“Somos sementes prontas para germinar”

A luta do povo Xokleng ao retomar seu território ancestral, em que agiram bugreiros no passado e onde hoje o Estado ameaça com reintegração de posse 

Há dois anos, Vetchá Teiê Xokleng Konglui morreu com aproximadamente 100 anos. Quando era um bebê de colo, foi expulso com a família do território indígena Xokleng, onde hoje é a Floresta Nacional (Flona), Unidade de Conservação Federal em São Francisco de Paula. O umbigo de Vetchá está enterrado neste solo. 

Kullung Vecthá Teiê | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Meu pai me trouxe aqui quando ainda era mata nativa e mostrou para mim e para os seus netos onde seu umbigo está enterrado” conta Kullung Vetchá Teiê, hoje com 63 anos. “No caminho ele vinha mostrando nossos antepassados. Vinha contando que lá dentro da Flona tem a oca dos nossos parentes, ferramentas, trilhas”.



Vetchá Teiê foi um dos inúmeros Xoklengs que nasceram nesta localidade e tiveram que sair para sobreviver à ação dos bugreiros, bandidos contratados pelo governo e por empresas colonizadoras para caçar os indígenas nas matas e liberar o território para alemães e italianos que chegavam no sul do Brasil. 

No dia 12 de dezembro deste ano, Kullung e Yoko, filhas do seu Vetchá, com suas famílias e parentes apoiadores ingressaram na Floresta Nacional para ficar. “No passado, mataram meus parentes, atropelaram, cortaram as mulheres grávidas, mataram as crianças, cortaram a orelha delas, acabaram com minha nação, aqui neste lugar. Mas graças a Deus sobrou um grupo, que antigamente era botocudo, hoje é Xokleng. Estamos vivos, estamos aqui!”, afirma Kullung. São cerca de 30 pessoas, sendo 14 crianças; as duas filhas de Vetchá e suas famílias; a família de Yoco Camlem, prima de Kullung, filha de Voia Camlem, que é irmão de Vetchá Teiê; a família de Woie Kriri Sobrinho Patte; e Merong Kamakã, guerreiro Patoxá Hã-hã-hãe que é solidário à luta dos parentes. Entre as crianças, está o tataraneto de Vetchá. Começava ali a retomada histórica do território ancestral do povo Xokleng, no Rio Grande do Sul. Uma ação direta, puxada por mulheres, de reparação histórica por parte dos Xoklengs contra as violências do Estado e seus ramos opressores: a justiça, a polícia, as milícias (como os bugreiros).  

Os anciãos Xonkleng Vetchá Teiê e Voia Camlem, nascidos na região da Flona e pais das mulheres que hoje promovem a retomada | Fotos: Arquivo Pessoal Kullung Vetchá Teiê
Entre as crianças, está o tataraneto de Vetchá | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

REINTEGRAÇÃO DE POSSE

Nos últimos dias, os descendentes do seu Vetchá ocuparam com barracos de lona uma pequena parte da Floresta Nacional de São Francisco de Paula, criada em 1968 e desde 2004 administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A área ocupada está na lateral direita da entrada do parque, perto da RS-484, solo coberto por plantação de Pinus.

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Após alguns dias de convívio pacífico com os funcionários da Flona e de tentativas de diálogo, em conjunto com o Ministério Público Federal, os indígenas Xoklengs foram surpreendidos pelas ações da coordenação da Unidade de Conservação, hoje chefiada por Edenice Brandão Ávila de Souza. Segundo os indígenas, a luz usada para carregar os celulares, na guarita de entrada da Flona, foi cortada. Nesta terça (29), a coordenação fez uma postagem com o título “combatendo Fake News”, em que informa sobre a distribuição de água, de luz e de internet. Na postagem, diz que a luz estaria disponível das 7h às 19h, enquanto houvesse vigilante na guarita. Na segunda-feira, enquanto estávamos lá, das 7h da manhã às 14h, foram poucos os momentos em que avistamos algum funcionário presente na entrada. 

Registro dos ancestrais de Vetchá Teiê e de Voia Camlem, indígenas nascidos na terra onde hoje é a Retomada Xokleng | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Em outro movimento não esperado pelos indígenas e até pelo Ministério Público, a coordenação da Flona solicitou à Justiça Federal de Caxias do Sul a reintegração de posse da área. No dia 23 de dezembro, véspera do Natal, a juíza federal plantonista, Fernanda Cusin Pertile, emitiu mandado favorável à retirada dos indígenas. Foi um final de semana de tensão.

“Nós queremos ser ouvidos, ter uma audiência com ICMBio, com Ministério Público, com a juíza”, reivindica Woie Kriri Sobrinho Patté, uma das lideranças da retomada Xokleng. “Nos ouçam porque estamos aqui! É fácil estar no escritório, atrás do computador e mandar uma reintegração de posse. Existem leis internacionais que o governo brasileiro aderiu [Conveção 169]. A Organização Internacional do Trabalho (OIT)  diz claramente que precisamos ser ouvidos”. 

Woie Kriri Sobrinho Patté fala sobre a situação na retomada | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

A ação de reintegração tinha como prazo a última segunda, dia 28, no entanto até o momento não ocorreu. Nos dias anteriores, a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) tentaram reverter a ação. O MPF entrou com agravo de instrumento, mas este foi indeferido pelo plantão do Tribunal Regional Federal da 4a Região. A DPU entrou com reclamação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) aludindo à decisão do Ministro Edson Fachin de não realização de reintegração de posse em terras indígenas durante a pandemia de Coronavírus para evitar que a doença se alastre. No dia 26, a Polícia Federal de Caxias do Sul se manifestou recomendando o adiamento da ação justamente devido à pandemia. 

A reintegração de posse não ocorreu até o momento, embora o STF não tenha dado nenhum retorno à reclamação da DPU até a publicação desta matéria.

“Eu não vou sair daqui. Vou ficar aqui. Hoje, se a Polícia Federal vir, eu deito no chão e podem me matar. Só saio daqui dentro do caixão”, bateu o pé a senhora Kollung.  

No dia 24 de dezembro, o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) se manifestou em nota recomendando a suspensão da reintegração de posse e o encaminhamento de uma solução negociada.  Desde o dia 23, os Xoklengs Konglui já receberam a visita da Polícia Federal, da Polícia Militar e do Oficial de Justiça Federal.  “Gostaria que o governo nos ouvisse, cara a cara, mas por enquanto só vejo ameaças contra nós. O que o governo está pensando? Nós somos raiz, nós somos donos desta terra”, insiste Kollung.     

No entanto, para além das intervenções do governo, também chegaram visitas de solidariedade. Nós da Amigos da Terra Brasil, articulado com o Conselho Indigenista Missionário, estivemos na segunda-feira no território retomado. Prontos para cobrir qualquer violação e produzir este conteúdo. Também subimos a serra com a solidariedade da Frente Quilombola RS. O Quilombo dos Machado, localizado na zona norte de Porto Alegre, enviaram alimentos e produtos de limpeza equivalentes há cerca de 5 cestas básicas. Produtos arrecadados através de doações para o Quilombo dos Machados. A retomada, também, tem recebido doações diretamente, através de articulação pelas redes sociais e pontos de coleta em Porto Alegre, Lajeado e São Francisco de Paula.

Os Xokleng Konglui enfrentam hoje esta possibilidade de reintegração de posse, que por trás, além do preconceito e violência histórica contra os povos indígenas, traz também os interesses da iniciativa privada. 

HISTÓRIA E FUTURO DOS XOKLENG NA FLONA

Neste registro, enviado por Kullung, Voia Camlem, Vetcha Teiê e Compacam, todos nascidos nesta região, voltam ao local e conversam sobre suas famílias. Kullung não soube informar a data exata desta conversa | Foto: Arquivo pessoal de Kullung Vectha Teie

A saída por sobrevivência da família de Vetchá Teiê, da família de Voia Camlem e de Compacam do território onde, hoje, é a Floresta Nacional de São Francisco de Paula não é exceção, tanto na região da serra gaúcha, como em todos os interiores deste Brasil. Em nota de solidariedade divulgada no dia 18 de dezembro pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o processo violento de colonização é destacado: “Por séculos os Xokleng foram vítimas de um brutal processo de colonização que quase levou ao completo desaparecimento do povo, que tradicionalmente ocupavam os territórios que estavam localizados no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná”. Desde a chegada dos portugueses em 1500, os povos originários sofrem com a violência, seja a direta, através das armas, seja através das doenças. No Rio Grande do Sul, muitas terras em que viviam indígenas (Kaigangs, Xoklengs, Minuanos, Charruas, Guaranis) foram doadas pelo Estado para os colonos italianos e alemães que recém chegavam. Os europeus que chegavam no nosso país,  mesmo que pobres, ganharam terras, enquanto negros alforriados foram jogados nas ruas sem nada, enquanto indígenas eram caçados e desterritorializados. Esta diferença histórica na territorialização do nosso país não pode ser perdida de vista nunca na interpretação da propriedade de imóveis hoje e na formação da sociedade como um todo.

 

No Rio Grande do Sul, os bandidos responsáveis por expulsar ou caçar os indígenas, especialmente os Xoklengs, ficaram conhecidos como bugreiros. Eram milícias financiadas pelo governo ou por empresas estrangeiras que preparavam o terreno para os colonos que chegavam.
Woie relembra, com indignação: “a saída do povo Xokleng deste território foi forçada brutalmente. Estes homens pegavam as mulheres grávidas, abriam a barriga da mãe, tiravam a criança e jogavam para cima, riam, diziam que parecia um macaquinho. Quando a criança caia, paravam ela com a ponta do facão, da foice. Matavam estas crianças. Foi muito triste todas estas violações. Então nós não saímos daqui porque a terra não prestava, não. Sair do território era questão de sobrevivência. Fomos para o alto vale de Santa Catarina, onde também fomos massacrados pelo Dr. Blumenau. Hoje muitos conhecem a cidade pela Oktoberfest, mal sabem que fazem festa em cima do cemitério dos nossos parentes, em cima de sangue indígena Xokleng”. Blumenau é a terra onde atuou um dos mais famosos assassinos, o Martinho Bugreiro, que dizia que não matou 100 indígenas, mas sim matou mais de mil. Junto com o seu bando, atuava como um “Esquadrão da morte” de indígenas. O povo Xokleng foi um dos principais alvos dos bugreiros, chegando quase à extinção. Hoje poucas famílias restam ou se identificam com este povo. Os que sobreviveram, sofrem com a falta de território ou vivem em territórios de outros povos, como dos Kaingangs.

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Já ouvi que ‘tivemos a pacificação do povo Xokleng’. Nada disso! Nós estávamos em paz.  Quem estava nos matando, nos aniquilando era o branco. Então eles que foram os pacificados”, corrige Woie. Para ele, o Estado concedeu aos alemães e aos italianos terras que já tinham donos. “Doaram território para ter progresso. Mas que progresso? Exterminar um povo para dar o sustento a outros? Progresso plantando soja? Toda plantação, soja, milho, é vendido para fora hoje. Progresso para 4, 5 famílias? Este tal de progresso matou muitos índios do Brasil. Então, não foi progresso não, foi extermínio!”

As retomadas de terras, que acontecem no sul do país desde a década de 1970, são uma forma de tentar reparar o extermínio não só da vida, mas do conhecimento indígena. “A terra é nossa mãe, toda medicina é da Natureza. Então nós queremos elas de volta”, explica Woie. Kollung conta como se deu a decisão de voltarem a São Francisco de Paula: “Eu disse para mim mesmo: antes do meu tio falecer, irmão do meu pai, eu vou me levantar e vou buscar aquelas terras para minha nação. Mostrei este território para eles como meu pai mostrou para mim. Daqui a pouco eu vou falecer, minha irmã também vai embora desta terra. Mas minha nação agora já conhece seu território. Hoje, estou aqui com o tataraneto do seu Vetchá”. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“A história é viva”, diz Woie. “Cada Xokleng que está aqui é uma história viva que voltou”.
 

Segundo Woie, os indígenas entraram com com pedido na FUNAI em 2011 para reconhecimento da área da Flona de São Francisco de Paula como território Xokleng, mas o processo está parado na instituição desde 2015. Com a iminência da entrega da Unidade de Conservação à Iniciativa Privada, os Xoklengs decidiram entrar na área no último 12 de dezembro. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

PRIVATIZAÇÃO 

Floresta Nacional de São Francisco de Paula (Flona) faz parte do município de São Francisco de Paula (RS) a 2h 30 min de Porto Alegre. A área é gerida pelo ICMBio e está em vias de ser concedida à iniciativa privada.

A Floresta Nacional de São Francisco de Paula se chama assim desde 1968. A área foi delimitada em 1945, quando o Instituto Nacional do Pinho (INP) criou um parque para experimento de plantação de árvores para extração de madeira. Segundo Vanesa Arduin, historiadora que pesquisou o tema no seu trabalho de conclusão na UFRGS, chamado “Floresta ‘Melhorada’: Uma análise sobre as políticas de Reflorestamento no Rio Grande do Sul (1934-1965), a primeira ação na região por parte do Instituto foi o corte de araucárias nativas e o estudo do plantio desta árvore. “Depois de vinte anos estudando o monocultivo da Araucária, viram que as condições não favoreciam seu principal interesse que era a produção da madeira em larga escala”, explica Arduin. Em 1968, durante a Ditadura Militar, o governo extingue o INP e funda o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (INDF), que renomeia o parque administrado pelo INP para Floresta Nacional de São Francisco de Paula. O INDF é criado com a missão de desenvolver intensos programas de incentivo fiscal para os produtores que quisessem investir no reflorestamento. “Hoje São Francisco de Paula é o município com segunda maior área dedicada ao plantio de árvores e o maior produtor de Pinus do estado, árvore escolhida nas serras de São Paulo ao Rio Grande do Sul, pelas condições de plantio e por sua celulose ser de fibra longa, a mesma da Araucária, utilizada para fabricação de papéis mais resistentes”, comenta a historiadora Vanesa Arduin.   

Diversos caminhões como este, carregados de madeira para venda, passaram em frente à retomada na manhã de segunda | Foto: Alass Derivas

A Flona possui 1617 hectares, sendo que, segundo o site do ICMBio, 600 deles são de árvores plantadas para comercialização de madeira (araucária, eucalipto e pinus) em cima de campos nativos, o que representa 40% da área total. Os 900 restantes são de mata nativa. Desde 2004, a Flona é gerida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 

A Floresta Nacional está em vias de ser concedida à iniciativa privada. Em 28 de maio de 2020, o Diário Oficial da União publicou o decreto 10.381, que qualifica a Floresta Nacional de Canela e a de São Francisco de Paula, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República – PPI e incluídos no Programa Nacional de Desestatização – PND, “para fins de concessão da prestação dos serviços públicos de apoio à visitação, à conservação, à proteção e à gestão das unidades.” 

No dia 11 de setembro de 2020, foi realizada uma audiência pública na Câmara de Vereadores de São Francisco de Paula para tratar da licitação da concessão dos serviços da Flona. A audiência está disponível na íntegra no canal do ICMBio no Youtube

Na divulgação da audiência pública, o site do ICMBio traz diversos argumentos defendendo a concessão à iniciativa privada, entre eles: “as concessões atraem mais visitação e contribuem para o desenvolvimento socioeconômico em todo o entorno, além de gerar emprego e renda”. A inspiração é o modelo de concessões de parques dos Estados Unidos da América

Até o momento, nenhuma empresa ganhou a licitação. Ou seja, a negociação está aberta. 

E os indígenas Xoklengs entraram na disputa:
“Estamos prontos para lutar e morrer pelo nosso território. Esta terra é uma herança nossa e herança não se vende, não se troca, não se dá”, defende Woie Patté. “O grande espírito nos chamou e nós estamos atendendo. Tem várias coisas que o branco não entende, como isso, o que é esse chamado. Ninguém é obrigado a entender, mas é preciso respeitar”. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Os indígenas Xoklengs estão acampados na região de entrada do Floresta, onde hoje é uma plantação de Pinus. Estas árvores são consideradas pelo governo e por muitas empresas como reflorestamento. Nem nós, da Amigos da Terra Brasil, nem os indígenas consideramos que monocultura de árvores seja floresta. A historiadora Vanesa Arduin lembra que o que muitos chamam de reflorestamento era plantio para a explorar madeira. “Hoje se chama Unidade de Conservação, mas não se fundou pra conservação da biodiversidade e sim para conservar a exploração a longo prazo”, destaca. São 40% de território com árvores plantadas, que inclusive precisam de manejo. O que será feito com esta área se a Floresta Nacional for realmente concedida à iniciativa privada?       

Apesar de estarem há poucos dias na área, as mulheres Xoklengs já buscam recuperar a flora nativa da região e cultivar sua medicina tradicional: “Nós cuidamos das matas, nós somos as matas. Da mata vem raízes, alimento, a taquara. Aqui não tem taquara, não tem mel de abelha, não tem fruta nem raiz nativa, a nossa medicina tradicional, que tinha aqui, não tem mais, só tem pinus de reflorestamento. Não se vê nem um pé de uma nativa para alegrar a gente, só tem esse pinus aí, plantado, para dar riqueza para o governo. Mas nós precisamos da mata, de onde vem nosso alimento. Acabou a mata, mas nós somos a nativa desta terra. Os nativos Xokleng estão aqui”

Kullung resguarda suas mudas de guiné | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Yoko Camlem é filha de Voia Camlem, prima de Kollung, sobrinha do Vetchá Teiê. Veio, com seu núcleo familiar, de Santa Catarina para se somar na luta. Trouxe consigo, mudas de bananeira e de guiné. “Eu trouxe para que possa servir a toda comunidade que venha morar neste lugar, pensando no futuro, pensando nos meus netos, bisnetos, para que eles possam em breve utilizar destas plantas”. 

Yoko Camlem veio, com seu núcleo familiar, de Santa Catarina para se somar na luta | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Woie conta que os indígenas chegaram na retomada no dia 12, de corpo presente, mas sempre estiveram espiritualmente. “Então precisamos fazer a ocupação, a autodemarcação, com nosso corpo, para que sejamos ouvidos. A lei possui uma balança, mas porque quando é para o nosso lado o peso nunca vale?

Um exemplo de que a balança não é igual é a possibilidade do Supremo Tribunal Federal adotar, nos julgamentos, a tese do Marco Temporal. O parecer 001/2017 da Advocacia geral da União dita que povos indígenas só têm direito a reivindicar terras que já estavam ocupadas em 5 de outubro de 1988, dia em que a Constituição foi promulgada. Ou seja, todas retomadas que aconteceram depois de 1988 seriam despejadas. Até parece que indígenas não seguiram sendo expulsos de suas terras a partir de 1988, como é o caso dos Guaranis Kaiowás vítimas dos latifundiários no Centro-oeste; dos Yanomamis, atingidos pelo garimpo ilegal na Amazônia; dos Krenaks, com seus rios poluídos pela lama da mineradora multinacional Vale do Rio Doce. A votação do Marco Temporal foi adiada duas vezes este ano e ainda não tem nova data. Ela inviabilizou a demarcação de pelo menos 27 terras indígenas, que tiveram seus processos devolvidos do Ministério da Justiça e Segurança Pública para a Fundação Nacional do Índio (Funai). Além disso, outras 310 terras indígenas estão com processos de demarcação estagnados, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O tema chegou ao STF com o julgamento envolvendo justamente o território Ibirama Laklanõ, do povo Xokleng, que é alvo de uma ação de reintegração de posse – com base no “marco temporal” – movida pelo Estado de Santa Catarina. Há dois anos que indígenas e apoiadores estão mobilizados lutando pela não aprovação do Marco Temporal.

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Colocamos nosso corpo para tentar fazer com que esta balança da Justiça seja de igual para igual”, insiste Woie. Fizemos esta retomada neste momento porque não tivemos resposta da Funai e agora vem essa notícia da privatização. Não queremos desculpas, queremos a homologação, a demarcação”. Woie alega que não quer que seu povo seja apenas artigo de museu, história contada pelos brancos.“É fácil colocar turistas na sede e falar que era um território indígena, mostrar no museu. Mas aí quando chegamos aqui no parque fecham a porta na nossa cara, pedem reintegração de posse. Nossas próximas gerações precisam desta terra”.

Jovem liderança, estudante universitário, Woie Kriri Sobrinho Patté é consciente que a luta que seu povo está travando é arriscada. Sabe notícias de outros povos, sabe o país que vive, sabe a violência incrustada no nosso território. Por isso, faz um apelo. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Quero dizer a sociedade que ouçam nosso chamado, ouçam nosso clamor de sobrevivência. Que façam este governo nos ouvir e devolver para nós o que é nosso. Os governos internacionais precisam pressionar a respeitarem o que é nosso. Existem tratados internacionais que precisam ser válidos. A Constituição Federal precisa ser respeitada, precisam demarcar a nossas terras. Estes países europeus que ocuparam o Brasil precisam reparar nossas terras roubadas. A ONU precisa se posicionar. Porque nós não sabemos mais para onde correr. Porque quando uma liderança se levanta para defender seu povo, ele é criminalizado, processado. Processado é pouco, quando não é esperado em uma esquina, numa beira de estrada e morto, assassinado, e nunca acontece nada com quem mata. Foi acidente, atropelamento. Só lideranças são atropeladas? Hoje, sou eu que estou falando. Não tenho medo de morrer, tenho medo de perder nosso território. Pode me caçar, pode me mandar ameaças. Eu tenho dó dessas pessoas que não respeitam o seu próximo. Sou uma liderança Xokleng e vou lutar pelo povo Xokleng. Vou lutar para que a futura geração do povo Xokleng continue viva. O que eles não sabem é que quando matam uma liderança, tem várias outras para assumir o lugar. Podem derrubar um homem, mas há mil homens de pé para ocupar este espaço. Somos a natureza. Assim como uma árvore dá sua semente, nós damos a nossa, que já estão prontas para germinar”. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Ao lado de guerreiros como Woie e Merong, as filhas de Vetchá Teiê e Voio Camlem, as duas Yoko e Kullung, colocam seus corpos por uma real conservação da mata nativa, o que, como disse Kulung, é o que ela se considera, uma mata nativa. Colocando seus corpos, reparam a história, reconfigurando o território injusto deste país e também semeando para todos um mundo em que seja possível respirar e ser livre. 

Veja mais fotos da retomada: 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Aldeias Guarani do RS recebem 320 cestas de insumos que respeitam sua cultura

No Rio Grande do Sul (RS), uma articulação entre Amigos da Terra Brasil (ATBr), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Frente Quilombola do RS (FQRS), Associação de Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários (AEPIM), Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (COOTAP) e o Laboratório de Arqueologia e Etnologia da UFRGS (LAE-UFRGS) garantiu a entrega de cerca de 320 cestas básicas feitas especificamente para oito territórios Guarani do Estado, sendo sete aldeias – Tekoá Yy Rupá (Terra de Areia), Tekoá Pekuruty e Guavyju (Charqueadas), Tekoá Nhundy (Estiva), Tekoá Ka’agüy Porã (Maquiné), Tekoá Jatai’Ty (Cantagalo), Tekoá Yjere (Ponta do Arado) e Tekoá Pindo Poty (Lami) – mais o Centro de Referência Afroindígena do RS, que fica no centro de Porto Alegre.

Os produtos das cestas são agroecológicos e foram selecionados em respeito à cultura Guarani. Cada cesta contém: erva mate, farinha de milho, farinha de trigo, arroz, canjica, fumo, cebola, aipim, batata doce e batata inglesa. Na foto, entrega na aldeia Tekoá Nhundy (Estiva).

Esse ano chegou o momento em que essa Terra de Nhanderu, o criador para os Guarani, reagiu à destruição consumista do homem. A reação? Uma pandemia. E essa prejudicou bastante gente, sabemos. Inclusive aqueles e aquelas que, por sua cultura, vivem de forma mais harmoniosa, conectada e com cuidado e respeito à Terra. A principal fonte de renda dos indígenas Guarani é o artesanato que vendem em feiras e centros urbanos, e, por conta disso, o isolamento interferiu na possibilidade de muitos adquirirem seus mantimentos.

O que não faltou diante de tanta gente prejudicada pela pandemia foram também pessoas dispostas a ajudar através de campanhas de solidariedade, organizações comunitárias e orgânicas. No Rio Grande do Sul (RS), uma articulação entre Amigos da Terra Brasil (ATBr), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Frente Quilombola do RS (FQRS), Associação de  Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários (AEPIM), Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (COOTAP) e o Laboratório de Arqueologia e Etnologia da UFRGS (LAE-UFRGS) garantiu a entrega de cerca de 320 cestas básicas para 7 aldeias Guarani (as Tekoás) do Estado.

O diferencial das cestas é que não são alimentos produzidos pelo sistema agroindustrial global e pelo agronegócio, os mesmos que destroem nossas florestas e as culturas dos povos que ali vivem. Tanto os alimentos e produtos presentes em cada cesta quanto quem os produziu e de que forma foram considerações levadas em conta para realizar a ação de solidariedade aos Guarani. Tudo que estava na cesta foi produzido em moldes agroecológicos e disponibilizado pela COOTAP, e cada insumo representa alguma parte da história e da cultura Guarani: a erva mate, o fumo, as farinhas de milho e de trigo, o arroz, a canjica, a mandioca, a cebola e as batatas. 

Esta ação teve a contribuição de Global Greengrants Fund, que apoia as organizações e movimentos aliadas aos grupos-membros da Federação Amigos da Terra Internacional.

A história do cerco à Amazônia

Visitamos a região do Tapajós, no Pará, junto à Terra de Direitos e ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais dos municípios de Santarém e de Alenquer, para ouvir as histórias das resistências dos povos frente ao cerco imposto pelo capital à Amazônia. E o cenário, que já era assustador, piora no atual contexto de pandemia do Covid-19: desmatadores, grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais não estão preocupados em fazer quarentena; pelo contrário, querem aproveitar a paralisia do governo para avançar ainda mais sobre os territórios. Vale acrescentar que, ao que indicam estudos (aqui, aqui e aqui, este último em espanhol), a expansão do agronegócio e a consequente destruição ambiental está por trás do avanço de diversas pandemias ao redor do mundo, o coronavírus entre elas.

*Nota: este conteúdo foi produzido no final de 2019 e início de 2020,
antes da pandemia do coronavírus tomar a proporção que tomou.

// Vídeo 1 – Grilagem de terras: como territórios amazônicos vão sendo transformados em campos de cultivo

// Vídeo 2 – Soja: Amazônia como fronteira agrícola

// Vídeo 3 – Portos: grandes empreendimentos ameaçam os modos de vida tradicionais amazônicos

// Vídeo 4 (final) – Ameaças, resistência e esperança

A engrenagem do capital esmaga a Amazônia, seus povos, a floresta e seus rios: de um lado, a expansão da soja e da pecuária, unidas à derrubada e comercialização ilegal de madeiras e às queimadas criminosas que “limpam a terra” para o agronegócio; de outro, a mineração e os megaprojetos de infraestrutura necessários ao escoamento de commodities e entrega dos bens comuns brasileiros, como portos e ferrovias. Todos de alto impacto às comunidades locais. Em meio a isso, sob grande pressão e convivendo com ameaças constantes, povos em pé e em luta, ainda firmes. São essas histórias de resistências que contaremos a seguir.

Primeiro, porém, uma breve introdução se faz necessária, para que compreendamos o contexto e a complexidade dessas lutas. A introdução está dividida em quatro partes: a primeira delas segue este parágrafo; as outras podem ser acessas pelos links que aparecem abaixo do texto. E, depois dos links, aparecem pequenos resumos de cada história que contaremos – que podem ser acessadas com um clique em seu título.

Uma breve introdução, dividida em quatro partes, e depois as histórias

1. Contexto
Não à toa as queimadas na Amazônia em 2019 chamaram a atenção do mundo: de janeiro a agosto, na comparação com o mesmo período dos últimos três anos, a alta em focos de queimada foi de 34%; houve 55% mais desmatamento na região; e, ainda assim, 11% mais chuvas, o que demonstra que a causa do fogo não foi o período seco, mas sim a ação humana.

Infelizmente, nenhuma surpresa: em agosto do ano passado, em referência ao Dia do Fogo e ao aumento das queimadas, já dizíamos:

– A mão manchada de sangue que acende a chama é a mão do capital: é à política neoliberal colonialista, tão docilmente acatada pelo governo Bolsonaro, que creditamos o ataque aos povos das florestas e a seus territórios.

Antes ainda, à época da campanha eleitoral de 2018, a completa ausência de políticas voltadas ao meio ambiente já alertava para o que estava por vir (por exemplo, a expressão “meio ambiente” aparecia apenas uma vez no programa de governo do então candidato Jair Bolsonaro). Bom… que representa um imenso retrocesso para a pauta ambiental e agrária no Brasil ele próprio deixou bastante nítido mais tarde, quando disse [aos ruralistas, é claro] – Esse governo é de vocês.

O cerco capitalista se expressa em diferentes formas e estágios: desde o “ciclo da grilagem”, que consiste em invasão de território, extração ilegal de madeira, queimadas para “limpar a terra”, introdução de monoculturas e pecuária; até o consequente uso de agrotóxicos que contaminam áreas vizinhas e fontes de água; e o despejo e expulsão das famílias agricultoras, comunidades tradicionais, quilombolas e povos originários para as periferias das cidades, onde passarão a compor a classe empobrecida da sociedade. Quem decide ficar e lutar por seus territórios e pela natureza, enfrenta ameaças e atentados contra a vida.
Os desenhos são de Paulo H. Lange.

A espreita capitalista sobre a Amazônia, sabemos bem, remete a tempos pré-Bolsonaro. Contudo, é da mesma forma óbvio o agravamento da situação hoje: ela é considerada – ela, a floresta – um imenso estoque de terras, amplo espaço disponível para a expansão do agronegócio que já consumiu quase que a totalidade de outros biomas do país (o cerrado, o pantanal, o pampa). E os números comprovam o efeito nefasto gerado pelas políticas do atual governo brasileiro: pela primeira vez na contagem histórica, que começou em 2002, foi verificado aumento de queimadas em todos os biomas no país – ao todo, a área devastada em 2019 foi 86% maior que no ano anterior. No caso do Pantanal, bioma mais atingido, o número é alarmante: a alta nas queimadas é de 573%. Os dados são do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o qual Bolsonaro – não por acaso – tenta insistentemente deslegitimar e controlar.

Ora, também não é acaso o atual governo denominar a Floresta Amazônica uma “região improdutiva e deserta”. É esse o olhar e a compreensão neoliberal sobre a natureza: um negócio a ser explorado, custe o que custar – inclusive vidas.

Nos links abaixo, continua o texto introdutório. Clique em cada um para seguir lendo:

2. As respostas de Bolsonaro às queimadas são em nome do mercado e dos grileiros do agronegócio
3. O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
4. Mas afinal, quem realmente está por trás desses crimes?

E, abaixo, leia as histórias de resistência dos povos da Amazônia ao cerco capitalista contra seus territórios, seus corpos, a floresta e os rios:

// O CERCO, DESENHADO EM UM MAPA
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STM), Manoel Edivaldo Santos Matos, o Peixe, explica o cerco do capital à Amazônia a partir de um mapa da região do Tapajós. Não à toa o Plano Diretor de Santarém, cidade que fica à beira do encontro dos Rio Tapajós e Amazonas, dos mais importantes canais d’água da Amazônia, foi alterado sob medida para a expansão do capital na região – e a mudança se deu ao apagar das luzes de 2018, na última sessão legislativa do ano.

// UM PORTO ENTALADO NA BOCA DO RIO
Projetos de construção de portos no Rio Maicá colocam em risco o modo de vida de 12 comunidades quilombolas, além de povos originários e comunidades pesqueiras. Um dos projetos, que estava mais avançado, teve o processo de licenciamento suspenso na Justiça e a empresa deverá realizar uma consulta prévia, livre e informada junto às comunidades impactadas, em acordo com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

// ANTES DO PORTO CHEGAR (SE CHEGAR), CHEGARAM JÁ OS IMPACTOS
É assim em todos megaempreendimentos e não está sendo diferente no Maicá: mesmo antes de um projeto se concretizar, seus danos às comunidades locais já podem ser sentidos – desde questões imateriais, como a insegurança por nada se saber do futuro (se as famílias serão removidas ou não, e para onde, ou a tristeza de ver ameaçados seus territórios e modos de vida); até questões bem concretas, como a ameaça de vizinhos e a grilagem de terras.

// POSTO DE SAÚDE E ESCOLA QUILOMBOLA: A LUTA MUDA A VIDA
O processo de titulação da comunidade do Tiningu, após longa demora, está quase pronto: em outubro de 2019, o Incra reconheceu a demarcação da área e, agora, falta apenas a assinatura presidencial – o que, em meio a discursos de ódio e corte de recurso para a pauta quilombola, não é “apenas”. Mas a comunidade do Tiningu tem quase 200 anos, e sabe ter calma.

// CURUAÚNA: DE UM LADO, A SOJA. DO OUTRO, A SOJA TAMBÉM
Nos arredores de Santarém, os campos de soja se estendem até o horizonte se perder de vista. Escolas são cercadas pelas plantações, nas quais há alto uso de agrotóxicos sem que se respeite o horário das aulas; a prática do “puxadinho” alonga os campos de soja pouco a pouco, todo ano, por meio de queimadas na beira dos terrenos; comunidades e culturas inteiras vão sumindo, pois as famílias, cansadas, abandonam suas casas e vidas, indo morar na periferia das cidades. Não há mesmo convivência possível com o avanço destrutivo do capitalismo.

// O ROSTO ESTAMPADO NA CAMISETA
Os assassinatos de Maria do Espírito Santo e Zé Cláudio, defensora e defensor dos direitos dos povos, e o caminho cruzado com Maria Ivete, ex-presidenta do STTR-STM. Ela conviveu por dez anos com escolta policial, parte do Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos do governo federal.

// A NOITE DAS MOTOS
Em Alenquer, município vizinho a Santarém, dois pistoleiros montaram uma emboscada para assassinar José Marques. Ele é um dos líderes de uma comunidade de pequenas e pequenos agricultores da região, e o local está em disputa após grilagem de terras com o uso de sobreposição de áreas no CAR (Cadastro Ambiental Rural). Sem qualquer vistoria dos órgãos públicos, as 86 famílias que viviam e trabalhavam ali há cerca de 13 anos foram despejadas pela Justiça, em conluio com os interesses privados dos grileiros.

// SE ORGANIZAR, TODO MUNDO LUTA
O enfrentamento do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Alenquer contra o avanço do agronegócio: as lideranças sofrem constantes ameaças mas, ainda assim, com muita organização e luta – estradas fechadas, pressão a prefeitos, cerco a locais de votação -, direitos são garantidos.

O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza

Foi o Acre o primeiro estado brasileiro a implementar políticas de financeirização da natureza. O que significa isso? Significa que o estado foi uma espécie de laboratório para medidas que transformam a natureza – as árvores, os rios e a terra, tudo isso que não podemos (ou não deveríamos) valorar – em algo quantificável, transformado em produto e, para além disso, em ativos em bolsas de valores que servirão como moeda de troca e de valorização de alguma empresa depois. Daí decorre um mar de problemas:

Essa é a parte 3 da introdução da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos voltando à página central ou pelos links abaixo:

Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: [você está aqui] O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

Veja também: O cerco explicado em um mapa

Primeiro, a privatização das terras: as empresas precisam ter áreas para a “captura de carbono”; ou seja, áreas verdes para “compensar” a poluição que geram no mundo. Assim, grandes indústrias poluidoras, como as petroleiras, as mineradoras e as empresas da aviação poderiam seguir suas atividades normalmente, com o mesmo ou até com maiores níveis de poluição, contanto que tivessem, em alguma parte do mundo, sua “fazenda de captura de carbono”.

Leia aqui a publicação “10 alertas sobre REDD para as comunidades”, preparada pela WRM (Movimento Mundial Pelas Florestas Tropicais, na sigla em português).

Aí outro problema: a própria “compensação” é, em si, uma violação de direitos. Para seguir poluindo, as empresas se adonam de um território que não é seu, em negociatas que ou não envolvem as comunidades ou são baseadas em mentiras, com promessas de compensações financeiras jamais concretizadas. Os povos originários, as comunidades tradicionais e as trabalhadoras e trabalhadores rurais, que historicamente viviam e se sustentavam da floresta, em equilíbrio, veem-se proibidos de manejar a mata a seu modo, com seus jeitos e culturas. Lhes é roubado o território e, com isso, suas existências são postas em risco: as famílias acabam sendo empurradas para as periferias das cidades, tornando-se parte da camada empobrecida da população. A riqueza fica atrás, na terra que não mais as pertence. Ora, resta-nos a dúvida: quem compensa a “compensação”?

Assim que a situação vai se complexificando: para “compensar” a poluição que emitem, as empresas violam direitos e proíbem os modos de vida tradicionais, em especial no Sul Global, e lucram também com isso ao transformar esses territórios em ativos financeiros; em resumo, quanto mais direitos violarem, mais poderão poluir e expandir seus ganhos: é lucro para poluir e para destruir e lucro pra “compensar” depois.

Veja abaixo, com mais detalhes, o “ganha-ganha” das empresas por trás das queimadas da Amazônia, em material produzido pela Amigos da Terra Brasil junto à regional do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) no Acre:

– Como o agronegócio e o mercado financeiro lucram com a devastação da maior floresta tropical do mundo

– Quanto valem a preservação e as falsas soluções do capitalismo “verde”, e quem compensa as compensações?

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Leia também a parte 2 da introdução:
Quem é favorecido pelas respostas de Bolsonaro às queimadas?

Ou avance para a parte final da introdução:
Parte 4: Afinal, quem está por trás desses crimes?

Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

Ora, e muito falamos sobre o Mercado, as Empresas, a Indústria, Os Ruralistas. Porém, essas entidades transcendentais têm nomes, fazem parte do nosso mundo, podemos e devemos citá-las para que carreguem suas culpas: as gigantes da indústria da carne, do agronegócio e seus financiadores do mercado financeiro são as maiores incentivadoras dos ataques aos povos da Amazônia – e, óbvio, quem mais lucra com isso.

Publicação do Grupo Carta de Belém e do Grain, especial para a COP-25 que ocorreu em dezembro de 2019 no Chile e na Espanha, nomeia algumas das grandes corporações por trás das queimadas na Amazônia. Aqui o texto completo

Embora o atual governo tente culpabilizar as camadas empobrecidas da sociedade pela devastação da biodiversidade, na Amazônia e no Brasil, uma interessante reportagem do The Intercept Brasil mostrou que, por trás de queimadas e desmatamento, estão figuras poderosas: “Dados públicos do Ibama, o órgão do governo federal responsável pela preservação do meio ambiente, compilados e analisados pelo De Olho nos Ruralistas, mostram que os 25 maiores desmatadores da história recente do país são grandes empresas, estrangeiros, políticos, uma empresa ligada a um banqueiro, frequentadores de colunas sociais no Sudeste e três exploradores de trabalho escravo”.

Essa é a parte 4 da introdução da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:

Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: [você está aqui] Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

E também veja: O cerco explicado em um mapa

É em meio a isso tudo – à grilagem, às queimadas, à soja e seus agrotóxicos, aos portos que impedem a pesca, aos megaprojetos que destroem modos de vida – que resistem as comunidades, ainda que sofrendo pressões extremas e ameaças à vida. Também essas Comunidades e Povos são transformadas em entidades abstratas, contudo ali estão pessoas: gente simples, de hábitos comuns, gosto pelo futebol, almoço em família, banho no rio, descanso na rede. Pequenas e pequenos agricultores, pescadoras e pescadores, extrativistas das reservas legais, comunidades quilombolas e povos indígenas que queriam, caso fosse opção, apenas seguir suas vidas no local ao qual pertencem e manter a floresta com a qual convivem e da qual dependem em pé.

Outro mundo não é possível, só há esse. Por isso a luta
Não há convivência possível com a infinita gana destrutiva da expansão capitalista: seu veneno escorre pelos arredores, os lagos poluem e secam, a terra é contaminada, as pessoas são expulsas de seus territórios, atacadas, covardemente assassinadas. O discurso de ódio de Bolsonaro e as políticas de desmonte da área ambiental e agrária, em defesa dos interesses do agronegócio e das indústrias extrativistas estrangeiras, materializam-se em violência: por exemplo, os assassinatos de indígenas cresceram 22,7% em 2018.

Contra isso, resta a luta: cotidiana, trabalho de formiga, aos poucos – tão difícil e brutal quanto necessária e recompensadora. É o que mostram as histórias que ouvimos na recente visita à região do Tapajós, no Pará. Elas evidenciam o cerco do capital à Amazônia, com a grilagem de terras, o avanço dos megaprojetos sobre comunidades inteiras, o ataque à floresta e aos rios e as ameaças e ataques a quem se opõe a isso, erguendo-se em defesa dos modos de vida tradicionais e dos direitos dos povos. Não à toa essa gente recebe a alcunha de Guardiãs e Guardiões da Floresta: não teríamos pensado em nome mais justo.

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Leia também as partes 2 e 3 da introdução:
Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza

E também veja: O cerco explicado em um mapa

 

O cerco explicado em um mapa

No vídeo abaixo, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STM), Manoel Edivaldo Santos Matos, o Peixe, explica, a partir de um mapa da região do Tapajós, o cerco do capital à Amazônia:

Santarém: um Plano Diretor sob medida para a expansão do capital na Amazônia
Na última sessão legislativa de 2018, ignorando por completo toda a participação popular que havia acontecido até ali, os vereadores de Santarém – sem vergonha alguma – aprovaram a Lei nº 20534, que institui um novo Plano Diretor para a cidade: um plano feito sob medida para sojeiros, ruralistas em geral, grileiros, investidores de megaprojetos, garimpeiros e para a indústria do turismo.

Essa é a primeira história da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:

INTRODUÇÃO
Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) [você está aqui] O cerco explicado em um mapa
2) Um porto entalado na boca do rio

De um lado, ampliou-se a área portuária, convenientemente envolvendo toda região do Lago Maicá, onde há planos para a construção de cinco portos privados voltados ao escoamento da soja. De outro, cresceu a zona urbana, o que permite a construção de prédios e empreendimentos turísticos à beira do Rio Tapajós. Isso envolve toda a área em direção a Alter do Chão, considerada uma das praias mais bonitas do Brasil e que foi foco das queimadas em 2019. Ora, nada é por acaso, e o ciclo se repete: queimadas, grilagem, venda ilegal da terra – seja para a expansão do agronegócio, seja para a venda de lotes para indivíduos ou para empreendimentos turísticos. De toda forma, significa violência contra os povos e comunidades locais e a derrubada da floresta.

Fecha-se o cerco: madeireiros ilegais; grilagem; soja; agrotóxicos; pecuária; portos; mineração; ferrovias; contaminação do solo e das águas; especulação imobiliária; expulsão de famílias quilombolas, indígenas e de pequenas e pequenos agricultores para as periferias da cidade; ameaças e ataques a quem resiste. Repetimos: não há convivência possível com o ciclo de morte do capital.

Agronegócio e empreendimentos para escoar a produção avançam sobre comunidades tradicionais gerando conflitos diretos e indiretos. Fotos: Carol Ferraz/Amigos da Terra Brasil

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Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:
Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

Ou avance para a próxima história:
Um porto entalado na boca do rio

 

Um porto entalado na boca do rio

– Visagem? Não tem aparecido visagem na mata, não, moça; é na água, e a visagem toma outras formas, dá sempre jeito de assustar. (Visagem significa, em vocabulário local, “assombração”). Na região do Maicá, sudeste de Santarém, a visagem tem tomado formas bastante concretas, todo mundo vê e se preocupa: é a forma de um porto.

A Embraps (Empresa Brasileira de Portos de Santarém) pretende instalar um porto na Boca do Maicá, entrada do rio que se estica por um braço a partir do Rio Amazonas, retornando ao mesmo rio para então seguir seu fluxo em direção a Macapá (AP) e ao Oceano Atlântico. Suas águas têm rica biodiversidade e banham cerca de 50 comunidades, todas postas em risco caso o projeto do porto avance.

Essa história faz parte da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:

INTRODUÇÃO
Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) O cerco explicado em um mapa
2) [você está aqui] Um porto entalado na boca do rio
3) Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos

Pois então não é visagem: é a realidade que assombra; e é entre contações de histórias e risadas que Narivaldo dos Santos fala do Estudo de Impacto Ambiental da Embraps – Sabe, eu pesco aqui pirarucu, tambaqui, surubim, pacu, acará, pescada, aracu, carauaci, arauanã, acari, fura-calça, mapará, que é branquinho né… e tem bem mais, porque quando eu falo em acará, tem umas oito espécies só aqui na nossa região: o roxo, o bararuá, o boca-de-pote, o escama-grossa, o tinga, o açu… O tucunaré também: tem o açu, o pinima e o comum, e o surubi cabeça-chata, pinima e pintado e assim por diante. É tanto que a gente pode dizer – Hoje eu não quero esse, aí solta e pega o próximo, é um cardápio rico. Aí no estudo da empresa aparece quase nada de tipos de peixes, e nem de pássaros, jacarés, capivaras, tatus, nem o peixe-boi, que tá em extinção e a gente acha aqui no nosso rio... É, talvez os pesquisadores da Embraps não saibam pescar.

Narivaldo é líder da comunidade quilombola de Bom Jardim, tem 42 anos e não parece: corre rápido pelos troncos de palmeira caídos que servem como caminho até a área onde descansam as canoas e embarcações da comunidade pesqueira – das cerca de 120 famílias, pelo menos 90 pescam no Maicá, algumas para o comércio, outras apenas para a subsistência. Com os passos ágeis, ele faz parecer fácil o que definitivamente não é: mas embora tortuoso, as toras são ainda um caminho, e após cerca de dez minutos de frágil equilíbrio sobre as madeiras chegamos a uma bonita enseada, onde a grama verde encontra as calmas águas do rio, e ali agitam-se com leveza as canoas. A remo, o centro de Santarém está horas distante.

Pescadoras e pescadores artesanais estarão em risco caso projetos de portos avancem. No topo, Narivaldo observa enseada do Maicá. Fotos: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Vez que outra um peixe se aventura num salto, como que a exibir a riqueza do rio – Não precisa nem ir longe pra achar mais que dois tipo de peixe, ri de novo o Narivaldo, antes de voltar a falar sério – Do governo a gente percebe que não estão nem aí pra Amazônia, pros nossos rios. De certa forma, já foi dada a ordem para a construção do porto. Só parou pela ação da FOQS [Federação das Organizações Quilombolas de Santarém], que protocolou o pedido pela consulta prévia junto ao MPF [Ministério Público Federal]. Se depender do governo o porto sai, as comunidades quilombolas querendo ou não: mas o que a gente puder fazer para evitar, vamos fazer. Eles dizem que os impactos podem ser compensados, mas isso não existe: a gente quer viver como vivemos hoje.

A instalação de um porto no Maicá (não só um: existem projetos para cinco portos no rio) vai significar a destruição daquele modo de vida e é um ataque direto às 12 comunidades quilombolas do entorno, a do Bom Jardim entre elas. Em testamento, os antigos donos de escravizados da fazenda local, que não tinham herdeiros, deixaram a terra para as seis famílias que eram exploradas ali. Isso há 142 anos: são quase dois séculos de pertencimento e luta naquele espaço. Agora, em nome do lucro de poucos, tudo pode desaparecer.

Consulta prévia e a Convenção 169 da OIT
Contudo, a mobilização popular e jurídica, com o apoio da Terra de Direitos, surtiu efeito e o licenciamento do projeto foi suspenso. A empresa deverá realizar consulta prévia, livre e informada a todas as comunidades atingidas – quilombos, indígenas e pescadores -, em acordo com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Os estudos da Embraps eram tão rasos que sequer consideravam o componente quilombola, tão relevante naquela área, o que também deverá ser acrescentado em um novo estudo a ser apresentado pela empresa. Embora não tenha poder de veto, a obrigatoriedade da consulta às comunidades atingidas pode ser considerada uma vitória: após a decisão judicial favorável, as 12 comunidades organizadas na FOQS apressaram-se para construir seu próprio Protocolo de Consulta, o que também foi feito pelas comunidades indígenas e pesqueiras impactadas.

Fotos: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

A suspensão do licenciamento também atrasa o cronograma do projeto, que é de alto impacto, permitindo maior tempo para a disseminação de informação na região. A previsão da Embraps era de que, somente no primeiro ano de funcionamento, 4,8 milhões de toneladas de grãos de soja poderiam ser exportadas pelo porto instalado no Maicá, grande parte vinda da região Centro-Oeste do Brasil por meio da BR-163. Vejam que também a infraestrutura de escoamento causa impactos aos territórios: caso semelhante ao da rodovia BR-163 é o da Ferrogrão, projeto de ferrovia que ligará a cidade de Sinop (MT) até Itaituba (PA) e que também causará danos ao longo de seu trajeto, em especial em unidades de conservação e em terras indígenas.

Um porto onde não pode haver porto
Um fato estranho, porém: no mesmo local onde seria instalado o porto da Embraps, um outro empreendimento surgiu – um posto de combustível para embarcações, à revelia de estudos de impacto ou da participação da comunidade. A empresa responsável é a Atem’s, distribuidora de petróleo que opera no Norte do país. Os danos já são sentidos, em especial na pesca, com o derramamento de combustível e o aterramento da área, que mudaram o fluxo de correntes d’água e de peixes. Em março deste ano, o Ministério Público paraense denunciou a empresa, seu sócio administrador e o engenheiro responsável pelo projeto pela prática de crimes ambientais. Para o órgão, a obra avançava sem a licença do órgão ambiental competente, além de ter sido apresentado um licenciamento divergente à Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará, que se referia a cargas não perigosas – quando era sabido, desde o princípio, o objetivo de construção e instalação portuária para distribuição de combustível (carga perigosa).

Histórico da luta
Em maio, enfim uma boa notícia, após longa mobilização dos movimentos sociais de Santarém contra mais esse empreendimento que, sem qualquer consulta às comunidades locais, violava direitos e comprometia a biodiversidade da região: a Justiça Federal suspendeu as licenças prévia e de instalação do empreendimento da Atem’s e determinou a paralisação imediata das obras.

Em resumo, esse é o desenho do cerco do agronegócio aos territórios: expulsão de famílias de suas terras para o plantio da soja, contaminação das terras vizinhas pelo uso do agrotóxico, o transporte dos grãos rasgando territórios – seja via caminhão ou via trem -, sua chegada em portos que destroem os modos de vida tradicionais das redondezas, a exportação para que gere riquezas ao capital internacional. Para resistir a essa engrenagem, é necessária muita união e força. O andamento do projeto da Embraps representa ainda a remoção de famílias e a demolição de casas para a ampliação de vias, a chegada de centenas de trabalhadores de outros estados, uma mudança completa no cotidiano da região: a estimativa é que cerca de 900 carretas diárias passem pelas ruas do bairro Pérola do Maicá no percurso até o porto.

A luta contra a Embraps se dá desde 2013 (nessa linha do tempo, organizada pela Terra de Direitos, veja a cronologia das resistências à construção de portos no Maicá). São ao todo cinco portos planejados para a região, de três empresas – todos voltados para a exportação de grãos e commodities, em especial a soja. Além da Embraps, a construção de outros portos visa favorecer as atividades do Grupo Cevital, da Argélia, que atua no ramo agroalimentar e está envolvido com plantações da região Centro-Oeste do Brasil, e a empresa Ceagro.

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Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:
Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

E as histórias:
O cerco explicado em um mapa
– [você está aqui] Um porto entalado na boca do rio
Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos

Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos

Ninguém sabe ao certo: se sai, se fica, pra onde vai se sair, como fica se ficar. É uma tremenda insegurança e, de repente, toda essa terra na qual vivem começa a ter “donos” – donos que não são eles que vivem lá: alguém paga um IPTU como forma de reivindicar aquele espaço e aí crescem as ameaças, ouve-se nas esquinas – Quilombola é ladrão de terra, e vejam só que inversão, que quem chegou ali primeiro foram os negros, assim como foram os indígenas em outros locais, e é sempre assim: o invasor é outro.

Essa é uma das histórias da reportagem “História do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:

INTRODUÇÃO
Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) O cerco explicado em um mapa
2) Um porto entalado na boca do rio
3) [você está aqui] Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
4) Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida

Hoje, no Pérola do Maicá, bairro onde será instalado o porto da Embraps, vive-se com medo. E tem que se estar sempre atento, em especial em um momento político em que um presidente da República é abertamente racista – já nem se importam em esconder, e mesmo quem tem o dever institucional de defender os direitos da população negra afirma absurdos como – O Brasil tem racismo Nutella. Racismo real existe nos EUA. A negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda. São mesmo tempos estranhos, e talvez o porto da Embraps, e os outros na região do Maicá, nem saia: mas os danos que ele traz chegaram com bastante antecedência, estão aí, e a Lídia de Matos Amaral, 38 anos, da comunidade quilombola do Pérola do Maicá, é que nos conta:

ela esteve já em regiões onde foram construídos portos. Histórias bem semelhantes a que ela e suas companheiras e companheiros de quilombo e vizinhas e vizinhos de bairro vivem hoje – É muito complicado. A violência vai triplicar, vai modificar todo o estilo de vida tranquilo que temos aqui, isso vai acabar. E falam em compensações: os empresários pensam que a tudo o dinheiro pode comprar, mas como compensar um modo de vida destruído?, uma tradição esquecida?, uma conexão com o território desfeita? Mesmo o pouco que prometem, os supostos desenvolvimento e progresso, postos de trabalho, mesmo isso não é verdade, porque olha quantos megaempreendimentos já destruíram comunidades Brasil afora e seguimos sem desenvolver, não progredimos – Olha o porto da Cargill: me diz quantos santarenos trabalham lá?, e talvez este outro porto, o da Cargill, instalado de maneira irregular sem respeitar os processos de licenciamento, sem se importar com a comunidade local, e que destruiu a Praia de Vera-Paz, antigo ponto turístico e área de lazer em Santarém, talvez ele devesse servir de exemplo (para lembrar as irregularidades da Cargill: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui): porque é assim que é, e não como as falsas promessas dos empresários e dos governos dizem, é ilusão. O que há de concreto é a destruição – Pra gente fica o prejuízo, bem sabe a Lígia, que já viu em outros lugares, e está ali o porto da Cargill para nos lembrar como o capitalismo de fato se “desenvolve”.

Quem sabe disso também é a Valda

[e não à toa outra mulher, a Lígia bem sabe disso também – As mulheres estão na linha de frente, dão a cara a tapa e sofrem muitas represálias. Por isso temos que nos fortalecer, e é uma defesa do território que é uma defesa do corpo e do corpo dos outros também, das filhas e dos filhos, é uma conexão profunda, axé – E muitas mulheres que eu conheci já não estão aqui hoje, eles dão o recado deles [é o patriarcado] – Mas eles tiram uma e nascem cinco, ainda mais fortes, e que dão sequência a essa luta cruel e desigual.]

Valda (acima) e Lídia, moradoras da região do Maicá, contam as histórias de resistências do local. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

A Valda é a Valdeci Oliveira Sousa, de 52 anos. Ela faz parte da CPP (Comissão Pastoral dos Pescadores) e é presidenta da associação de moradores do Pérola do Maicá. Ela também já sente os impactos do porto da Embraps – Há cinco anos sentimos esse impacto, desde que soubemos da existência do projeto: tudo mudou, desde o mais básico, como a convivência entre vizinhos – aumentaram os conflitos, agora há desconfiança entre as lideranças, quebrou-se a harmonia. De repente, nasceram novas organizações de bairro – há sempre quem se encante pelas falsas promessas de dinheiro e “desenvolvimento” -, feitas para facilitar a entrada do projeto, o veneno escorrendo pelas artérias do bairro, pelas pequenas ruas de barro, que serão ampliadas e passarão por cima das casas caso o porto vá de fato adiante, e famílias terão que ser removidas, no bairro e no quilombo, e ninguém sabe pra onde.

Além disso, políticas públicas para o bairro passaram a ser travadas: há anos o local vem sendo esquecido, num lento e doloroso processo de expulsão – Eles precisam que a gente queira sair daqui, então não se tem mais infraestrutura viária, nenhum investimento, tivemos muita dificuldade no último inverno [que é a época de chuvas, dezembro, janeiro, fevereiro, quando é verão na maior parte do Brasil], as ruas ficam com muitos buracos e a linha de ônibus teve horários reduzidos, é esse o recado – Não querem sair? Vão sofrer.

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Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:
Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

E as histórias:
O cerco explicado em um mapa
Um porto entalado na boca do rio
– [você está aqui] Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida

Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida

Transquilombo: esse é o apelido carinhoso da esburacada estrada que liga todos os quilombos à margem sul do Rio Maicá. É por ela que, saindo do quilombo Bom Jardim, se chega em poucos minutos ao Tiningu. E é no Tiningu que se encontra o Bena, ou melhor: Raimundo Benedito da Silva Mota, personagem histórico da região – Acompanho as lideranças desde os 15 anos, hoje tenho 60: e lá se vão 45 anos de luta. Hoje, Bena é presidente da Associação dos Remanescentes do Quilombo Tiningu e vice-presidente da FOQS (Federação das Organizações Quilombolas de Santarém).

45 anos: Bena viu o mundo ir e vir e voltar e seguir onde está, e por isso fala com calma. E recomenda a calma também – Essa é uma área de fugidos de senzala; é preciso ter paciência com o momento histórico. A comunidade do Tiningu existe desde 1844 – tem 176 anos – e só em outubro de 2018 o Incra publicou no Diário Oficial da União a portaria de reconhecimento e demarcação da comunidade. A burocracia dos brancos atrasou por quase dois séculos – e falta ainda um último passo para a titulação definitiva: a assinatura do presidente da República. Ele, Jair Bolsonaro, o mesmo que disse – Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais, e também – No que depender de mim, todo mundo terá uma arma de fogo em casa, não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola. Obviamente esses discursos racistas ecoam nas estruturas racistas do Estado brasileiro: a destinação de recursos públicos para a titulação de territórios quilombolas sofreu uma queda de mais de 97% nos últimos cinco anos.

Essa é uma das histórias da reportagem “História do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:

INTRODUÇÃO
Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) O cerco explicado em um mapa
2) Um porto entalado na boca do rio
3) Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
4) [você está aqui] Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida
5) Curuaúna: de um lado a soja; do outro, a soja também

Ainda assim, Bena não perde a paciência: o que são quatro anos, ou mais um punhado deles, frente a séculos de resistência – O Tio Babá que me contava as histórias, tinha 108 anos, e Bena ainda hoje mantém a tradição oral viva e conta e reconta as histórias do Tiningu, desde os tempos em que seus vizinhos e familiares tinham que ir embora porque as crianças sofriam de anemia e não tinha posto de saúde perto; então era preciso remar por quase duas horas até chegar a Santarém, mas os adultos também não tinham forças porque faltava alimento para todos, independia a idade, e faltava também educação: assim que ia todo mundo embora para Santarém, ia todo mundo morar na periferia da cidade, deixando para trás sua cultura e seu canto no mundo.

Bena conta e reconta as histórias do Tiningu. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Bena em frente a um dos igarapés da região, que também geram conflitos com fazendeiros que tentam se apropriar das fontes de água. Foto: Carol Ferraz/Amigos da Terra Brasil
Acesso à educação e à saúde das comunidades são frutos da organização e da luta quilombola. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Desmatamento gerado pela expansão da soja, além do alto uso de agrotóxicos no cultivo do grão, impactam as comunidades da região. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Até que um dia eles voltaram, e voltaram porque valia a pena voltar, e depois as famílias pararam de ir embora. Não há nenhum acaso aí: tudo aconteceu devido à organização da luta quilombola, iniciado pelo próprio Bena que, um certo dia, em um seminário em Belém, se descobriu quilombola: ouviu sobre estudos a respeito do território do Tiningu e sua história, que provavam ser ali uma área de remanescentes de escravos. Bena trouxe essa informação à comunidade e se surpreendeu: muitos de seus vizinhos negros se recusaram a ser ditos quilombolas, reproduzindo um discurso de preconceito contra esta população.

Na primeira assembleia convocada para discutir a questão, apenas 17 famílias apareceram – a do Bena, de seu irmão, de seus pais e de seus tios inclusas. Poucos. Mas o tempo passou, a luta seguiu, e a associação quilombola conseguiu, pressionando a prefeitura de Santarém, recursos para um posto de saúde e uma nova escola, agora com ensino fundamental – antes, havia apenas uma escola infantil na região. Assim que hoje, no Tiningu, 90 famílias se autodeclaram quilombolas e aguardam orgulhosas a titulação de sua terra, medida que trará segurança nos conflitos com os fazendeiros locais.

Conflitos com fazendeiros locais: corte no acesso à água e assassinato
Um deles, vizinho em um terreno mais alto, entendendo-se dono do igarapé que há entre ele e o quilombo, cortou o acesso à água de toda a comunidade. Até o posto de saúde ficou desabastecido e teve que cessar os atendimentos. O caso foi judicializado.

Em nome da memória de seu povo, Bena cuida muito bem do cemitério local – a área esteve em disputa com outro fazendeiro, que teve de ceder devido à importância histórica do espaço. O terreno dessa fazenda é agora recortado por um quadrado onde somam-se lápides com corpos e histórias de luta. É ali que ele relembra outro caso, recente: o caseiro de outra fazenda, em um conflito de pouca explicação, assassinou um dos quilombolas, supostamente após uma briga. Está até hoje foragido.

Em nome da memória, Bena traça um plano: transformar a antiga escola infantil em um museu da história quilombola da região. O registro oral de Tio Babá ganhará uma preservação histórica e não mais se esquecerá que a luta muda a vida.

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Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:
Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

E as histórias:
O cerco explicado em um mapa
Um porto entalado na boca do rio
Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
– [você está aqui] Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida
Curuaúna: de um lado a soja; do outro, a soja também

De um lado, a soja. Do outro, a soja também

Acima do Tiningu e do Bom Jardim, chega-se à região de Curuaúna. De lá escorre veneno dos vastos campos de soja em direção aos quilombos e às águas do Rio Maicá.

Andando pela região, Francinaldo Miranda, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STM), ensina a engenhosa arquitetura dos sojeiros, ou talvez a habilidade em design de ambientes – Esse é o puxadinho, que se resume a um pequeno avanço, não mais que dois ou três metros, do campo de soja em direção à mata em pé; queima-se aos poucos a floresta e, ano a ano, como se nada estivesse acontecendo, a soja toma todo o espaço disponível – como se precisasse crescer mais: pode se dizer, hoje, que no meio do campo de soja havia uma floresta (e havia uma floresta no meio do campo de soja) – E eles constroem esse muro pra que a visão da estrada seja bloqueada. Ninguém vê nada e parece estar tudo bem com a floresta. O muro em questão é uma fina faixa de árvores que, de fato, cumpre seu papel: é só ao dar a volta nela que se pode contemplar a imensidão da soja, soja a se perder de vista, de um lado, do outro lado, adiante e atrás. Porém, da estrada, é como se as árvores seguissem em pé, altivas.

Essa é uma das histórias da reportagem “História do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos já publicados:

INTRODUÇÃO
Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) O cerco explicado em um mapa
2) Um porto entalado na boca do rio
3) Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
4) Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida
5) [você está aqui] Curuaúna: de um lado, a soja; do outro, a soja também
6) O rosto estampado na camiseta

Os impactos na floresta e nas comunidades locais, obviamente, são tremendos: a soja representa grilagem, queimadas, desmatamento, agrotóxicos, além de necessitar de toda uma infraestrutura para seu transporte e exportação, o que também impacta os povos da região. Alguns casos, porém, beiram o absurdo: como a situação de uma pequena escola na comunidade de Boa Sorte (e o nome parece uma sádica ironia da vida). Ali, a distância entre a janela da sala de aula e o campo de soja não chega a dois metros, e o mais grave: o uso de agrotóxicos não respeita o horário escolar e se repete várias vezes ao ano. A contaminação das crianças é direta e repetida.

A região de Curuaúna é tão impactada pelo uso de agrotóxicos da soja (o principal é o glifosato – o Round-Up da Monsanto) que estudos com coleta de sangue de moradoras e moradores estão sendo realizados para dimensionar o tamanho do dano à saúde das pessoas. Os resultados dessa pesquisa ainda não foram divulgados. Outros estudos, entretanto, estão disponíveis: é o caso da dissertação de Nayara Luiz Pires, da Universidade de Brasília, que em 2015 pesquisou a expansão da fronteira agrícola na Amazônia e a contaminação por glifosato na região de Santarém. Nela, a pesquisadora afirma “um provável risco de exposição humana a agrotóxicos, principalmente pela via respiratória”.

Castanheira, árvore protegida por lei, sobrevive sozinha em meio a campo de soja. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Escola cercada por soja: uso de veneno não respeita horário escolar e crianças são diretamente atingidas. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Área queimada para a expansão do cultivo de soja: prática do “puxadinho” é muito usada na região amazônica, e consiste em aumentar o tamanho da terra aos poucos, queimando a floresta metro a metro, ano a ano, e avançando sempre à margem de qualquer tipo de controle. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Com o avanço dos monocultivos na Amazônia, a floresta vira cinzas. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Com o constante uso de agrotóxicos, pouca coisa cresce nas terras que antes eram bastante férteis. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Fugindo da soja: cidades-fantasma e abandono
Muitas famílias, claro, não esperam para descobrir o quanto os agrotóxicos são danosos e a que velocidade estão os matando. Assim, as comunidades vão aos poucos sendo abandonadas, sumindo do mapa, deixando de existir – Ali era um campo de futebol, – Ali tinha um monte de casas, – Aqui era uma escola, mostra Francinaldo conforme se avança pela estrada que corta os campos de soja.

Mesmo as tradicionais partidas de futebol entre as comunidades vizinhas correm o risco de deixar de acontecer, simplesmente porque cidades-fantasma não têm times de futebol: ninguém mais poderá desafiar o temido São Jorge, equipe a ser batida na região. Francinaldo, natural da área de Curuaúna, era goleiro e conta quando – O centroavante tava a poucos metros de mim e era daqueles que chutava forte, meu amigo até, mas chutou com raiva, e a bola foi tão forte, mas tão forte, que rasgou a barriga de Francinaldo, e isso ele só descobriu mais tarde, depois do jogo, pois se arrastou com a bicicleta até em casa para não acusar a dor na frente do adversário. Precisou até de cirurgia e demorou anos a se recuperar plenamente. O mais importante, porém, conseguiu: defendeu o chute.

Isso que significa o avanço da soja: além da morte e da contaminação e da grilagem de terras, o fim da cultura e da vida local.

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Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:
Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

E as histórias:
O cerco explicado em um mapa
Um porto entalado na boca do rio
Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida
– [você está aqui] Curuaúna: de um lado, a soja; do outro, a soja também
O rosto estampado na camiseta

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