Troféu “Amigo dos Agrotóxicos” é entregue para Eduardo Leite, governador do RS

Ontem, dia 3/12, movimentos sociais, sindicais e ambientalistas realizaram ato de entrega do prêmio satírico “Pulverizador de Ouro – Ano 2021, Amigo dos Agrotóxicos” ao governador gaúcho, Eduardo Leite, em frente ao Palácio Piratini. A data é marcada pelo Dia Internacional de Luta Contra os Agrotóxicos, em que a cidade de Bhopal, Índia, viveu uma tragédia em que mais de 27 toneladas do gás isocianato de metila vazaram de uma fábrica de agrotóxicos, matando 2,2 mil pessoas na hora e atingindo cerca de 600 mil ao longo dos anos seguintes, em 1984.

Troféu “Pulverizador de Ouro – Ano 2021, Amigo dos Agrotóxicos” foi entregue ao governador gaúcho, Eduardo Leite, em ato satírico. Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil

O governador Leite, que pretendia ser candidato a presidência, promoveu a alteração da legislação, pioneira no país, de proteção contra o uso de agrotóxicos proibidos em seus países de origem, Lei n° 7.747/1982.

Em julho deste ano foi aprovado o PL 260/2020, flexibilizando essa legislação com 37 votos favoráveis, da base do governo Eduardo Leite, e 15 contrários. A aprovação ocorreu mesmo com manifestações populares contrárias a medida e o alerta de mais de 170 organizações que enviaram, ainda em 2020, uma carta aberta ao governo denunciando o retrocesso e os riscos do projeto à saúde da população e à natureza.

Em manifesto elaborado por 19 organizações, entre elas a Amigos da Terra Brasil, denunciaram o retrocesso ambiental do governo que coloca em risco os biomas Mata Atlântica e Pampa com a perda de território para o plantio de soja, além do envenenamento da população por agrotóxicos: “o estado é um dos que mais consome biocidas, em um país que a cada 10 anos, são notificados mais de 100 mil casos de intoxicação por estes produtos”. O manifesto foi entregue a um representante da Casa Civil do governo do Estado.

O PL 260 é uma forte representação do governo Leite. Enviado em regime de urgência, atropelando o diálogo popular e relegando os alertas de riscos à saúde da população em nome do lucro da venda de venenos. Perpetua-se assim a lógica de dependência do agronegócio na economia, tendo o desenvolvimento econômico como norte, independente dos custos humanos que isso possa gerar.

Foto: Isabelle Rieger

Fernando Campos Costa, conselheiro do Amigos da Terra Brasil, destaca que o foco no agronegócio para o desenvolvimento social está atrelado a incongruências, em especial o fato de não ser levado em consideração os impactos nos custos para a saúde pública no uso de venenos. Por isso, ele destaca que a luta contra os agrotóxicos está atrelada a luta contra o agronegócio, as corporações e a favor da vida.

“O setor do agronegócio é o setor em que mais se percebe o poder das corporações, não só no Brasil, mas no mundo. Esse setor tem altos incentívos do governo, não pagam impostos e geram uma demanda enorme ao Estado, como na saúde com todas as contaminações e doenças que esses produtos geram, não só para quem aplica, mas também no prato de trabalhadores e trabalhadoras da cidade. Eles garantem o lucro e os impactos são mandados para o Estado. O mesmo Estado que eles não querem que seja forte”, alerta.

O Brasil é hoje o segundo maior comprador de agrotóxicos proibidos na Europa. Em 2018, foram 10 mil toneladas compras e 12 mil em 2019. Desde o início da gestão Bolsonaro, 1501 novos agrotóxicos foram liberados para comércio, somando 3567 produtos agrotóxicos comercializados em todo o Brasil hoje. Os dados são de um levantamento da Agência Pública e Repórter Brasil com base no Diário Oficial da União.

Vale destacar ainda no pacote de maldades do governo gaúcho que, no último mês, passando quase desapercebida pela população, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura liberou o Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC), criando o autolicenciamento privado. O recurso foi o mesmo utilizado em processos criminosos como os promovidos pela empresa Vale, em Mariana e Brumadinho, Minas Gerais.

O manifesto lançado nesta sexta-feira (3) é uma articulação de: Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, Amigos da Terra Brasil; União Protetora do Ambiente Natural – UPAN; Centro de Estudos Ambientais – CEA; União Pedritense de Proteção ao Meio Ambiente – UPPAN-DP; Associação Ijuiense de Proteção ao Ambiente Natural – AIPAN; Instituto Mira-Serra; ONG Araçapiranga; Associação de Mães e Pais pela Democracia – AMPD; Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente – Apedema do RS; Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal do RS (PoA)- ACPEF; Movimento Preserva Zona Sul de P. Alegre; Grupo de Voluntários do Greenpeace de P. Alegre; Movimento Roessler para Defesa Ambiental; Movimento Laudato Si – RS, e Pastoral da Ecologia Integral; Movimento Ciência Cidadã.

Confira mais fotos:

Foto: Isabelle Rieger
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Foto: Isabelle Rieger

Festival Ambiental 2021: Porto Alegre pela Ecologia e pela Justiça

O Festival Ambiental POA 2021 pela ecologia e justiça social aconteceu no sábado, dia 27 de Novembro em Porto Alegre, no Parque Marinha do Brasil, bairro Praia de Belas. A Associação Mães e Pais pela Democracia, em parceria com os coletivos Amigos da Terra Brasil, MTST, Quilombo Lemos, AGAPAN, Coletivo Ambiente Crítico e Coluna Vermelha, Macacos Urbanos entre outras entidades, foram os responsáveis pelo evento, que se deu das 11h30min da manhã às 19h, pois teve um atraso motivado pelas chuvas constantes. O festival foi marcado por uma série de diálogos abertos, exposições, palestras, oficinas, uma feira de produtos sustentáveis e o lançamento de livros sobre a temática urbana e temas da regularização fundiária. Durante o evento, houve também a coleta de roupas, alimentos, lixo eletrônico, cadernos usados com folhas em branco e guarda-chuvas quebrados. Para fechar o dia, o Rafuagi deixou sua contribuição musical ao vivo para os participantes.

Leia no link: Carta Compromisso com a Porto Alegre ambiental e urbana que queremos

A Amigos da Terra Brasil se fez presente com uma banca montada junto ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). A Organização ambientalista recebeu uma homenagem durante o festival por estar na resistência por uma Porto Alegre ecológica e justa socialmente, que foi entregue a Fernando Campos Costa, conselheiro do ATBr. “Existe a necessidade de o Plano Diretor ser feito de forma inteira, participativa, essa discussão da cedência diária das questões do município, a questão ambiental, que vem sendo precarizada desde o licenciamento ao quadro técnico”, explica Costa. Ele analisa  ainda que existe um “processo de exclusão por parte de uma elite, por parte de um setor do mercado imobiliário que se apropria do que é bem comum, que é o patrimônio da cidade, patrimônio imaterial, patrimônio social, cultural, ambiental, e que de uma forma ou de outra, acaba transformando Porto Alegre sem identidade, sem cultura, sem participação, sem envolvimento, principalmente com uma segregação social que nos mostra explicitamente a luta de classes da cidade”. O Festival Ambiental foi pensado com o objetivo de reunir, de forma presencial ao ar livre, militantes e pessoas envolvidas na questão ambiental da cidade de Porto Alegre. Segundo a ativista da ATBr e fotógrafa, Isabelle Rieger, o evento atingiu até mesmo a subjetividade dos participantes: “O pessoal do evento convocou uma meditação de 15 min com um monge com o objetivo de relaxarmos e promover uma conexão ainda maior com a natureza e a ecologia”. 

O foco do evento foi a visibilidade na luta pela moradia digna e por uma cidade ecológica e justa socialmente. Por esse motivo, foram trazidos, para integrar a formulação da carta “Compromisso com a Porto Alegre ambiental que queremos”, o Quilombo Lemos, os coletivos Preserva Belém e Preserva Arado, Vila Cai Cai, Vila dos Papeleiros, indígenas de Porto Alegre, torcedores e torcedoras antifascistas do Inter. O documento foi feito em plenária organizada durante a tarde do evento, com o propósito de colocar em pauta o posicionamento das entidades organizadoras. Este se coloca largamente contrário aos  projetos recentemente propostos para a modificação dos regimes urbanísticos do Centro de Porto Alegre (PLCE 023/2021), da Zona Sul, para viabilizar a construção de torres ao lado do estádio Beira Rio (PLCE 04/2019), da Fazenda Arado Velho em Belém Novo, o qual reduz a Zona Rural para autorizar loteamentos em área ambientalmente sensível (PLCE 024/2021). A carta ressalta ainda a aversão das entidades destacadas a qualquer projeto de lei ou ação governamental que fira direitos humanos, direitos socioambientais e direitos relacionados à participação popular nos processos e discussões que dizem respeito a Porto Alegre, em especial aqueles que afetam os povos originários e quilombolas.

Como resumo do evento e seus melhores momentos, o biólogo e ativista da ATBr, Heitor Jardim, destaca: “Tinha várias organizações presentes no local, várias falas bem importantes de militantes históricos do meio ambientalista e foi um momento de bastante comunhão e encontro entre lutas e frentes de resistência aqui de Porto Alegre”. O gestor Fernando Costa complementa: “Pra além das bancas, o encontro teve um espaço político de fala, a construção de uma carta e terminou com o lançamento dos livros sobre temas urbanos, temas de regularização fundiária e que dialogam com a questão dos sem-teto. Fechou com uma atividade cultural com o Rafuagi, teve um lado cultural legal também, abrindo essa possibilidade de atividades externas com participação e com cuidados de higiene necessários devido a pandemia”.

 
Abaixo, fotos da atividade. Cobertura de Isabelle Rieger:

Projeto das Torres do Inter: futebol ultrapassa limites esportivos

O por trás das câmeras da reivindicação das “Torres do Inter”

Na época em que a prefeitura de Porto Alegre era administrada  por  Leonel Brizola, em 1956, ele cedeu o terreno onde hoje está  localizado o Estádio Beira Rio para que o Sport Club Internacional pudesse construir seu estádio, sob cobertura da Lei nº 1.651. Naquele contrato, foi explicitado que o município concedia o terreno ao Inter para construir um estádio, na época chamado no texto de “praça de esportes”. Segundo a Lei nº 6.150, de julho de 1988, nada além do estádio, de equipamentos e do comércio de apoio ao fortalecimento da área poderiam ser estabelecidos ali. O projeto do clube prevê ainda lojas e restaurantes. Contudo, no presente momento, o Clube está pedindo autorização para que sejam construídas torres residenciais e corporativas, cujos apartamentos e salas poderiam ser vendidos em prol de geração de lucro, e uma delas tem previsão de medir 130 metros de altura. “O Inter está pedindo, na verdade, duas coisas que são proibidas: a primeira é construir ali, com uma finalidade diferente da esportiva. A segunda coisa é a seguinte: eles não querem um simples prédio normal como prevê o plano diretor, mas sim um edifício que hoje está proibido, querem fazer os maiores prédios do Rio Grande do Sul, com o objetivo de vender os apartamentos”, afirma o diretor do Sindicato de Arquitetos do RS, Pedro Araújo. 

A flexibilização é a política para amigos da prefeitura e de parte da Câmara de Vereadores, e é baseado no entendimento de entregar o Estado à iniciativa privada. Hoje, somos acometidos de diversas políticas que empregam esta máxima e comprometem  os bens públicos, que devem ter função pública. É o caso do Pontal do Estaleiro, que tinha função específica e acabou indo para o privado, assim como  o caso do Jóquei Clube, que também foi vendido e cedido à iniciativa privada com a desculpa de pagar as dívidas,  hoje atrofiado entre shopping e torres de luxo. Mas não ficamos aí, temos muitos imóveis nessa condição de estarem cedidos, há muitos anos, para associações de profissionais, times de futebol, enfim, com interesses públicos e que, numa manobra, transformam-se em privados na mão da especulação imobiliária – principalmente as áreas que ficam na  beira do Rio Guaíba, num momento em que o discurso de Porto Alegre de se virar para o rio ganha força e valor no mercado imobiliário.  

Neste esforço de trazer e desvendar essas realidades paralelas de Porto Alegre é que foi realizado o Festival Ambiental POA 2021 no último sábado, dia 27 de novembro, no Parque Marinha do Brasil. Movimentos e organizações sociais deram a cara para dizer que Porto Alegre é mais! É resistência. As organizações estão construindo a unidade na ação para mudar esta realidade, por isso, neste momento, retomamos os espaços de encontro e manifestação. 

Projeto das torres do Inter é criticado por grupo de torcedores. Crédito da Foto: Isabelle Rieger/ ATBr

Atualmente, tramita um projeto na Câmara Municipal, o qual pode ser votado a qualquer momento, para autorizar a construção das torres do Inter. Em 23 de setembro, o tema foi debatido em audiência pública virtual promovida pela Câmara de Vereadores. A próxima etapa consiste na análise e aprovação do assunto em plenário na Casa Legislativa, por enquanto sem data prevista. “O Inter não tem esse direito, mas à medida que o adquire, vai ganhar muito dinheiro. Supondo que o Sport Club Internacional quisesse comprar um terreno para construir essas torres, se a gente fosse dar um preço para esse espaço, seria de uma estimativa que não existe hoje em Porto Alegre, um valor absurdo. Mas vamos supor que a prefeitura poderia dizer isso: olha, lá naquela época, há 60 anos atrás, eu negociei contigo naqueles termos; agora, se tu quer alteração, nós vamos ter que renegociar. Então, o valor que seria o custo desse imóvel poderia ser repassado para prefeitura e ser investido em bairros como a Restinga, no Rubem Berta, no Sarandi… Seria o mínimo”, explica Araújo. O Clube alega que está em dificuldades financeiras, por isso  pede a liberação para construir  as torres e se recuperar. “Então, pegar um terreno público, que é de toda cidade, construir, vender e ficar com o dinheiro pra si, é absurdo. Então não é mais público, passa a ser privado, e o time embolsa enquanto a prefeitura nem vê a cor do dinheiro”, sublinha o arquiteto.

A constituição do projeto apresentado pelo Inter prevê como contrapartidas o alargamento da Avenida José de Alencar, a construção de um píer na área do Parque Gigante, localizada junto à Orla do Rio Guaíba, e a promoção de reformas no Asilo Padre Cacique e em uma unidade de saúde. Porém, “o valor do terreno chegaria perto de R$ 1 bilhão. Mas isso não está sendo discutido por ninguém, as pessoas discutem se é direito ou não, se é problema ou não, mas não percebem que a população está sendo engambelada. O prefeito diz que vão construir uma escola aqui, colocar uma lombada ali, mas é totalmente desproporcional ao que o time está adquirindo”, finaliza o arquiteto Pedro Araújo.

REFERÊNCIAS CONSULTADAS:

Jornal Zero Hora: https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/inter/noticia/2021/09/projeto-de-construcao-das-torres-ao-lado-do-beira-rio-e-debatido-em-audiencia-publica-na-camara-de-vereadores-cktxo0j4x003u017lqp20dxvr.html

Lançamento da Carta Aberta de Alerta sobre Perigos que o Novo Código de Mineração traz para a sociedade civil. Não à megamineração!

Nesta terça-feira, 30/11, foi lançada a Carta Aberta de Alerta sobre Perigos do Novo Código de Mineração no estado do Rio Grande do Sul. O processo de mineração desenfreado por empresas transnacionais causa crimes, como os que ocorreram com Brumadinho e Mariana (MG). Em Minas Gerais, famílias estão há mais de dez anos sem receber auxílio ou compensação pelos danos que sofreram. Comunidades inteiras foram obrigadas a sair de suas cidades. Sendo assim, é fundamental que ocorra a organização da sociedade civil para combater as tentativas de exploração da terra, que gera impactos negativos na vida, na saúde e na dignidade das pessoas que vivem no entorno. A Amigos da Terra Brasil entrevistou Luna Dalla Rosa Carvalho, que faz parte do Comitê de Combate à Megamineração e escreveu a Carta Aberta, junto com um grupo de mulheres da sociedade civil. Confira as suas falas sobre como este combate e o alerta é importante para a vida das mulheres, como os processos criminosos que ocorreram no estado mineiro são aprendizados para organização enquanto grupos e coletivos combatentes à megamineração e como se organizou essa Carta Aberta. 

Amigos da Terra Brasil: Como foi a caminhada para realizar esta carta? Como foi a construção conjunta com o grupo de mulheres?

Luna Dalla Rosa Carvalho: Essa carta surgiu de uma articulação que está se gestando entre mulheres envolvidas no enfrentamento à megamineracão aqui no RS, especialmente no bioma Pampa, que é onde está a maior parte dos projetos de megamineracão previstos, mas também agrega mulheres de outros estados. São pecuaristas familiares, agricultoras, pesquisadoras, professoras, ativistas que estão juntando suas forças e suas habilidades para entender como a megamineracão afeta a vida das mulheres e se posicionar frente a esse processo. Estamos articuladas conjuntamente ao Comitê de Combate à Megamineracão do RS e a outras entidades e coletivos que vêm fazendo esse enfrentamento em diversas localidades. Também contamos com o apoio de várias organizações ambientalistas, grupos de pesquisa, movimentos sociais e organizações da sociedade civil.

ATBR: Como a publicação da Carta Aberta contra a Megamineração é importante para a vida das mulheres? O que muda? 

LDRS: O avanço da mega mineração afeta negativamente a vida de todos, mas especialmente a vida das mulheres. Sejam elas mulheres indígenas, quilombolas, agricultoras e pecuaristas familiares, pescadoras, sejam as mulheres da cidade. Porque são as mulheres que lidam mais diretamente com os efeitos que a megamineração têm na saúde das pessoas, no ambiente, nos modos de vida, e isso se dá tanto pra quem é diretamente afetado como as comunidades afetadas pelos empreendimentos minerários, como para as esposas dos trabalhadores da mineração, para as mulheres das regiões minerárias e de garimpo, quando a prostituição dessas regiões começa a crescer, quando as águas começam a ficar contaminadas, quando a violência aumenta, quando a alimentação passa a piorar, pois já não se pode cultivar os alimentos que nutriam os corpos de uma forma saudável. Temos muitos relatos de mulheres de outras regiões do Brasil e de outros países da América Latina que mostram isso. Aqui, no Rio Grande do Sul, estamos nos organizando contra o avanço de megaprojetos de mineração a céu aberto por entender que não queremos que se repita o que já acontece nas regiões minerárias. É um movimento que conta cada vez mais com a participação de mulheres, que se vêem ameaçadas por esses projetos que afetam a vida de forma tão drástica. 

ATBR: O que Mariana e Brumadinho (MG) têm a nos ensinar sobre a responsabilidade de nos organizarmos enquanto sociedade civil para que barrarmos esse processo venenoso?

LDRS: Acho que Mariana e Brumadinho ensinaram que não podemos deixar passar sem a devida avaliação, discussão e participação da sociedade esses projetos que envolvem sérios riscos à vida e à saúde humana e dos ecossistemas. Não queremos perder nossos rios como a população da bacia do Rio Doce ou do Rio Parauapebas perdeu. Não queremos perder nossos entes queridos, não queremos que os trabalhadores da mineração morram nesse tipo de incidente. Aqueles incidentes serviram para mostrar que se a gente deixar passar depois pode ser tarde, mesmo que haja engenheiros e técnicos dizendo que as estruturas são seguras e que é possível restaurar os ambientes degradados. Tem um coisa que eu acho bem complicada nos processos de licenciamento ambiental desses megaempreendimentos, que é a imposição de um saber técnico, como se o conhecimento das populações que vivem nos lugares afetados não valesse ou como se um cidadão que não tem uma formação em engenharia, geologia e biologia não pudesse falar, contestar ou questionar um empreendimento. Cada vez mais vemos que a ciência e a engenharia podem errar, que não conhecemos todos os processos naturais, que não sabemos qual é a real dimensão da interferência humana nos ecossistemas. Estamos vivendo uma crise ambiental gravíssima e existem pessoas, que estão inclusive em órgãos públicos importantes como a FEPAM (Fundação Estadual de Proteção Ambiental) aqui no estado, que insistem em se fechar numa postura tecnicista, negando ou minimizando os reais riscos envolvidos nesses empreendimentos. Eu acredito que se são empreendimentos com alto impacto, é necessária muita avaliação, escuta e até mesmo respeito caso a população não queira o empreendimento na sua região, afinal devemos ter o direito de decidir quando se trata da nossa vida que está em jogo. Cada vez mais parece que querem passar por cima da participação popular, da legislação ambiental para implementar esses projetos, num claro desrespeito à nossa soberania e aos nossos direitos. Por isso, é necessário a sociedade se organizar e estar sempre atenta para poder se posicionar antes que seja tarde demais.

Confira abaixo a Carta Aberta!

Porto Alegre: prefeitura e vereadores reduzem direito do Meio Passe para estudantes, funcionários públicos, professores e idosos

Manifestantes criticam o Novo projeto do meio passe em Porto Alegre/RS
Foto: Isabelle Rieger – Amigos da Terra Brasil

Na semana passada (quarta-feira, dia 24/11), foi votado o  Projeto de Lei do Executivo do novo Meio Passe (PLE 043/21) em Porto Alegre/RS, que atinge estudantes, funcionários públicos, professores e outras categorias que antes possuíam direito às isenções, como idosos de 60 a 64 anos e estudantes da região metropolitana. Com várias manifestações contrárias na Câmara de Vereadores, todos os vereadores da Oposição votaram contra o PL. Vale ressaltar que o projeto vincula faixas de renda às categorias que podem usufruir das isenções na passagem do transporte público da Capital gaúcha . 

O novo projeto estabelece  50% de isenção da passagem para quem tem renda per capita de até R$ 1.650,00 e está matriculado no  ensino superior, profissionalizante ou preparatório. Ainda nesta faixa de renda, ganha 75% de isenção na passagem o estudante de Ensino Médio e, 100%, o de Ensino Fundamental. Caso o estudante  ultrapasse esta faixa de renda para até R$ 2.200,00 mensais per capita, ele tem direito a apenas 25% de isenção. Se ultrapassar a faixa de renda per capita ou não conseguir os documentos comprobatórios por motivo de força maior, o estudante não terá direito às isenções. Ele  deverá, obrigatoriamente, ser cadastrado no CadÚnico, programa do governo que reúne os auxílios em um único cadastro, para que consiga a isenção. 

Entende-se este projeto como um retrocesso nas políticas públicas. Além da extinção do antigo Meio Passe, a função de cobrador do ônibus  também está sendo extinta  de forma gradual, acarretando em demissões. Percebe-se, assim, uma clara narrativa de retirada dos direitos e  de privatização dos serviços que, antes, eram oferecidos pelo Estado. Como já disse a vereadora do PSOL, Karen Santos, em suas redes sociais, retrocedemos 10 anos nesta pandemia em relação aos direitos dos cidadãos. Agora, com essa implementação da nova política do Meio Passe, os direitos da classe trabalhadora estão sendo novamente retirados.

É fato de que não é o funcionário público de médio a alto escalão que utiliza o transporte público. Em empresas privadas, ainda, é de praxe que os empregadores paguem a maior parte do custo do transporte dos seus trabalhadores. Essa retirada da categoria dos funcionários públicos como passíveis de receberem a isenção na passagem dialoga diretamente com o direito a ocupar as cidades, que o Legislativo reconhece como apenas da classe média. Empresários do transporte urbano de Porto Alegre, que ganharam as concessões para prestar este serviço à prefeitura e, por consequência à população O ciclo vicioso do aumento da passagem, que começa com a retirada das isenções e termina com um número menor de usuários por conta do alto preço da passagem, fere o direito da população à cidade. Para que seja justo viver em sociedade, é necessário que haja justiça nas cidades – e isso não se faz com a retirada do Meio Passe.

A alternativa possível, na verdade, é a Tarifa Zero, ou o Passe Livre. Para que se consiga garantir o direito às cidades e o direito de ir e vir, com acesso a serviços de educação, saúde e lazer, a passagem sem tarifas é a solução. Desta forma, por mais que se coloque o argumento falacioso de falta de recursos que os governos insistem em usar, pode ser usado o dinheiro proveniente dos setores comerciais e industriais. O próprio Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) pode ser usado como fonte de receita para cobrir as isenções totais na passagem. O que falta, na verdade, é a falta de combate por parte do governo à especulação imobiliária, aos grandes empresários que usam o solo de Porto Alegre única e exclusivamente para seus lucros. 

Contra os retrocessos do governo Melo! Por uma cidade justa, de todes e para todes! Passe Livre para todes já!


Manifestantes na Câmara de Vereadores em Porto Alegre/RS contra a nova proposta do Meio Passe. Estão presentes sindicatos (CPERS), entidades estudantis (DCE UFRGS) e movimentos de juventude vinculados ao PSOL (Afronte e Juntos). 
Fotos: Isabelle Rieger – Amigos da Terra Brasil

Vídeo: luta e resistência das mulheres Guarani

Ocorre, de 25 a 29 de novembro, o Encontro Nacional das Mulheres Guarani, o Kunhague, na aldeia Bracuí, Angra dos Reis/RJ. O encontro conta com apoio da Comissão Guarani Yvy Rupa. Hélio Wherá conta um pouco sobre sua percepção do encontro:

Seis estados participarão, com jovens, parteiras, lideranças indígenas. Vai ser falado  a conjuntura, as políticas atuais e principalmente sobre território, demarcação, educação escolar, saúde diferenciada, biodiversidade, roça, casa de reza e entrada da tecnologia nas aldeias  entre os jovens. Falas sobre cultura Guarani para os mais jovens, fortalecimento na aldeia, entre lideranças, mulheres e jovens, porque não está fácil, os governantes vem atacando muito os povos indígenas. Por isso os povos, os Guarani estão vindo fortes na luta, para defender os direitos do território. Mas também vai ser falado sobre a forma de se organizar, na base das aldeias, por que as mulheres indígenas, tem capacidade de tudo, de fazer a linha de frente e acompanhar dentro das políticas. As mulheres indígenas sempre falam que os homens, as lideranças, quando fazem a luta, quem segura na base, nas aldeias, são as mulheres. Mas elas veem que neste tempo, por causa de políticas muito forte atacando os povos indígenas, não podem mais ficar só paradas na base, tem que acompanhar mais de perto as lideranças. Para se fortalecerem e levar a luta juntos. Mulheres e homens, por que as mulheres também tem esta capacidade.

Hélio Wherá
Foto: Karai Xondaro

Motivadas pelo encontro, Tita Kerexu e Julia Gimenez nos contam sua reflexões e experiências no Encontro de Mulheres realizado na Tekoá Koen-ju neste mesmo ano. Confira, em áudio, seus relatos e experiências compartilhadas:

Julia Gimenez – Relato 1
Julia Gimenez – Relato 2
Tita Kerexu – Relato 1

O encontro realizado deu continuidade à este novo encontro entre mulheres guarani, evidenciando seu poder de organização, luta e resistência.

Foto: Karai Xondaro

COP26 | Mais um acordo feito à medida dos interesses das corporações e países do Norte Global

O “1,5°C” tornou-se um slogan na última 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26). O número se refere ao limite de aumento de temperatura média global (em graus Celsius), que os países acordaram se esforçar para não superar. Esse acordo foi feito na COP21 em Paris, na França, e estabelecia especificamente como meta que o limite do aquecimento global fosse mantido “bem abaixo de 2°C”, e “de preferência em 1,5 graus Celsius”. 

Como as corporações contaminantes e responsáveis por violações de direitos humanos no Sul Global, que usam slogans como “construindo um futuro melhor”, a presidência da COP26, nas mãos do Reino Unido, comemorou que o Pacto Climático de Glasgow “manteve o 1,5°C vivo”. Uma afirmação que, no máximo, pode ser considerada uma mera expressão de desejo. 

Em 2015, a Amigos da Terra Internacional (ATI) denunciou, no final da COP21, que o Acordo de Paris não estipulou cifras nem metas ambiciosas que pudessem garantir o cumprimento do objetivo de limitar o nível de aquecimento global. Apenas incluiu as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC), que são planos de ações de combate às mudanças climáticas de cada país, não vinculantes. Em um relatório divulgado em 17 de setembro deste ano, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas revelou que, com essas “contribuições”, a temperatura média global, até o final do século, aumentará 2,7°C.

A COP26 finalizou o chamado livro de regras do Acordo de Paris, que entre os pontos não resolvidos nos últimos anos tinha a regulamentação do mercado de carbono. Este é um dos mecanismos que denunciamos junto a movimentos indígenas e camponeses como parte das falsas soluções à crise climática. 

Em linhas gerais, o mercado de créditos de carbono permite que países coloquem em sua conta de “redução” de gases de efeito estufa (ou melhor dizendo, de uma suposta neutralização, sem reduzir de fato suas emissões), créditos de carbono que compram de países que não contribuem para piorar a crise climática, por exemplo, mantendo florestas em pé. Trata-se quase explicitamente da compra do “direito” de contaminar. 

Esse tipo de mecanismo é muito defendido por aqueles países e corporações que mais têm contribuído historicamente com as emissões, e que deveriam, portanto, concentrar esforços em cortá-las. Além de não representar uma ferramenta de combate às mudanças climáticas, essas propostas que operam com os mesmos critérios da compensação criam outros problemas, como mostramos na publicação REDD+, O Mercado de Carbono e a Cooperação Califórnia-Acre-Chiapas: legalizando os mecanismos de despossessão

Sob a mesma lógica, o Pacto Climático de Glasgow “reconhece” que para atingir a meta do 1,5°C, é necessária “a redução das emissões globais de dióxido de carbono em 45% até 2030 em relação ao nível de 2010 e até zero líquido em meados do século”.

Entenda o que são as Soluções baseadas na Natureza (SbN): leia a publicação “Um lobo em pele de cordeiro”

A meta de emissões líquidas zero é mais uma fuga do problema, uma falsa solução para a crise climática. Mais uma vez, trata-se de ajustar as contas das emissões de gases de efeito estufa incluindo ações que “compensariam” essas emissões, como o plantio de árvores ou a captura do carbono com diferentes novas tecnologias (sendo que muitas delas estão em fase de desenvolvimento). 

Um dos problemas é que o acordo pede a todos os países a comunicarem as estratégias para atingir essa meta a meados do século. Inclusive utilizando de maneira muito questionável o termo “transição justa” tendo como base a política de “zero líquido” (no parágrafo 32 do acordo), como aponta Camila Moreno num balanço da COP26 elaborado para a o Grupo Carta de Belém (GCB). (Leia também o Manifesto rumo à COP 26 do GCB: Em nome do clima, avança a espoliação dos territórios).

A proposta apaga ainda mais o critério de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, já debilitado pelo Acordo de Paris. Segundo o relatório “Mudanças Climáticas 2021: a Base das Ciências Físicas, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, de 1850 até 2019 foram emitidos 2,390 bilhões de toneladas de dióxido de carbono. Os grandes responsáveis durante todo esse tempo foram os países do Norte Global, como explica Doreen Stabinsky em nota da Amigos da Terra Internacional.

Agora, o limite para não fazer com que a temperatura aumente mais de um 1,5°C, seria não emitir mais de 300 bilhões de toneladas de CO2. Por que países do Sul Global, que tiveram uma participação mínima, devem fazer o mesmo esforço que países que emitiram muito mais CO2 historicamente, e inclusive continuarão emitindo, graças à lógica de compensação? 

O “zero líquido” no Pacto de Glasgow não é só desigual por equiparar as responsabilidades, é também por jogar as metas quase três décadas para frente. Quem mais está sofrendo com os impactos das mudanças climáticas são os povos que menos contribuíram com o problema. As responsabilidades do Norte Global e das corporações precisam ser assumidas de forma urgente!

Sara Shaw, co-coordenadora para Justiça Climática e Energia da Amigos da Terra Internacional afirmou que “o fardo da redução das emissões foi colocado sobre os ombros dos países em desenvolvimento”, com o Acordo de Glasgow.

“As metas são extremamente fracas e cheias de lacunas que permitem aos países ricos evitar sua responsabilidade na redução das emissões e no financiamento a países em desenvolvimento. Países ricos e empresas estão recebendo permissão para continuar poluindo por décadas, com base na fantasia de equilibrar suas emissões com compensações e soluções tecnológicas”. 

As soluções tecnológicas a que se refere Shaw têm a ver com mais um dos problemas: além do reflorestamento, a proposta do “zero líquido” se apoia em uma série de tecnologias que nem sequer passaram da fase de projetos. Trata-se de projetos de geoengenharia que entram na categoria de tecnologias de Remoção de Dióxido de Carbono (CDR).

O Grupo ETC e a Fundação Heinrich Böll criaram uma ferramenta de monitoramento desse tipo de projeto, e encontraram que as corporações de combustíveis fósseis possuem uma alta participação em seu financiamento. 

A COP do Lobby

O avanço desses negócios disfarçados de soluções climáticas não surpreende ao constatar a influência das corporações no âmbito da COP de Mudanças Climáticas. Não contentes com ser a conferência mais excludente da história, por conta das restrições de vistos, altos custos das passagens e o apartheid das vacinas, a COP26 escancarou as portas e jogou o tapete vermelho para todas as corporações que fazem parte do problema.

Segundo a organização Global Witness, a COP26 foi inundada por, pelo menos, 503 lobistas representando 100 empresas de combustíveis fósseis. O lobby dos combustíveis fósseis na COP “foi maior do que o total combinado das oito delegações dos países mais afetados pelas mudanças climáticas nas últimas duas décadas – Porto Rico, Mianmar, Haiti, Filipinas, Moçambique, Bahamas, Bangladesh, Paquistão”, afirma a organização no levantamento. 

O Brasil de Bolsonaro tenta subir no trem dos negócios climáticos

Se por um lado é certo que os países do Norte Global devem enfrentar sua dívida climática com os países do Sul Global para realizar a transição energética e proteger a biodiversidade e florestas, por outro, no caso do Brasil, a falta de recursos não passa de uma mera desculpa do governo Bolsonaro para não proteger os biomas brasileiros. 

Depois de ter rejeitado sediar a COP25 no Brasil e um evento preparatório em Salvador (BA) para a mesma, o governo Bolsonaro parece ter entendido o espírito de negócios das COPs em Glasgow. 

“Temos uma preocupação sobre o financiamento climático […] o volume ainda não chegou ao que era prometido”, disse o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, referindo-se ao compromisso que os países assumiram no Acordo de Paris de USD 100 bilhões anuais por ano para países em desenvolvimento. 

A demanda poderia ser até justa, se não fosse pelo fato de que o governo Bolsonaro não só paralisou o uso de financiamentos externos para a defesa dos biomas do país, como é o principal promotor dos desmatamentos, queimadas e ataques aos povos que defendem os campos, águas e florestas. 

Pois se não foram esses povos, que lutam por Justiça Climática e detém soluções reais e emancipatórias para o cuidado dos territórios, da biodiversidade, da água e do clima, que celebraram ao final da COP26, mas o anfitrião, Reino Unido, e seus aliados do Norte Global e das corporações, que levantaram antecipadamente um troféu vazio de “1,5°C”, ainda não é hora de comemorar.

É preciso ação imediata com caráter estrutural para garantirmos a sobrevivência a longo prazo da nossa própria espécie e do planeta. Diferente dos caminhos adotados nessa COP26, é preciso discutir amplamente o caminho para uma Transição Justa e Popular, que dê conta das soluções já apontadas pelos povos que mantêm as florestas em pé. Povos indígenas, quilombolas, camponeses precisam ser sujeitos ativos desse processo, afinal não há saída para o clima sem incluir os povos que colocam em prática, hoje, as soluções para coexistir com a biodiversidade. Ao invés de ver na natureza um mero produto para chegar matematicamente aos resultados necessários.

Veja também: 

* Este artigo de opinião da Amigos da Terra Brasil foi veiculado no site do jornal Brasil em Fato em 22 de Novembro (acesse aqui).

COP26: Mais um acordo feito à medida dos interesses das corporações e países do Norte Global

O “1,5°C” tornou-se um slogan na última 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26). O número se refere ao limite de aumento de temperatura média global (em graus Celsius), que os países acordaram se esforçar para não superar. Esse acordo foi feito na COP21 em Paris, na França, e estabelecia especificamente como meta que o limite do aquecimento global fosse mantido “bem abaixo de 2°C”, e “de preferência em 1,5 graus Celsius”. 

Como as corporações contaminantes e responsáveis por violações de direitos humanos no Sul Global, que usam slogans como “construindo um futuro melhor”, a presidência da COP26, nas mãos do Reino Unido, comemorou que o Pacto Climático de Glasgow “manteve o 1,5°C vivo”. Uma afirmação que, no máximo, pode ser considerada uma mera expressão de desejo. 

Em 2015, a Amigos da Terra Internacional (ATI) denunciou, no final da COP21, que o Acordo de Paris não estipulou cifras nem metas ambiciosas que pudessem garantir o cumprimento do objetivo de limitar o nível de aquecimento global.

Apenas incluiu as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC), que são planos de ações de combate às mudanças climáticas de cada país, não vinculantes. Em um relatório divulgado em 17 de setembro deste ano, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas revelou que, com essas “contribuições”, a temperatura média global, até o final do século, aumentará 2,7°C.

A COP26 finalizou o chamado livro de regras do Acordo de Paris, que entre os pontos não resolvidos nos últimos anos tinha a regulamentação do mercado de carbono. Este é um dos mecanismos que denunciamos junto a movimentos indígenas e camponeses como parte das falsas soluções à crise climática. 

Em linhas gerais, o mercado de créditos de carbono permite que países coloquem em sua conta de “redução” de gases de efeito estufa (ou melhor dizendo, de uma suposta neutralização, sem reduzir de fato suas emissões), créditos de carbono que compram de países que não contribuem para piorar a crise climática, por exemplo, mantendo florestas em pé. Trata-se quase explicitamente da compra do “direito” de contaminar. 

Esse tipo de mecanismo é muito defendido por aqueles países e corporações que mais têm contribuído historicamente com as emissões, e que deveriam, portanto, concentrar esforços em cortá-las. Além de não representar uma ferramenta de combate às mudanças climáticas, essas propostas que operam com os mesmos critérios da compensação criam outros problemas, como mostramos na publicação REDD+, O Mercado de Carbono e a Cooperação Califórnia-Acre-Chiapas: legalizando os mecanismos de despossessão

Sob a mesma lógica, o Pacto Climático de Glasgow “reconhece” que para atingir a meta do 1,5°C, é necessária “a redução das emissões globais de dióxido de carbono em 45% até 2030 em relação ao nível de 2010 e até zero líquido em meados do século”.

Mais uma vez, trata-se de ajustar as contas das emissões de gases de efeito estufa incluindo ações que “compensariam” essas emissões, como o plantio de árvores ou a captura do carbono com diferentes novas tecnologias (sendo que muitas delas estão em fase de desenvolvimento). 

Um dos problemas é que o acordo pede a todos os países a comunicarem as estratégias para atingir essa meta a meados do século. Inclusive utilizando de maneira muito questionável o termo “transição justa” tendo como base a política de “zero líquido” (no parágrafo 32 do acordo), como aponta Camila Moreno num balanço da COP26 elaborado para a o Grupo Carta de Belém (GCB). (Leia também o Manifesto rumo à COP 26 do GCB: Em nome do clima, avança a espoliação dos territórios).

A proposta apaga ainda mais o critério de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, já debilitado pelo Acordo de Paris. Segundo o relatório “Mudanças Climáticas 2021: a Base das Ciências Físicas, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, de 1850 até 2019 foram emitidos 2,390 bilhões de toneladas de dióxido de carbono. Os grandes responsáveis durante todo esse tempo foram os países do Norte Global, como explica Doreen Stabinsky em nota da Amigos da Terra Internacional.

Agora, o limite para não fazer com que a temperatura aumente mais de um 1,5°C, seria não emitir mais de 300 bilhões de toneladas de CO2. Por que países do Sul Global, que tiveram uma participação mínima, devem fazer o mesmo esforço que países que emitiram muito mais CO2 historicamente, e inclusive continuarão emitindo, graças à lógica de compensação? 

O “zero líquido” no Pacto de Glasgow não é só desigual por equiparar as responsabilidades, é também por jogar as metas quase três décadas para frente. Quem mais está sofrendo com os impactos das mudanças climáticas são os povos que menos contribuíram com o problema. As responsabilidades do Norte Global e das corporações precisam ser assumidas de forma urgente!

Sara Shaw, co-coordenadora para Justiça Climática e Energia da Amigos da Terra Internacional afirmou que “o fardo da redução das emissões foi colocado sobre os ombros dos países em desenvolvimento”, com o Acordo de Glasgow.

“As metas são extremamente fracas e cheias de lacunas que permitem aos países ricos evitar sua responsabilidade na redução das emissões e no financiamento a países em desenvolvimento. Países ricos e empresas estão recebendo permissão para continuar poluindo por décadas, com base na fantasia de equilibrar suas emissões com compensações e soluções tecnológicas”.

As soluções tecnológicas a que se refere Shaw têm a ver com mais um dos problemas: além do reflorestamento, a proposta do “zero líquido” se apoia em uma série de tecnologias que nem sequer passaram da fase de projetos. Trata-se de projetos de geoengenharia que entram na categoria de tecnologias de Remoção de Dióxido de Carbono (CDR).

O Grupo ETC e a Fundação Heinrich Böll criaram uma ferramenta de monitoramento desse tipo de projeto, e encontraram que as corporações de combustíveis fósseis possuem uma alta participação em seu financiamento. 

Mais uma COP do Lobby

O avanço desses negócios disfarçados de soluções climáticas não surpreende ao constatar a influência das corporações no âmbito da COP de Mudanças Climáticas. Não contentes com ser a conferência mais excludente da história, por conta das restrições de vistos, altos custos das passagens e o apartheid das vacinas, a COP26 escancarou as portas e jogou o tapete vermelho para todas as corporações que fazem parte do problema.

Segundo a organização Global Witness, a COP26 foi inundada por, pelo menos, 503 lobistas representando 100 empresas de combustíveis fósseis. O lobby dos combustíveis fósseis na COP “foi maior do que o total combinado das oito delegações dos países mais afetados pelas mudanças climáticas nas últimas duas décadas – Porto Rico, Mianmar, Haiti, Filipinas, Moçambique, Bahamas, Bangladesh, Paquistão”, afirma a organização no levantamento. 

O Brasil de Bolsonaro tenta subir no trem dos negócios climáticos

Se por um lado é certo que os países do Norte Global devem enfrentar sua dívida climática com os países do Sul Global para realizar a transição energética e proteger a biodiversidade e florestas, por outro, no caso do Brasil, a falta de recursos não passa de uma mera desculpa do governo Bolsonaro para não proteger os biomas brasileiros.

Depois de ter rejeitado sediar a COP25 no Brasil e um evento preparatório em Salvador (BA) para a mesma, o governo Bolsonaro parece ter entendido o espírito de negócios das COPs em Glasgow. 

“Temos uma preocupação sobre o financiamento climático […] o volume ainda não chegou ao que era prometido”, disse o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, referindo-se ao compromisso que os países assumiram no Acordo de Paris de USD 100 bilhões anuais por ano para países em desenvolvimento. 

A demanda poderia ser até justa, se não fosse pelo fato de que o governo Bolsonaro não só paralisou o uso de financiamentos externos para a defesa dos biomas do país, como é o principal promotor dos desmatamentos, queimadas e ataques aos povos que defendem os campos, águas e florestas. 

Pois se não foram esses povos, que lutam por Justiça Climática e detém soluções reais e emancipatórias para o cuidado dos territórios, da biodiversidade, da água e do clima, que celebraram ao final da COP26, mas o anfitrião, Reino Unido, e seus aliados do Norte Global e das corporações, que levantaram antecipadamente um troféu vazio de “1,5°C”, ainda não é hora de comemorar.

É preciso ação imediata com caráter estrutural para garantirmos a sobrevivência a longo prazo da nossa própria espécie e do planeta. Diferente dos caminhos adotados nessa COP26, é preciso discutir amplamente o caminho para uma Transição Justa e Popular, que dê conta das soluções já apontadas pelos povos que mantêm as florestas em pé. Povos indígenas, quilombolas, camponeses precisam ser sujeitos ativos desse processo, afinal não há saída para o clima sem incluir os povos que colocam em prática, hoje, as soluções para coexistir com a biodiversidade. Ao invés de ver na natureza um mero produto para chegar matematicamente aos resultados necessários.

Veja também: 

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 22/11/2021 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2021/11/22/cop26-mais-um-acordo-feito-a-medida-dos-interesses-das-corporacoes-e-paises-do-norte-global
Crédito da foto: Amigos da Terra Internacional

Gotas que Transbordam: pia coletiva junto à sede da Amigos da Terra permite acesso público à água

A pia desaparecida

Pia, que havia sido furtada, foi recolocada na frente da CaSAnAT. Foto: arquivo ATBR

“Pra mim, aquela pia é um marco, ela representa essa situação que a gente vive. Colocar uma pia na rua é garantir acesso à água, que é um direito universal para todas, todos e todes. É uma oportunidade bem importante de a gente poder demonstrar isso e fazer com que a sociedade veja, sinta. Muitas vezes essas coisas ficam escondidas, distantes das pessoas, então a gente aproxima, mostra e trabalha isso”, diz Fernando Costa, o Fernandão, membro do conselho diretor da Amigos da Terra Brasil e bioconstrutor. Ele acredita que as cidades brasileiras deveriam garantir o “mínimo pra todo mundo, que de certa forma, a nossa Constituição em 1988 preconizou ali, colocou como questões importantes e muitas delas até hoje o Brasil ainda não conseguiu colocar em dia”. A pandemia da COVID-19 fez crescer ainda mais o visível abismo entre classes sociais, mas não foi só isso. “Houve um grande aumento da população de rua não só na cidade de Porto Alegre, mas na maioria das capitais do Brasil durante a pandemia. Segundo um levantamento feito no Rio, 30% da população de rua de hoje tinha ido parar na rua no último ano”, explica Lúcia Ortiz, presidenta da Amigos da Terra Brasil.

“A água é um problema histórico do Brasil. Vem a pandemia e começa a se discutir, a colocar em cheque nos fóruns internacionais a questão da higiene. Os países da América Latina colocaram que é muito bonito se falar na importância de lavar as mãos, só que não tem acesso à água, tem uma precariedade tremenda no continente”, destaca o arquiteto Leonardo Brawl Márquez, cofundador da TransLabUrb. Tal precariedade de acesso à água gerou, no primeiro semestre de 2020, o projeto idealizado pela ONG Cozinheiros do Bem e realizado em parceria com a TransLabUrb, o qual alocou sete pias espalhadas pela cidade em pontos estratégicos. 

Pia móvel instalada pelo TransLabUrb. Foto: TransLAB.URB

“A gente escolheu esses pontos, que estavam já relacionados com onde já tem uma frequência de pessoas em situação de vulnerabilidade”. Mesmo sendo uma iniciativa que não faria mal a ninguém e que tinha condições de se sustentar financeiramente, a ideia teve permissão negada pela prefeitura de Porto Alegre, mas o bem não poderia ser impedido.“Ele é um sistema autônomo, porque quando o Marchezan [prefeito Nelson Marchezan Jr., cujo mandato encerrou em 2020] retirou até a liberação de colocar, a gente pôr esse negócio na rua já virou uma infração, quem dirá abrir o chão e acessar a rede do DMAE [Departamento Municipal de Água e Esgotos]”. Por incrível que pareça, a parte mais difícil foi conseguir fontes de fornecimento de água, mesmo mediante pagamento, o que fez Brawl se questionar.“Foi ridículo ver que ninguém tem acesso à água, nenhum tipo de pessoa, mesmo nós privilegiados. Dizíamos: bota no meu endereço, bota no meu CPF, eu pago a vista, eu pago como vocês quiserem. Mas não existe como acessar, isso foi bem emblemático”.

A ideia da instalação da pia na calçada da CaSAnAT em outubro de 2020 foi inspirada na iniciativa da Cozinheiros do Bem.“Quando eu vi a pia pela primeira vez ali, achei bárbara a ideia. Achei uma coisa assim muito legal, porque tirando em alguns parques, tu não tens acesso à água na rua, e ela tinha que estar disponível pra todo mundo. Tu andas em qualquer cidade da Europa, tu vais encontrar pontos públicos de captação de água para beber, para fazer qualquer coisa”, relata o advogado Roberto Rebés Abreu, conselheiro jurídico da Casa ALICE (Agência Livre para Informação Cidadania e Educação), organização vizinha da CaSAnAT no bairro Azenha, em Porto Alegre (RS). Não é apenas o acesso à água que é negado. As pessoas em situação de vulnerabilidade não só tem seus direitos básicos vetados, são tratadas como  lixo: “Um morador de rua ou um preso que está entregue para uma penitenciária cuidar, são caras que as pessoas acham que se pode bater, que se pode violar seus direitos, isso tá um absurdo”. 

Nem quando a Amigos da Terra decide colocar uma pia na calçada da sua própria casa a situação é preenchida por algum tipo de paz. “Percebemos incômodos, acreditamos que justamente a própria pia acaba sendo uma demonstração do quão injusto hoje o mundo se coloca, onde uma pia acaba sendo um privilégio”, coloca Fernandão. Aquele singelo pedaço de ferro soldado a uma parede deveria ser uma fonte de vida e esperança, mas é de difícil compreensão para alguns, afogados por seus privilégios. “Eu sei que isso incomoda os vizinhos, eles não querem ter morador de rua perto. Cheguei a conversar com uma senhora e discuti isso, ela ficava muito brava porque aquilo ali era uma imundice, uma nojeira, uma junção de desocupados. Eu disse para ela: a senhora tem a sua casa, lava as suas mãos, a senhora toma a sua água na sua casa. Onde os moradores de rua vão ficar? Mas eles não ouvem isso né. Foi tão engraçado, porque ela estava puxando um cachorrinho pela coleira, o cachorro fez cocô e ela pisou em cima, ao mesmo tempo que falava mal de morador de rua. Então é uma coisa muito difícil isso”, conta Abreu. 

Morador de rua usando a pia em frente à CaSAnAT
Foto: Arquivo ATBR

Em meio à sociedade, o preconceito é vigente. “O pessoal para com o carrinho pra se lavar na frente da casa, isso gera uma ocupação da calçada, a galera já atravessa a rua. É um preconceito a pobreza, é um medo das pessoas”, relata Fernandão. Apesar das dificuldades, os moradores de rua não têm opção. Ou se submetem a algum tipo de desconforto, ou ficam sem saída. “Nas minhas idas à obra da casa ALICE, mais de uma vez passei por moradores de rua. Tinha uma moça que me disse que lavava todas as roupas dela ali, que era o único lugar que ela tinha”, conta o conselheiro jurídico da ALICE. Devido à dificuldade de se manter vivo em uma sociedade que culturalmente marginaliza aqueles desprovidos de um “padrão de vida”, sobreviver quando se é um morador de rua muitas vezes se trata de sorte e em meio a uma pandemia, a coisa só piora, como sublinha Brawl: “Grande parte da realidade dessas pessoas é acessar a água por meio do favor. Ele chega e pede uma água do estabelecimento que está aberto. Eles são muito táticos, a população de rua tem a sua rede de apoio. Então assim, se fecha o comércio, e foi o que aconteceu, com esse fechamento as pessoas passaram quase a totalidade das horas sem acesso à água potável. Esse foi o grande impacto no município de Porto Alegre”. 

A Amigos da Terra Brasil tem mais de meio século de existência e nunca havia tido uma sede própria. Na década de 2000, iniciou-se uma campanha em busca de uma casa. Foi assim que, no ano de 2005, o sonho se concretizou. A CaSAnAT foi um projeto possibilitado graças a uma cedência do Patrimônio da União à organização. Anteriormente uma construção abandonada e em condições precárias, ela foi transformada em um espaço de trabalho em equipe e solidariedade, em permanente transformação e diálogo, na prática, sobre as políticas públicas urbanas . “A gente foi pro Rincão Gaia, umas 30 pessoas. Passamos o fim de semana desenhando a casa, pensando a água, pensando os espaços, pensando nos fluxos da água, como a gente queria se relacionar com o meio ambiente, com a cidade. Todo o projeto arquitetônico foi feito ali”, conta Lúcia Ortiz. 

Entre as restaurações de cunho sustentável feitas pela equipe, foi desenvolvida uma instalação pioneira em Porto Alegre, de um leito de evapotranspiração: sistema de tratamento dos efluentes feitos no próprio lugar. “Então a gente não joga esgoto na rede de esgoto, a gente não tem esse custo pra cidade, a gente trata o esgoto na Amigos da Terra e a gente devolve a água pura pro fluvial da cidade para ir pro Guaíba”. O principal objetivo da Organização e, posteriormente da casa, é fazer projetos em prol do coletivo, “qualquer coisa que a gente faz é pra ter uma construção coletiva que fique pra cidade, que seja uma tecnologia social que possa ser de baixo custo, apropriada pras pessoas pra poderem usar nas suas realidades, seja na periferia urbana, seja nas aldeias indígenas, onde for”. Mesmo assim, o preconceito social e o Governo Bolsonaro não puderam deixar a propriedade passar “despercebida”. Assim, o Ministério da Economia, regido por Paulo Guedes, criou a Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimentos e Mercados. Esta tem a função de vender tudo o que é Patrimônio da União e do governo para o mercado. A primeira ação por eles promulgada em cunho regional, pois existe um escritório por região, assim que assumiu um militar na superintendência do Rio Grande do Sul, foi uma visita à CaSAnAT. Lá, ele tirou fotos, alegou que a casa não tinha reboco, que era precária, que as aberturas eram de madeira… “Tudo aquilo que a gente recuperou na casa ele disse que não tava bom. Queria uma casa de luxo? É essa visão classista, sem nenhuma técnica, sem nenhum critério de conhecer o processo”. O processo judicial de reintegração de posse movido pelo governo Bolsonaro pela desocupação da CaSAnAT, no presente momento, tramita normalmente na Justiça Federal.

O descaso do atual governo infelizmente vai ainda mais além. Apesar de a água ser um direito universal, para alguns isso ainda é difícil de compreender.“A água não pode ser um produto que dê lucro, que faça com que alguns setores ganhem com ela. A água tem que ser um bem da vida, um bem da natureza. Nós somos constituídos basicamente de água, precisamos dela. Até passamos algum tempo sem comer, mas não podemos ficar sem beber. O nosso Planeta, apesar do nome Terra, é 70% água. Então ela é um bem fundamental e tinha que estar acessível a todos”, sublinha Roberto Abreu. A falta desse recurso essencial gera uma cultura de falta de higiene para aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade. Multiplicada pelos anos vividos na rua, vagando de marquise em marquise, o corpo, mas principalmente as mãos, ferramenta mais antiga em posse do ser humano, criam uma camada triste de podridão.

No início do projeto, os moradores de rua tinham auxílio no uso da pia. Foto: TransLAB.URB

“A galera sempre chegou podre. Na primeira pia que a gente instalou, eu tive que fazer essa função de ensinar. O cara não tem acesso a nada né, então não entendia. Na hora de lavar a mão, o cara não sabe. Tu aprende a lavar a mão com a família, mas o cara não teve isso, então ele lavava, me olhava e ria. Eu falava: não, lava mais, olha o caldo preto que tá saindo. Umas crostas assim, os caras ficavam muito mais tempo pra lavar a mão, porque já chega podre”, conta Brawl sobre sua experiência no projeto das pias pela cidade. Como se não bastasse a falta de incentivo da sociedade e do próprio governo para a disponibilização pública da água, a CaSAnAT sofreu uma parada forçada no meio do seu projeto.

“Num domingo à luz do dia, passa um carroceiro que trabalha com reciclagem, pega a pia e deixa a água jorrando durante o fim de semana, na calçada”, conta a presidente da Amigos da Terra Brasil. “Acabou sendo levada a pia. Era uma pia de ferro, o que tornava meio lógico ser levada, mas a gente tentou soldar ela ali, então fizemos ela de ferro justamente para poder não quebrar e poder ser uma pia que fosse mais resistente”, relata Fernandão. A situação caótica, ocorrida no dia 27 de junho de 2021, fez a equipe da CaSAnAT questionar se sua iniciativa de fato fazia sentido, se estava atingindo as pessoas realmente, pois em uma sociedade de mentalidade Capitalista, até mesmo o carroceiro que precisa do dinheiro da reciclagem para se sustentar dá fim a uma iniciativa como essa apenas pelo dinheiro fácil. 

Com o furto da pia, o desperdício de água se tornou realidade. Foto: Arquivo ATBR

Vivemos em uma era de questionamentos e de constantes mudanças de rota, porém, quando o espírito de solidariedade e de justiça social correm pelas veias de alguém, mesmo sendo apedrejado, o moinho não para de girar. “A ideia é manter o projeto, colocar a pia de novo, vamos insistir. Estamos nos organizando para estarmos mais presentes na casa. A partir do momento que a pia tá ali e a gente tá na casa, isso gera uma interação como gerou em todas as vezes que a gente tava ali”, conta Costa, e acrescenta que placas já estão instaladas, contendo as instruções de uso da pia, de como limpar as mãos corretamente. O objetivo é apresentar as intenções, mostrar que aquele é um local de diálogo e que a pia está ali apenas para o bem.

Pia coletiva da CaSAnAT recebeu nova sinalização. Foto: Arquivo ATBR

No coração de todo o ativista, a esperança transborda: “Nós não temos a opção de não acreditar em um futuro melhor, se estamos aqui fazendo esse trabalho, temos que acreditar. Esse acreditar é acreditar nas pessoas, nesse poder popular, nesse processo de incidência cotidiana em toda essa questão da cidade, que nos faz acreditar que as pessoas, enxergando um dos problemas estruturais do sistema, essa dificuldade de pensar. Essa participação da cidade, essa interação… Pensar nisso no teu tempo diário é todo um contexto. Qual é a parte que a gente participa, e coisas que às vezes não é nem por opção, é uma necessidade”, pensa Fernando Costa, membro do conselho diretor da Amigos da Terra Brasil.

Prainha de Copacabana em risco: uma nova estação de Tratamento de Água para Porto Alegre (RS) parece bom, mas não é!

Com o custo é o ônus para alguns, mais uma vez a injustiça ambiental encontra solo fértil nas políticas públicas de uma Porto Alegre injusta.

Manifestantes demonstram apoio à Praia de Copacabana 
Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil

“Temos que sair organizados para sair daqui e trazer mais gente, mais atividades, e a gente ocupar este local antes que a iniciativa privada venha, invada este local e expulse os moradores”. – Luís Armando, morador da região

A Praia de Copacabana, no bairro Belém Novo, localizado no Extremo Sul de Porto Alegre, corre o risco de ser inutilizada para que seja realizada a construção do Sistema de Tratamento de Água (SSA) Ponta do Arado. No último domingo (7/11), Copacabana foi inundada de pessoas que não querem ficar sem a praia , em um ato convocado por moradores. O projeto do  Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) prevê o fechamento  do acesso dos moradores à praia, afetando o sustento de 40 pescadores e acabando com um espaço importante de  lazer para as crianças da região, já que  abriga uma das únicas praças do bairro com brinquedos adequados.

Por mais que o SSA seja, de fato, importante para a região, pois a falta d’água é problema recorrente no Extremo Sul e em outros locais, como na Lomba do Pinheiro, a falta de diálogo dos órgãos competentes com a comunidade gera críticas por parte dos coletivos locais. Ainda, não foi realizado em Copacabana o estudo de impacto ambiental previsto por lei para viabilizar a construção. O que estava sendo usado era um relatório feito para o condomínio de luxo que esta proposto para a antiga Fazenda do Arado, que já foi considerado falso pela Polícia Civil, como já noticiou o portal SUL21. 

Durante as falas dos manifestantes no ato de domingo, uma criança comentou que, caso ela não pudesse mais ter acesso à praia, não teria mais onde brincar. Isso se dá porque a pracinha em Copacabana atende a comunidade que mora no entorno. Caso ela seja destruída com a SSA, as crianças terão que caminhar por, pelo menos, 10 minutos até a próxima pracinha disponível, o que não é viável para quem apenas levava os filhos para o quase quintal de casa. 

Como já vimos em outros casos, as obras que vêm para melhorar a infraestrutura do local onde serão localizadas não dialogam com a população local, que, na maioria das vezes, carece de recursos econômicos, além de servir de “desculpa” para a retirada de populações mais humildes ou empobrecidas Sendo assim, permanece a estrutura da cidade para poucos, para uma elite privilegiada. Certamente, este não é o caso dos pescadores que ficarão desassistidos com o fechamento do porto onde atracam seus barcos ou das crianças da comunidade que só têm Copacabana para brincar. Por isso, atos como o de domingo, que pressionam as autoridades para respostas e realizam troca de conversa e de vivências, são tão importantes para que seja feita justiça nas cidades dando visibilidade aos invisíveis. 

Luís Armando, morador do bairro do Lami há 10 anos, fala que é necessário se organizar enquanto coletivo para ocupar o Extremo Sul e trazer mas atividades culturais, econômicas, sociais e ambientais. Desta forma, a iniciativa privada, que tem como objetivo realizar a higienização do bairro, deixando-o apenas para a classe média, não irá prevalecer. A luta para uma cidade mais justa continua. 

Estiveram presentes no ato em defesa da  Prainha de Copacabana moradores do bairro, coletivos locais, como o Preserva Belém Novo, Preserva Arado, no qual Amigos da Terra Brasil e Instituto Econsciencia, Coletivo Ambiente Crítico, Agapam e Representantes do Preserva Belém Novo, lideranças indígenas da retomada da Ponta do Arado, coletivos ambientais e outros movimentos. De agentes políticos, estavam lá a deputada estadual Sofia Cavendon (PT), os vereadores Karen Santos e Matheus Gomes (PSOL), o vereador suplente Giovani Clau (PCdoB) e o ex-vereador Alex Fraga (PSOL). 

A defesa do Extremo Sul não pode parar! Por isso, outras agendas estão sendo organizadas para defender a região. Convidamos todas, todos e todes a realizar uma caminhada socioambiental pelo bairro Belém Novo, no dia 21 de Novembro , às 15h. Junte-se à defesa da cidade! 

Crianças moradoras do bairro brincam em um dos únicos pontos de lazer da região. 
Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil
Ato foi marcado pela grande presença de moradores de Belém Novo. 
Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil

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