Gotas que Transbordam: pia coletiva junto à sede da Amigos da Terra permite acesso público à água

A pia desaparecida

Pia, que havia sido furtada, foi recolocada na frente da CaSAnAT. Foto: arquivo ATBR

“Pra mim, aquela pia é um marco, ela representa essa situação que a gente vive. Colocar uma pia na rua é garantir acesso à água, que é um direito universal para todas, todos e todes. É uma oportunidade bem importante de a gente poder demonstrar isso e fazer com que a sociedade veja, sinta. Muitas vezes essas coisas ficam escondidas, distantes das pessoas, então a gente aproxima, mostra e trabalha isso”, diz Fernando Costa, o Fernandão, membro do conselho diretor da Amigos da Terra Brasil e bioconstrutor. Ele acredita que as cidades brasileiras deveriam garantir o “mínimo pra todo mundo, que de certa forma, a nossa Constituição em 1988 preconizou ali, colocou como questões importantes e muitas delas até hoje o Brasil ainda não conseguiu colocar em dia”. A pandemia da COVID-19 fez crescer ainda mais o visível abismo entre classes sociais, mas não foi só isso. “Houve um grande aumento da população de rua não só na cidade de Porto Alegre, mas na maioria das capitais do Brasil durante a pandemia. Segundo um levantamento feito no Rio, 30% da população de rua de hoje tinha ido parar na rua no último ano”, explica Lúcia Ortiz, presidenta da Amigos da Terra Brasil.

“A água é um problema histórico do Brasil. Vem a pandemia e começa a se discutir, a colocar em cheque nos fóruns internacionais a questão da higiene. Os países da América Latina colocaram que é muito bonito se falar na importância de lavar as mãos, só que não tem acesso à água, tem uma precariedade tremenda no continente”, destaca o arquiteto Leonardo Brawl Márquez, cofundador da TransLabUrb. Tal precariedade de acesso à água gerou, no primeiro semestre de 2020, o projeto idealizado pela ONG Cozinheiros do Bem e realizado em parceria com a TransLabUrb, o qual alocou sete pias espalhadas pela cidade em pontos estratégicos. 

Pia móvel instalada pelo TransLabUrb. Foto: TransLAB.URB

“A gente escolheu esses pontos, que estavam já relacionados com onde já tem uma frequência de pessoas em situação de vulnerabilidade”. Mesmo sendo uma iniciativa que não faria mal a ninguém e que tinha condições de se sustentar financeiramente, a ideia teve permissão negada pela prefeitura de Porto Alegre, mas o bem não poderia ser impedido.“Ele é um sistema autônomo, porque quando o Marchezan [prefeito Nelson Marchezan Jr., cujo mandato encerrou em 2020] retirou até a liberação de colocar, a gente pôr esse negócio na rua já virou uma infração, quem dirá abrir o chão e acessar a rede do DMAE [Departamento Municipal de Água e Esgotos]”. Por incrível que pareça, a parte mais difícil foi conseguir fontes de fornecimento de água, mesmo mediante pagamento, o que fez Brawl se questionar.“Foi ridículo ver que ninguém tem acesso à água, nenhum tipo de pessoa, mesmo nós privilegiados. Dizíamos: bota no meu endereço, bota no meu CPF, eu pago a vista, eu pago como vocês quiserem. Mas não existe como acessar, isso foi bem emblemático”.

A ideia da instalação da pia na calçada da CaSAnAT em outubro de 2020 foi inspirada na iniciativa da Cozinheiros do Bem.“Quando eu vi a pia pela primeira vez ali, achei bárbara a ideia. Achei uma coisa assim muito legal, porque tirando em alguns parques, tu não tens acesso à água na rua, e ela tinha que estar disponível pra todo mundo. Tu andas em qualquer cidade da Europa, tu vais encontrar pontos públicos de captação de água para beber, para fazer qualquer coisa”, relata o advogado Roberto Rebés Abreu, conselheiro jurídico da Casa ALICE (Agência Livre para Informação Cidadania e Educação), organização vizinha da CaSAnAT no bairro Azenha, em Porto Alegre (RS). Não é apenas o acesso à água que é negado. As pessoas em situação de vulnerabilidade não só tem seus direitos básicos vetados, são tratadas como  lixo: “Um morador de rua ou um preso que está entregue para uma penitenciária cuidar, são caras que as pessoas acham que se pode bater, que se pode violar seus direitos, isso tá um absurdo”. 

Nem quando a Amigos da Terra decide colocar uma pia na calçada da sua própria casa a situação é preenchida por algum tipo de paz. “Percebemos incômodos, acreditamos que justamente a própria pia acaba sendo uma demonstração do quão injusto hoje o mundo se coloca, onde uma pia acaba sendo um privilégio”, coloca Fernandão. Aquele singelo pedaço de ferro soldado a uma parede deveria ser uma fonte de vida e esperança, mas é de difícil compreensão para alguns, afogados por seus privilégios. “Eu sei que isso incomoda os vizinhos, eles não querem ter morador de rua perto. Cheguei a conversar com uma senhora e discuti isso, ela ficava muito brava porque aquilo ali era uma imundice, uma nojeira, uma junção de desocupados. Eu disse para ela: a senhora tem a sua casa, lava as suas mãos, a senhora toma a sua água na sua casa. Onde os moradores de rua vão ficar? Mas eles não ouvem isso né. Foi tão engraçado, porque ela estava puxando um cachorrinho pela coleira, o cachorro fez cocô e ela pisou em cima, ao mesmo tempo que falava mal de morador de rua. Então é uma coisa muito difícil isso”, conta Abreu. 

Morador de rua usando a pia em frente à CaSAnAT
Foto: Arquivo ATBR

Em meio à sociedade, o preconceito é vigente. “O pessoal para com o carrinho pra se lavar na frente da casa, isso gera uma ocupação da calçada, a galera já atravessa a rua. É um preconceito a pobreza, é um medo das pessoas”, relata Fernandão. Apesar das dificuldades, os moradores de rua não têm opção. Ou se submetem a algum tipo de desconforto, ou ficam sem saída. “Nas minhas idas à obra da casa ALICE, mais de uma vez passei por moradores de rua. Tinha uma moça que me disse que lavava todas as roupas dela ali, que era o único lugar que ela tinha”, conta o conselheiro jurídico da ALICE. Devido à dificuldade de se manter vivo em uma sociedade que culturalmente marginaliza aqueles desprovidos de um “padrão de vida”, sobreviver quando se é um morador de rua muitas vezes se trata de sorte e em meio a uma pandemia, a coisa só piora, como sublinha Brawl: “Grande parte da realidade dessas pessoas é acessar a água por meio do favor. Ele chega e pede uma água do estabelecimento que está aberto. Eles são muito táticos, a população de rua tem a sua rede de apoio. Então assim, se fecha o comércio, e foi o que aconteceu, com esse fechamento as pessoas passaram quase a totalidade das horas sem acesso à água potável. Esse foi o grande impacto no município de Porto Alegre”. 

A Amigos da Terra Brasil tem mais de meio século de existência e nunca havia tido uma sede própria. Na década de 2000, iniciou-se uma campanha em busca de uma casa. Foi assim que, no ano de 2005, o sonho se concretizou. A CaSAnAT foi um projeto possibilitado graças a uma cedência do Patrimônio da União à organização. Anteriormente uma construção abandonada e em condições precárias, ela foi transformada em um espaço de trabalho em equipe e solidariedade, em permanente transformação e diálogo, na prática, sobre as políticas públicas urbanas . “A gente foi pro Rincão Gaia, umas 30 pessoas. Passamos o fim de semana desenhando a casa, pensando a água, pensando os espaços, pensando nos fluxos da água, como a gente queria se relacionar com o meio ambiente, com a cidade. Todo o projeto arquitetônico foi feito ali”, conta Lúcia Ortiz. 

Entre as restaurações de cunho sustentável feitas pela equipe, foi desenvolvida uma instalação pioneira em Porto Alegre, de um leito de evapotranspiração: sistema de tratamento dos efluentes feitos no próprio lugar. “Então a gente não joga esgoto na rede de esgoto, a gente não tem esse custo pra cidade, a gente trata o esgoto na Amigos da Terra e a gente devolve a água pura pro fluvial da cidade para ir pro Guaíba”. O principal objetivo da Organização e, posteriormente da casa, é fazer projetos em prol do coletivo, “qualquer coisa que a gente faz é pra ter uma construção coletiva que fique pra cidade, que seja uma tecnologia social que possa ser de baixo custo, apropriada pras pessoas pra poderem usar nas suas realidades, seja na periferia urbana, seja nas aldeias indígenas, onde for”. Mesmo assim, o preconceito social e o Governo Bolsonaro não puderam deixar a propriedade passar “despercebida”. Assim, o Ministério da Economia, regido por Paulo Guedes, criou a Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimentos e Mercados. Esta tem a função de vender tudo o que é Patrimônio da União e do governo para o mercado. A primeira ação por eles promulgada em cunho regional, pois existe um escritório por região, assim que assumiu um militar na superintendência do Rio Grande do Sul, foi uma visita à CaSAnAT. Lá, ele tirou fotos, alegou que a casa não tinha reboco, que era precária, que as aberturas eram de madeira… “Tudo aquilo que a gente recuperou na casa ele disse que não tava bom. Queria uma casa de luxo? É essa visão classista, sem nenhuma técnica, sem nenhum critério de conhecer o processo”. O processo judicial de reintegração de posse movido pelo governo Bolsonaro pela desocupação da CaSAnAT, no presente momento, tramita normalmente na Justiça Federal.

O descaso do atual governo infelizmente vai ainda mais além. Apesar de a água ser um direito universal, para alguns isso ainda é difícil de compreender.“A água não pode ser um produto que dê lucro, que faça com que alguns setores ganhem com ela. A água tem que ser um bem da vida, um bem da natureza. Nós somos constituídos basicamente de água, precisamos dela. Até passamos algum tempo sem comer, mas não podemos ficar sem beber. O nosso Planeta, apesar do nome Terra, é 70% água. Então ela é um bem fundamental e tinha que estar acessível a todos”, sublinha Roberto Abreu. A falta desse recurso essencial gera uma cultura de falta de higiene para aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade. Multiplicada pelos anos vividos na rua, vagando de marquise em marquise, o corpo, mas principalmente as mãos, ferramenta mais antiga em posse do ser humano, criam uma camada triste de podridão.

No início do projeto, os moradores de rua tinham auxílio no uso da pia. Foto: TransLAB.URB

“A galera sempre chegou podre. Na primeira pia que a gente instalou, eu tive que fazer essa função de ensinar. O cara não tem acesso a nada né, então não entendia. Na hora de lavar a mão, o cara não sabe. Tu aprende a lavar a mão com a família, mas o cara não teve isso, então ele lavava, me olhava e ria. Eu falava: não, lava mais, olha o caldo preto que tá saindo. Umas crostas assim, os caras ficavam muito mais tempo pra lavar a mão, porque já chega podre”, conta Brawl sobre sua experiência no projeto das pias pela cidade. Como se não bastasse a falta de incentivo da sociedade e do próprio governo para a disponibilização pública da água, a CaSAnAT sofreu uma parada forçada no meio do seu projeto.

“Num domingo à luz do dia, passa um carroceiro que trabalha com reciclagem, pega a pia e deixa a água jorrando durante o fim de semana, na calçada”, conta a presidente da Amigos da Terra Brasil. “Acabou sendo levada a pia. Era uma pia de ferro, o que tornava meio lógico ser levada, mas a gente tentou soldar ela ali, então fizemos ela de ferro justamente para poder não quebrar e poder ser uma pia que fosse mais resistente”, relata Fernandão. A situação caótica, ocorrida no dia 27 de junho de 2021, fez a equipe da CaSAnAT questionar se sua iniciativa de fato fazia sentido, se estava atingindo as pessoas realmente, pois em uma sociedade de mentalidade Capitalista, até mesmo o carroceiro que precisa do dinheiro da reciclagem para se sustentar dá fim a uma iniciativa como essa apenas pelo dinheiro fácil. 

Com o furto da pia, o desperdício de água se tornou realidade. Foto: Arquivo ATBR

Vivemos em uma era de questionamentos e de constantes mudanças de rota, porém, quando o espírito de solidariedade e de justiça social correm pelas veias de alguém, mesmo sendo apedrejado, o moinho não para de girar. “A ideia é manter o projeto, colocar a pia de novo, vamos insistir. Estamos nos organizando para estarmos mais presentes na casa. A partir do momento que a pia tá ali e a gente tá na casa, isso gera uma interação como gerou em todas as vezes que a gente tava ali”, conta Costa, e acrescenta que placas já estão instaladas, contendo as instruções de uso da pia, de como limpar as mãos corretamente. O objetivo é apresentar as intenções, mostrar que aquele é um local de diálogo e que a pia está ali apenas para o bem.

Pia coletiva da CaSAnAT recebeu nova sinalização. Foto: Arquivo ATBR

No coração de todo o ativista, a esperança transborda: “Nós não temos a opção de não acreditar em um futuro melhor, se estamos aqui fazendo esse trabalho, temos que acreditar. Esse acreditar é acreditar nas pessoas, nesse poder popular, nesse processo de incidência cotidiana em toda essa questão da cidade, que nos faz acreditar que as pessoas, enxergando um dos problemas estruturais do sistema, essa dificuldade de pensar. Essa participação da cidade, essa interação… Pensar nisso no teu tempo diário é todo um contexto. Qual é a parte que a gente participa, e coisas que às vezes não é nem por opção, é uma necessidade”, pensa Fernando Costa, membro do conselho diretor da Amigos da Terra Brasil.

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