Câmara protocola projeto que prevê a entrega de 157 imóveis à iniciativa privada

O projeto cria o Programa de Gestão do Patrimônio Imobiliário de Porto Alegre (PGPI), o qual regulamenta a compra e venda dos 157 imóveis, e foi aprovado nesta segunda-feira (16). Na lista de imóveis para desestatização, novo termo para a já conhecida privatização, estão incluídos terrenos onde não existem informações precisas sobre utilização destes por famílias pobres e negras, assim como suas finalidades.  Estão incluídas também moradias para expressões societárias e culturais de matriz Negra e Popular, sedes municipais de secretarias, e pode ainda impactar diretamente  três escolas de samba próximas ao Estádio Beira-Rio, na Avenida Padre Cacique, zona sul da Capital.

Representantes de movimentos sociais, torcidas organizadas e quilombolas manifestaram-se contra o programa aprovado na Câmara de Vereadores de Porto Alegre que prevê a venda de 157 imóveis para o capital especulativo. Foto: Assessoria Vereadora Karen Santos/Divulgação 

O Projeto de Lei Complementar 002/2022, que autoriza a venda de 157 imóveis, entre eles, terrenos ocupados por famílias e comunidades periféricas, foi aprovado na Câmara Municipal dos Vereadores de Porto Alegre. Chamado de “Liquida Porto Alegre” por vereadores da oposição, o projeto possibilita que a Prefeitura de Porto Alegre repasse para a iniciativa privada as sedes da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Smamus),  ex-Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam), no bairro Três Figueiras,da Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (Smoi, ex-Smov), na Avenida Borges de Medeiros, hoje desocupada, e da extinta Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (Smic), na entrada do Túnel da Conceição. Além disso, também foram colocados à venda para o capital especulativo áreas de lazer, como quadras de tênis no bairro Moinhos de Vento e terrenos em frente ao Trecho II da Orla do Guaíba. 

É importante destacar que três terrenos ocupados por escolas de samba – a Banda de Saldanha, a Praiana ou a Imperadores do Samba –  também estão na lista. Em entrevista ao jornal Zero Hora, o secretário municipal de Administração e Patrimônio, André Barbosa, afirmou que “neste momento, não se cogita removê-las”. Contudo, a ação da prefeitura abre essa possibilidade futura, colocando novamente em risco os espaços de cultura popular. Os imóveis serão vendidos em leilão público com edital montado pelo Executivo e também é possível manifestar o interesse na compra de qualquer imóvel com envio de ofício à Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (SMAP). Isto é, o repasse de terrenos municipais é direcionado a quem quer que possa pagar. Movimentos sociais denunciam que os terrenos estão sendo vendidos abaixo de seu preço original.

Ainda, em um dos terrenos que irá a leilão, observa-se a presença de tapumes da construtora Melnick Even, em imagem retirada do Google Maps com captação de 2019. Vereadores de oposição protocolaram pedido de informação quanto à presença da construtora em um imóvel supostamente sem uso social, como previsto na elaboração do PLCE 002/2022. Não há pronunciamento da Prefeitura de Porto Alegre sobre o assunto. 

Um dos terrenos à venda está tapado por tapumes com o logo da construtora Melnick Even. Foto: Google Maps/Reprodução

Os quilombolas foram  atingidos de forma direta e indireta pelo Projeto de Lei aprovado de autorização de venda dos Imóveis. “O programa é uma declaração de guerra à população afro-indígena da cidade e foi feito com uma tramitação legal duvidosa e aprovado de forma relâmpago”, declara Onir Araújo, da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul. Assim, a votação abre um precedente legal para outras desapropriações, ou seja, ela é um marco, caracterizada como o primeiro leilão praticamente completo de terrenos de uma Capital. “Seria como uma reedição de uma Lei de Terras Municipal nos moldes daquela editada no Brasil Império em 1850, ou seja, entregando as terras ‘Públicas’ para quem tem dinheiro e para os amigos do Imperador “, afirma o representante da Frente Quilombola RS.

Em outros empreendimentos envolvendo a venda de terrenos habitados por populações indígenas em Porto Alegre, como é o caso da Ponta do Arado, também se vê o processo de não consulta às comunidades, reforçando um modelo colonizador, em desrespeito à Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tradicionais em Estados Independentes. No entanto, só se havia aprovado a venda de um território por vez. Agora, com o leiloamento de 157 imóveis, as previsões, de acordo com Onir, são que, cada vez mais, a cidade pertença à iniciativa privada e prive seus cidadãos de habitarem-na. 

O processo de retirar o direito à cidade das populações periféricas é chamado de gentrificação e já ocorre em Porto Alegre

A gentrificação é o processo que revitaliza para as classes mais altas uma região antes em estado de pobreza, expulsando os moradores das classes mais baixas da região. Em áreas centrais, é comum que se perceba o processo de retirada do acesso à cidade das populações mais pobres para formar condomínios, hospitais, aeroportos, áreas de lazer para a classe média e alta. Os antigos moradores da região, por conta do aumento do custo de vida, como o preço do aluguel, não conseguem mais acessar o local no qual moravam. 

Em Porto Alegre, por exemplo, existiam 22 hectares próximos ao Parque Farroupilha (Redenção), denominados “região da Ilhota”, ocupados por pessoas de classe baixa. No final dos anos 1970, em um plano de reformar a cidade, os habitantes foram expulsos de suas casas por ordem da Prefeitura e forçados a se mudar para o bairro Restinga, na Zona Sul de Porto Alegre. O bairro hoje é um dos mais populosos da cidade e sofre com problemas estruturais, como a precariedade de transporte. 

Artur Klassmann, professor de Geografia, caracteriza a gentrificação como um processo que mudou de característica ao longo dos anos. Ao longo da história, explica Klassmann, a gentrificação contribuiu muito para a expansão horizontal das cidades, periferização urbana e criação de novas comunidades periféricas, pela tutela do governo no processo, como no caso da Ilhota, em que os moradores foram realocados pelo poder público. 

No entanto, agora são observadas essas remoções em aspectos difusos, em que, por exemplo, parte da comunidade é colocada em uma área e outra parte em local diferente. Como o caso da Nazaré onde os moradores foram para dois condomínios, ou pior como o caso da obra da copa onde os removidos pela prefeitura foram pulverizados na cidade com o mecanismo do aluguel social, que gasta em aluguel e não produz moradia além da desorganização dos moradores. Isso acarreta na perda dos laços comunitários que antes existiam e tinham seus meios de composição coletiva. 

Prefeitura cria planos mirabolantes para revitalizar partes da cidade enquanto retira direito de participação dos cidadãos nas decisões municipais

Apesar da precariedade de habitação de seus habitantes, a prefeitura de Porto Alegre insiste em lançar em suas redes sociais planos como o da revitalização do Arroio Dilúvio, que não especifica o que será construído e quando, apenas de que, no futuro, a cidade terá prédios semelhantes ao de filmes de ficção científica dos anos 2000. Também percebe-se o alinhamento da prefeitura com setores de construtoras e indústrias, que são citadas no projeto. “É muito fácil vender uma ideia de cidade para daqui a 30 anos. Na prática, um ou outro projeto de interesses específicos serão construídos agora e mais nada no futuro. Qual cidade queremos para agora?”, questiona Rafael Passos, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil em programa na RDC TV.

Conta oficial da Prefeitura de Porto Alegre emite pronunciamento em redes sociais sobre a implementação da revitalização do Arroio Dilúvio. Foto: Twitter/Divulgação

A participação dos habitantes de Porto Alegre em processos envolvendo sua cidade já é parca. Após a extinção do Orçamento Participativo e a deliberação de um Conselho Deliberativo em substituição a este, permitindo apenas a emissão de opinião dos cidadãos. Isto é, tornando os cidadãos cada vez menos sujeitos atuantes do processo de tomada de decisões e tornando a administração pública um balcão de negócios para o lobby empresarial. “Estes imóveis estão sendo vendidos no Projeto de Lei Complementar aprovado pela Câmara por preços abaixo do mercado e excluindo a população do processo de participação nas cidades”, argumenta Fernando Campos Costa, da coordenação da Amigos da Terra Brasil. 

A venda de territórios já é prática comum em outros níveis da autarquia do Governo Brasileiro

A Amigos da Terra Brasil denunciou em uma série de reportagens, um conjunto de projetos de entrega para a Iniciativa Privada em setores estratégicos do país, entre eles bens comuns que pertencem a toda a população e a nação para além dos habitantes atuais, ou de quem quer que queira usufruir em benefício próprio. A série apresenta o projeto neoliberal de entrega dos bens públicos da nação a empresas e empreendimentos nos diversos níveis Federal, Estaduais e Municipais, como ocorre em Porto Alegre. 

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