A retomada Mbya Guarani da Fazenda do Arado Velho: um olhar desde a etnoarqueologia

Confira artigo de Marcus A. S. Wittmann (NIT/UFRGS) e Carmem Guardiola (NIT/UFRGS) sobre a retomada Guarani Mbya do Arado Velho. Mais sobre aqui.

“Aqui é meu lar!”

Estas palavras definem o sentimento e a certeza do lugar que deve ocupar um mbya guarani no mundo. Alexandre Acosta Kuaray sente este pertencimento porque sabe que seu deus Nhanderu fez este mundo caminhando, trazendo à existência as águas, terras para as roças, o milho, a mandioca, o feijão, a batata doce, a abóbora, a melancia, a pitanga, o tabaco, a erva mate, as árvores, as ervas medicinais e os animais. Este é um mundo sagrado, sem ele não há mbya, e sem os mbya não há um mundo onde essas substâncias, alimentos e coisas possam existir. Alexandre caminha hoje neste que é o seu lar, seu lugar de existir. O contato com este mundo que já foi pisado pelos deuses e seus ancestrais lhe traz esta certeza de um bem viver junto aos seus. Sente-se alegre, seguro e forte ao ver sua filha e neta neste contato com o divino.

Vivendo sujeitos à confinamentos em meio à um arquipélago de pequenos territórios, cercados por centros urbanos e fazendas de monocultura de soja e pecuária, os mbya guarani, impedidos de exercer livremente sua territorialidade, lutam e (re)existem, caminham e se alegram. A ineficácia das soluções propostas pelas políticas indigenistas desde a Constituição de 1988 e os seguidos ataques à seus direitos e suas vidas os impele a retomar os seus territórios como maneira de garantir as suas formas de reprodução social.

Ao amanhecer com a presença do deus Sol, Alexandre Acosta Kuaray compartilhou com sua família seus sentimentos sobre o aviso de Nhanderu em seus sonhos: uma nova caminhada estava por se realizar. Contudo, os tempos do juruá – o homem branco -, tempos de um viver com cercas e propriedades privadas, vem há séculos os impedindo de caminharem livremente como seu deus o fez, e como eles mesmos os faziam há centenas de anos.

Muitos fatores foram os que conduziram Alexandre e outras três lideranças, junto com suas famílias, para um lugar reconhecido como lar, reconhecido como seu. O sonho trazido por Nhanderu apontou um local onde é possível uma existência feliz, viver no dia a dia se reproduzindo socialmente, percorrer livremente as matas, ficar ao redor do fogo, se concentrar e se fortalecer através da fumaça do petyngua, o cachimbo guarani, dançar pelas e para as divindades, aguardar a chegada de novas crianças mbya e se comunicar em sua própria linguagem. Entretanto, a chegada e permanência nesse lugar não viria sem luta. Nhanderu conduziu os mbya guarani para a Ponta do Arado, à beira do lago Guaíba (Porto Alegre/RS).

Com seus pertences, lonas, panelas, suas sementes sagradas e seu mbaraka, seguiram alegres pelo reencontro com seus ancestrais e esperançosos por voltar a um local tradicional. Nas primeiras horas da manhã do dia 15 de junho chegaram à Ponta do Arado Velho, local que já possui as marcas da caminhada do povo guarani há centenas de anos materializadas não apenas em sítios arqueológicos, mas na própria paisagem da região. Mesmo assim, as ameaças dos ditos proprietários do local, onde querem levantar um condomínio de luxo, não demoraram a chegar.

Para entendermos o contexto etnoarqueológico da Ponta do Arado, devemos entender essa área não apenas como um local com remanescentes materiais de uma ocupação pretérita guarani, mas também dentro de um contexto ambiental e cosmológico para essa população. A Ponta do Arado se insere na paisagem cultural mais abrangente da bacia hidrográfica do lago Guaíba. O próprio nome Guaíba vem do guarani, significando “lugar onde o rio se alarga” (gua = grande; i = água; ba = lugar) (DIAS, BAPTISTA DA SILVA, 2014, p. 82). Para compreendermos a ocupação guarani pretérita e a (re)ocupação atual, devemos ter como eixo a dimensão global histórica, social e cosmológica desse povo.

Ao longo do lago Guaíba, percorrendo suas margens, pontais e ilhas até o norte da lagoa dos Patos encontramos um total de 37 (trinta e sete) sítios arqueológicos referentes à ocupação guarani. Sítios esses que são definidos pelos próprios mbya guarani como “marcas do caminhar dos avós” (BAPTISTA DA SILVA et al., 2010, p. 19), demonstrando e pontuando deste modo uma relação de ancestralidade e imemoralidade com um território (um local geográfico) e uma territorialidade (um sistema de assentamento e relação com o local, a paisagem e seus habitantes) que nunca deixou de ser tradicional para esse povo. As mais antigas datações da ocupação guarani no estado do Rio Grande do Sul atingem os primeiros séculos do primeiro milênio. Para a região do lago Guaíba ainda há poucos estudos mais aprofundados de sua cronologia, todavia, sabemos que ali há sítios arqueológicos ocupados pela população guarani há poucas centenas e até dezenas de anos antes da chegada dos europeus no território brasileiro (DIAS, BAPTISTA DA SILVA, 2014, p. 110).

O processo histórico pós-contato com os europeus foi para os guarani, assim como para todos os povos indígenas, uma ação de violência, morte, expulsão e destruição de suas terras. A área de Porto Alegre, antiga sesmaria de Viamão, era um local povoado por indígenas (tanto guarani quanto kaingang), como os relatos históricos e os sítios arqueológicos comprovam, até o século XVII. Entretanto, em meados do século XVIII a presença indígena na região já era praticamente invisível. Os guaranis foram deslocados nesse período para as Missões Jesuíticas, escravizados ou escaparam para regiões mais inóspitas. A (re)ocupação guarani nessa área se deu apenas após o declínio dos Sete Povos das Missões, com alguns grupos de indígenas sendo deslocados para a Aldeia dos Anjos, futura Gravataí, e alguns outros voltando aos poucos para a região (NOELLI et al, 1997; PEREIRA, PRATES, 2012). As consequências desse processo histórico podem ser visualizadas e sentidas ainda hoje com as poucas e pequenas terras indígenas na grande Porto Alegre, sendo a grande maioria não apta para o modo de vida guarani, ou seja, ter mata nativa e água, o que propicia não apenas implantação de roças, mas também a coleta de vegetais para fins medicinais (AGUILAR, 2013, p. 105-106). Sendo assim, a retomada do Arado Velho é não apenas um direito dos guarani, mas também uma questão de dívida histórica.

Dentro de um contexto de sociabilidade, devemos nos atentar para a relação dessa área específica para com as demais aldeias e sítios localizados em outras regiões do Rio Grande do Sul, em outros estados da região sul e sudeste do Brasil, bem como com os países limítrofes do cone sul americano (DIAS, BAPTISTA DA SILVA, 2014, p. 86). Todas essas áreas são comprovadamente locais de ocupação milenar do povo guarani. As aldeias que povoam o território guarani, como as atuais na grande Porto Alegre, os sítios arqueológicos e agora a retomada da Ponta do Arado, são tekohá guarani:

O tekoha , para o Guarani, talvez seja a síntese da concepção e da relação que esse povo mantém com o meio ambiente. No plano físico poderíamos dizer que o tekoha é a aldeia, é o lugar onde a comunidade Guarani encontra os meios necessários para sua sobrevivência. É a conjugação dos vários espaços que se entrecruzam: o espaço da mata preservada onde praticam a caça ritual; espaço da coleta de ervas medicinais e material para confeccionar artesanatos e construir suas casas; é o local onde praticam a agricultura; é também um espaço sócio político, onde constroem suas casas de moradias, a casa cerimonial/Opy, o pátio das festas, das reuniões e do lazer. Não é possível conceber o tekoha sem a composição dos espaços, ou apenas um dos espaços; nesse caso, não poderão viver a plenitude e assim se quebra a relação que mantém com o meio, produzindo o desequilíbrio (BRIGHENTI, 2005, p. 42).

Deste modo, não devemos perder um entendimento mais aprofundado do modo de ser guarani, sua relação com o que chamamos de natureza, com os animais, e sua religiosidade ou cosmologia. O guarani reko, o modo de ser e viver guarani, extrapola a dimensão básica do espaço físico e geográfico, ou seja, não é apenas uma questão deles terem uma terra onde viver, pois a relação com o local envolve também a relação com outras entidades e divindades, como certos tipos de animais, árvores, plantas, substâncias, água, dentre outras que povoam esses cosmos guarani. É através desses outros seres e substâncias que os mbya guarani fazem sua medicina, curam suas doenças espirituais e físicas, constroem suas casas e seus adornos. São essas relações e entidades que são encontradas nos territórios tradicionais desse povo, e a Ponta do Arado Velho, por ser uma área de proteção ambiental, é um dos territórios ao longo do curso do Guaíba que ainda preservam essas características.

Olhando para a localização, distribuição e densidade dos sítios arqueológicos guarani ao longo da bacia hidrográfica do Guaíba (MAPA 1), os quais se estendem desde a atual cidade de Porto Alegre até a desembocadura para a lagoa dos Patos, nota-se um certo padrão de assentamento. Esse sistema de ocupação do lago Guaíba denota um sistema estratégico de posicionamento de habitações e acampamentos ao longo do curso d’água. Essas antigas aldeias ocupam principalmente os pontais, as ilhas e as baías, em locais abrigados do vento sul, tal estratégia demonstra:

(…) a importância dos deslocamentos aquáticos neste território, sugerindo que os sítios situados em ambas as margens do Guaíba, bem como nas ilhas, estavam integrados em uma mesma rede de sociabilidade. Trataría-se, portanto, de um território com características socioculturais contínuas, circunscrito a um espaço geográfico disperso em função do ambiente lagunar. Assim como se configuram no presente os assentamentos mbyá, podemos pensar as ocupações pré-coloniais do Guaíba enquanto “ilhas” articuladas por um complexo sistema sócio-cosmológico, compartilhando os recursos do território e conectando-se entre si também através dos “caminhos das águas”, ordenados pelo sistema de ventos e correntes (DIAS, BAPTISTA DA SILVA, 2013, p. 67-68)

Esse horizonte sócio-cultural, ambiental e cosmológico na bacia hidrográfica do Guaíba pode ser entendido como uma série de lugares, dos quais nenhum é mais importante que o outro, de reprodução do modo de ser tradicional guarani. Tal sistema é comprovado e toma força na manifestação atual de (re)ocupação dessa região pelos mbya guarani (DIAS, BAPTISTA DA SILVA, 2013, p. 69), através de acampamentos (Lami/Tekohá Pindó Poty, Passo Grande/Tekohá Petim e Flor do Campo), aldeias (Itapuã/Tekohá Pindó Mirim, Cantagalo/Tekohá Jataity, Coxilha Grande/Tekohá Porã) e retomadas, como é o caso do Arado Velho. Com isso, a retomada da Ponta do Arado não é uma anomalia dentro da territorialidade guarani. Territorialidade essa que se mantém desde os tempos pré-coloniais, como atestado pelos vestígios arqueológicos. Assim, esses territórios que estão e continuam sendo reclamados pelos mbya guarani como território tradicional, são lugares de manutenção, repetição e reprodução de seu modo tradicional de vida, de seus costumes e sua língua, ou seja, direitos constitucionais abarcados pela Constituição Federal de 1988.

Sítios da Tradição Guarani no Lago Guaíba: 1) RS-JA-23: Praça da Alfândega, 2) Arroio do Conde, 3) RS-SR-342: Santa Rita, 4) RS-JA-16: Ponta do Arado, 5 ) RS-LC-71: Ilha Chico Manuel, 6) RS-JA-02: Lami Bernardes, 7) RS-JA-01: Reserva Biológica do Lami, 8) PA-300: Rogério Christo, 9) RS-LC-18: Morro do Coco, 10) RS-JA-07: Lajeado, 11) RSLC- 01: Cantagalo, 12) RS-323: Ilha das Pombas, 13) RS-LC-08: Praia das Pombas, 14) RSLC- 11: Praia da Onça, 15) RS-LC-70: Ilha do Junco, 16) RS-LC-39: Morro da Fortaleza, 17) RS-LC-74: Praia da Pedreira, 18) RS-LC-07: Praia do Araçá, 19) RS-LC-15: Praia do Sítio, 20) RS-LC-16: Prainha, 21) RS-LC-17: Morro do Farol, 22) RS-LC-75: Lagoa Negra, 23) RS- 324: Tarumã, 24) RS-LC-22: Tekoá Porã, 25) RS-LC-21: Tekoá Mareÿ, 26) RS-LC-20: Tekoá Yma, 27) Arroinho I /// MAPA 1. Localização de sítios Guarani na Bacia Hidrográfica do Guaíba (DIAS, BAPTISTA DA SILVA, 2013, p. 59)

O sítio arqueológico (RS-JA-16), a antiga e agora nova tekohá, da Ponta do Arado foi pesquisado no final dos anos 1990 e início dos 2000 (GAULIER, 2001-2002). As pesquisas arqueológicas atestam a importância do sítio como local de ocupação guarani na beira do Guaíba, conjuntamente com o sítio da Ilha Francisco Manuel (RS-C-71). Todavia, apenas o segundo foi escavado, tendo sido descoberto uma quantidade de material arqueológico e uma estratigrafia de ocupação no sítio, inclusive com uma fogueira, muito densa e importante para se pensar a ocupação e mobilidade guarani na região.
O sítio da Ponta do Arado não foi escavado (Gaulier, a arqueóloga responsável pelas primeiras pesquisas na área, relata que o local se encontrava em litígio frente ao proprietário), tendo apenas o material em superfície sido recolhido e algumas sondagens efetuadas. Esse sítio é constituído por duas áreas, uma que vem desde a beira da praia, e outra mais para o interior da mata, totalizando no mínimo 2.000m². Em ambas foram descobertos fragmento de cerâmica guarani, e a segunda área foi relatada pelos moradores locais como uma antiga plantação, o que o solo escurecido parece comprovar. Gaulier apontou em sua publicação (2001-2002) a importância da preservação do sítio e seu estudo. Com a retomada guarani na Ponta do Arado, possibilita-se ações não apenas de um maior entendimento do local, através dos saberes dos indígenas, quanto sua preservação pelos descendentes daqueles que há centenas de anos viveram, pescaram, plantaram e caçaram naquele local.

A presença sozinha do sítio RS-JA-16 na Ponta do Arado não é prova de uma ocupação pouco densa no local. Como já demonstrado por Noelli (1993), devemos pensar os sítios arqueológicos como parte de um sistema de mobilidade guarani. Os raio de mobilidade e troca entre diferentes aldeias para recolher diferentes materiais de uso cotidiano dos guarani pré-coloniais podiam exceder 50km. O que isso mostra é que não devemos entender um sítio arqueológico apenas como um ponto material específico na ocupação guarani pretérita, mas sim como um grande sistema de vias terrestres e aquáticas que liga diferentes pontos da região com características ambientais diferentes. Além disso, em muitas regiões de encosta de morro e alagadiças da cidade de Porto Alegre ocorreram diversos trabalhos de retirada de sedimento, terraplanagem e aterro, o que pode ter causado a destruição de sítios arqueológicos (NOELLI et al, 1997). A construção do empreendimento, um condomínio de luxo, na área da Fazenda do Arado, o qual já se encontra em processo de licenciamento ambiental, irá movimentar diversas toneladas de sedimentos e aterro no local e na região. A retomada do Arado Velho pelas famílias guarani não é apenas uma luta pela preservação de uma área específica, mas sim por todo um sistema territorial que abarca muito além da beira do lago Guaíba.

Além do sítio arqueológico guarani, há na Ponta do Arado outros patrimônios culturais dos séculos XVIII e XIX da cidade de Porto Alegre. A fazenda do Arado, de propriedade de Breno Caldas, é um marco arquitetônico e paisagístico do Bairro Belém Novo e arredores, tendo sido um núcleo de produções agro-pastoris e criação de cavalos. Nos arredores da fazenda há diversas estruturas, principalmente de habitação, que foram identificadas por pesquisadores e pelos moradores locais como casas de bisavós e de outros parentes da comunidade, além de outras áreas onde fragmentos cerâmicos guarani foram descobertos (TAVARES, 2011). A Ponta do Arado se apresenta como uma paisagem rara no contexto portoalegrense e gaúcho, possuindo um valor paisagístico, estético, cultural, patrimonial e social incomensurável (TOCCHETTO et. al., 2013). As pesquisas arqueológicas no local para o licenciamento ambiental do empreendimento da Fazenda do Arado indicaram o potencial e valor patrimonial da área como um todo (abrangendo tanto o patrimônio indígena guarani, quanto as estruturas habitacionais coloniais e modernas). O relatório (TAVARES, 2011) sugeriu o registro coletivo desses diferentes bens como um grande sítio arqueológico, uma grande área e sistema arqueológico de 3km² abarcando diferentes períodos da ocupação humana no local. Todavia, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) não acatou a recomendação da equipe de arqueologia, argumentando questões de cunho legal. Sítios arqueológicos, segundo a legislação vigente, são apenas locais específicos e delimitados onde há presença de material arqueológico, não sendo definidos dentro de uma ideia de paisagem cultural ou de território.

A cidade de Porto Alegre vem sofrendo uma descaracterização cultural, social, paisagística, patrimonial e ambiental da sua área de orla, o cais do Porto Mauá e o próprio empreendimento da Ponta do Arado são exemplos disso. A retomada guarani dessa localidade não é apenas uma luta pelos seus territórios tradicionais, mas também uma luta de todos nós pela preservação do lago Guaíba e seus arredores como uma área cultural e ambiental. O ambiente e a paisagem da bacia hidrográfica do Guaíba nos mostram não apenas uma intensa ocupação e mobilidade guarani que perdura há quase um milênio, mas também a importância da luta pela preservação desse ecossistema e dessa paisagem cultural. A retomada dos Guarani da Ponta do Arado é mais uma afirmação da fala “sem tekohá não há teko”, ou seja, sem o território tradicional não há modo de vida tradicional, sem território, sem terra, não há existência para os guarani. As retomadas trazem a reprodução dos modos dos deuses, as retomadas garantem que a fauna e flora se mantenham preservadas, as retomadas garantem a manutenção do modo de vida tradicional, as retomadas de territórios são retomadas também de direitos.

Para Timóteo, Neri, Alexandre e Basílio, lideranças que caminham hoje pela fazenda do Arado Velho, armas, metralhadoras, homens encapuzados e ameaçadores, não os colocam medo, mas a destruição destes territórios divinos, sim. Lá estão sorrindo e cantando, comemorando a vida junto com seus ancestrais que lá já estiveram. E lá ficarão.

Alexandre Acosta, Timóteo Karaí Mirim e Neri, lideranças mbya guarani da Retomada da Fazenda do Arado Velho. Foto: Carmem Guardiola.

REFERÊNCIAS

AGUILAR, Renata Alves dos Santos. Cidade rururbana de Porto Alegre: uma análise etnoconservacionista sobre as áras protegidas e os espaços de circulação Guarani-Mbya. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Rural, Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural. Porto Alegre, UFRGS, 2013.

BAPTISTA DA SILVA, S.; TEMPASS, M. C. & COMANDULLI, C. S. Reflexões sobre as especificidades Mbyá-guarani nos processos de identificação de Terras Indígenas a partir dos casos de Itapuã, Morro do Coco e Ponta da Formiga, Brasil. Amazônica, Vol. 2, N. 1, 2010, pp. 10-23.

BRIGHENTI, Clovis Antonio. Necessidade de novos paradigmas ambientais: implicações e contribuição guarani. Cadernos PROLAM/USP, Ano 4, Vol. 2, 2005, pp. 33-56.

DIAS, Adriana Schmidt. BAPTISTA DA SILVA, Sérgio. Arqueologia guarani no lago Guaíba: refletindo sobre a territorialidade e a mobilidade pretérita e presente. IN: MILHEIRA, Rafael Gudes; WAGNER, Gustavo Peretti. Arqueologia Guarani no litoral sul do Brasil. Curitiba, Appris, 2014, pp. 81-114.
________. Seguindo o fluxo do tempo, trilhando o caminho das águas: territorialidade guarani na região do lago Guaíba. Revista de Arqueologia, Vol. 26, N. 1, 2013, pp. 58-70.

GAULIER, Patrícia Laure. Ocupação pré-histórica guarani no município de Porto Alegre, RS: considerações preliminares e primeira datação do sítio arqueológico [RS-71-C] da Ilha Francisco Manoel. Revista de Arqueologia, Vol. 14-15, 2001-2002, pp. 57-73.

NOELLI, Francisco Silva. Sem tekohá não há tekó. Em busca de um modelo etnoarqueológico da aldeia e da subsistência guarani e sua aplicação a uma área de domínio do delta do rio Jacuí-RS. Dissertação de Mestrado em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, PUCRS, 1993.

NOELLI, Francisco S.; SILVA, Fabíola A.; VIETTA, Katya; TOCCHETTO, Fernanda B.; CAPPELLETTI, Ângela; COSTA, João Felipe G. da.; SOARES, André Luis R.; MARQUES, Karla J. O Mapa arqueológico parcial e a revisão historiográfica a respeito das ocupações indígenas pré-históricas no município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Revista de História Regional, Vol. 2, N. 1, 1997, pp. 209-221.

PEREIRA, César Castro; PRATES, Maria Paula. Nas margens da estrada e da história juruá: um ensaio sobre as ocupações Mbyá na região hidrográfica do Guaíba (estado do Rio Grande do Sul). Espaço Ameríndio, Vol. 6, N. 2, jul./dez., 2012, pp. 97-136.

TAVARES, Alberto. Diagnóstico Arqueológico Interventivo na área do Antigo Haras do Arado, Belém Novo. Nº 01512.001438/2011-69. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Superintendência do Rio Grande do Sul, 2011.

TOCCHETTO, F. B., PINTO, M. V. C., POSSAMAI, R., FLUCK, R. M., DEROSSO, S. G., ÁVILA, F., DE MORAES VIEIRA, S. R.. Sítios arqueológicos históricos da área rural de Porto Alegre: um patrimônio a ser pesquisado e preservado. Revista Memorare, Vol. 1, N. 1, 2013, pp. 207-217

Arado Velho: confira nota do Movimento Preserva Belém Novo sobre agressão e intimidações sofridas em reunião que debateu projeto

Nota do movimento “Preserva Belém Novo” e da campanha “Preserva Arado” escancara a intimidação sofrida por quem questiona o mega empreendimento que pretende devastar a área do Arado Velho e transformá-la em hotel e condomínios de luxo. Em reunião pouco divulgada, para evitar a participação popular, agressão física foi gravada, comprovando o grau de violência que sofre quem se organiza para preservar a exuberante natureza local – que, ainda por cima, é área ancestral indígena. Abaixo, a nota na íntegra (e, aqui, a página no Facebook do movimento, onde o texto foi originalmente publicado):

 

“Apresentação de projeto escancara ameaças, acusações, intimidações e agressão aos que questionam empreendimento na Fazenda Arado Velho:

Como entender uma reunião marcada para um grupo seleto – Conselheiros e Delegados do Orçamento Participativo – sendo que nem todos foram avisados ou convidados? O que esperar de uma apresentação feita por empreendedor investigado civil e criminalmente além de ser processado em ação civil pública por se beneficiar de alteração do Plano Diretor sem a participação da população?

E se essa apresentação se realizar na sede da Prefeitura? Sob a guarda de seguranças privados, com uma equipe à postos para registrar por fotos e imagens todos que se manifestem em desacordo com o empreendimento? O que pensar ao ouvir o representante do empreendedor negar diversas vezes a existência de projeto diferente, apresentado à comunidade pela última vez em outubro de 2015 e que consta no Estudo de Impacto Ambiental?

Não bastasse esse quadro deplorável – onde o poder público está à mercê dos interesses privados – a cereja desse bolo indigesto é a confirmação das táticas impostas à população submetida à pressões, intimidações, ameaças e violência física.

A noite do dia 19 de julho de 2018 fica na história de Belém Novo.

“Liderança comunitária” que defende ferozmente o empreendimento, pela falta absoluta de argumentos, agrediu morador que ousou questionar as informações apresentadas. Atitude covarde e infundada, flagrada por dezenas que ali estavam.

Após dois anos e meio de insurgência frente ao mega empreendimento imposto para a Fazenda Arado Velho, os poucos moradores que souberam e participaram desse circo romano saem com atenção redobrada. Repudiamos a violência utilizada contra morador do bairro que buscou exercer seu direito dever cidadão de participar de reunião que tratava de assunto de alta relevância para seu bairro e cidade.

Desprezamos a ação intimidadora de “representantes comunitários” bem como do empreendedor e seus representantes que faltaram com o respeito com a população de Belém Novo – excluída do debate sobre o tema – e com aqueles que questionaram a apresentação – constrangedoramente “fichados” e gravados pelas câmeras à serviço da empresa Arado.”

Confere abaixo o vídeo que comprova a agressão de Caio Paixão, conselheiro do Orçamento Participativo, a Bruno Farias, morador da região que contestou as informações do mega empreendimento que pretende transformar a área do Arado Velho, ao invés de uma exuberante natureza para todos, em condomínios de luxo para poucos.

Indígenas sem acesso à água potável: seguem os ataques à retomada Guarani Mbya no Arado Velho

Dois novos vídeos atualizam a situação da retomada Guarani Mbya no Arado Velho, bairro Belém Novo, zona sul de Porto Alegre. Já contamos um pouco dessa história aqui: “Ao índio o que é do índio”.

Primeiro, as famílias que retomaram suas terras ancestrais tiveram seus movimentos cerceados e foram forçosamente expulsas de onde montaram seu primeiro acampamento, sendo cercadas na área ribeirinha da Ponta do Arado. Ali, a vigilância de seguranças privados é constante e ameaçadora, e cada movimento dos índios e de apoiadores é filmada, como forma clara de intimidação. Os ataques, porém, não param aí: de ameaças a pescadores locais e sabotagem de barcos que faziam a travessia até a área da retomada a judicializações indevidas, agora inclusive o acesso à água potável por parte das famílias da retomada está proibido pelas empresas que pretendem construir condomínios e hotéis de luxo em solo sagrado indígena, destruindo o ecossistema do Arado Velho. Conforme consta publicamente no Estudo de Impacto Ambiental, os investidores Iboty e Eduardo Ioschpe pretendem trazer para a Fazenda do Arado Velho uma série de empreendimentos, incluindo condomínios da urbanizadora Damha (veja mais no Preserva Arado!).

Confira nesses dois novos vídeos a situação atual da retomada do Arado Velho pelos Guarani Mbya! Ao índio o que é do índio!

Assembleia Geral Amigos da Terra 2018

Aconteceu ontem (08/07) a Assembleia Geral 2018 da Amigos da Terra Brasil. Apesar da ameaça de chuva e do frio em Porto Alegre, muitas companheiras e companheiros compareceram ao encontro, fazendo deste um importante momento para que todas as vozes que compõe a Amigos da Terra se encontrem e se escutem: é na diversidade que aprendemos e crescemos! Antes da assembleia, ainda ocorreu uma reunião do nosso Conselho Consultivo, do qual fazem parte organizações aliadas. Dia de ouvir e afinar alianças!

Além de um relato das atividades e ações que estamos desenvolvendo ou apoiando ao lado de outros movimentos, como a resistência da Vila Nazaré frente aos ataques da prefeitura de Porto Alegre e da Fraport, transnacional alemã operadora do Aeroporto Salgado Filho, e a retomada Guarani-Mbyá no Arado Velho, território ancestral do povo indígena, entre outras tantas, também apresentamos a movimentação financeira da organização no último ano e construímos uma agenda conjunta para o segundo semestre de 2018, buscando unir as diversas forças presentes ao redor de pautas comuns.

Confere aí embaixo algumas fotos!

Nota de repúdio ao cancelamento da posse dos/as conselheiros e conselheiras do CMDUA (Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental)

As entidades signatárias vêm, através do presente, manifestar seu veemente repúdio ao cancelamento da cerimônia de posse dos conselheiros eleitos para o CMDUA – Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental, marcado para o dia 06/06/2018 e cancelado sem apresentação de qualquer motivação por parte da Administração Municipal.

O Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental exerce competências fundamentais para garantir o processo de desenvolvimento urbano sustentável e, como convém à gestão democrática da política urbana, bem como por expressa determinação legal, deve incorporar a participação popular em sua composição, o que é garantido através da eleição periódica dos/as Conselheiros/as oriundos/as das distintas regiões de planejamento de Porto Alegre. Além de não ter garantido o regular calendário do processo eleitoral, o município agora cancela, sine die, a posse dos conselheiros que deveria ter ocorrido em janeiro de 2018.

Considerando as constantes ameaças a que Porto Alegre vem sendo submetida na atual gestão municipal, claramente descomprometida com as demandas da população de baixa renda e privilegiadora dos interesses do mercado imobiliário na cidade, torna-se ainda mais grave a tentativa de desmobilizar os/as conselheiros/as eleitos/as em um processo vigoroso e de ampla participação popular que envolveu milhares de cidadãos e cidadãs. Exigimos a posse imediata dos conselheiros do CMDUA e a retomada de uma Política Urbana democrática e sustentável, comprometida com a garantia das funções sociais da cidade e da propriedade no município de Porto Alegre.

Porto Alegre, 06 de junho de 2018.

ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – Núcleo RS
AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Local Porto Alegre
Amigos da Terra Brasil
Associação Brasileira de Engenharia Sanitária
Associação Chico Lisboa
Associação de Moradores da CEFER 2
CDES – Centro de Direitos Econômicos e Sociais
CCD – Centro Comunitário de Desenvolvimento da Tristeza, Pedra Redonda, Vilas Conceição e Assunção
Coletivo A CIDADE QUE QUEREMOS
Coletivo CATARSE
Conselheiros eleitos das Regiões de Planejamento 1 e 4
Federação Nacional de Arquitetos e Urbanistas
Guayí – Democracia, Participação e Solidariedade
IAB RS – Instituto dos Arquitetos do Brasil – Departamento RS
IBAPE RS – Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias do RS
IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico
MTST
Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre
SAERGS – Sindicato dos Arquitetos do RS
SENGE – RS Sindicato dos Engenheiros do RS
Sindicato dos Economistas do RS
SIMPA – Sindicato dos Municipários de Porto Alegre
SINDJORS – Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS
SOCECON RS – Sociedade de Economia do Estado do RS

O caso da guarani Teresa Gimenes e sua detenção pela Guarda Municipal de Porto Alegre

Domingo, dia 29 de abril de 2018, uma anciã guarani, Teresa Gimenes, junto com familiares, vendia seus artesanatos na companhia de seu animal de estimação, um filhote de macaco bugio, no Brique da Redenção, um dos principais locais de passeio e de turismo de Porto Alegre. Em certo momento, uma senhora que passeava também com seu animal de estimação, um cachorrinho, se incomodou com a presença do macaco e denunciou a indígena à Guarda Municipal. Os agentes detiveram a indígena com a denúncia que ela estaria vendendo o animal. A encaminharam para a Polícia Federal. Teresa, que não fala bem português, só foi liberada horas depois, após assinar um Termo Circunstanciado, na presença do cacique da sua aldeia e de um advogado. O macaco foi encaminhado para o Ibama. Este caso é um desrespeito à cultura guarani, ao seu entendimento de mundo e do contato com outros seres, como os animais. É julgar e criminalizar uma etnia, defendida por Convenções Internacionais, com a nossa visão branca de mundo. Os guaranis juntamente com outros movimentos estão reivindicando o mínimo preparo dos agentes que entrem em contato com outras culturas, como os guaranis. É inadmissível este tipo de tratamento. Reivindicam também a devolução do macaco bugio para a Aldeia Guarani do Cantagalo. Fora deste ambiente, o animal corre risco de vida.

Entenda melhor o caso conferindo a nota nota oficial do Conselho Indigenista Missionário-Regional Sul e do Conselho Estadual dos Povos Indígenas/RS.

Foto de Tãnia Rego/Agência Brasil


O Caso Teresa Gimenes – pertencente à Comunidade Guarani Mbya do Cantagalo – sua detenção pela guarda municipal de Porto Alegre e o direito à diferença.

No dia 29 de abril de 2018, um grupo de Guarani Mbya da Aldeia Cantagalo reuniu artefatos – cestos, bichinhos esculpidos em madeira, pequenos objetos de arte – e seguiu para o Parque Farroupilha (conhecido como Parque da Redenção), em Porto Alegre/RS, para vender artesanato, como costuma fazer nos finais de semana. Teresa Gimenes, seus dois filhos pequenos e um de seus animais de estimação (um macaquinho bugio) seguiram com o grupo e se instalaram em um ponto da feira.

Enquanto vendia os objetos, Teresa foi constrangida por uma mulher, que também passeava com seu animal de estimação (um cãozinho), e que considerou absurda a presença de um animal silvestre naquele contexto, junto às crianças. De imediato, a referida mulher procurou a Guarda Municipal de Porto Alegre e fez uma denúncia, alegando que Teresa estaria expondo a venda um “pequeno animal primata”. Os agentes da Guarda Municipal dirigiram-se ao local e deram voz de prisão à Teresa, conduzindo-a, juntamente com as crianças e o bichinho, até a Superintendência Regional da Polícia Federal. Depois de várias horas, foi elaborado um Termo Circunstanciado e encaminhado ao Juiz Federal do Juizado Especial Criminal Federal de Porto Alegre.

Por volta das 16h do domingo, dia 29, com a presença do Cacique da Comunidade do Cantagalo Werá Jaime e do advogado Henrique de Oliveira, Teresa foi liberada e pôde regressar para a sua comunidade, mas o animalzinho de estimação de seus filhos foi apreendido e levado a um abrigo para posteriormente ser entregue ao IBAMA. É necessário enfatizar que Teresa entende muito precariamente a língua portuguesa e suas crianças se comunicam exclusivamente em Guarani.

Para entender este acontecimento, é importante levar em conta as formas específicas de pensar e de dar sentido ao mundo dos Guarani Mbya. No quadro de referências de uma cultura urbana e ocidental, existe clara distinção entre esferas naturais e sobrenaturais, assim como entre humanos e animais. E numa perspectiva antropocêntrica, considera-se que o homem ocupa uma posição central e privilegiada frente aos outros animais. Contudo, estas separações entre os mundos – os nossos, os dos animais, os de outros seres – não são dados objetivos, universais e consensuais para todas as culturas. Cada povo indígena dota as coisas do mundo com sentidos particulares, e produz outras formas de classificar, separar, distinguir, que nem sempre correspondem àquelas que se convencionou como sendo da verdadeira ordem do mundo.

Para os Mbyá Guarani, as relações entre pessoas e animais são cotidianas e rituais – os animais fazem companhia, alegram, dinamizam a vida,

e eles também protegem e resguardam, numa dimensão espiritual, especialmente as crianças. Por isso, quando crianças transitam nos espaços urbanos, algumas vezes levam consigo seus animais de estimação e de proteção – incluindo espécies silvestres. Aliás, a classificação entre espécies domésticas e silvestres é uma invenção cultural concernente a uma visão ocidental de natureza. Não se pode, desta forma, tomar como absolutas as distinções entre “tipos” de animais e tipos de ambientes que lhes caberiam “naturalmente”. Mesmo para nós, essas separações não são absolutas – basta pensar que um macaco bugio em uma feira pareceu absurdo a uma mulher urbana passeando no parque com seu cão, mas um bugio preso em uma jaula, dentro de um zoológico, talvez não lhe soe assim tão estranho.

Numa aldeia Guarani, os animais – aqueles que existem no meio ambiente, incluindo macacos, papagaios, galinhas, cães, gatos, coatis, capivaras, pequenos roedores – integram a vida e o cotidiano das crianças e adultos. Eles circulam dentro dos espaços das casas, de escolas, de casas de reza e compartilham frutos e alimentos com as pessoas. A compreensão de que eles não possam sair para passear fora dos limites da aldeia (imposição de leis de proteção ambiental) é bastante relativa e problemática.

Dependendo, então, do ponto de vista, a presença do pequeno macaco pode parecer estranha – e, estando à família Guarani em atividade de venda de artesanato, pode parecer que este animalzinho estaria incluído entre os objetos de venda (e, desse ponto de vista qualquer pessoa que leva consigo um cão para uma feira poderia também estar pretendendo vender seu animal). Contudo, com um olhar diferente, a cena denota simplesmente a presença de uma família que foi vender artesanato e não quis deixar para trás o animalzinho de estimação das crianças, seja porque ele ficaria desprotegido se não estivessem com elas, seja porque as crianças é que ficariam desprotegidas espiritualmente sem ele.

Este caso revela, de pronto, que o modo de ser dos indígenas não é reconhecido e respeitado, como estabelece nossa Constituição Federal. Mais uma vez, os povos indígenas não parecem ser vistos como sujeitos de direitos. No caso de Teresa, havia uma situação bem específica, já que ela domina pouco a língua portuguesa, e repentinamente foi abordada e conduzida por homens que não conhecia. Teresa não pôde compreender imediatamente os motivos de sua detenção e, no seu entender, suas crianças e o bugio também foram agredidos, já que o animalzinho deveria ficar com as crianças e não ser engaiolado. Esse acontecimento marca efetivamente que as relações com os povos indígenas ao longo das décadas se dá de forma truculenta, desrespeitosa e racista.

A Constituição Federal, em seu Art. 231, estabelece as regras para as relações entre as culturas, e nela estão perfeitamente esclarecidos que devem ser reconhecidas as organizações sociais, os costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários que os indígenas têm sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer

respeitar todos os seus bens”. O Artigo 232 determina ainda que os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. Esse artigo impõe que os povos, comunidades indígenas e todos os seus integrantes sejam tratados e respeitados como sujeitos de direito.

Além das normas internas o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT- Organização Internacional do Trabalho – e no seu Artigo 2° determina que os governos nacionais devem assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade. Essa ação deverá incluir medidas que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando as suas identidades sociais e culturais, os seus costumes e tradições, e as suas instituições. O Artigo 4° estabelece que medidas devam ser adotadas para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados, e que incluem os direitos de cidadania – tal como o de ir e vir, a liberdade de crença, etc.

Com estas garantias legais, resguardam-se ainda as formas como os indígenas utilizam os recursos naturais, formas estas que são compatíveis com seus usos e manejos tradicionais e que são regidas pelas lógicas próprias de cada comunidade indígena. Conforme menciona a procuradora federal Caroline Boaventura Santos, citando Luiz Fernando Villares[1]:

Dentro ou fora das terras indígenas, a produção consoante com a organização social, os costumes e tradições indígenas jamais devem ser limitados. A caça, a pesca, a agricultura de subsistência, a pecuária, o extrativismo e a produção de artesanato não podem sofrer restrições, pois são amparadas constitucionalmente.

Pode-se inferir, a partir desse argumento, que dentro e fora das aldeias o trânsito das pessoas e de seus animais de estimação não deveriam ser, também, constrangidos e limitados. Fica evidente, pelas normas brasileiras e internacionais, que os Povos Indígenas podem livremente exercer suas culturas, seus costumes e tradições e, por conseguinte, se a convivência com os animais faz parte do modo de ser do povo não compete ao Poder Público estranhar ou criminalizar estas relações. Não compete, tampouco, à nossa sociedade fazer censuras ou impor regras, já que estas já estão expressas na legislação.

O fato de Teresa ter sido conduzida, com seus dois filhos pequenos pela Guarda Municipal até a Polícia Federal, revela o despreparo dos agentes e dos órgãos de segurança, mas fundamentalmente estampa a existência de um profundo preconceito contra aqueles que têm uma identidade cultural diversa daquela considerada hegemônica.

Requer-se, diante deste acontecimento, que haja da parte dos órgãos públicos, especialmente daqueles que exercem função peculiar de acompanhar, monitorar e fiscalizar os espaços de convivência entre comerciantes, artesãos, indígenas e outros grupos sociais, tais como as feiras populares, feiras nas vias públicas, praças e no “Brique da Redenção” o mínimo de preparo sobre legislação, relações humanas e respeito às diferenças e diversidades étnicas e culturais. Pede-se, igualmente, que o animalzinho, o bugio das crianças Guarani Mbya, seja devolvido à comunidade Guarani, uma vez que este faz parte daquele meio de vida, ele integra uma rede de relações sociais particular e longe daquele contexto e de seu habitat está exposto ao risco de morte.

Porto Alegre, 01 de maio de 2018.

Conselho Indigenista Missionário-Regional Sul
Conselho Estadual dos Povos Indígenas/RS

[1] SANTOS, C.M.B. O uso dos recursos naturais pelos índios e a observância

da legislação ambiental. 2014. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,o-uso-dos-recursos-naturais- pelos-indios-e-a-observancia-a-legislacao-ambiental,51439.html

[2] BAPTISTA, Fernando Mathias. LIMA, A. (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo, Instituto Socioambiental; Porto Alegre, 2002.

Indígenas e Quilombolas ocupam a frente do Incra-RS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma das frentes da Greve Geral desta sexta aconteceu no Incra-RS. Indígenas e Quilombolas ocuparam a frente do prédio das 8h até o começo da tarde. Luta contra os ataques aos povos ancestrais, representados pela paralisação das titulações de territórios quilombolas, lentidão nos processos de demarcação, CPI do Incra e da Funai, genocídio do povo negro e do povo indígena, contra as reformas da previdência e trabalhista, contra o racismo institucional. Foi uma manhã de atividades conjuntas e de integração entre quilombolas urbanos de Porto Alegre, Mbya Guaranis e Kaigangs. No começo da tarde, partiram em coluna para se juntar à marcha que partiu da Esquina do Zaire (Democrática).

 

Confira depoimentos:

Mulher Negra frente às reformas, por Luany Xavier, Frente Quilombola RS e Kalunga Quilombola. http://bit.ly/MulherNegraINCRA

Por que ocupar o INCRA? Por Patrícia Gonçalves, Frente Quilombola RS e Amigos DaTerra Brasil. http://bit.ly/PorqueOcuparIncra

Por que defender a terra? Por Arial de Souza, vice-cacique Guarani da Aldeia Cantaglo. http://bit.ly/ArielCantagaloINCRA

“Hoje, quilombo vai dizer, aldeia vai dizer, cadeia vai dzier: é nós por nós, hoje”. http://bit.ly/HojeVaiDizerZumbi

Fotos de Douglas Freitas e Karai Rick. Baixe as fotos no Flickr. Todas imagens em copyleft para quem use em prol dos direitos fundamentais dos povos originários e contra os retrocessos das reformas.

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Por uma democracia real, com justiça ambiental

Afinal, o que significa dizer “é pela democracia”?

Não é por Lula, o candidato, é pela democracia. É pelo seu direito de cidadão, assim como pelo direito de todas e todos de decidir os rumos do país, sem a interferência do judiciário na política, menos ainda de um judiciário elitizado, seletivo e desmoralizado. Foi isso o que dissemos na rua e o que tem sido dito pelo grosso dos movimentos que nessa semana tomam as ruas de Porto Alegre e do Brasil em vigília ao julgamento do ex-presidente.

A primeira parte da resposta é mais simples: nos posicionamos radicalmente contrários ao governo que tomou o poder de golpe em 2016, sem legitimação das urnas e sem respaldo popular, a fim de acelerar o projeto neoliberal de venda dos bens naturais brasileiros e de ataque violento a direitos sociais e conquistas históricas do povo, como as leis trabalhistas e de previdência social, além do ataque a políticas públicas voltadas a mulheres, à população negra e à comunidade LGBTTTI. O golpe é misógino, racista e homofóbico, e contra isso nos erguemos.

Acreditamos que o julgamento de hoje, 24 de janeiro, encenação teatral que tem como cena final uma condenação já definida desde muitos PowerPoints atrás, é o prolongamento do golpe que instaurou este projeto neoliberal fascista que, incapaz de vencer uma eleição, toma todas medidas violentas e ilegítimas para se manter no poder e seguir um projeto que não se sustenta por via democrática.

Percebam, porém, o uso da palavra “acelerar” quando falamos no projeto de governo posto em prática por golpistas. Poderíamos ter usado da mesma forma “acentuar” ou “agravar” ou “radicalizar” e todos os termos serviriam, mais ou menos, para tensionar o fato de que este projeto não é completamente novo. Lembremos de nomes como Henrique Meirelles e Joaquim Levy, homens do mercado financeiro responsáveis pelos rumos da economia nacional também nos governos PT.

De maneira mais grave, o desenvolvimentismo da era Lula-Dilma foi trágico para as comunidades tradicionais, fazendo avançar sobre as aldeias indígenas a mineração, o agronegócio e os projetos megalomaníacos de hidrelétricas que mudam os cursos de rios e destroem a fauna e flora local, impedindo modos de vida seculares e expulsando as pessoas da sua terra. A demarcação de terras indígenas foi menor com Dilma do que havia sido com Lula, e com este foi menor do que havia sido com o tucano FHC. Em um Congresso dominado por ruralistas, as instituições desta democracia serviram para esvaziar órgãos de proteção e demarcação e legitimar o avanço do agronegócio. (Veja no link a seguir um interessante comparativo das demarcações nos últimos sete governos: https://pib.socioambiental.org/…/demarcacoes-nos-ultimos-go…)

Da mesma maneira, sofreu a população negra, como tem sofrido historicamente – o golpe não nasceu ontem e nem morre amanhã nem em outubro, independentemente de resultados de uma nova eleição. O Brasil tem a terceira maior população carcerária no mundo (726 mil pessoas trancafiadas), e 64% dela é composta por negros. A titulação de terras quilombolas também não avançou ao longo dos 13 anos e meio de governo progressista: Lula titulou 12 terras em oito anos; Dilma, 16, sendo que 15 de maneira parcial. Hoje, apenas 258 comunidades quilombolas – em 168 terras – contam com o título de propriedade em um total de 762 mil hectares titulados. O número total de comunidades quilombolas no país, cerca de 3 mil, destaca o quanto as políticas públicas estão atrasadas neste quesito. Somemos a isso o extermínio da juventude negra e os constantes despejos e remoções que seguem acontecendo nas periferias das grandes cidades, acentuados desde a realização dos grandes eventos como Copa do Mundo e Olimpíadas, e perceberemos o quanto devemos ponderar antes de defender cegamente e sem questionamento este modelo de democracia. É por isso mesmo que lutamos?

Frágil, facilmente golpeada por homens brancos, esta democracia pela qual tanto se faz barulho agora sempre mostrou ser também extremamente seletiva. A umas e uns, população negra, indígenas, periféricos, ela nunca passou de fábula com rituais que se repetiam a cada dois anos, momento das promessas jamais cumpridas, dos apertos de mão sem compromisso e de palavras sem significado.

Reconhecemos, contudo, que os problemas enfrentados pelos governos petistas são históricos e sistêmicos; nada disso nasceu em 2003, no primeiro mandato de Lula. E reconhecemos também as importantes conquistas que nos permitem avançar na consciência popular, assim como na crítica, desde baixo, como as cotas raciais e sociais nas universidades públicas, que receberam investimentos significativos; o ProUni e o Pronatec; programas de saúde comunitária e que levaram médicos às periferias; o incentivo a pequenos produtores rurais e à agricultura familiar, como o PNAE; a difusão de Pontos de Cultura que resgataram e valorizaram o fazer cultural e a identidade popular; a estruturação do Bolsa Família, que qualificou a vida das famílias que pouco têm; ou ainda programas como o Minha Casa Minha Vida Entidades e o Luz Para Todos, que levaram moradia, luz e energia para grande parte do país; são avanços importantes e, ao olharmos para a composição do nosso Parlamento, extremamente conservador e elitista, tais vitórias são mesmo feitos sem tamanho. Ainda assim nos reservamos o direito de fazer críticas à política de conciliação de classes, incapaz, por sua essência, de reformar as estruturas de um país erguido sobre os esqueletos da escravidão, do colonialismo e do patriarcado.

E aqui vem a parte mais difícil da resposta para a pergunta: por que democracia lutamos afinal?

Certamente por uma outra, em gestação, permanente construção popular, que surja de baixo e com participação real e protagonismo de mulheres e homens trabalhadoras; somente assim poderá suprir as verdadeiras necessidades do povo. Que preze pela vida das comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. Que enfrente o patriarcado intrínseco às nossas instituições. Que pense em um novo modelo de desenvolvimento, um que não priorize a construção centralizada e impositiva de centrais hidrelétricas, a carvão ou nuclear, a produção desenfreada de energia fóssil e de fábricas que incentivam mais e mais um consumo incessante, inútil e insustentável. Um modelo que não despeje rejeitos de minério sobre as cidades, matando pessoas, animais e um rio inteiro. Defendemos a soberania popular sobre os bens comuns, a distribuição das riquezas e o respeito às diversidades de modos de existir, de resistir, de preservar as culturas e a natureza.

Por ora, gritamos contra a farsa de mais um golpe neoliberal e sua agenda de retrocessos, cada vez mais sofisticada, que ataca também outros países irmãos da América Latina (Honduras, Argentina, Paraguai, Haiti), verdadeiro laboratório de perversidade que, no Brasil, tem como episódio atual o julgamento de Lula. Mas o golpe não termina aqui, nesta condenação específica, e nem nossa luta se resume a um julgamento. O avanço segue correndo submerso, independente dos resultados das urnas para o novo presidente. Estamos nas ruas para lutar por uma democracia real, com soberania popular e justiça ambiental, com protagonismo dos territórios, valorização da diversidade e das culturas populares.

CONTRA O RACISMO AMBIENTAL E MAIS UM GOLPE NEOLIBERAL.
DEMOCRATIZAR E ECOLOGIZAR A DEMOCRACIA.

A foto no início da página é um registro da Marcha do dia 23 de janeiro, na Avenida Borges de Medeiros, Porto Alegre, em que o Amigos da Terra Brasil esteve presente.

Não é só Guaíba: histórico de conflitos da CMPC Celulose Riograndense vem do Chile, sua terra natal

Em Guaíba (RS), moradoras e moradores vizinhos à fábrica da CMPC Celulose Riograndense não suportam mais o mau cheiro, o constante barulho e a poeira gerada pela serragem, que deixa imundas as casas e compromete a saúde das pessoas.

Na sexta-feira passada, na Assembleia Legislativa do RS, ocorreu uma “reunião de mediação” entre moradoras e moradores impactados pelas atividades da fábrica, que foi quadruplicada em 2015. O encontro teve a presença de representantes da empresa, do governo local e do Ministério Público, além das pessoas afetadas e de organizações ambientalistas, como a Amigos da Terra Brasil, a AMA (Amigos do Meio Ambiente), a AGAPAN ( Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural) e a APEDEMA (Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente do RS). A FEPAM (Fundação Estadual de Proteção Ambiental) novamente se ausentou, após não se fazer presente na audiência pública do mês anterior que tratou do imbróglio.

As pautas colocadas pelas moradoras e moradores foram várias: excesso de ruídos mesmo à noite, além do limite permitido por lei; poeira e serragem que atingem as casas e prejudicam a saúde; o risco de explosão; o uso de cloro e materiais perigosos, que podem inclusive contaminar as águas do Rio Guaíba e comprometer o abastecimento de Porto Alegre e arredores. No entanto, apenas a primeira pauta foi abordada, e como resultado a CMPC teria que arcar com os custos de uma medição da poluição sonora produzida por sua fábrica, medição a ser realizada por empresa escolhida pelos moradores, em horário e local definidos por eles. No dia 18 de dezembro nova reunião tratará da definição desta medida, já que a empresa não se posicionou no momento.

Os danos à população de Guaíba são muitos; são graves os riscos às pessoas, à natureza e às águas do rio. Para além de Guaíba, as lavouras de eucalipto, matéria-prima da celulose, são verdadeiros desertos verdes, onde não há diversidade nem vida; o uso de agrotóxicos contamina terras vizinhas das plantações, amplificando os impactos para além das cidades onde estão as fábricas; o transporte do material por estradas contribui mais ainda para a poluição e para a deterioração das vias. Porém — e há sempre um porém — , o problema é ainda mais amplo: não é só Guaíba e não é só o Rio Grande do Sul e não é só o Brasil. A CMPC acumula conflitos com populações locais em seu histórico, onde quer que atue. No Chile, terra natal da empresa, houve uma relação íntima com a ditadura de Pinochet; também no Chile, são grave os conflitos em territórios mapuche.

E a empresa chilena está de olho em terras brasileiras, atuando fortemente na financeirização da natureza e na transformação da terra em ativos na bolsa de valores. Coincidentemente (?), após o golpe no Brasil, o atual governo não mede esforços em liberar a venda de terras para estrangeiros.

O problema é sempre maior, e maior deve ser a nossa luta. Estamos de olho. Adiante!

Nem um poço a mais!

Entre 30 de novembro e 1º de dezembro, aconteceu no Espírito Santo o 3º Seminário da campanha anti-petroleira “Nem Um Poço A Mais!”. O Amigos da Terra Brasil participou do evento. Confira abaixo a carta produzida a partir dos debates que ocorreram lá e que acompanhamos atentos!

“Nosso planeta tem que ser uma casa de bem estar para todos. Não queremos perder nossa história”
DONA ROSA
Liderança comunitária anciã de Jacaraípe/ES

“Nos ofereceram uma riqueza que não existe. Todo empobrecimento da humanidade é provocado por esse desenvolvimento que está aí afora. E a gente não se dá conta que está cavando nossa própria sepultura”
SEU BI
Pescador ancião de Conceição da Barra/ES

BARRAR A EXPANSÃO E SUPERAR A CIVILIZAÇÃO PETROLEIRA

Reunidos no 3º. Seminário Nacional, nós, da Campanha “Nem um poço a mais!”, convocamos você e sua família, seus grupos coletivos e comunidades; conclamamos as redes e fóruns da sociedade civil brasileira e mundial para barrarmos a expansão da indústria e da civilização petroleira no Brasil.

De um lado, a violência da indústria petroleira extrativista. As pesquisas sísmicas, a perfuração de novos poços e a reativação de poços maduros, as tecnologias de fracking, o transporte por dutos, navios e caminhões tanques, os terminais de óleo e gás, os portos e refinarias de petróleo devastam os territórios tradicionais e distritos industriais nas periferias urbanas. A exploração offshore privatiza o mar, os manguezais e expulsa as comunidades. Planejam as terras e as águas sem gente. Planejam as gentes sem as terras e as águas. Impossibilitam seus modos de vida, cultura e trabalho. Povos de pesca artesanal, quilombolas, indígenas, ribeirinhos, caiçaras, camponeses, mulheres, negros e jovens são os principais alvos do etnocídio racista, machista e petroleiro.

De outro lado, o consumo inconsequente e mal distribuído nas sociedades. A gasolina, o diesel, óleo combustível, querosene, gás liquefeito, nafta, agrotóxicos, plástico, borracha, tintas, cosméticos e até fármacos. A petrodependência se alastra como epidemia. O uso desenfreado e o descarte dos derivados do petróleo poluem a terra, as nascentes, os rios e lagoas. Contamina os alimentos. A queima do gás e o processo industrial provoca chuva ácida e polui a atmosfera. Esquenta o clima do planeta. E depois inventam malabarismos para desviar o foco da causa do aquecimento global e manter a lógica de rodopios das Conferências e acordos internacionais do clima e da biodiversidade.

As ciências do desenvolvimento e do emprego, a economia verde compensatória, os métodos e métricas dos condicionantes induzem à lógica de rebanho do “quanto mais petróleo melhor: mais crescimento econômico, mais consumo, mais royalties, mais direitos”. Tudo farsa, apoiada em massiva propaganda e financiamentos das empresas e corporações petroleiras. Poluem os territórios mentais com a aceleração e automatização da vida, com a quimicalização, manipulação e o controle das subjetividades. Previna-se e tenha cuidado! A compensação nunca compensa, os condicionantes não condicionam. A expansão petroleira destrói os direitos humanos e da natureza.

No Brasil, na floresta (AC e AM), na foz do Amazonas (PA e AP), na costa do Nordeste (MA/CE/RN), como na região de Suape (PE), em Sergipe e no Recôncavo baiano (BA), no Sapê do Norte e na foz do Rio Doce (ES), na Baixada Fluminense e na Baía de Guanabara (RJ) e ao longo da vasta província do Pré-sal, nas águas profundas do Atlântico Sul (ES/RJ/SP/PR/SC). Na Amazônia, no Cerrado, na Caatinga, na Mata Atlântica, nos manguezais, a expansão petroleira não tem limite! Precisa ser detida.

Nesse aspecto, conclamamos nossos colegas da Via Campesina e demais da Campanha “O petróleo tem que ser nosso.” para uma reflexão conjunta e um diálogo fraterno, a respeito da expansão petroleira. Compartilhamos a crítica contra a privatização da Petrobras e internacionalização do setor no Brasil. A Shell, por exemplo, impera em alguns de nossos territórios tradicionais. Entretanto, nós, da Campanha “Nem um poço a mais!”, defendemos manter o petróleo e o gás no subsolo. Pois, mesmo que “nosso”, se extraído e usado, serão nossos também seus impactos e violações. Nossa será a destruição dos territórios e povos tradicionais, nossa a contaminação das águas e das terras, nossos serão os agrotóxicos e o racismo social e ambiental. A soberania nacional não pode estar acima da soberania dos diferentes povos e territórios brasileiros. E também a Petrobras tem sido, ela mesma, uma multinacional implacável junto a povos indígenas no Equador, na Bolívia bem como na África.

O Governo Temer quer acelerar ainda mais a exploração de petróleo e gás no Brasil. Para isso lança o Plano Decenal de Energia (PDE) centrando 70% dos investimentos em petróleo e gás. Também o Plano REATE, para sacar as últimas gotas dos poços maduros, sem nenhuma reparação para o passivo socioambiental desses poços. Labirintos de poder sob controle dos partidos hegemônicos e das corporações nacionais e internacionais, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) e o Conselho Nacional de Política Energética anunciam uma agenda de leilões até 2022, ofertando novos blocos para exploração, em terra e no mar. A privatização do setor, principalmente na província do pré-sal, atrai as principais petroleiras multinacionais como a Shell, StatOil, Chevron, Repsol, BP, DEA, BHP, Total, Estaleiro Jurong, Porto Rotterdã, além das chinesas.

A velocidade dos negócios atropela qualquer cuidado e prevenção, tornando os licenciamentos cada vez mais ágeis e flexíveis, controlando os relatórios mais criteriosos de técnicos ambientais do próprio IBAMA e demais órgãos. As rápidas audiências públicas são monólogos de tecnocratas, armadilhas longamente tramadas contra os povos e a sociedade civil local. A consulta prévia é um desrespeito às comunidades locais. Tal como nos governos anteriores, no setor de petróleo e gás, a corrupção segue imperando na relação entre empresas e Estado. Ora mais estatizantes e nacionalistas, ora mais liberais e privatistas, o mecanismo desenvolvimentista segue hegemônico, capturando o horizonte futuro e inviabilizando as bases de uma transição. Há que se construir uma terceira via para a Natureza e para sociedade brasileira, pós-capitalista e pós-petroleira.

Não estamos condenados a seguir o caminho suicida da sociedade produtivista e consumista, sem mais tempo e sentido para a vida. A justa distribuição da terra, a regularização dos territórios tradicionais, o cuidado com a Natureza, a defesa da água e do alimento, a crítica do racismo e do machismo. Antes de uma média per capta de consumo energético, precisamos saber: Que usos e modos de vida precisam de mais energia? E de quais energias?

Previna-se, cuide-se, despetrolize-se.

Assine esta Carta enviando email para campanhanemumpocoamais@gmail.com

Para organizações, coletivos, grupos, associações, comunidades, redes, fóruns.

Algumas fotos do evento (para mais, acessa aqui a página do Facebook):

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