Há 3 meses, retomada Karanda’ty Mbya Guarani reivindica território em Cachoeirinha (RS)

A retomada ao território ancestral defende a área conhecida como “Mato do Júlio” contra projeto de especulação imobiliária

Quem acessa o município de Cachoeirinha (RS) vindo da BR-290 identifica uma área de mata fechada que pode ser vista já da estrada. A área de quase 300 hectares de floresta e banhados, berços da fauna e flora remanescentes do bioma Mata Atlântica, é moradia de famílias Mbya Guarani que retomam a terra ancestral localizada próxima à região central do município. As terras abrigam uma mata nativa que inclui vegetação em estágio inicial de regeneração, próximo à BR-290, e em estágio médio e avançado ao norte, onde é delimitada pela Av. Flores da Cunha, na região central da cidade, e torna-se abrigo também das famílias Guarani com a chegada da primeira “mitã”, neném, nascida na retomada Karanda’ty. O nome foi dado por Alexandre Kuaray, o xeramoi da retomada, ou seja o mais velho e sábio.

O retorno ao território ancestral ocorreu em 15 de setembro e, desde então, as famílias seguem ocupando e protegendo a área, que está em disputa entre município e os 13 supostos herdeiros da região, que mantêm uma dívida de IPTU com o município. A ocupação da área pelas famílias Guarani dá função social à propriedade, como define a Constituição Federal.

É importante sublinhar que a região metropolitana de Porto Alegre, seguida das missões e da região litorânea, são as áreas com a maior concentração de populações Guarani (sendo Mbya no sul  do Brasil, Ava-Katu-Eté no Mato Grosso e Nhandeva-Xiripa em São Paulo), como apontam os dados publicados pela Comissão de Cidadania e Direito Humanos da Assembleia Legislativa do RS (ALRS) no material “Coletivos Guarani no Rio Grande do Sul — Territorialidade, Interetnicidade, Sobreposições e Direitos Específicos”. Tanto hoje como no passado, o comportamento territorial dos povos originários tem sido mal compreendido pelos juruá (termo Guarani em referência aos não-indígenas) que invadiram seus territórios. Estes basearam sua conquista na expulsão das populações locais e defendem, com isso, o direito à posse da propriedade, sem levar em consideração o fenômeno conhecido como “itinerância” pelos povos originários. 

“Os povos autóctones platinos viviam, assim como quase todos os nativos das Terras Baixas sul-americanas, em regime de circulação sazonal entre aldeias e acampamentos. Conforme a época do ano, havia o deslocamento dos núcleos domésticos de produção por todo o vasto território tribal, independente da existência de aldeias e assentamentos “mais” permanentes ao estilo do que passaram a praticar os colonizadores”, descreve o pesquisador José Otávio Catafesto de Souza na obra Povos Indígenas na Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba, lançada em 2008 pela prefeitura de Porto Alegre.

O debate é antigo, afinal os povos originários das Américas lutam há pelo menos quinhentos anos pelo direito de existir em comunhão com a natureza. Depois de expulsão, assassinatos e séculos de violência, a luta por ter seus modos de vida respeitados permanece. A disputa pelos territórios ancestrais é uma luta presente no país: está em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF) a decisão sobre a tese do Marco Temporal. A presença desse debate e do trâmite de Projetos de Lei que visam retirar os direitos indígenas com o PL 490 na Câmara Federal provam que nem mesmo os direitos adquiridos na Constituição Federal são permanentes. A tese do marco temporal é uma tese ruralista e que segundo esta interpretação, já considerada inconstitucional, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese é defendida por empresas e setores econômicos do agronegócio que têm interesse em explorar as terras indígenas. 

A defesa da permanência dos Mbya Guarani na retomada de Cachoeirinha reafirma o direito secular sobre essas terras, além do resguardo da área de mata, fundamental para manutenção dos modos de vida dos povos tradicionais e para dar qualidade de vida aos próprios moradores do município de Cachoeirinha, uma vez que as áreas verdes mantêm o equilíbrio da umidade do ar e mitigam a poluição emitida pela urbanização. 

Segundo os Mbya Guarani, a retomada ocorre como forma de lutar pela preservação da área de mata. Seguindo o entendimento de que todos os seres têm direito à vida e precisam ser respeitados, tendo a retomada a finalidade de proteger fauna e flora em um ambiente de harmonia, diante do contexto de acelerado avanço da destruição sobre as áreas de preservação. Em especial quanto à especulação imobiliária, como os fatos levam a compreender o caso. 

Em uma live no Facebook, no dia 29 de setembro, promovida pelo Coletivo Sementes, em que participou o pesquisador José Catafesto, ele esclareceu que o conceito de cidadania não é algo que os indígenas almejam, pois remete à cidade e a um ideal de urbanização. O que os indígenas realmente almejam, explicou, é a “florestania” — conceito criado pelo historiador. A neologia apresenta uma relação com a terra e a sua “tekoá” (aldeia, na linguagem Mbya Guarani).

A área conta, há anos, com mobilizações da população em apoio à preservação da área, além de movimentos articulados como a Associação de Preservação da Natureza — Vale do Gravataí (APN-VG) e do grupo Salve o Mato do Júlio, que defendem o local como uma reserva ecológica e entendem que o local é fundamental para a qualidade do ar da cidade, como recurso hídrico e também para o controle de espécies animais.

Até agora, a prefeitura de Cachoeirinha não entrou em contato com as famílias e parece ignorar a existência da Retomada. A Secretaria Especial de Saúde Indígena se comprometeu em abastecer a retomada com água, porém nada fez até agora. Já a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) levou algumas cestas básicas em uma visita à retomada nesses 3 meses.

Confira a fala de Luiz Karaí sobre o que representa a retomada:


A disputa pela área

A área conhecida como “Mato do Júlio” é uma antiga fazenda que vai da Avenida Flores da Cunha até depois da BR 290. O único imóvel na área é a casa construída em 1815 pela família Baptista Soares da Silveira e Souza e é popularmente conhecida dessa forma, pois o último herdeiro a morar na casa foi Júlio, falecido no início dos anos 2000. A área que data do período colonial inclui uma antiga senzala. Como patrimônio histórico dessa região, casarão e senzala, ambos em estados de avançada deterioração, estão em processo de tombamento histórico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). 

Um projeto capitaneado pelos herdeiros da área propunha a construção de um loteamento na região, incluindo duas ruas cortando o “Mato do Júlio”, ligando a Avenida Papa João XXIII ao Parque da Matriz e uma outra ligando a Flores da Cunha até a Perimetral Sul, que seria construída junto à BR 290. Além de vias secundárias loteadas e um parque no entorno da Casa dos Baptistas. Sem políticas públicas de habitação popular, a prefeitura construiu em 2020 o Projeto de Lei 4463. O PL foi questionado pela falta de debate público para uma pauta que pretendia alterar o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e culminou na recomendação do Ministério Público Estadual (MP), à Câmara Municipal, pela suspensão do processo de alteração do plano diretor.

Em entrevista ao site Seguinte, o vice-prefeito de Cachoeirinha, Maurício Medeiros, afirmou que esteve reunido com os herdeiros da área conhecida como “Mato do Júlio” no início de novembro. Segundo o vice-prefeito, os herdeiros da região estariam preocupados com a letargia do processo que define o destino da área. Contudo, estes nunca pagaram o IPTU sobre a área e a dívida soma o valor de mais de R$ 25 milhões. Segundo Medeiros, o Ministério Público orientou a prefeitura a contratar um estudo técnico para definir o que pode ser desenvolvido na região. A área está avaliada pela prefeitura em R$ 200 milhões. Segundo o mesmo site, um acordo foi firmado pelo governo Miki Breier com os herdeiros da área, em que o município receberia 10 dos 256 hectares da área privada, em troca de uma dívida judicializada de IPTU.

Maurício, agora, comanda o município após o afastamento do prefeito Miki Breier por processo do Ministério Público que o acusa de receber propina de empresas terceirizadas que prestam serviços no município. Ele afirma que pretende dar seguimento à política implementada por Miki para a área.

Abandono gera insegurança

Um dos motivos para a defesa de destruição da área de preservação foi um recente caso de tentativa de estupro a uma professora que passava pelo Parcão, em Cachoeirinha, região próxima ao chamado “Mato do Júlio”. A notícia reacendeu a discussão e motivou uma nota da prefeitura reiterando que reenviará o PL com proposta de alteração do plano diretor para incluir o projeto imobiliário na área de mata à Câmara do município: “A Prefeitura informa que irá reenviar o projeto à atual legislatura na esperança de que compreendam toda sua extensão e importância para a segurança da população de Cachoeirinha”.

O caminho adotado pela prefeitura para o problema estrutural de insegurança das mulheres para exercerem seu direito de ir e vir poderia ser trabalhado de forma transversal: com campanhas de conscientização, com educação nas escolas, trazendo o debate para a sociedade e capilarizando uma transformação real e a longo prazo junto à população. Ao contrário, escolhe-se utilizar deste motivo para apoiar a especulação imobiliária e destruir uma área que tem um papel fundamental de controle do clima do município, além de ser local de moradia de toda uma sociobiodiversidade.
Vale destacar que há um batalhão da Brigada Militar há uma quadra de distância do Parcão de Cachoeirinha, divisa com a área preservada. Além disso, ainda em 2016, o MP municipal já indicava a necessidade de cercamento da área: “O cercamento consta, inclusive, no Plano Diretor do Município e existe uma dívida ativa de R$ 10 milhões em IPTU”, afirmou a Procuradora-Geral do Município, Maria Loreny Bitencourt da Silva, citando os valores da época. Na referida reunião, foi o primeiro momento em que o município teve acesso aos dados dos 13 herdeiros para direcionar a execução dos tributos e a responsabilidade pela segurança e preservação ambiental no local.

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