência desse que é um dos bastiões de resistência da sociedade civil e também controle social das políticas no Brasil e no Estado do Rio Grande do Sul. “A gente traz a demanda ao Conselho Estadual de Direitos Humanos, que faça essa recomendação a todas as entidades do estado, do reconhecimento do Protocolo de Consulta Livre Prévia e Informada elaborada pela comunidade e faça conhecer também a sentença da ação civil pública. E que ela seja vista pela Fepam, pelo Ibama, pelo Ministério Público e pelos demais órgãos competentes como uma oportunidade dada para que possam ser estabelecidos protocolos que façam cumprir o que já é de direito na Constituição, dos povos indígenas, dos povos quilombolas”, mencionou Lúcia Ortiz, presidenta da organização social das pessoas Amigas da Terra, reconhecida nesse tempo e era como Luz das Águas, filha de Mãe Preta. 

Momento de fala de Yashodhan Abya Yala, da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz. Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da comunidade Kilombola Morada da Paz | Foto: Carolina Colorio – ATBr

“Que esse protocolo seja também utilizado, não apenas em processo de licenciamento de grandes empreendimentos, mas de consulta como deve ser, na garantia dos direitos democráticos, consulta aos povos na elaboração das políticas públicas, sejam elas de saúde, sejam elas de educação, porque elas só tem a melhorar com a sabedoria do povo, com a participação popular e com essa articulação que nos fortalece”, salientou Luz das Águas. 

Desta vitória específica, sopram ventos de mobilização e possibilidade para outros cantos do país. A vitória da comunidade levou a um resultado que é um precedente da justiça, que implica órgãos estado, especialmente o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a construir um novo protocolo, um novo procedimento. Algo há muito tempo demandado do poder público. Ao final do encontro, o Conselho se comprometeu estabelecendo um Grupo de Trabalho para elaborar coletivamente sua recomendação e para os órgãos do estado do Rio Grande do Sul, como sugerido pela Comunidade. Passo que representa mais do que uma recomendação sobre um caso específico, mas que tem caráter de uma recomendação para as comunidades e povos tradicionais do estado, em benefício da diversidade de povos, seres, biomas e territórios.

Na sessão estiveram também o povo de Alvorada, da Restinga, das comunidades quilombolas de São Lourenço do Sul e de Santa Maria, ocupações urbanas de Porto Alegre como a Ocupação Jiboia, membros do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, do Conselho Indigenistas Missionário (CIMI Sul), presenças de quilombos, terreiras e das lutas antirracistas, por moradia e direito ao território, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), integrante do Igualdade Racial da OAB, o gabinete da deputada federal do Reginete Bispo (PT), Mestre Cica de Oyó e o novo Ouvidor eleito para a Defensoria Pública Estadual, Rodrigo de Medeiros, entre outros.  

A atividade, além de  demandar os próximos passos sólidos para uma luta que se amplia, com valores acolhidos em cuidado, coletividade e na vida, foi um momento de troca sobre realidades perpassadas por amor e guerra. Foi, também, um debate sobre o tempo e seu entendimento. Desde a entrada da Comunidade na Assembleia até sua saída, a linearidade do tempo de kronos, marcado pelo som do passar de ponteiros dos relógios apressados, se dissolveu. O tempo é memória, resgatou em uma de suas falas Yashodhan. E ali o tempo se fez memória. Vivo, coletivo, entrelaçado entre um ontem, agora e amanhã que rompem a linearidade e tem firmamento em uma cosmovisão e prática de mundo que nos evidenciam respostas que sempre estiveram aqui, afinal, somos natureza. Tempo de fluidez firme que percorre o tambor, o berrante e o peito de quem canta e dança enquanto faz luta, enquanto se regam e brotam sementes e sombras de figueiras, essas guardiãs antigas e de tanta sabedoria. 

É preciso assegurar a consulta livre, prévia, informada e de boa fé às comunidades afetadas por empreendimentos que existem numa lógica colonizatoria de lucro acima da vida, de superexploração dos corpos e territórios para a extração de riquezas que se traduz no monopólio de poder de poucos, às custas de muitos num plano que leva ao colapso socioambiental. É preciso combater a genealogia do desastre que alarga as veias da América Latina. Um caminho possível no fazer em comunidade, na construção coletiva de outros valores, na compreensão que um rio que corre é um ser vivo. Nas vivências que têm como base que, como referiu-se Yashodhan, é preciso que o tempo do relógio se curve para o tempo da vida. Foi preciso parar a légua. E é crucial impedir que outras léguas avancem sob o tempo da vida.

A história de luta pelo direito de ser e existir da Comunidade Kilombola Morada da Paz

Comunidade Kilombola Morada da Paz demanda seus direitos e de seu território | Foto: Carolina Colorio – ATBr

Justamente trazendo o fio de kitembo, a divindade do tempo na cosmopercepção da Comunidade Kilombola Morada da Paz, que Baogan, Bàbá Kínní da Nação Muzunguê, guardião das choupanas e sapopembas de Mãe Preta e de todos povos de Mãe Preta espraiados nos sete cantos do Ayiê, deu abertura às exposições faladas do momento. Kitembo é senhor dos destinos, não das vontades, manifestou. No instante, compartilhou a partir de memórias a história de luta da Comunidade por seu direito de ser e existir.   

“Inicialmente, em dezembro de 2020, começaram a aparecer algumas pistas de que haviam ameaças à nossa comunidade, ao nosso território”, expôs. Baogan contou como ocorreu a construção do processo de resistência, quando a comunidade se negou a fazer o Estudo de Componente Kilombola proposto por uma empresa de consultoria, e que orientados por suas divindades e com ajuda de parceiros tiveram conhecimento de seu direito de realizar o  Protocolo de Consulta Prévia, conforme previsto na Convenção 169 da OIT. E foi o que fizeram, levando a palavra coletiva e a resistência adiante, assim como a possibilidade de manter acesa a vida em toda a sua sociobiodiversidade. 

Um dos filhos do território, Johny (Johny Fernandes Giffoni – Defensor Público do Estado do Pará), sabedor dessa situação após o nosso contato, nos alertou para a diferença entre Estudo de Componente Kilombola e Protocolo de Consulta Prévia, pois a nossa uma empresa de consultoria chegou propondo que fizéssemos um Estudo de Componente Kilombola, mas isso é uma etapa a posteriori. André Filho de Mãe Preta traz o que está acontecendo e apresenta elementos do Projeto de ampliação da BR 386, não se trata de duplicação, já é uma estrada-duplicada. O direito à consulta prévia, livre e informada de boa fé é algo que nos é assegurado, enquanto povo tradicional. E algo que estava sendo de nós retirado. Então propor a nós um Estudo de Componente Kilombola era uma tentativa de cooptar também o nosso direito de sermos consultados prévia, livre, informada e de boa fé”, explicou Baogan, expondo a violação de direito já no ato de vetar o acesso à informação. 

De acordo com Baogan, esse foi o primeiro ato. “Perceber, entender e compreender que estávamos sendo vítimas de um racismo estrutural e de um projeto de destruição. Anciãs e anciãos e os jovens odomodês do nosso território oram de juncó ao pé do jacutá, nossos orixás respondem: dezembro de 2020. Terceiro Momento, nos ensina a nossa Mãe Preta, a nossa yagbá ancestral: mais do que ter fé, é preciso SER FÉ. Sapopembas, raízes de força, de luz, chamado do berrante, tambor, concha, organização como uma árvore. A nossa luta não é como um pé de funcho, mas como uma figueira negra”, ressaltou, abordando então os passos que seguiram dessa consciência e de uma prática engajada em ser fé. 

Em março de 2022, foi publicado o  Dossiê Kilombo Proteger Defender e Vigiar, com apresentação no México e no Peru. O dossiê também percorreu a Retomada Gah-Ré (RS), o Quilombo de Dandá (BA), a Jornada de Agroecologia (BA), a Ilha de Colares (PA), o Quilombo Vidal Martins (SC) e com uma série de intervenções em Porto Alegre (RS), que ocorreram em jornadas de Janeiro de 2021 à Março de 2023. Atualmente, o reconhecimento público da Legitimidade do Dossiê Kilombo Proteger Defender e Vigiar é onde a luta se trava, com incidências políticas, sociais, culturais em âmbito local, estadual, federal e latino-americano. Como trouxe Baogan à palavra, citando Mãe Preta: “Em terra firme se fazem grandes construções”.


Publicação Dossiê Quilombo: Proteger, Defender e Vigiar.

Nos próximos passos, a Comunidade e os aprendizados coletivos serão partilhados, ressignificados e articulados na Corte Inter-Americana de Direitos Humanos, com o horizonte de alcançar outros Territórios Kilombolas, Indígenas e Ribeirinhos, assim como Populações Atingidas por empreendimentos que violam direitos humanos e aos territórios. 

É preciso parar a velocidade da légua’

Como relatado pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), ao menos 650 quilombos sofrem com grandes empreendimentos no Brasil. Quanto à Comunidade Ancestral Morada da Paz – Território de Mãe Preta, Lúcia Ortiz conta que foi necessário barrar o avanço da ampliação da rodovia. 

“A Mãe Preta dizia: ‘Tem que parar a légua, tem que parar a velocidade da légua’. E nós tivemos a missão de fazer uma marcha na BR 368 ao final de 2019. E eu me perguntava: mas como que nós vamos parar essa légua? Somos trinta, quarenta pessoas. Como que nós vamos fazer essa caminhada? E fomos nesse grupo com muita coragem, com muita valentia, e nós tivemos certeza que nós éramos muito mais que trezentos nessa caminhada. E isso foi antes de chegar a empresa de consultoria no território, pedindo licença para fazer um Estudo de Componente Kilombola. E foi só depois que nós ficamos sabendo que a Licença Prévia para a ampliação dessa BR já tinha sido concedida pelo Ibama. E esse mesmo ano começou a pandemia (Covid-19) em março, e também foi esse ano de isolamento e da necessidade da gente retomar o nosso fio de contas e essa força de protegimento, que nós fomos chamados também a compor o colegiado de organizações do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e suas comissões. Então foi em março, sabendo disso tudo, que nós recebemos a Convocatória para a Primeira Reunião da Comissão naquele ano, da comissão chamada assim: “Comissão Permanente dos Direitos dos Povos Indígenas, dos Quilombolas, dos Povos e Comunidades Tradicionais, de Populações Afetadas por Grandes Empreendimentos e dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Envolvidos em Conflitos Fundiários”. E isso chegou depois da parada da légua, depois das nossas ações, depois de nós tomarmos a consciência da ameaça acontecendo no território, então nós construímos esse caminho com a sabedoria, com a participação dos mais velhos, dos mais novos, de todos os seres dessa comunidade, traduzindo como que a comunidade percebia e sentia no sonho, na vida, no cotidiano, essas ameaças”, explicou.

Comunidade Kilombola Morada da Paz demanda seus direitos e de seu território | Foto: Carolina Colorio – ATBr

Lúcia também mencionou a relevância da construção coletiva e dos vínculos de afeto entre lutas que convergem, para garantir que a ComumUnidade, assim como tantas outras, possam seguir existindo. Em agradecimento, citou Leandro Scalabrin, do Movimento de Atingidas e Atingidos por Barragens (MAB), que orientou a Comunidade nos ritos do CNDH. Luiz Ojoyandi, filho de Mãe Preta, do OLMA, que assumiu junto a construção dessa relatoria a partir da denúncia encaminhada ao Conselho Nacional de Direitos Humanos. A Sandra Andrade, da Conaq, que foi quem, como coordenadora da comissão nomeada carinhosamente de Terra e Água, elevou até o pleno do Conselho e acolheu e encaminhou a denúncia-relatório para que fosse elaborada uma recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos ao Estado Brasileiro para que reconhecesse e respeitasse o direito que é dos povos na Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé. Ao Conselheiro Marcelo Chalréo da Ordem de Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, que participou da elaboração da redação da recomendação aprovada por aclamação no Pleno do CNDH. “Uma recomendação que subsidiou então as nossas amazonas de luz também, na representação junto ao Ministério Público, já que continha nessa recomendação que, dentro do contexto de desmonte das políticas públicas, das instituições do estado, e de instituições como a próprio Incra e a Fundação Palmares, que estavam com desvio da função, sendo extintas naquele momento, a responsabilidade era do Ministério Público, de alertar todas as comunidades, em processos de licenciamento de grandes empreendimentos acontecendo na região. Levamos então a representação das Amazonas de Luz ao Ministério Público”, destacou Lúcia. Agradeceu, ainda, a Cláudia Ávila, conselheira e advogada das ATBr e a Fernando Campos, que também estiveram presentes no momento de representação no Ministério Público. E aos presidentes do Conselho Nacional, ao Darci Frigo nosso companheiro da Terra de Direitos e também o Yuri Costa, da Defensoria Pública da União (DPU), que Lúcia destacou terem sido guerreiros muito valentes e importantes na sustentação da existência do Conselho Nacional nos quatro anos do (des)governo Bolsonaro.

Na sessão, Pâmela Marconatto Marques , Coordenadora do Grupo de Trabalho Kombit! Mutirão por Moradia, Território e Dignidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), compartilhou sobre como foi a Ação Civil Pública ingressada pela CoMPaz. “É um dos diversos instrumentos utilizados na defesa do território. A Comunidade contou com o empenho de muitas pessoas, organizações e com a articulação com outros povos quilombolas, que enfrentam os mesmos problemas em todo o país, para construir sua própria cartografia comunitária e elaborar o seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé, chamado de Dossiê Kilombo, pontuou. E como Baogan comunicou em sua fala, é preciso recontar a história para não esquecer o que ela é hoje e não o que ela foi: “O Dossiê Kilombo expressa a necessidade de que haja uma pedagogia que oriente o ritual de Consulta Prévia (como fazer, por onde fazer, quem deve fazer)”. 

Apesar da dificuldade e descrença de atores estatais e operadores jurídicos, a comunidade se lançou em movimento. “Como Baba menciona, a BR 386 já é duplicada, então começamos a pensar que o que estava em jogo era uma triplicação, quadruplicação. E tudo que tava em jogo com relação a isso. Porque uma BR precisa ser tão expandida assim? E quem conhece a morada vê que ela é quase um enclave ecossustentável diante de plantação de soja, diante de monoculturas diversas ali naquela região. Então começa a entender que essa ampliação servia justamente a esses cultivos. Ao monocultivo. E a gente sabe tudo que vem junto com ele: Trabalho indecente, gente em más condições, bicho de qualquer jeito. E a gente vai aprendendo que a Comunidade Morada da Paz acabava sendo um lugar que dava conta de tudo isso. Que dava conta, inclusive, de melhorar um território, de melhorar uma terra que tava sendo consumida pela arenização. Quem conhece o território sabe disso também, o quanto essas comunidades fazem para manter viva essa terra. A comunidade Morada da Paz e os povos tradicionais brasileiros, o quanto eles regeneram a vida nesses territórios. Pois bem, vendo tudo isso, nós tínhamos a missão de incidir de maneira a enfrentar o que não nos era possível fazer, que era parar esse megaprojeto”, expôs Pâmela. 

A empreitada foi uma Ação Civil Pública, conectada à noção de que a comunidade já vinha sendo impactada pelo simples fato de não ter sido ouvida sobre o megaprojeto. “Justamente porque a consulta não tinha sido prévia, livre e de boa fé informada do que aconteceria ali, a comunidade não dormia mais de noite. Os jovens e as crianças tinham pesadelos, achavam que a qualquer minuto podia bater à sua porta aquela ampliação. Se houvesse acontecido a consulta prévia, talvez isso não tivesse acontecido assim. A comunidade esperaria, ela saberia que trechos seriam impactados, ela conseguiria olhar para esse megaprojeto e pensar: não, eu sei, vai acontecer ali, depois vai acontecer aqui, mas no nosso trecho não, ou depois”, trouxe Pâmela. Ela contou que o encaminhamento foi o pedido para que a 9ª vara respondesse em face liminar, urgentemente, a demanda do kilombo: parar a légua. 

No atual momento, a Ação teve uma grande vitória e está em fase de embargos. Realizar a consulta prévia é responsabilidade do Estado, que sabe que tem que aplicar a Convenção 169 e que podem haver os protocolos das comunidades. No intuito propositivo de apresentar ferramentas, conectar pontos e garantir a vida, que a CoMPaz está enraizando essa pedagogia da consulta. O que está em jogo é como as comunidades devem ser consultadas, quem deve consultar e como isso deve ser feito, respostas que podem ser encontradas no Dossiê e em tantos outros que podem surgir, a partir das comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas e tradicionais, para que sua existência seja não apenas reconhecida, mas possível em toda sua magnitude.  

Ao elucidar que a morte pelo acesso a informação também é real, Yashodhan também contou como foi o processo de resistência à ampliação da BR, destacando tentativas de silenciar a comunidade e o que está em jogo com a efetivação da obra. “Quando nós chegamos a denunciar todo o processo que está acontecendo conosco e com outros parentes e irmãos quilombolas e indígenas, foi-nos dito: Mas vocês estão fazendo uma tempestade num copo de água, o processo de ampliação da BR vai ser só para 2030. Eu vou repetir o que eu disse: em 2030 talvez nós estejamos mortos, precisamos garantir aqui no presente a continuidade da nossa história com o direito de ser e existir do jeito que nós somos. Nós precisamos garantir, aqui, no tempo presente, a luta e as estratégias de sobrevivência”. Salientou ainda que o ponto não é parar o progresso, mas impedir que o entendimento de progresso tenha como massa de sustentação a cultura, a fé, os sonhos e a possibilidade de continuar existindo das comunidades kilombolas. 

A CoMPaz vai fazendo seus caminhos que contrapõe a violenta história hegemônica do Brasil, contada como se desenvolvimento fosse saque, domínio, escravidão e disparos de tantas violências contra os corpos negros, do campo à cidade, das águas às florestas. Ela expõe as feridas causadas por um entendimento dos kilombos a partir da dororidade, num imaginário racista que não reconhece as potências, sabedorias, pedagogias e a capacidade de organização coletiva e manutenção da vida dos territórios negros. E vai além, propondo saberes, práticas e ferramentas de luta, construindo alianças possíveis que florescem afeto e fé. “O que esperam de um kilombo? Criança ranhenta, com o pé no chão, cachorro e mendigando? Não. Nós somos mais do que isso. E se isso existe nas nossas comunidades, é produto de um estado estruturalmente pautado, basilado, na escravização, na morte, no peso da dor. Então nós somos mais do que isso, nós somos a antítese de uma história que teima por ter ouvidos para ouvir, porque voz nós sempre tivemos”, mencionou Yashodhan. 

É no comprometimento, na construção do coabitar e de outros mundos possíveis, que segue a marcha para frear as léguas que soterram a vida. Que a vida segue, como ensina a água, abrindo brechas para correr ao mar. A luta avança, fazendo do chão que se pisa terra fértil para que o sonho de uma liberdade coletiva seja o amanhã possível. Como compartilhou Yashodhan: “É preciso que a gente continue e é preciso, como mulher preta, kilombola, como mulher da zona rural e como gaúcha que sou, que esse estado seja reconhecido e auto reconhecido não só como um estado hegemonicamente branco, simpático do fascismo, simpático do trabalho escravo. Porque o silêncio, senhoras e senhores, e essa frase não é minha, mas o silêncio daqueles que podem e devem fazer alguma coisa é a morte do futuro. É a morte do sonho. Não temos medo do nosso corpo tombado no chão. Não queremos que isso aconteça. Mas nós vamos lutar até o último minuto para que a morte moral não saia encostada em nós quando nos levantarmos dessa cadeira. Nós estamos aqui agora. Que o dia de hoje se transforme numa história que não deve ser esquecida”. 

“Vida longa e próspera: nós continuamos e não estamos só”

📽️ Confira a cobertura em vídeos da participação da CoMPaz no CEDH/RS:

Em janeiro deste ano, a Justiça Federal reconheceu o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé da Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz), em Triunfo (RS). Anteriormente, a consulta, prevista na convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), havia sido violada.  Processo narrado acima por Ìyalasè Yashodhan Abya Yala, a Sangoma (Guardiã da Memória e Guiança Espiritual) da CoMPaz na série de entrevistas do podcast “Prelúdio de uma pandemia”. Realizado em parceria com a Rádio Mundo Real, da Amigos da Terra Internacional, o podcast percorreu o contexto brasileiro, da Costa Rica, de El Salvador e do Haiti para denunciar e analisar as violações dos direitos dos povos e seus direitos humanos, antes, durante e depois da pandemia de Covid-19. Confira o podcast aqui  

Como consequência da sessão do CEDHRS do dia 9 de março na AL-RS se formou um grupo de trabalho – GT sobre a Convenção 169 da OIT e sua aplicação no Estado do RS. Esse GT já se reuniu virtualmente e nessa 5a feira dia 18 de maio se reúne presencialmente a partir das 9hs no Território Yagbá Ancestral de Mãe Preta – CoMPaz em Triunfo/RS. O encontro também forma parte das Conferencias Livres prévias à VI Conferencia Estadual de Direitos Humanos (a ser realizada nos dias 26 e 27 de maio de 2023, no Auditório Dante Barone da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul).

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Indicações de leituras:

Racismo Ambiental. Artigo de Alan Alves Brito (NEAB/UFRGS) e Ìyamoro Omo Ayo Otunja, (Ìyiakekerê da Nação Muzunguê – CoMPaz) Janeiro 2021.

Vitória das retomadas Mbya Guarani de Canela e de Cachoeirinha no Rio Grande do Sul

🏹 Recentemente, os povos indígenas tiveram duas importantes vitórias no Rio Grande do Sul (RS) que reforçam sua árdua luta para permanecer nos territórios.

Na 3ª feira (9/05), a 3ª Turma do TRF4 (Tribunal Regional Federal), em Porto Alegre (RS), suspendeu a reintegração de posse da terra onde estão as comunidades Mbya Guarani Tekoa’s Kuryty e Yvyá Porã, na cidade de Canela, na Serra Gaúcha. A desocupação imediata pelos indígenas havia sido determinada pela Justiça Federal de Caxias do Sul, em ação movida pela CEEE, estatal de energia elétrica privatizada pelo governador Eduardo Leite.

Os Mbya Guarani marcaram presença durante a sessão no TRF (foto acima), junto com suas assessorias, organizações e apoiadores, como a Comissão Guarani Yvyrupa, CAPG, de seus aliados – o CTI, Cimi Sul, Aepin, Cepi – e outros apoiadores dos movimentos e coletivos sociais. Os Guarani celebraram, rezaram, cantaram e sorriram diante desta importante vitória!

Vale destacar que na decisão, o relator, desembargador Rogério Favreto, afirmou haver muitos elementos da ocupação tradicional dos Mbya na área, cabendo à FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas)  a criação do GT de identificação da terra. No entender dos desembargadores, é preciso ainda aguardar pelo resultado da apreciação do Recurso Extraordinário de Repercussão Geral, 1.017.365, a ser julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em que se discute a tese do marco temporal e os direitos originários dos povos sobre as terras que ocupam.

O colegiado também citou a necessidade de seguir, nas discussões jurídicas sobre os povos indígenas e seus direitos territoriais, as determinações contidas em tratados internacionais, referindo a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Dada a ênfase que a empresa detentora da CEEE deu aos riscos à saúde e à vida dos indígenas na área retomada, pois há uma hidroelétrica e a rede de transmissão, um dos desembargadores destacou que é dever da empresa criar ou encontrar mecanismos de prevenção e proteção aos indígenas, quando houver, na área em questão, algum risco.

Em síntese, o julgamento referenda a necessidade de permanência dos indígenas na terra, garantindo-lhes a posse; aponta que há elementos significativos acerca da ocupação originária Mbya Guarani naquela região, portanto, um direito que prevalece; e há de se aguardar pelo julgamento no STF, acerca da tese do marco temporal e do indigenato.

O TRF4 já tinha tomado decisão semelhante na semana passada, mantendo suspensa a reintegração de posse do terreno onde fica o “Mato do Júlio”, na cidade de Cachoeirinha, região metropolitana. A decisão garante que a comunidade indígena Mbya Guarani siga no local enquanto tramita a ação movida pela empresa Habitasul, proprietária do imóvel.

A área é reivindicada pelos indígenas, que estão com processo administrativo em aberto junto à FUNAI. Há estudo antropológico que afirma ser o local imprescindível para sustento, reprodução física e cultural da etnia, cuja permanência lá data de décadas.

Atualmente, a Retomada Mbya Guarani em Cachoeirinha faz campanha pedindo doações para montar uma escola. Veja como ajudar em http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/04/05/campanha-de-doacao-as-escolas-das-retomadas-mbya-guarani-em-porto-alegre-e-em-cachoeirinha-rs/

Leia mais sobre a decisão em relação à Retomada de Cachoeirinha (RS): https://www.brasildefato.com.br/2023/05/08/justica-confirma-permanencia-de-comunidade-mbya-guarani-no-mato-do-julio-no-rio-grande-do-sul#.ZFm1Cyk2TyA.whatsapp

*Texto de Roberto Liebgott (CIMI Sul) sobre o julgamento da Retomada de canela em 9/05. Sobre a suspensão da reintegração de posse do Mato do Julio e da Retomada de Cachoeirinha, as informações são do  TRF4

Trabalhadores e trabalhadoras em luta pela democracia e contra as altas taxas de juros

Nos últimos anos, a classe trabalhadora esteve mobilizada lutando pela democracia em vários países da América Latina, resistindo aos retrocessos na legislação do mundo do trabalho, que intensificaram a precarização e criaram obstáculos para a organização sindical. Com a derrota de governos de extrema direita no Brasil, Colômbia e Chile, surge uma nova onda de governos progressistas, mudando novamente o cenário da correlação de forças na região. Assim, este 1 º de maio foi marcado pelo espírito da esperança e da comemoração, quando trabalhadores e trabalhadoras voltam a sentar nas mesas de negociação.

No Vale do Anhangabaú, em São Paulo, no 1° de maio, as centrais sindicais se reuniram com o presidente Lula. Na ocasião, o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Sérgio Nobre, fez duras críticas à política de taxa de juros no país, hoje em 13,75%. Desde 2019, quando foi apresentado o Projeto de Lei Complementar 19/2019 – hoje Lei Complementar nº. 179/2021, o  Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) denuncia que a autonomia do Banco Central do Ministério da Economia significa o enfraquecimento do controle do Estado sobre a política econômica.

Um dos fatores criticados é a relação entre a alta da taxa de juros e o desemprego no país. No ato, o presidente Lula destacou: “A gente não pode viver mais em um país onde a taxa de juros não controla a inflação, ela controla, na verdade, o desemprego, porque ela é responsável por uma parte da situação que nós vivemos hoje”. Não à toa, no ato, o sindicalista Sérgio Nobre anunciou a campanha permanente contra os juros altos, com duras críticas ao presidente do Banco Central.

Dentre as medidas anunciadas por Lula, encontra-se o aumento do salário mínimo, que passou para R$ 1.320,00 já neste mês. A presidência apresentou ainda um projeto de lei ao Congresso Nacional para que haja o reajuste do salário mínimo acima da inflação, como ocorria em governos anteriores. O governo alterou a faixa de isenção do imposto de renda para aqueles que recebem até R$ 2.640,00, com a promessa de subir esta faixa para R$ 5.000,00 até o final do governo.

No ato do Anhangabaú, Lula anunciou ainda que o governo estuda a possibilidade de regulamentação do trabalho em aplicativo e a isenção de imposto para o recebimento da Participação sobre Lucros, que trabalhadores e trabalhadoras recebem em certas empresas.

A defesa da integração latino-americana

Outra mobilização da classe trabalhadora no 1° de maio é a defesa da democracia. O secretário adjunto de relações internacionais da CUT, Quintino Severo, sustentou que a defesa da democracia e dos direitos ao trabalho decente são as principais pautas na região.

O fortalecimento da democracia e da integração regional também foram bandeiras deste 1° de maio para a Central Sindical das Américas (CSA). Rafael Freire, secretário geral da CSA, aponta que é o momento de disputar o modelo econômico, a liberdade sindical e a negociação coletiva, celebrar os avanços da derrota da extrema direita, da jornada de 40h semanais no Chile e o aumento do salário mínimo no Brasil.

As organizações sindicais estão celebrando a reabertura dos diálogos de integração regional no Mercosul, na Unasul e na efetivação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) por entenderem que há expectativas de retomada de crescimento na integração regional. Como destaca Quintino, o Brasil tem um importante papel na liderança regional, e com as ações já realizadas pelo governo, como o retorno à CELAC, o governo demonstra que irá assumir este lugar no diálogo internacional.

Muitas mobilizações sindicais ainda estão por vir ao longo de todo o mês de maio. Está previsto, para o final deste mês, o encontro da Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo em Brasília. A Jornada se formou no final de novembro de 2015, na cidade de Havana, em Cuba, durante a comemoração dos 10 anos de derrota da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), com o objetivo de rearticular movimentos populares do continente na batalha contra o avanço do imperialismo na região.

Várias organizações compõem a plataforma, como a Cloc Via Campesina, a CSA/CUT, Marcha Mundial de Mulheres, Jubileu Sul Américas e Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC). Daniel Gaio, Secretário Nacional de Meio Ambiente da CUT, afirma que “a Jornada Continental é uma oportunidade para fortalecer e construir alianças junto aos demais sindicatos e movimentos sociais de nossa região, uma frente popular contra a extrema direita e suas políticas autoritárias, que acentuam as mudanças climáticas, o racismo e o patriarcado”.

O encontro de maio da jornada será em Brasília tendo em vista os avanços no país da construção de uma lei sobre direitos humanos e empresas (PL nº.572/2022). No marco dos eixos de luta da Jornada está a responsabilização das empresas transnacionais pelas violações aos direitos humanos. Sabemos que as mudanças na organização da produção nos anos 70, conformando as cadeias globais de produção, têm produzido efeitos perversos sobre a vida dos trabalhadores.

As corporações buscam países de legislação laboral mais precária, ou forçam para que assim o seja, para se beneficiar da superexploração da força de trabalho a fim de assegurar suas taxas de lucratividade. Além dos efeitos perversos na jornada de trabalho, as cadeias globais de produção fragmentam a organização do trabalho. Por isso, as entidades sindicais estão também envolvidas na construção de um Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), para pôr fim à impunidade corporativa.

Outra pauta chave tem sido as negociações do acordo entre a União Europeia(UE) e o Mercosul. Entidades sindicais compõem a Frente Brasileira contra o acordo e apresentam preocupação com os impactos sobre a destruição ambiental, a perda de renda dos trabalhadores e a concentração da produção em setores intensivos como energia e água.

Daniel Gaio destaca: “A CUT vê com muita preocupação o impacto que este acordo terá para o sistema produtivo do Brasil em geral e para certos setores econômicos estratégicos. A indústria brasileira, que ano após ano já vem perdendo participação no Produto Interno Bruto [PIB] nacional, pode sofrer um golpe definitivo.”

“O modelo adotado apenas reforça nosso papel de meros exportadores de commodities e importadores de produtos industrializados e de alta tecnologia. Haverá, por exemplo, remoção de tarifas em setores estratégicos de nossa já frágil indústria, como automóveis, autopeças, químicos e fármacos”.

Estudos das organizações têm apontado para efeitos do acordo no que tange ao aprofundamento da reprimarização da economia e na intensificação da produção de commodities. Gaio afirma que o acordo reforça as vantagens comparativas dos países: “Cerca de 70% das exportações brasileiras para a União Europeia são de produtos primários e cerca de 90% das importações brasileiras do bloco europeu são de produtos manufaturados.”

“Além disso, os prazos estreitos ameaçam ainda mais uma transição ordenada dos setores produtivos, com impactos substanciais tanto na quantidade quanto na qualidade do emprego em ambas as regiões, além de resultar em situações imprevistas de deslocamento social (migrações do campo para a cidade, desemprego industrial em massa etc.)”. Assim, as condições de crescimento econômico de longo prazo, defendidas pela classe trabalhadora, na busca por melhores condições de vida, não se sustentaram diante do aprofundamento da dependência externa.

O sindicalismo à frente

Há bastante tempo, as organizações sindicais têm levantado bandeiras estruturais, como a questão ambiental. Na batalha das ideias, a CUT e a CSA têm protagonizado uma discussão sobre a transição energética justa, evidenciando o papel protagonista que a classe trabalhadora tem na construção das alternativas ao sistema. “Nosso trabalho vai no sentido de colocar a pauta da transição energética no cotidiano da classe trabalhadora, defendendo que esse tema não fique limitado a um debate entre especialistas e ecologistas e, menos ainda, um debate capitaneado pelo Capitalismo Verde e empresários do agronegócio e indústria. A existência de uma crise climática é visível e sentida por todas/os, na qualidade de vida, impacto na saúde, no acesso à água, qualidade dos alimentos. O que precisamos garantir é que a classe trabalhadora tenha a possibilidade de colocar seu ponto de vista, disputar a hegemonia e construir soluções para essa realidade. A partir de seus territórios e sua vida cotidiana, somos capazes de identificar quem e como causam problemas. Da mesma maneira que apontamos soluções”, explica Gaio.

As mobilizações do 1° de maio seguiram na campanha permanente contra a alta da taxa de juros, na defesa da democracia, contra o Acordo UE-Mercosul e na organização regional da classe trabalhadora na Jornada. “No Brasil, nós vamos continuar fazendo mobilizações. E o 1° de maio é um símbolo histórico para todos nós. Acreditamos que para recuperar o Brasil precisa de muita pressão e ação popular, como nós estamos vendo agora, por exemplo, na questão da regulamentação das plataformas digitais no Congresso Nacional. Estamos vendo que, apesar da vitória importante do presidente Lula, o Congresso Nacional, o parlamento brasileiro, é muito retrógrado, muito conservador. Portanto, precisamos continuar com as mobilizações sociais, e os trabalhadores seguir mobilizando para evitar que haja mais retrocessos, e temos a possibilidade de avançar naquilo que o governo brasileiro se dispôs a fazer durante sua campanha, que é reconstruir o Brasil e colocar o país de volta aos brasileiros”, defendeu Quintino, reafirmando a luta das organizações sociais.

Conteúdo publicado na integra no Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/05/09/trabalhadores-e-trabalhadoras-em-luta-pela-democracia-e-contra-as-altas-taxas-de-juros 

Os impactos das empresas transnacionais na vida das mulheres

As empresas transnacionais são o centro do capitalismo contemporâneo. Organizadas em amplas cadeias globais de valor, expropriam territórios extraindo matérias-primas, que são transferidas por corredores logísticos que cortam terras, países, oceanos. Favorecem a exploração de mão de obra barata em todas as regiões que estiverem dispostas a receber seus investimentos em troca da redução de direitos humanos e trabalhistas. Assim, as corporações detêm um poder nunca antes visto, controlando economia, política, cultura  e, por conseguinte, as formas de produção da vida.

Ao contrário do que os economistas liberais nos querem fazer crer, as corporações são cada vez um grupo mais fechado. Esses donos do mundo decidiram parar de competir e se uniram para controlar setores estratégicos da economia, como a produção de alimentos e a saúde. Por detrás desses investimentos estão fundos de pensão cujas pessoas jurídicas e físicas ficam encobertas por um véu jurídico de proteção, com uma riqueza pulverizada em diversos paraísos fiscais ao longo da Terra. Não há limites, apenas um único objetivo: seguir lucrando sempre mais.

Contra esse poder nascem as lutas ao redor do dia 24 de abril, Dia Internacional de Solidariedade Feminista contra o Poder das Empresas Transnacionais. A data relembra as mais de mil vítimas do desabamento do prédio Rana Plaza, em Bangladesh, no ano de 2013. Mas também, as vítimas do Desastre de Bhopal, quando o vazamento de gás da fábrica de pesticidas Union Carbide India Limited matou quase 4 mil pessoas na Índia. Ou ainda, as 272 pessoas mortas em Brumadinho e as 19 mortas em Mariana, nos rompimentos de barragens de mineração em Minas Gerais. As 150 pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão nas vinícolas do Rio Grande do Sul. Uma lista interminável de graves violações aos direitos humanos por essas empresas.

A atuação das empresas transnacionais deixa um rastro de violência nos corpos das mulheres, que queremos relembrar neste dia 24 de abril. Quando as empresas transnacionais chegam aos territórios com vulnerabilidade social, apresentam uma série de discursos alegando que a obra irá promover o desenvolvimento local. Várias narrativas corporativas são mobilizadas para conseguir a aceitação das comunidades. Em geral, na linha de frente da resistência encontram-se as mulheres. E é justamente sobre suas vidas que recaem a externalização dos danos sociais e ambientais das empresas.

O patriarcado, como um sistema de dominação das mulheres, impõe uma divisão sexual do trabalho, que relega para as mulheres papéis sociais de cuidado da casa, da família, dos filhos, da saúde, da disponibilidade de alimentos, água, moradia. Quando todos esses direitos são ameaçados pelos interesses econômicos das corporações, são as mulheres que suportam a carga negativa. Tomemos como exemplo a situação emblemática da presença da Fraport, empresa alemã, que recebeu a concessão do Aeroporto Salgado Filho, na cidade de Porto Alegre (RS).

A Fraport e a destruição dos modos de vida da Vila Nazaré

No ano de 1960 se formou a Vila Nazaré, nas margens do que hoje é o aeroporto de Porto Alegre. Criada por camponeses e camponesas que foram sendo expulsos do campo e migraram para a capital em busca de melhores condições de vida. Ao longo dos anos na ocupação, a comunidade se organizou na Associação de Moradores, conquistando saúde, educação, acesso à água e luz, e desenvolveram formas de sustentação por meio da reciclagem de materiais.

Em março de 2017, a prefeitura concedeu a administração do aeroporto para a empresa alemã Fraport, que iniciou uma operação de ampliação da estrutura para atendimento de cargas. Nesse momento, começou o pesadelo da comunidade. Primeiro, a empresa negou a existência das famílias na área, alegando que a ocupação era ilegal. Uma técnica bastante comum entre as corporações, negar a existência dos sujeitos e das violações.

As famílias que viviam na Vila Nazaré começaram a sofrer um agressivo processo de remoção e de constrangimento por meio de diferentes estratégias de opressão aos modos de vida existentes na comunidade. Ao passo que as famílias eram removidas, também eram tiradas suas casas, apagando décadas de histórias. As mães que iam permanecendo na comunidade, conviviam com riscos à segurança das crianças, inclusive uma delas chegou a ter a guarda de sua filha questionada pelo Conselho Tutelar diante da precariedade da região de moradia.

Logo no início das obras, a empresa construiu um muro ao redor do aeroporto. Este muro impediu o acesso das crianças da Vila Dique à escola. Sem o muro, o caminho até a escola levava 15 minutos, mas com ele, passou a levar mais de uma hora, demandando até transporte público, o qual muitas famílias não poderiam arcar. Algumas mães tentaram quebrar o muro, para fornecer acesso das crianças à escola, mas foram criminalizadas.

A empresa contratou uma consultoria para conduzir o processo de remoção, que foi pouco a pouco sufocando a comunidade e impedindo as condições de vida. As mulheres enfrentaram, além do problema de acesso à escola, o isolamento das casas e a falta de atendimento à saúde – pois a Unidade de Saúde da região foi fechada. Sendo obrigadas a irem para área de reassentamento, as quais não estavam preparadas com equipamentos para atender as demandas das famílias.

Foram alocadas em dois condomínios – Nosso Senhor do Bonfim, no bairro Sarandi, e Irmãos Maristas, localizado na Rubem Berta, empreendimentos que pertenciam à prefeitura, sendo obras do programa federal “Minha Casa, Minha Vida”. Ocorre que, na divisão, separaram-se familiares e amigos, quebrando os laços comunitários existentes na Vila Nazaré. Para as mulheres, os laços comunitários compõem uma rede de solidariedade e apoio para a socialização do cuidado com as crianças, idosos e emergências de saúde. Em comunidade, as mulheres se apoiam para dividir tarefas de cuidado. Isaura Martins, militante do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Sem Teto (MTST) removida da Vila Nazaré, revela a crueldade da ação: “botaram cada um num canto”.

Isaura conta ainda que o condomínio Irmãos Maristas, onde vive, difere muito da proposta que a empresa apresentou na única reunião que realizou com a comunidade. “A vida é ruim [no condomínio] porque fizeram um monte de proposta para nós, a gente está dentro de um galinheiro, não tem nem espaço para gente ficar com criança, para quem tinha casa grande, agora tem um penico, é ruim”. Conta ainda: “(…) tive que dar metade dos meus bichos, não pode plantar nada, ter horta, mudou muito, (…) fizeram várias promessas não cumpridas: colégio, posto, creche”.

As mulheres na comunidade tiveram que lutar pelo acesso à escola e permanecem em luta para melhorar suas condições porque, como conta Isaura, ainda não são iguais à situação que tinham na Vila Nazaré. Inclusive, na Instituição de Educação Infantil mais próxima não tem vagas suficientes para a demanda da comunidade, levando muitas mães a terem que buscar colégios mais distantes, desafiando o orçamento da família com os custos adicionais de transporte público. Na unidade de saúde referência para o atendimento da comunidade, o acesso também é precário, responsabilizando as mulheres pelo cuidado dos familiares.

Com o processo de remoção e reassentamento, a comunidade enfrenta dificuldades em manter a renda com a reciclagem porque os condomínios, além de não ofertarem a estrutura necessária para garantir a manutenção do trabalho, estão distantes da cidade, numa região com longo histórico de trabalhadores catadores de material reciclado. Isaura relata, que no antigo local de residência, “antes cada um saía catar material até a pé”, justamente pela proximidade da comunidade com as áreas centrais da capital. Porém, hoje, mais isolados, a renda com a prática tornou-se escassa. Muitas pessoas, principalmente as mulheres, não conseguiram se colocar novamente no mercado de trabalho porque a distância do condomínio e a precariedade dos equipamentos sociais e políticas públicas de educação infantil e mobilidade urbana dificultam o deslocamento da população em situação de vulnerabilidade e risco social. Sabemos que as mulheres, sobretudo pretas e periféricas, compõem os setores de trabalho informal, e por isso não acessam os direitos constitutivos da CLT, entre eles o vale-transporte, assim como os demais que permitiriam o acesso ao trabalho.

A vida das mulheres atingidas pela Fraport assemelha-se às violações sofridas pelas mulheres atingidas pelo rompimento de barragens, hidrelétricas, agronegócio, à medida que a chegada das empresas, o exercício de sua atividade econômica, conflita com as formas de produção da vida nos territórios. Em geral se observa que há uma sobrecarga do trabalho da economia de cuidado (acesso à educação e saúde), além do não reconhecimento dos impactos no trabalho das mulheres, aprofundando a invisibilidade e a vulnerabilidade.

O nosso remédio é a economia feminista popular

Não há outras formas de alcançar o fim da impunidade das corporações que não seja por meio da luta contra o poder corporativo. As mulheres, no mundo, têm se organizado e construído a economia feminista popular como uma ferramenta alternativa à crise sistêmica. É por meio desta proposta que as mulheres têm construído laços de solidariedade e apoiado outras mulheres a saírem de sua condição de vulnerabilidade. Podemos citar as cozinhas comunitárias presentes nos condomínios como estratégia de resistência popular ao enfrentamento da fome e insegurança alimentar.

Com organização, mobilização e participação comunitária, cujos laços de solidariedade mostram-se como alternativa aos impactos provenientes do processo de remoção e reassentamento, é possível vislumbrar a potência presente nos territórios. Para além da produção e distribuição gratuita de alimentos, os espaços das cozinhas se tornam referência na atenção, acolhida e cuidado, sobretudo para as mulheres e suas famílias. Uma vez que compartilham suas histórias de vida, demandas e alternativas de melhor resistir entre si. São espaços onde se gestam sonhos e esperanças, trocas e afetos. Locais onde são possíveis a construção de processos sociais emancipatórios e de análise crítica da própria realidade enquanto componente fundamental para o fortalecimento da luta das mulheres.

Pelo fim da impunidade aos impactos das ações produzidas pelas transnacionais! Por uma economia feminista e popular!

Coluna originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, no link: https://www.brasildefato.com.br/2023/04/24/os-impactos-das-empresas-transnacionais-na-vida-das-mulheres 

Nota de solidariedade à comunidade quilombola Vista Alegre (Maranhão). Alcântara é quilombola!

 

A comunidade quilombola Vista Alegre é uma das 150 comunidades residentes no território de Alcântara (Maranhão), reconhecida pelo Estado Brasileiro desde 2004. Há anos, as comunidades da região têm conflitos com a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) pela Aeronáutica, que tem restringido o acesso ao território, disputando a terra com projetos de expansão, e inúmeras ameaças às comunidades. O município de Alcântara integra a região metropolitana de São Luís, sendo a luta das comunidades quilombolas pelos seus direitos territoriais na região um dos casos mais emblemáticos da causa quilombola no país. Isso se deve tanto pelo tamanho do território como pela ancestralidade da ocupação, que remonta o século XVIII.

No último mês, a Polícia Federal realizou uma reintegração de posse violenta, afetando a vida de 50 famílias. O despejo foi resultado da ação movida pela Advocacia Geral da União (autos nº. 1003280.80.2022.4.01.3700, 3ª Vara Federal Cível da Justiça Federal do Maranhão) contra a construção de um pequeno restaurante no local, que estava desativado desde maio de 2022. Não houve qualquer tentativa de construção de mediação do conflito, mesmo se tratando de território quilombola e da previsão expressa na legislação para uso do mesmo.

Representantes das comunidades estiveram em contato com a Casa Civil, Ministério dos Direitos Humanos, Ministério da Igualdade Racial, Ministério da Justiça e Segurança Pública e secretarias estaduais para intermediar um diálogo, sem que obtivessem resposta até hoje.

As comunidades quilombolas sentiram-se desrespeitadas com a presença da Polícia Federal em suas casas, intensificando as já tensas relações entre as comunidades e a presença da Força Aérea Brasileira (FAB). Ainda que o conflito envolvesse um agente privado, este estava dentro de uma organização coletiva do território, de modo que afetou a todos os membros da comunidade, em desrespeito a seus modos de vida culturais.

A Amigos da Terra Brasil manifesta sua solidariedade às comunidades quilombolas, colocou-se como parceiro na defesa do território étnico quilombola de Alcântara em sua inteireza e plenitude. Afirmamos, em coro com as comunidades, que Alcântara é quilombola! Clamamos ao Estado brasileiro que tome medidas para construir uma mediação do conflito em acordo com os aprendizados da ADPF nº 828 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). De igual modo, recomendamos o cumprimento das diretrizes estabelecidas na Resolução nº 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos. 

 

Amigos da Terra Brasil (ATBr)

 

Fluxos cosmológicos na cidade: a (des)invisibilização indígena

Artigo  de Carmem Lúcia Thomas Guardiola¹ e Roberta Deroma² aborda as retomadas Mbya Guarani na Ponta do Arado (Porto Alegre-RS). No extremo sul da cidade de Porto Alegre, no bairro Belém Novo, um movimento cosmológico em busca de territorialidade acontece em terras de propriedade privada. Indígenas da etnia Mbya Guarani retomam território na Ponta do Arado até então destinado a construção de um empreendimento imobiliário. O movimento de Retomada de territorialidade perpassa a cidade e seus habitantes em relações de conflitos e afetos, no qual interesses econômicos e de bem viver vão construindo histórias. Confira: 

Porto Alegre tem seus bairros centrais repletos de concreto, prédios uns ao lado dos outros e muitos carros soltando fumaça cinza percorrendo ruas asfaltadas de sentimentos expostos nos ritmos urbanos. Os bairros mais afastados do centro na zona sul mesclam o concreto ao verde em uma mistura de asfalto e de terra, de pessoas e de não humanos, de áreas urbanas e de áreas rurais.

Entre todas estas ambiências — bairros, cores, chãos, pessoas, ruídos –, encontramos os Mbya. Estes indígenas têm seu território de vivências não demarcado por linhas fronteiriças divisórias, mas em uma vasta área ao sul da América do Sul. Eles caminham e vivenciam estes espaços, mas é nas matas ou próximo a elas que se constituem como indígenas Mbya.

É em busca destes territórios, perpassados por concreto, que os Mbya caminham rumo ao seu fortalecimento: três lideranças se deslocaram por terra e por água até chegarem a ponta do Arado Velho. De barco seguiram e aportam no dia 15 de junho de 2018 na Ponta do Arado onde Alexandre, Timóteo e Basílio com suas famílias encontraram todos os elementos de vivência para potencialização de seus corpos.

Neste mesmo espaço geográfico existe outra história.

A Ponta do Arado é uma área de preservação de 223 hectares e faz parte de um todo de 426 hectares da Fazenda do Arado Velho que está localizada às margens do Guaíba no bairro Belém Novo, extremo sul da cidade de Porto alegre. Uma área territorial estranha aos moldes do indígena por ser privada e com donos. Nessa história, os proprietários, representados pela Arado Empreendimentos Ltda., idealizam um projeto de urbanização que prevê a construção de condomínios de alto padrão e centros comerciais.

Conflitos emergem diante de diferentes visões de mundo relacionadas às questões ambientais, estéticas e econômicas. Sentimentos desabrocham, constroem e transformam a história do bairro atravessada pelas disputas sociais e políticas em torno de uma terra singular que é significada através da longa vivência de seus moradores.

Após denúncias e pressões do movimento socioambiental composto por estudantes, ambientalistas e moradores do bairro Belém Novo, o projeto de urbanização está suspenso por questões legais no momento desta publicação. Tais conflitos com os empreendedores se intensificaram frente a uma nova presença antes invisibilizada: a presença indígena Mbya Guarani.

Enquanto os idealizadores do empreendimento imobiliário demandam na justiça a concretização de seus planos, criam conflitos ideológicos e morais entre os moradores e causam indisposições e constrangimentos para os Mbya que permanecem fortes e determinados em estado de Retomada das terras e do seu modo de ser.

Neste estado de Retomada, os indígenas recebem apoio de um movimento em alguns momentos de tensão. Os Mbya foram expulsos das matas da Ponta do Arado e encurralados nas areias da praia sem acesso à água potável, impedidos de transitar nas matas da região para buscarem materiais à construção de casas e de plantar suas sementes milenares passadas de Guarani à Guarani. Quando são constrangidos pelos não-indígenas, o movimento lhes oferece alimentos, filtros de água, roupas, materiais para erguerem seus abrigos, um barco para se locomoverem e visitarem seus familiares ou mesmo recebê-los em visita. Recebem também o apoio afetivo do Juruá (não-indígenas) ao irem em busca de redes de apoio em eventos na cidade.

A cidade perpassa o mundo Mbya. Não mais somente os campos, os rios, os lagos, os arroios e os outros indígenas, como também os espaços urbanos.

Em meio a acusações — como de destruidores do meio ambiente –, as famílias Guarani na Ponta do Arado estão em um espaço ínfimo ao lado de sítios arqueológicos com vestígios de seus ancestrais. Estes, que eram canoeiros, circulavam pelo Guaíba e pela Lagoa dos Patos de ponta em ponta, e a ponta do Arado Velho era somente mais um espaço de vida sem propriedades privadas. Hoje o local se configura enquanto periférico tanto a respeito de sua localização quanto de sua inserção nos espaços de diálogo sobre a cidade de Porto Alegre. Seu próprio status de zona rural se encontra fragilizado, tornando-se alvo de alterações e projetos de leis que denotam parcialidade ao se empenharem em propiciar a construção do empreendimento e ao desconsiderar a malha de conflitos e questões emergentes.

A região segue acompanhada do risco de estar fadada a um único modo de se conceber a cidade sob o discurso de progresso e de crescimento. Modo este que desconhece presenças indígenas no território urbano e que reforça estereótipos em torno da pessoa indígena ao negar este espaço a elas.

O estado de Retomada de terras dentro da sua compreensão enquanto resiliência pode ser entendido como um modo de se retomar uma cosmovisão aniquilada e ressignificar lugares, questionando acerca das funções dos espaços urbanos e o quanto correspondem às necessidades daqueles que, de vários modos, fazem parte deles. Terra e ancestralidade se somam em forma de Retomada, indagações e perspectivas.

Esta distinta forma de interrogar, interpretar e sentir o mundo nos traz respostas para a questão: como em tanto tempo de suas existências, constrangidos a se contentar com cada vez menos matas, suas crianças ainda brincam nas areias das praias da cidade?

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[1] Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora associada ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT/PPGAS/UFRGS), guardiolars2@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/4343383842143051

[2] Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), integra o Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/PPGAS/UFRGS), deromaroberta@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/3096737094617446

Referências:

LADEIRA, Maria Inês. O caminhar sob a luz: o território Mbya à beira do oceano. São Paulo: UNESP, 1992.

PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: UNESP/ISA, Rio de Janeiro: NUTI, 2007.

O artigo foi publico originalmente aqui, confira

Nota em Repúdio à liberação do trigo transgênico


A Amigos da Terra Brasil tomou conhecimento, a partir do
Fórum Nacional de Combate aos impactos dos agrotóxicos e transgênicos, da autorização realizada na 259ª Reunião Ordinária da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) realizada em 1 de março de 2023, que na análise do processo nº  01250.014650/2019-71, autorizou a liberação do trigo transgênico (IND-ØØ412-7) no país.

A liberação foi realizada sem a devida realização de estudos de impacto ao meio ambiente e à saúde humana. Sabe-se que a autorização do plantio de transgênicos no país não tem sido realizada mediante o devido debate público, e a utilização de estudos idôneos e independentes das empresas transnacionais que comprovem a segurança alimentar e biofísica. Cabe lembrar que o PL nº. 2755/2021 visa justamente proibir o plantio e comercialização de trigo transgênico no Brasil em razão dos riscos à saúde humana.

CLIQUE AQUI para acessar a nota do Fórum Nacional

Estudos realizados por pesquisadores de Universidades Públicas apontam que a técnica de transgenia que envolve o trigo tem a adição de 62 mil pares de bases de DNA, no caso da soja transgênica são 4 ou 5 mil pares, e portanto envolve uma alteração genética de proporções ainda desconhecidas. Ainda mais grave, é que um dos genes inseridos na modificação da resistência ao herbicida, o glufosinato de amônio, pode causar impactos no sistema nervoso. Não à toa, a transgenia do trigo está proibida na Europa. 

Ao contrário de outros produtos liberados, como a soja, o trigo está presente no dia a dia de todo brasileiro e de toda brasileira. Com a liberação, a população estará exposta a contaminação sem qualquer mecanismo de controle. Dessa forma, a liberação desrespeita a Constituição Federal e a necessidade de um meio ambiente equilibrado, a obrigação de prevenção de danos à saúde, além dos Protocolo de Cartagena de Biossegurança e da Convenção sobre a Diversidade Biológica. 

Não podemos seguir privilegiando os interesses das empresas do agronegócio em detrimento da saúde da população brasileira e dos danos ambientais. Exigimos que seja suspendida imediatamente a liberação do trigo transgênico, e sejam realizados estudos independentes sobre os possíveis impactos.
 

Amigos da Terra Brasil

¹ Disponível em:  https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/mara-gama/2021/06/02/se-liberado-trigo-transgenico-fara-brasileiro-de-cobaia-diz-especialista.htm.

Rejection note to the liberation of transgenic wheat


Friends of the Earth Brazil had knowledge in the
National Forum of Struggle against the Impacts of Pesticides and Transgenics of the authorisation made in the 259th Ordinary Meeting of CTNBio which took place on 1 March, 2023, which analysing the suit nº 01250.014650/2019-71 authorised the liberation of transgenic wheat (IND-ØØ412-7) in the country. 

The liberation was carried out without the due development of studies concerning the impacts on the environment and human health. It is known that the authorisation to grow transgenics in the country has not been happening with the due public debate and the use of idoneous and independent studies about transnational corporations to verify dietary and biophysical safety. It is worth remembering that bill nº 2755/2021 aims exactly at prohibiting the growth and commercialisation of transgenic wheat in Brazil due to the risks to human health. 

CLICK HERE to access the National Forum note

Studies carried out by researchers in Public Universities point out that the technique of gene delivery of wheat involves the addition of 62 thousand DNA base pairs. In the case of transgenic soy, it is 4 or 5 thousand pairs, therefore it involves a genetic alteration of unknown proportions. Even more serious is one of the genes inserted in the modification of resistance to the herbicide glufosinate-ammonium, about which there are studies of the impacts on the nervous system. It is not for no reason that wheat gene delivery is prohibited in Europe. 

Differently from other liberated products like soy, wheat is present in the daily life of all Brazilians. With the liberation, the people will be exposed to contamination without any control mechanism. Therefore, the liberation does not respect the Federal Constitution nor the need for an equilibrated environment, the obligation to prevent damage to health, besides the Cartagena Biosafety Protocol and the Convention on Biological Diversity. 

We cannot keep privileging the interests of agribusiness companies to the detriment of Brazilian people’s health and environmental damage. We demand the immediate suspension of the liberation of transgenic wheat, and that independent studies about the possible impacts be carried out. 

Friends of the Earth Brazil 

Available on:  https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/mara-gama/2021/06/02/se-liberado-trigo-transgenico-fara-brasileiro-de-cobaia-diz-especialista.htm.