Na Assembleia Legislativa do RS, o recado foi dado, mais uma vez: não queremos a Mina Guaíba!

Em audiência pública na Assembleia Legislativa do RS sobre o projeto Mina Guaíba/Copelmi, população gaúcha demonstrou seu descontentamento com a proposta de instalação da maior mina de carvão a céu aberto do Brasil ao lado do Delta do Jacuí, a apenas 16km do centro de Porto Alegre

Ontem à noite (30/09), o auditório Dante Barone, na Assembleia Legislativa do RS, lotou para que a população gaúcha debatesse um tema de grande impacto: a instalação da maior mina de carvão a céu aberto do país ao lado de Porto Alegre, entre os municípios de Charqueadas e de Eldorado do Sul. Essa é, ao menos, a intenção da mineradora Copelmi.

O megaprojeto traria danos socioambientais nefastos, comprometendo a segurança hídrica dos cerca de 4,5 milhões de habitantes da Região Metropolitana de Porto Alegre, com a possível contaminação das águas do Delta do Jacuí e o rebaixamento de dois lençóis freáticos – ao longo dos anos de extração de carvão, metade do volume de água do Rio Guaíba seria desperdiçado. Além disso, a pilha de carvão e de rejeitos elevaria ao ar substâncias tóxicas, levadas pelo vento para as cidades do entorno, alcançando Porto Alegre: ao todo, 30 mil toneladas de poeira seriam lançadas na atmosfera. O carvão é considerado um “lixão químico”, por conter muitos elementos da tabela periódica, inclusive metais pesados como chumbo, mercúrio e cádmio.

A Copelmi pretende extrair 166 milhões de toneladas de carvão (mineral, que não é o mesmo utilizado em churrascos!). Junto, extrairia 2,4 milhões de toneladas de enxofre: e as reações químicas decorrentes disso podem gerar chuva ácida.

Fim da produção agroecológica e desemprego

Na área onde a Copelmi quer instalar a mina está o assentamento da reforma agrária Apolônio de Carvalho, um dos maiores produtores de arroz orgânico da América Latina e de hortaliças agroecológicas que abastecem as feiras da capital. Somados com o condomínio Guaíba City, mais de uma centena de famílias perderiam suas terras produtivas para dar lugar ao carvão e à poluição. Como que por maldade, os despejos das famílias ainda ocorreriam apenas 7 anos após o início das operações da mina, obrigando as pessoas a conviver com a poluição e os tremores das explosões cotidianas – seriam cerca de mil explosões anuais.

Em 20 minutos de fala na audiência, a Copelmi até tentou, mas os argumentos levantados pela empresa não se sustentam. A promessa de criação de empregos, por exemplo, é ínfima: seriam pouco mais de mil postos criados ao longo dos 23 anos de exploração do solo; nos primeiros três anos, seriam apenas 331 vagas. Considerando-se as centenas de famílias de agricultoras e agricultores que perderiam suas formas de sustento, não é exagero dizer que, com a Mina Guaíba, o que se criaria seria desemprego.

Em um contexto de desmonte das leis trabalhistas, de previdência social e da saúde pública, cabe ainda pensarmos sobre a qualidade dos postos de trabalho que seriam criados na maior mina de carvão do Brasil: historicamente, o trabalho em minas causa diversos malefícios à saúde do trabalhador. Pesquisa da UFBA e do Ministério da Saúde revelam que mineiros estão sujeitos a, em nível muito maior que outros trabalhadores: poeiras que causam doenças respiratórias; substâncias químicas associadas ao câncer; e atuam em condições propícias para acidentes de trabalho, comumente graves e fatais. Em entrevita ao Nonada, um ex-mineiro fala: “Eu me aposentei por invalidez. Eu tive uma lesão no coração; arriou três milímetros e meio. Eu tenho carvão no pulmão; lá no hospital, querem me operar, mas se retirar o carvão, eles me matam”.

Mesmo o argumento econômico não se sustenta: fosse a mineração a salvação das contas do Estado, Minas Gerais não estaria na situação que está. Tais megaprojetos contam com investimentos estrangeiros (no caso da Copelmi, Estados Unidos e China) que, incentivados pelas práticas neoliberais do governo Bolsonaro e de seu ministro Paulo Guedes, julgam de seu direito a apropriação dos bens comuns do povo brasileiro. O lucro é para poucos; para a população, fica um território devastado, os hospitais lotados, a poluição e o desemprego.

Em relação à arrecadação de tributos, há uma forte conexão entre mineração e sonegação de impostos – além de um acordo entre governo estadual e Copelmi para desonerá-la do ICMS.

Quem tem medo da participação popular?

Ainda no contexto local, outros agravantes: nessa semana, Eduardo Leite, governador do RS, colocou para tramitação em regime de urgência 480 alterações na lei ambiental do estado. Tal tentativa está sendo convenientemente chamada de “Lei Copelmi”, devido às flexibilizações nas licenças ambientais e ao favorecimento de interesses da mineração e do agronegócio. O regime de urgência, medida que prejudica o debate público do tema, já foi utilizado anteriormente para aprovar a criação de um polo carboquímico no estado, exatamente na região onde hoje se discute a instalação da Mina Guaíba. Aliás, Cristiano Weber, diretor da Copelmi, já admitiu que, sem o polo carboquímico, a Mina Guaíba não se mantém, devido à baixa qualidade do carvão dali extraído: “Se o Polo não sair, essa mina não se paga. Para o mercado atual, nós não abrimos essa mina”, disse em entrevista ao ExtraClasse.

Pela óbvia interconexão entre Mina Guaíba e o polo carboquímico, soa absurdo discutir a licença para um sem falar do outro. Contudo, tal absurdo tem passado despercebido pela Fepam, órgão licenciador do estado. Ainda mais: por ter sido aprovado em urgência (ao apagar das luzes de 2017) e sem o devido debate com a sociedade, o Ministério Público entrou com uma ação para suspender a licença do polo.

Ontem, deputadas e deputados trouxeram a possibilidade da realização de um plebiscito sobre o projeto, com  intuito de maximizar a participação popular. Também exige-se a realização de uma audiência pública em Porto Alegre convocada pela Fepam, única forma de que entre oficialmente no processo de licenciamento.

 

RS: nova fronteira minerária

Sobre outros argumentos de cunho ambiental, a Copelmi garante que utilizaria uma tecnologia capaz de extrair o carvão sem causar qualquer dano ao solo, à água, à qualidade do ar… Tal tecnologia jamais foi vista no mundo, simplesmente porque não é possível. Não à toa países do Norte Global estão deixando para trás o carvão, cujos impactos socioambientais são catastróficos em curto e longo prazo. Em meio a explosões e pilhas de carvão a céu aberto, a poucos quilômetros de áreas de preservação ambiental e da Região Metropolitana, os danos são garantidos. Exemplo disso são os IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) nas cidades carboníferas, que situam-se abaixo da média estadual.

Quem corrobora essa visão são os mais de 50 especialistas agrupados no Comitê de Combate à Megamineração no RS, grupo formado por 120 organizações e que aglutina a resistência ao ataque das mineradoras ao Rio Grande do Sul. Hoje, segundo dados do MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração), são 5.192 requerimentos para pesquisa mineral no estado, com 166 projetos já avançados. Destes, quatro megaprojetos preocupam por sua urgência, um deles a Mina Guaíba/Copelmi. Os outros são:

– em Lavras do Sul, o projeto Três Estradas, da empresa Águia, quer mineirar fosfato para suprir o agronegócio com fertilizantes – para tanto, vai construir uma imensa barragem de rejeitos logo acima de Dom Pedrito, pondo em risco vidas e a biodiversidade do Pampa;

– também no Pampa, em Caçapava do Sul, a Nexa pretende minerar chumbo e zinco ao lado da Bacia do Camaquã;

– em São José do Norte, entre o Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos, a empresa Rio Grande pretende minerar titânio e zircônio.

Com o avanço da mineração, toda a biodiversidade do estado estará em risco: povos, bacias hidrográficas inteiras, flora, fauna. Após os crimes de Mariana e Brumadinho, será que algum dia aprenderemos?

Comunidades indígenas não foram consultadas

Outro ponto importante ignorado pela Copelmi em seus estudos de impacto – recheado de erros metodológicos e analíticos – é sobre a questão indígena. As comunidades que seriam impactadas pelo projeto não foram consultadas pela empresa, em solene desrespeito aos povos originários e à convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que reconhece a soberania dos povos sobre seus territórios.

Recentemente, a terra Guadjayvi, que fica em Charqueadas, a pouco mais de um quilômetro da área disputada pela Mina Guaíba, foi atacada por homens armados que diziam ser seguranças da Copelmi – coincidentemente ou não, outras duas comunidades indígenas foram atacadas no mesmo período. Na audiência de ontem, Cristiano Weber ainda cometeu um grande disparate ao, em tom de deboche, tirar uma selfie com uma representante indígena que protestava contra a instalação da mina. O deboche foi logo desmascarado no palco:

https://www.instagram.com/p/B3Dpa62Hcke/?utm_source=ig_web_copy_link

Os poucos vereadores da região carbonífera que estiveram presentes à audiência eram vozes solitárias em apoio à mineradora. Em peso, a população gaúcha disse em alto e bom tom que não aceita a instalação de uma mina de carvão ao lado do Delta do Jacuí e a apenas 16km de Porto Alegre. Mostrou ainda a força que possui para combater o ataque do setor minerário que, após destruir Minas Gerais, pretende se enraizar no Rio Grande do Sul. No auditório Dante Barone lotado, frente à uma mesa repleta de autoridades, com deputadas e deputados estaduais e federais, representantes do Ministério Público e da Defensoria Pública e da Fepam, o recado da sociedade gaúcha foi dado: não queremos a megamineração no estado! Não queremos a extração de carvão à beira do Delta do Jacuí!

A questão é se o recado foi ouvido.

Fotos: heitor jardim // Amigos da Terra Brasil. Mais aqui: https://www.flickr.com/photos/hjardim/sets/72157711153142413/

21 de setembro: Dia Internacional de Luta contra os Monocultivos de Árvores

Os ataques aos povos da floresta têm sido constantes. Agora, impulsionado pelo boom das commodities no mercado financeiro, o agronegócio intensifica a invasão aos territórios dos povos.

A invasão das empresas transnacionais de celulose nos territórios dos povos e comunidades tradicionais intensificaram significativamente os conflitos no campo. Os milhões de hectares de terra que foram usados para o cultivo de árvores exóticas, e até árvores transgênicas, foram implementados no Brasil por empresas transnacionais, que levam o falso nome de “reflorestamento”.

Interferências no clima e nas reservas de água, grilagem de terras públicas, esgotamento da biodiversidade, são alguns dos relatos de quem vê no entorno do seu território a mudança na paisagem e ampliação dos campos de monocultivo de árvores por todos os lados. Povos de diversas regiões do Brasil denunciam os impactos do avanço do monocultivo de árvores sobre seus territórios, como mostra o vídeo abaixo:

Os recentes incêndios provocados na maior floresta tropical do mundo, a Amazônica, são verdadeiros ataques aos territórios em nome do avanço do capital. Milhões de árvores nativas e animais, territórios sagrados, modos de vida, foram intencionalmente queimados para dar lugar aos monocultivos – que não são floresta. A vida é “pluri” e não é facilmente manipulável, como dizem Dercy Telles, líder seringueira, e Lindomar Padilha, do Cimi-Acre, no vídeo abaixo:

Além do avanço das monoculturas de árvores, empresas e governos têm trabalhado para fortalecer a implementação de plantações transgênicas de árvores exóticas. Sendo o primeiro país da América Latina a liberar o cultivo comercial de uma árvore transgênica e com um ambiente político favorável, o Brasil se tornou referência para empresas transnacionais realizarem seus projetos. Precisamente por esse motivo, o Congresso Mundial da IUFRO (União Internacional das Organizações de Pesquisa Florestal) será realizado em terras brasileiras, entre 29 de setembro e 5 de outubro, em Curitiba, Paraná. Trata-se de um grupo de empresas e pesquisadores, com apoio do governo, que insiste na implantação de monocultivos de árvores exóticas, para exportação de celulose e madeira, chamando essa prática de “reflorestamento”.

Anne Petermann, coordenadora do campanha global “Stop Engineered Trees”(Parem as Árvores Transgênicas, em português), em entrevista à Amigos da Terra Brasil, destaca que “uma vez liberadas no meio ambiente os reflexos estão além do que as pesquisas são capazes de prever”. A árvores transgênicas “têm impactos que nós não podemos sequer entender, já que nós não sabemos como essas árvores se comportariam em um ecossistema florestal, ou em qualquer ecossistema, com os solos, com a vida selvagem, com os pássaros, abelhas, outros polinizadores e também com as pessoas que vivem no entorno”.

Ainda, Anne ressalta que a “decisão tomada em 2008 pela Convenção de Diversidade Biológica, que árvores geneticamente modificadas não deveriam ser liberadas sem total entendimento sobre seus impactos ambientais, que a precaução deveria ser considerada. Essa decisão nunca foi alterada. Infelizmente, há países, como os Estados Unidos, que nunca assinaram essa convenção, então eles não se importam”.  Veja aqui a entrevista na íntegra.

Também, neste evento serão discutidas falsas soluções e novas maneiras de aumentar os lucros corporativos à custa de bens comuns. A FAO, incluída entre os patrocinadores da IUFRO, tem promovido internacionalmente uma definição de floresta que serve apenas aos interesses das empresas madeireiras e das indústrias de plantio de árvores. A definição trata grupo de árvores de uma única floresta de espécies sejam consideradas “florestas” e assim possam ser contempladas por incentivos relacionados à mitigação do efeito estufa. Com isso, ignorando todas as relações entre plantas e outros seres vivos que compõem uma floresta, incluindo seres humanos, a FAO passa a negligenciar a biodiversidade e os sistemas ecológicos associados, permitindo que as monoculturas de grande escala os transgênicos sejam considerados florestas.

Hoje, dia 21 de setembro é marcado como o Dia Internacional de Luta contra as Monocultivos de Árvores. Os povos reafirmam que querem viver com autonomia e dignidade em seus territórios.

Reafirmamos: as plantações NÃO são florestas! E dizemos NÃO ao Deserto Verde!

Portanto, repudiamos o evento da IUFRO e convocamos os movimentos de luta a assinarem conosco carta em denúncia ao monocultivo de árvores e às árvores transgênicas, para fortalecer nossa resistência. É possível acessar e aderir a carta em português, espanhol e inglês.

Que possamos gritar juntxs: PLANTAÇÕES NÃO SÃO FLORESTAS!

Em um final de semana, três ataques a comunidades indígenas no RS

Territórios são visados por projetos de megamineração (projeto Mina Guaíba/Copelmi, entre Charqueadas e Eldorado do Sul); de um condomínio de luxo, na Ponta do Arado, Zona Sul de Porto Alegre; e a outra área, em Terra de Areia, é pública e está ocupada há mais de dois anos.

Não tardaria a acontecer, e nem foi por falta de aviso. O discurso de ódio de Bolsonaro, que afirmou já repetidas vezes que, enquanto for presidente, “não tem demarcação de terra indígena” (lembra? Um exemplo aqui e outro aqui), somado ao desmonte do Ibama e das instituição de fiscalização ambiental, traz um triste resultado concreto: a violência contra os povos originários e as comunidades tradicionais. Em poucos meses, o avanço sobre as terras indígenas e os direitos dessas populações é drástico.

Apenas no último final de semana, por exemplo, o Rio Grande do Sul registrou três ataques a comunidades indígenas. Os atos ocorreram nas retomadas Guarani Mbya da Ponta do Arado, na Zona Sul de Porto Alegre, e de Terra de Areia, localizada em município de mesmo nome. Também a terra Guadjayvi, em Charquedas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, sofreu ataque.

Charqueadas/RS

São territórios em disputa: em Charqueadas, a terra indígena está a pouco mais de um quilômetro da área onde a empresa Copelmi pretende instalar a maior mina de carvão a céu aberto do Brasil, o projeto Mina Guaíba. O estudo de impactos ambientais da mineradora apresenta diversas falhas e, entre as mais evidentes, está o não-cumprimento da convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Esta regra internacional reconhece a soberania dos povos sobre seus territórios ancestrais e obriga os empreendimentos a fazerem uma consulta prévia e informada com as populações tradicionais atingidas por seus projetos – o que a Copelmi ignorou. A área é pública e foi concedida pelo Estado do RS para usufruto dos indígenas. Segundo o cacique Claudio Acosta, na sexta-feira (13/09), um grupo de homens se identificou como “seguranças da Copelmi” e proibiu a circulação dos indígenas em suas próprias terras, ameaçando que, se o fizessem, corriam o risco de serem alvejados por tiros de arma de fogo.

Já a retomada da Ponta do Arado, no bairro Belém Novo, zona sul de Porto Alegre, é uma área disputada pela Arado Empreendimentos, que pretende construir no local duas mil casas em três condomínios de luxo. O sítio arqueológico no local comprova que o território é ancestral indígena; o caso está na Justiça e, por ora, os Mbya Guarani permanecem ali – apesar das constantes ameaças: seguranças privados cercaram as famílias da retomada e mantém vigilância permanente, dificultando mesmo o acesso à água. Na tarde do último domingo (15/09), tiros foram dados em direção às barracas do acampamento, assustando as famílias, em especial as crianças: “Não atiraram contra pessoa, mas assim… por cima dos barracos, né, dos lados. Todo mundo fica assustado, as crianças tudo com medo e chorando”, relatou o cacique Timóteo Karai Mirim Guarani Mbya.

Em Terra de Areia, homens não identificados se apresentaram como policiais e disseram que receberam denúncia de invasão; a área, porém, é pública, e há cerca de dois anos os indígenas estão no local. O ataque ocorreu na madrugada de sábado (14/09) para domingo (15/09). Homens fortemente armados com fuzis e pistolas invadiram a comunidade, ameaçaram a todas e todos, ordenando o abandono da área. Ainda invadiram as casas e as reviraram. Mesmo se apresentando como policiais, nenhum deles apresentou identificação e não portavam mandado judicial para justificar a abordagem. Ao ser feito o Boletim de Ocorrência, as polícias Civil e Militar afirmaram não terem recebido qualquer ordem neste sentido em relação à comunidade indígena do local.

Em um único final de semana, em um intervalo de poucas horas, três comunidades indígenas são atacadas no Rio Grande do Sul. Segundo o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), fatos semelhantes foram denunciados em outras regiões do Brasil. Já não é mero discurso de ódio: este está materializado. São ações de ódio, violência e intimidação que não podem passar incólumes. Cabe às autoridades a investigação dos responsáveis diretos e de seus mandantes, além, claro, da garantia da segurança das famílias indígenas.

Com informações e fotos do CIMI: aqui e aqui.

Terra de Areia/RS
Terra de Areia/RS
Ponta do Arado, Porto Alegre/RS

O ganha-ganha por trás das queimadas da Amazônia

Como o agronegócio e o mercado financeiro lucram com a devastação da maior floresta tropical do mundo 

Texto, fotos e vídeos: Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Com os pés sobre a cinza do que antes era floresta, o Pajé Isaka Huni Kuin expressa sua tristeza. “Eles não sabem a medicina que tem dentro da mata. Pensam que não serve, que é floresta só, mas tem muito valor. Dela tiramos a madeira de lei que a gente constrói a nossa casa. Quando algum filho fica doente, eu já sei como vou tratar, sei qual medicina devo buscar. É a nossa farmácia viva. Se acabar com a floresta, a riqueza que eu tenho conhecimento se acaba, por isso que é triste para mim todo esse fogo”.

Pajé Isaka perdeu toda sua farmácia viva. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Dia 22 de agosto, as chamas arderam e queimaram, em poucas horas, cinco hectares de mata, o que corresponde a 50% da área total do Centro Cultural Huwã Karu Yuxibu. Desde outubro de 2018, a família do Cacique Mapu, filho de Isaka, faz deste território, localizado a 50 km do centro de Rio Branco, capital do estado do Acre, um local de acolhimento para os parentes que vem estudar na cidade e ser também um espaço de propagação das medicinas do povo indígena Huni Kuin.

O Pajé Isaka, 80 anos, estava almoçando com sua família quando sua esposa ouviu os estalos das folhas queimando. Saíram correndo com os facões para tentar impedir o avanço do fogo sobre a mata, mas não tiveram sucesso. Com a chegada dos bombeiros, conseguiram evitar que as casas fossem destruídas. A plantação de mamão, banana, açaí, entre outras plantas foram consumidas. Tatus, tartarugas e macacos foram atingidos.

Queimaram a floresta que é farmácia dos Huni Kuin. Suspeitam de fogo criminoso, ação que compromete a vida do pajé Isaka e de sua família. Para ele, Isaka, um feito de maldade.

A 250 km dali, já no Estado do Amazonas, no município de Boca do Acre, a floresta do povo Apurinã também ardeu. Dia 13 de agosto, o Dia do Fogo, 600 hectares da Terra Indígena Val Paraíso foram queimados. No territórios dos Apurinãs, o fogo, além de maldade, é uma das etapas de um processo muito bem articulado de grilagem de terras da união. O Cacique Antônio José denuncia este esquema que, na Amazônia Legal, não é exclusivo da terra do seu povo. Atinge diversos povos indígenas e terras da União. Em um roteiro de destruição e lucro, os invasores desmatam, vendem as madeiras de lei, tocam fogo na mata que resta, cercam, passam a criar gado na área, vendem a carne e depois, ainda, plantam soja, milho ou arroz. Se não bastasse, após as queimadas, este mesmo setor do agronegócio que lucra com um mercado internacional ainda tem a possibilidade de seguir ganhando dinheiro com as campanhas ambientais que pretendem “salvar” a Amazônia.

Nas estradas do Acre, é comum presenciar carretas carregando troncos gigantes de madeira . Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

A luta dos caciques Apurinã contra a grilagem e pela demarcação de suas terras

Foram 45.256 focos de fogo detectados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) na Amazônia de janeiro a agosto de 2019. 20% desse fogo aconteceram em florestas públicas que ainda não foram destinadas a nenhum uso: parque, reserva, território indígena. Entre elas, a Terra Indígena Val Paraíso. Em 13 de agosto, o Dia do Fogo, conforme denuncia o Cacique Antonio José, um grupo de grileiros queimou 600 hectares de florestas da área reivindicada pelos Apurinãs.

Cacique Antônio José abrindo a porteira dos lotes que dão acesso à Terra Indígena Val Paraíso. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Ao cruzar a quinta porteira, finalmente estamos perto da entrada da mata da Terra Indígena Val Paraíso, à beira do Igarapé Retiro. O Cacique Kaxuqui, que é primo e companheiro de luta de Antônio José, desce da moto. Antônio nos convida a descer do carro, porque eles gostariam de falar. De um lado da cerca estamos nós, do outro, incontáveis cabeças de gado, que se espalham pelos cinco lotes que acabamos de atravessar. Os caciques nos explicam o que vemos ali. “Devastaram nossas terras, coisas que nós vínhamos preservando de 100 anos atrás. Onde nasceu vovô, meu bisavô, meus tios tudo”, lamenta Kaxuqui, 58. Antônio José continua: “Eu tenho 54 anos, nunca sai daqui. Esse pessoal, esse que se diz dono daqui onde estamos pisando agora, não é daqui não, é descendente de português. E nós que somos indígenas, que moramos aqui desde sempre, que comprovamos, estamos assim sem direito à terra”.

Escute a denúncia dos caciques Apurinãs:

Os Apurinãs reivindicam a demarcação da Terra Indígena Val Paraíso desde 1991. O processo se encontra nas mãos da FUNAI. Os indígenas aguardam há anos a finalização dos estudos de identificação e delimitação da área, onde vivem 46 pessoas de 7 famílias. No início do processo, os Apurinãs reclamavam a demarcação de 57 mil hectares. Mesmo com o processo correndo na Justiça, suas terras passaram a ser invadidas, terem a mata derrubada, transformadas em campo e, posteriormente, fazenda de criação de gado. Há um tempo atrás, reduziram a reivindicação para 26 mil hectares, em uma tentativa de facilitar a demarcação. “Fizemos um acordo com os fazendeiros. O que já é campo é deles, o que é mata é nosso. Mas mesmo assim eles continuam invadindo e brocando a floresta”, conta Antônio José. Brocar é o verbo que os Apurinãs usam para descrever a ação de quem derruba a mata. “Não é por falta de informação não. A gente tem tudo documentado. O IBAMA(Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), o Ministério Público, o Terra Legal tem o conhecimento que isso aqui foi reivindicado enquanto tinha mata, enquanto estava intacto. Só existe essa mata que vocês estão vendo aí na beira do igarapé porque a gente vem tentando preservar ela de 91 até agora”.

Para Lindomar Dias, do Conselho Missionário Indigenista, estas articulações de tomada de território se dão há muito tempo. No caso dos indígenas, acontece desde sempre. “Efetivamente o Brasil, como país, nasce espoliando e roubando território dos povos originários. E trata esses povos como se não fossem originários. Tratam essa gente como se fossem estrangeiros, quando na verdade são donos. Adquiriram esses direitos não comprando os territórios, mas apenas vivendo, se confundindo com o território, se fundindo com ele”. Para Dercy Teles, tradicional seringueira do município de Xapuri, quem também escutamos na passagem pelo Acre, os ataques são movimentos de extinção das populações que dependem da floresta. “Para quem não contribui para o desenvolvimento do capitalismo, não é de interesse a existência sobre um território”, defende. 

Indignados, os caciques apontam para a direção de cada área desmatada ou terra grilada. Antônio José assinala cada responsável. “O Joaquim derrubou 500 hectares por 2 mil, mais 500 por outros 2 mil e venderam para o Brana. Isso atrás do Igarapé Preto, dentro da nossa reivindicação. Tudo isso eles sabendo que é uma Terra Indígena. E hoje quem é o dono é o Brana, um cara lá de Rio Branco. O Bezinho derrubou 392 hectares da Fazenda Riachão extremando com a fazenda Cruzeiro, à beira do Igarapé Preto, onde também é dentro da nossa reivindicação. O Júnior do Betão já comprou. Isso nós temos tudo no mapa”.

Pecuária ostensiva em terras da união

Nas campos de gado, os fósseis de árvores denunciam queimadas antigas. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

São muitos nomes na ponta da língua, um vinculado ao outro. Uns são responsáveis por entrar e cortar as árvores. Outros por grilar a terra, cercar, encaminhar alguns papéis. Quando baixa o “banzeiro”, como chama Antônio José o burburinho pela invasão da terra, outro vem e compra. E aí coloca gado, o negócio mais comum da região. Segundo o IBGE, Boca do Acre tem o segundo maior rebanho de gado do estado do Amazonas. Perde apenas para o de seu vizinho, Lábrea. Juntos, os municípios contam com 510 mil cabeças de gado, 38% do rebanho da Amazonas. São 6,4 bois para cada habitante.

O principal destino desse gado é o frigorifico Frizam/Agropam, em Boca do Acre. De acordo um levantamento do Idesam, de 2013, o matadouro respondia por 31,3% do total do abate no estado do Amazonas.

Boca do Acre faz parte do Arco do Desmatamento, região que a fronteira agrícola avança sobre a mata nativa da Amazônia. O município possui 372 áreas embargadas pelo IBAMA. Isso acontece quando o fiscal do órgão constata que um pecuarista derrubou floresta sem autorização ou não está respeitando a área de reserva legal da propriedade. Com a fazenda embargada, fica proibida a criação de gado. A pecuária ocupa 80% da área desmatada da Amazônia Legal, segundo o relatório de 2015 da Procuradoria do Meio Ambiente do Ministério Público Federal. Quase 40% das 215 milhões de cabeça de gado do país pastam na região amazônica.

As estradas de Rio Branco a Boca do Acre é tomada de latifúndios da pecuária. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Em Boca do Acre, mesmo com o número significativo de propriedades embargadas, o movimento no Frizam/Agropam não reduziu nos últimos anos. Isso porque o gado de fazendas notificadas chegava ao estabelecimento com documentado falsos. Os animais são registrados como originário de propriedade que não estavam proibidas de comercializar. Segundo o gerente do frigorífico, nada pode fazer para fiscalizar estas fraudes. 

Acontece que o Frizam/Agropam tem como acionista principal o pecuarista amazonense José Lopes, que possui nove fazendas embargadas em Boca do Acre. Segundo o jornalista Leonildo Rosas, do Blog do Rosas, José Lopes é o maior pecuarista do Amazonas, dono de mais de cem mil cabeças de gado. O “rei do gado”, como é conhecido, já foi tesoureiro de campanhas eleitorais e o dinheiro público tem forte influência no crescimento do seu império da carne. Lopes trabalhou nas campanhas do Senador Eduardo Braga (PMDB) e do governador do Amazonas, Omar Aziz (PSD). Também atuou na campanha do governador Amazonino Mendes (PFL), que administrou o Estado de 1999 a 2002. Dentro desse período, no ano 2000, a Ciama (Companhia de Desenvolvimento do Estado do Amazonas), empresa pública do Governo do Amazonas, que tem entre suas finalidades promover o desenvolvimento ambiental no âmbito estadual, investiu mais de R$ 14 milhões na sociedade com o frigorífico Frisam/Agropam. Assim, a Ciama se converteu em uma das quatro sócias do frigorífico.

Não para por aí: na ata da assembleia geral ordinária do Frisam/Agropam de 03/06/2013, da qual o portal Amazônia Real teve acesso, consta que o frigorífico tem quatro sócios: além de José Lopes e a Ciama, completam a lista José Lopes Júnior e Alessandra Lopes.

Estes últimos, filhos de José Lopes, tem em seus nomes as terras com gado, cercas e porteiras, sem mata, que ultrapassamos para entrar na Terra Indígena Val Paraíso, do povo Apurinã. “O José Lopes registrou uma terra aqui que nós vinha vovô mais eu lá do Bom Lugar até aqui buscar peixe no Poção do Arroz”, lembra Antônio José. “Aí era bom de peixe. Em 2010 o Lopes registrou esta área como Porão do Arroz, ficou como dono. Nós que abrimos isso aí, o avô do Kaxuqui que morava aí na beira. E nós morando aqui há tantos anos e ninguém nos reconhece”. Kaxuqui completa: “Nunca vendemos um pedaço de terra. Pelo contrário. Queremos morar, dar o direito para nossos filhos, para os nossos netos. O que queremos é o que é nosso. O que queremos é que respeite a nossa cultura, o nosso direito e o nosso modo de viver. A gente não quer fazenda, não quer gado, para nós sermos reconhecidos a gente não precisa ser fazendeiro”.

Cacique Antônio José pede a demarcação da terra do seu povo. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Em um dado de 2013 do IBAMA, as multas para os crimes ambientais expedidas em nome de José Lopes somam mais de R$ 3 milhões, resultado da destruição de 955,14 hectares de floresta nativa da Amazônia Legal. Recentemente, o pecuarista foi preso em três operações da Polícia Federal. Em maio, na operação Ojuara, foi denunciado pelo Ministério Público Federal, acusado de ser uma entre 22 pessoas envolvidas em crimes ambientais. Os acusados invadiam terras da União, comandavam desmatamentos e contratavam policiais militares para fazer a proteção das máquinas e das áreas de desmatamento. Entre as ilegalidades, uma diligência falsa do IBAMA do Acre em setembro de 2017, serviu para alertar os fazendeiros sobre uma operação nacional do IBAMA no mês seguinte. Nesta época, o superintendente do órgão era Carlos Gadelha, que também foi denunciado pelo MPF de estruturar empresa para oferecer defesas administrativas e judiciais para os desmatadores do sul do Amazonas contra ações do próprio IBAMA. Em 25 de junho, José Lopes foi solto por decisão da desembargadora Mônica Sifuentes, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que substituiu a prisão preventiva por medidas cautelares. Ele voltou a ser preso em 30 de julho na operação Maus Caminhos. José Lopes é acusado de receber R$ 1 milhão em propina do médico Mouhamad Moustafá, apontado como líder da organização criminosa que desviava recursos da saúde do Amazonas através do Instituto Novos Caminhos (INC). Além da Maus Caminhos, o pecuarista ainda responde por crimes ambientais no comércio ilegal de madeira detectados pela operação Arquimedes. “O cara é preso e ainda tem todo o direito de criar o gado e vender, de dentro de uma terra da União. E continua derrubando e mandando derrubar. E nós que estamos aqui preservando não temos o direito à nossa terra”, desabafa Antônio José.

Para completar, a grande parte da carne de gado que passa pelo Frizam/Agropam sequer é usufruída pela população da região. Funcionários do frigorífico revelam que cerca de 20 carretas por mês partem com destino a outros países. China, Japão, Estados Unidos são alguns citados. “Aqui no Amazonas a gente não come carne do boi macho, só da vaca. Os garrote bom, a carne boa tudo vai para fora. Todo esse gado que causa esse prejuízo aqui no Amazonas não é para consumo dos amazonenses. Sim para estrangeiros, que acabam fornecendo o recurso para esse desmatamento”, reclama o Cacique Antônio José.

A maioria do gado abatido em Boca do Acre tem sua carne enviada para o exterior. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

José Lopes e sua família é um sobrenome a quem os Apurinã resistem. São vários outros. A disputa é desleal, além dos fazendeiros, os indígenas enfrentam a omissão do estado. Seja na negação de direitos básicos, como saúde, energia, educação, um dos fatores que faz com que parentes tenham que se afastar da vida na mata. Seja pela ineficiência das instituições públicas impedirem e punirem os invasores de terra. Seja por aqueles que usam indevidamente o Estado para propagar o seu discurso. Ou usam seu discurso para chegarem até o Estado. É o caso do presidente Bolsonaro, mas também é caso do Francisco Sales de França, o Mapará. Vereador de Boca do Acre, é um dos grileiros e desmatadores da Terra Indígena Val Paraíso. Mandou derrubar árvores em 2017 e 2018. Segundo Antônio José, são 200 hectares desmatados por Mapará. O político assume a ação. “Ele se sente fortalecido por ser vereador”. 

Cacique Kaxuqui em frente as casas da Terra Indígena Val Paraíso. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

No dia 19 de agosto, o cacique Apurinã gravou vídeos de denúncias na margem do Igarapé Preto. No outro lado da água, o barulho da motossera e dos troncos caindo. Antônio José narra. “Você pode ouvir a zuada do motor dele. Só queria mostrar isso ao MP, à Funai, de como está sendo destruída a mata da TI Val Paraíso”.

Segundo o Cacique, a maior derrubada do ano na Terra Indígena, 600 hectares, teve o incentivo do parlamentar de Boca do Acre. Mapará se elegeu dizendo que vai legalizar as terras invadidas, como as de Val Paraíso. “Todo mundo sabe que vereador não tem capacidade de regularizar terras federais”, rebate Antônio José. Mas a gente também sabe que os discursos forjam legalidades.

Nossa intenção ao visitar os Apurinãs, além de escutar os caciques e prestar solidariedade, era registrar essa “brocada” de 600 hectares. No dia seguinte, sairíamos ao amanhecer. Antes de deitarmos nas redes recém penduradas, Antônio José pega a pasta que carrega consigo. Nela, folhas de ofício com imagens de satélite dos últimos anos da área reivindicada pelos Apurinãs. Aproxima-se da lamparina de querosene, com os mapas na mão. O cacique Antônio José vai descrevendo a localidade e quantos hectares foram desmatados no último ano, repetindo o gesto de horas antes, ao lado da cerca. Desta vez, aponta as derrubadas no mapa. Também indica, indignado, quem é o responsável por cada “brocada”. Já são milhares de hectares desmatados dentro dos 26 mil reivindicados pelos Apurinãs.

O mapa mais recente da exploração da terra dos indígenas Apurinã. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

O INPE é a fonte de informações dos mapas, elaboradoras com o auxílio da FUNAI. Na parede da OPIAJBAM (Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi de Boca do Acre), local em que encontramos Antônio José, cartazes afixados indicam o legado de um curso recente. Os indígenas estão estudando o uso de um software de cartografia, a fim de emitirem os mapas de forma autônoma.

A cartografia é uma ferramenta de luta pelo direito fundiário e também contra o desmatamento. Vale lembrar que quando o tema das queimadas veio à tona, o Presidente Bolsonaro sinalizou como seu governo lida com a ciência ao demitir o diretor do INPE, Ricardo Galvão, no dia 2 de agosto. Quando divulgado um estudo do aumento das queimadas na Amazônia (68% em relação a julho de 2018), Bolsonaro declarou que o Instituto estaria a serviço de alguma ONG e que os dados não estariam corretos. Após Ricardo rebater as declarações de Bolsonaro, foi exonerado do cargo. A demissão foi alarmante para o meio científico e para os que trabalhavam na situação das queimadas na Amazônia. Alguns dias depois, questionado sobre a exoneração e a relação com o Ricardo Galvão, respondeu: “Não peço, eu mando”.

O comércio de madeira ilegal

No dia seguinte, partimos para quase 3 horas de caminhada. Nosso destino: os 600 hectares queimados no Dia do Fogo, 13 de agosto. 

Em três pontos na mata, encontramos galões de gasolina e óleo queimado usados nas motosserras. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Atravessamos várias vezes o igarapé, passamos por locais que já são campos e por dentro da mata. No meio do caminho, uma pausa. De cima do que resta do tronco de um cedro recém cortado, Antônio José relata: “dia 19 de agosto passamos aqui para ver esta derrubada de 600 hectares que estamos indo ver e isso daqui estava intacto”. Segundo o Cacique, os madeireiros entram na mata bruta, derrubam, tiram a madeira de lei, como o Cedro, a Itaúba. Depois derrubam a mata por cima dos troncos. “Para a gente não ver o tipo de madeira que eles tiraram”. No próximo ano, eles vão queimar com a intenção de limpar e aproveitar o restante da madeira que ficou. A partir daí, começam a formar o pasto para a criação de gado. “Este é o modelo que eles usam para invadir e grilar as terras indígenas que a gente protege. Isso aqui faz 5 dias, está tudo derrubado, e o IBAMA está aí em Boca do Acre, mas eles continuam derrubando”, denuncia o cacique.

Árvores recém cortadas, ainda não removidas na TI Val Paraíso. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

As madeiras que saem desta área são cortadas com motosserra no verão, segundo Antônio José. No inverno, os madeireiros entram pelo igarapé, de balsa, carregam a embarcação e levam até o porto de Boca do Acre no entardecer. Ali, como relata o cacique, os criminosos tem um esquema para colocar as madeiras em um caminhão baú, que viaja já à noitinha até Rio Branco. A carga passa pela estrada como se fosse um frete qualquer. Na capital do Acre, a madeira é “esquentada”. Essa é a expressão usada para designar o ato da madeira ser selada como se fosse oriunda do sistema de manejo florestal acreano. “É assim que eles fazem a retirada de madeira indígenas para exportação dentro da terra indígena, dentro das terras da união. Toda madeira que é tirada do Amazonas é ilegal”. 

Assista a denúncia de Antônio José:

O que resta da madeira derrubada em meio à mata da TI Val Paraíso. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil
A madeireira Transacreana é um dos principais destinos de troncos de manejo na AC-90
Cacique Antônio José e Kaxuqui em um dos capins queimados que passamos no caminho. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil
Travessia do Igarapé Retiro em direção à queimada. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Após o relato de Antônio José, seguimos pela mata, escutando ao fundo o ronco do motor da motossera. Caminhamos mais um tanto e, com dificuldade, o mato derrubado vazia uma barreira complicada de atravessar, chegamos à área queimada. Assim como no território Huni Kuin, onde havia verde, há cinza. Troncos pretos caídos. Tocos serrados, também carbonizados. 

Cacique Antônio José observa a destruição de 600 ha de mata

Alguns pequenos arbustos de áreas que resistiram ao fogo e a macega de mato derrubado dificultam a visão no horizonte. No entanto, subindo em algum tronco, olhando para um lado e para o outro, não se vê copa de árvores em pé nas imediações. Uma faixa de destruição. Antônio José denuncia: “Eles pagam a queimada e depois assumem, dão prosseguimento na retirada de madeira, semeando planta e criando gado. Está é a forma de eles grilarem as terras da união da Amazônia. Aqui em Boca do Acre funciona desse jeito. Ninguém tem documento de assentamento de INCRA. E todo mundo se apossa, todo mundo diz que tem. Faz financiamento, faz Cadastro Ambiental Rural e ficam como proprietário”. Os caciques falam indignados, focados na oportunidade de denúncia.

Tanto na estrada para os Huni Kuin (Rodovia AC-90, a Transacreana) quanto para os Apurinã (BR-317) e para Xapuri (a mesma BR-317) impressiona a quantidade e extensão dos latifúndios de criação de gado. Onde antes era floresta, é campo. Uma imensidão de capim. Restam em pé somente algumas castanheiras, árvores protegidas por lei. Algumas esplendorosas, vivas. Mas muitas já mortas, aniquiladas pouco a pouco pelas diversas queimadas que foram submetidas. Se mantém em pé porque, mesmo mortas, resistem por anos.

Cacique Kaxuqui sentado em uma castanheira que antes era sustento. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Nos últimos 600 hectares desmatados na Terra Indígena Val Paraíso, nem as castanheiras escaparam. Segundo Antônio José e Kaxuqui, derrubaram 150 exemplares da espécie. Sentado no que resta do tronco de uma das que ainda não foi removida, Kaxuqui conta que os Apurinãs coletavam cerca de 500 latas de castanhas naquele local. Uma de suas principais fontes de renda. “Essa aqui é uma castanheira que nós tirávamos o sustento da nossa família. Hoje ela está aqui queimada. Essa aqui não volta mais para esta terra. A terra que nós preservava, a terra que nós precisava está desse jeito, destruída pelos fazendeiros”, lamenta Kaxuqui.

Fóssil de castanheira é um triste monumento da floresta que ali existiu. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Na estrada, vimos carcaças sendo consumidas por urubus. Troncos de vários metros de diâmetros em cima de caminhões. Escutamos sobre a ameaça que os caciques sofrem. No entanto, as castanheiras fossilizadas pelo fogo foram o símbolo, os monumentos mais melancólicos da destruição que assola estes territórios.

Na AC-90, a rodovia Transacreana, muitos caminhões de madeira estão na estrada. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Os Apurinãs resistem, cercados pelo olhar ganancioso de jagunços, fazendeiros e do mercado internacional. Kaxuqui já recebeu propostas para deixar a área. Ao rejeitar, passou a ter um drone sobrevoando por dias em volta da sua casa na mata. Antônio José já teve a sua morada queimada e não anda mais por qualquer lugar. “Sou ameaçado, sou mal visto por defender minha terra. Não vivo mais como vivia antes. Na cidade, me olham como se eu fosse mau para o povo, mau para o mundo. Não entendo isso”. São 54 anos vivendo no mesmo lugar, mas o respeito não é regra. “Nasci aqui no Bananal, continuo vivendo, defendendo as mesmas terras. Os que me consideram são os meus amigos antigos, de 50 anos para frente. Esta meninada nova de 20 anos, 35 anos acha que eu estou atrapalhando o desenvolvimento. Porque eles querem estar aqui derrubando, ganhando dinheiro. Não é isso que a gente quer, a gente quer que todo mundo cresça, mas respeitando o direito de cada cal”. Já solicitou na 6ª Câmara Federal de Brasília escolta policial, que foi concedida. Mas a polícia local não possuía contingente para suprir a demanda. Sugeriu que ele deixasse o local. “Não tenho como sair daqui, meu conhecimento está aqui”.

Antônio José e Kaxuqui expõe os mapas que usam para analisar o aumento das queimada e da grilagem em suas terras. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

O que acontece com os Apurinãs não é caso isolado. Pelo contrário, é um ataque sistemático que acontece contra os povos indígenas e seus territórios em toda Amazônia e pelo Brasil. Nesta ofensiva, são diversos os atores. 

Tem aqueles que estão na ponta, na exploração direta, através da invasão das terras, da extração de madeira, da criação de gado ou, ainda, do garimpo. Como mostra a história a cima. E há também os que estão na outra ponta, os que financiam estas ilegalidades. Por exemplo, países da Europa se manifestaram em defesa da Amazônia com as queimadas recentes, mas é um continente que compra carne e madeira de áreas desmatadas há anos. A JBS e Marfrig, empresas com destaque mundial na produção de proteína animal, principais exportadoras de carne do Brasil para a Europa, compram gado de fazendas irregulares. Em 2018, o Repórter Brasil fez uma matéria sobre venda de madeira ilegal para a Dinamarca. Sete das principais lojas varejistas da construção não souberam dizer a procedência da madeira brasileira que vendiam. 

Na AC-90, conhecida como Rodovia Transacreana, o gado pasta sobre ao lado das cinzas. Foto Douglas Freitas / Amigos da Terra Brasil

Os atores desses ataques estão e tem seus representantes na política. A começar pelo presidente do país. Bolsonaro disse, durante a campanha, que não vai demarcar 1 cm de terra indígena. O irmão do presidente se articula com ruralistas para impedir, junto a representantes do governo, demarcações.  O processo de demarcação, já no governo Bolsonaro, é ameaçado de ser transferido para o Ministério da Agricultura, onde reinam os ruralistas. Proposta semelhante a que propunha a PEC 215, em que a palavra final sobre a consolidação da terra indígena ficava a cargo do Congresso Nacional, onde, hoje a maior e mais poderosa bancada é a ruralista. Esta bancada é a chamada Frente Parlamentar Agropecuária, um lobby bancado por associações e empresas do agronegócio, que conta agora com 257 signatários, entre deputados federais e senadores. No dia 4 de julho, Bolsonaro declarou, em um encontros com estes políticos: “Esse governo é de vocês”.  Como mais um exemplo de ataque, o Congresso propôs a recente PEC 343, que dá à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) o poder para decidir pela liberação de até 50% dos territórios indígenas a ruralistas, garimpeiros e outros setores, sem consulta às comunidades tradicionais. Nesta lista de atores, não podemos esquecer da Rede Globo, maior emissora de televisão do país, que há dois anos tem como principal publicidade nos seus horários nobres a campanha “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo”. Uma série de campanhas publicitárias que glorificam e expõe mentiras sobre o agronegócio brasileiro, como, por exemplo, que vem daí a fonte dos alimentos do país. É mentira. A maior parte da alimentação do povo brasileiro vem da agricultura familiar. Além destas publicidades, a Globo decide o que é e o que não é pauta em um sistema de promiscuidade com grandes setores do agronegócio, de empresariado, dos setores que historicamente atacam o povo do país. 

Estes são alguns exemplos dos que os indígenas e outras comunidades tradicionais enfrentam no Brasil. Abaixo, alguns acontecimentos de violência direta, só dos últimos dias, em setembro: 

Os ataques são históricos e permanentes. E mais complexos do que parecem – descubra na segunda parte da matéria “O ganha-ganha por trás das queimadas da Amazônia: quanto valem a preservação e as falsas soluções do capitalismo ‘verde’, e quem compensa as compensações?”

Veja mais fotos da ronda de solidariedade pelo ACRE:

Vale do Ribeira: estado de São Paulo derruba casas e expulsa comunidade caiçara de seu território

No dia 4 de julho, três casas foram arbitrariamente demolidas no Território Tradicional Caiçara do Rio Verde/Grajaúna, localizado na região do Vale do Ribeira, entre São Paulo e Paraná. Sob ordem do governo do Estado de São Paulo, as famílias caiçara foram despejadas de seus territórios, sem oferta de qualquer alternativa habitacional pelo Estado.

As autoridades justificam as demolições e a expulsão da comunidade pelo fato de as famílias estarem vivendo em uma área de Unidade de Conservação de Proteção Integral. Contudo, as famílias tradicionais caiçaras, ancestralmente presentes na região, são as responsáveis pela conservação da rica biodiversidade existente ali. O local em que vivem foi estabelecido como “Estação Ecológica Jureia-Itatins” e há anos é alvo de inúmeros conflitos socioambientais, que injustamente recaem sobre as famílias.

Caiçaras são povos tradicionais remanescentes de indígenas, negros e colonizadores europeus, que habitam a costa do sudeste do Brasil

 

Este modelo dos parques estaduais, que foi implementado de maneira autoritária pelo governo do Estado, ocorre sem diálogos com as comunidades tradicionais caiçaras, negando a existência dos povos no local. Cabe destacar que a ordem de expulsão promovida pelo governo de São Paulo viola princípios e direitos constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos consolidados nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, na Convenção 169 da OIT, no Decreto 6.040/2007, no Sistema Nacional de Unidades de Conservação, na Lei da Mata Atlântica – que prevê a utilização de recursos naturais por comunidades tradicionais – e na Lei Estadual nº 14.982/2013, que garante expressamente o direito de permanência e existência digna das famílias caiçaras em qualquer área da Jureia, inclusive no Rio Verde/Grajaúna, região em disputa.

Modos de vida tradicionais ameaçados
As famílias destas comunidades estão na região há várias décadas, mantendo uma relação de convivência coletiva, incluindo a obtenção do sustento material com práticas tradicionais de preservação e sustentabilidade ambiental. A violação de direitos coletivos e dos povos contra as comunidades caiçaras ocorre há muitos anos: muitas famílias estiveram reféns da sobreposição de Unidades de Conservação de Proteção Integral, sendo proibidas de manter seu modo tradicional de vida. As dificuldades para continuar vivendo na região, advindas das medidas restritivas para proteção ambiental, levaram e ainda levam muitos moradores a saírem de suas comunidades e irem para os centros urbanos mais próximos, ocupando a periferia das cidades.

As famílias expropriadas de seus territórios relatam que “o que está em risco são as nossas famílias, a nossa cultura caiçara, o nosso modo de vida, rico em etnoconhecimento e, além de tudo, a natureza, com a qual a nossa tradição se formou. Natureza que mais uma vez volta a estar sob a sombra dos grandes interesses econômicos e políticos”.

Leia a carta da comunidade. Mais informações também no Cimi e Brasil de Fato.

QUASE EXTINTOS

Ainda é possível encontrá-los; ação predatória de empresas e governos, porém, ataca diretamente seu modo de vida e subsistência. Resultado transformará – em um futuro não tão distante e não tão distópico – a pesca artesanal em prática esquecida de um outro tempo. É mesmo verdade: o que o capitalismo não engole ele destrói.

Um outro tempo de fato, e sobre isso algumas explicações são possíveis: o barco não vai rápido, desapressado riscando a superfície líquida; e há o horizonte, veja que o homem não soube ainda destrui-lo sobre as águas: e o horizonte permite que se veja de longe o destino a chegar; efetua-se então uma lenta e respeitosa aproximação, onde também aquilo que é destino vê o visitante se acercar, em um balanço que deseducadamente ignora o enjoo causado ao tripulante inexperiente – tum tum tum – tum tum tum martela o motor em seu esforço de empurrar a embarcação água afora. Ora! Afronta absoluta às regras máximas do Tempo Vigente a comandar as engrenagens dos relógios do Agora que grita – Sempre mais rápido! – Sempre mais intenso! – Sempre mais! E ergue-se firme a voz da pescadora – Não no mar e não nos rios, responde – E acalme-se, respire fundo se ainda souber como, não espante você meus peixes com a sua pressa e a sua sujeira.

Flutuando, o tempo se expande, dilata-se o espaço: a relação com o que há na volta e com o que há dentro não é de mero uso, mas de pertencimento: e já não falamos de coisas, de objetos, de um algo qualquer palpável e possível de delimitar por cercas e arames farpados. Que não é terra sabemos, é água; contudo é mais: é território. Pescadora-pescador-peixe-marisco-lula-camarão-profundeza-água-alga-e algo mais que havia já ali antes dos tubos e dutos enferrujados, antes do óleo sugado e derramado, antes das plataformas cuspidoras de chamas, antes dos desajeitados navios estacionados: um ancestral equilíbrio estabelecido desde Tempos Desmemoriados e exatamente por isso não manipulável por quem se alimenta da urgência: não haverá medida de compensação possível quando o desequilíbrio imposto pela avidez do lucro arruinar o futuro da paz. E diz-se isso não só por teimosia, não, e nem é mágica ou profecia clarividente: é apenas que não há maneira de o homem, pequena parte de um universo complexo, rebalancear a multiplicidade das vidas que são bem mais amplas que a sua sozinha. Simplesmente foge às suas capacidades, embora saibamos não ser a humildade um ponto forte seu, e assim repetem-se e repetem-se as promessas vazias de pretensas indenizações pelos estragos causados, como se de alguma forma fosse possível compensar a morte. O homem se vê fora de seu ambiente, supremo, quando na verdade está dentro e é parte – constatação que parece óbvia se aqui estamos em meio a tudo mais o que há: e faz-se parte importante quando é ele – e falamos deste tipo específico de homem – quem espanta o peixe, impossibilita e proíbe a pesca e assim extingue, ou quase extingue porque se resiste, a pescadora e o pescador artesanal. Talvez seja mesmo da essência do maior se alimentar do menor: pois mostre-se a estes homens toda a sua pequeneza.

Ora: o capital não deixa nunca de correr e de usar e de gastar e de desperdiçar para que possa fazer sempre mais e gastar e usar sempre mais e desperdiçar tudo outra vez para então recomeçar seu ciclo doente, e o que produz em sua sede insaciável de ter sede é nada além da morte: talvez a prestações, talvez fantasiada de vida quando apela às paixões rápidas – e ainda assim a morte. Um sistema que não deixa de reproduzir a si jamais, canibal viciado em seu próprio consumo, engole tudo a sua volta para depois vomitar a mesma pasta acinzentada que constrói os horizontes das cidades modernas – não no mar, já disse! – e nem nos rios!, retumba forte a voz das águas: outro tempo e outro espaço se estabelecem ali, sublime resistência. Desafia-se o apocalipse neoliberal lembrando a vida de outra alternativa, dá-se outra chance: há nelas e neles, nas mulheres e nos homens do mar, outra forma de existir. Portanto escute! – antes dos mares terminantemente contaminados e dos rios secos, antes que restem só as pedras e os minérios e os óleos e os gases e a ferrugem e a poeira e as doenças, antes que já não tenha volta: olhe ao redor. Que o sol vai se pondo já, mas logo amanhece. Veja os peixes que ainda saltam e as redes que costuradas à mão ainda os agarram – e nunca em excesso, apenas o suficiente para que ambos sigam o ancestral jogo da fuga e da captura. Veja a vida que insiste em permanecer viva e as pescadoras e os pescadores que não aceitam uma extinção imposta e que lutam ainda – e de forma simples até: pescando em seus barcos desapressados que navegam até um novo horizonte; sentando-se sobre plataformas desconvidadas até que estas percebam a inconveniência de suas presenças sobre e sob as águas; insistindo em contar as histórias que fazem de seus feitos exemplos.

Não há como resistir a quem da água é cúmplice: no fluxo indomável dos ribeirões e dos riachos e das cachoeiras e dos lagos que desembocam nas baías e nos mares, desfazem-se as impurezas corporativas atiradas e despejadas em seus corpos; purifica-se, ainda que leve gerações, e volta sempre à vida: verdadeiro milagre da ressurreição em cada canto que flor e água insistem em brotar. Apesar de todos os ataques dos homens que querem lucros, diretores e governadores e investidores que falam outras línguas e que nunca entenderão a língua da pesca e a língua dos territórios, confusos e perdidos no tempo-espaço de um desenvolvimentismo que anda pra trás; apesar da raiva capitalista que tem sede pelo sangue de quem ousa defender os direitos dos povos: segue em pé a gente acostumada a se equilibrar sobre as tábuas gastas das velhas embarcações, que muito já navegaram, independente do mau tempo, partindo e chegando, atentos sempre aos sinais da maré, velha parceira, seguem firmes – tum tum tum – tum tum tum repete o motor em ritmo constante como a dizer, teimoso – Não vou parar ainda, nós não vamos sumir…

Dia Mundial do Meio Ambiente: nada a comemorar diante do desmonte ambiental de Bolsonaro

O Dia Mundial do Meio Ambiente é uma data de reflexões e denúncias acerca dos prejuízos socioambientais no mundo e da degradação e exploração promovidas pelas grandes empresas sobre os territórios. Neste ano, especialmente no Brasil, não há nada a comemorar diante do desmonte ambiental promovido pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL).

Já no período eleitoral, diversas organizações e movimentos sociais ligados à pauta ambiental alertavam sobre a falta de propostas que preservassem e valorizassem a biodiversidade brasileira no plano de governo de Bolsonaro. Pelo contrário, suas intenções eram claras – e têm se confirmado: entrega dos bens comuns às grandes empresas do capital internacional, ataque aos povos originários e comunidades tradicionais e perseguição aos movimentos sociais e ao campesinato. Os cinco meses de mandato já podem ser considerados os mais desastrosos da história da política ambiental brasileira, pois o que se vê é um enorme desmonte dos órgãos de fiscalização e licenciamento ambiental, setor que vive o maior ataque institucional já promovido nos últimos 30 anos.

Apesar das tentativas de acabar com o Ministério do Meio Ambiente, a proposta foi barrada graças à mobilização da sociedade civil e à repercussão negativa no cenário internacional. Ainda assim, a nomeação de Ricardo Salles para a pasta, envolvido em processos de crime ambiental, já representa a total desestruturação do ministério e o compromisso em cumprir a agenda do agronegócio e dos desmatadores.

Além disso, medidas absurdas como a decisão do presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, de contrariar um parecer técnico feito por um comitê especializado e autorizar o leilão de campos de petróleo ao lado do Parque Nacional de Abrolhos e a troca de toda a diretoria do ICMBio por policiais militares, demonstram o total desprezo pela pauta ambiental.

Três meses depois da posse de Bolsonaro, o chefe do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental do Ibama, José Augusto Morelli, foi demitido. Morelli foi responsável por flagrar o então deputado federal Jair Bolsonaro em um barco com varas de pescar e recipientes para peixes na Estação Ecológica de Tamoios, onde a pesca é proibida.

Salles também anunciou a revisão de todas as Unidades de Conservação do país e um Projeto de Lei do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) defende o fim das Reservas Legais – área protegida que não pode ser desmatada em propriedades rurais.

Também nunca foi tão rápido registrar um agrotóxico no Brasil: o ritmo de liberação atual é o maior já documentado. Até 14 de maio, foram aprovados 169 produtos, número que supera o total de 2015, quando iniciou a disparada. É mais que um por dia!

Mesmo não havendo uma saída oficial do Acordo de Paris, a política climática está longe de ser prioridade do governo, que classifica o aquecimento global como pauta de esquerda. Além de vetar a realização da COP25 no Brasil, que agora será no Chile, há um grande desmantelamento da política climática que vinha sendo construída por sucessivos governos e pela luta dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil.

Houve corte de 95% da verba destinada para essas políticas, e Salles exonerou o coordenador Executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas.

O presidente afirma que vai defender que a exploração das terras independa de laudos ambientais ou da Funai. A tentativa de barrar as demarcações indígenas deve-se ao fato de que Bolsonaro deseja explorar a Amazônia, principalmente para a mineração, que deverá ser feita através de “parcerias com países como os Estados Unidos” (palavras do presidente) .

Com seus modos de vida tradicionais, os povos indígenas são hoje as principais resistências aos ataques da monocultura e da mineração. Não à toa, cientistas estimam que o desmatamento da Amazônia pode triplicar após a eleição de Bolsonaro.

Ainda que a postura do governo anterior estivesse próxima às exigências do mercado, fosse de conciliação e de “garantia da governabilidade”, especialmente em relação à infraestrutura e ao extrativismo, atualmente, a situação se agravou, já que os brasileiros estão sob o governo de um grupo com tendências e discursos fascistas, com atuação econômica ultraliberal e com postura explicitamente antidemocrática.

Dessa maneira, movimentos sociais, comunidades tradicionais e outros grupos da sociedade civil estão sendo criminalizados e perseguidos. A ONU e a Comissão Internacional de Direitos Humanos manifestaram preocupação com as mortes de defensoras e defensores de territórios e dos direitos dos povos, como o assassinato da militante do MAB, Dilma Ferreira.

Neste ano, dados preliminares do Deter mostraram que o desmatamento acelerou em cinco meses de governo Bolsonaro, atingindo a maior velocidade em uma década, o que pode significar um aumento na atividade de madeireiros e mineradores ilegais na região, encorajados pela decisão do governo do presidente de afrouxar as medidas de proteção ambiental.

Pra completar, o governo já anunciou que pretende ressuscitar a MP867, que promove a anistia dos desmatadores e reabre as discussões do Código Florestal rompendo  o pacto social estabelecido em 2012, após 4 anos de negociações, e que custou a legalização de 29 milhões de hectares de desmatamento ilegal ou 58% do território.

Guaranis da Ponta do Arado denunciam violações do Arado Empreendimentos Imobiliários

Assista à denúncia dos mbya guaranis da Ponta do Arado sobre o isolamento involuntário e sobre o monitoramento compulsório que veem sofrendo por parte da Arado Empreendimentos Imobiliários.

 

Mata alagadiça da Ponta do Arado


No dia 15 de julho, à beira do Guaíba, no bairro Belém Novo, no que hoje é o extremo sul da cidade de Porto Alegre, famílias de guaranis retomaram suas terras ancestrais, onde vivem diversas espécies de animais em uma área de mata de banhado, própria daquele local. Depois de seis meses, passaram pelo inverno rigoroso de Porto Alegre e hoje, segundo o Cacique Timóteo Karay Mirim, são uma aldeia, a Tekoa Yjere – que significa “ilha”, como os guaranis vêem à Ponta do Arado. Atualmente, eles e quem os visita só conseguem chegar na aldeia de barco. Neste período de meio ano, os indígenas também resistiram às iniciativas de coerção e ameaças por parte dos seguranças e funcionários do Arado Empreendimentos Imobiliários. A administração do Empreendimento impôs uma cerca e mantem um posto de guarda dos seguranças imediatamente após o arame. Restringe o caminho terrestre à aldeia, mas também busca impedir os indígenas de buscar água e lenha. Busca limitar os indígenas a um pequeno território de praia.

Os guaranis estão usando a cerca imposta pela Arado Empreendimentos como varal.

No depoimento abaixo, no Youtube, gravado em 5 de dezembro, o Cacique Timoteo denuncia a ameaça de construção da cerca por parte da administração da fazenda e a ameaça de trazerem 500 bois e búfalos para a área onde estão os indígenas.

No dia 19 de dezembro, Amigos da Terra Brasil e Coletivo Catarse, com apoio de outras organizações, estiveram na retomada para denunciar as violações e ameaças que os guaranis estão sofrendo.

Cacique Timóteo Karai Mirim denúncia as violações que veem sofrendo por parte da Arado Empreendimentos Imobiliários

São elas: a imposição de uma cerca, que restringe o acesso dos guaranis à água e à lenha, e também restringe a área de marinha onde estão, área que legalmente é pública; o monitoramento constante das atividades dos indígenas, com filmagens frequentes, sendo que os seguranças do Arado Empreendimento armaram seu acampamento de guarda imediatamente ao lado da cerca, a pouquíssimos metros das barracas dos indígenas; a ameaças como a de soltarem búfalos na área que os indígenas vivem. Logo após a retomada, em julho, o barco de um apoiador à causa dos indígenas foi sabotado.

Posto de guarda dos seguranças da Arado Empreendimentos, instalado imediatamente após a cerca, a poucos metros das barracas dos guaranisNa denúncia em vídeo, gravado pelo Coletivo Catarse, o Cacique Timóteo ressalta que a construção da cerca é uma ação fora da lei, um isolamento involuntário em área de marina, que legalmente é um local público. Por isso mesmo os indígenas não podem respeitar essa imposição.

Segurança do Arado Empreendimentos filma a aldeia por estarmos filmando a cerca e guarani se revolta com a invasão, que é frequenteDurante nossa visita à Tekoa Yjere, a Polícia Militar foi chamada devido ao fato de estarmos filmando a cerca e o acampamento de guarda dos seguranças. Medida descabida, sendo que os próprios seguranças, segundo relato dos guaranis, filmam a aldeia frequentemente, dia e noite.

No dia seguinte à nossa visita à retomada (quinta, dia 20), em represália ao fato dos indígenas se mobilizarem com apoiadores para denunciarem o que veem sofrendo, os funcionários da fazenda instalaram, junto à cerca, sensores, que alertam os seguranças se a cerca for cruzada. Atitude que ameaça ainda mais os indígenas na simples busca por água, direito básico, e lenha, para se aquecer e cozinhar.

Ligados a um gerador, sensores de movimento colocados junto a cerca um dia após nossa visita. Imagens feitas pelos guaranis.


Na sexta, dia 21, o cacique Timóteo Karay Mirim foi até a 7ª Delegacia da Polícia Civil fazer um Boletim de Ocorrência para denunciar estas ações de coerção e de ameaça psicológica do Arado Empreendimentos. O Ministério Público também será acionado sobre essas violações.

 

As denúncias estão concentradas no vídeo abaixo, que também é possível compartilhar através da página do Coletivo Catarse no Facebook. É imprescindível que compartilhemos e fiquemos atento ao que se passa na Ponta do Arado.

Em Maquiné, os guaranis disputavam a posse da terra, na Justiça, com o Estado do Rio Grande do Sul. Na Ponta do Arado, as famílias guaranis que ali estão enfrentam a especulação imobiliária das grandes construtoras e a lógica dos condomínios fechados, a cidade para poucos. Enfrentam um projeto milionário do Arado Empreendimentos, que, em parceria com a construtora DAHMA, pretende construir mais de 2000 mansões, divididas em três condomínios na região da Fazenda do Arado Velho. A iniciativa é dos investidores Iboty e Eduardo Ioschpe. A comunidade do Bairro Belém Novo e diversas pessoas se mobilizam nos últimos anos contra este empreendimento. Confira AQUI.


Sobre as Retomadas:

Airton Krenak, da etnia Krenak (assolada pela lama
tóxica no Rio Doce, maior crime socioambiental da história, das empresas impunes Samarco/Vale do Rio Doce), certa feita, em uma aula inaugural da UFRGS em 2017, comentou sobre o fato da luta pela demarcação de terras indígenas ser uma medida de garantia para os povos, mas ainda assim ser uma medida colonial, por legitimar a demarcação, os limites, as fronteiras, referenciais do homem branco. Essa discussão parece tão distante no contexto em que vivemos no Brasil, em que há anos as demarcações já não vinham acontecendo como reinvindicadas e que, atualmente, com o presidente Jair Bolsonaro (PSL), promete piorar, no nível de demarcações já feitas serem revistas. Já começou. No Maranhão, no dia 16 de dezembro, o povo Tremembé teve suas casas e plantações destruída por tratores do estado com escolta do Batalhão de Choque. Um desalojo puxado indevidamente pela Justiça Estadual, sendo que os Tremembé estavam com processo correndo de demarcação na Justiça Federal (leia a nota do CIMI sobre AQUI).  


Ao mesmo tempo,
pensar além das demarcações parece tão próximo das atitudes dos guaranis e de outros povos originários. No Rio Grande do Sul, mbya guaranis retomaram, no município de Maquiné, montanhas com Mata Atlântica (bioma em vias de extinção), ocupadas por esse povo desde antes da chegada dos europeus ao Brasil. Lá, na Tekoá Kagua Porã, construíram uma escola autônoma de fomento ao saber indígena, viveram a colheita de milho e, recentemente, no começo de dezembro, souberam que o Estado do Rio Grande do Sul abdicou na Justiça da posse daquela terra – que por um tempo foi a sede da Fepagro, fundação extinta pelo Governo Ivo Sartori. Em um contexto adverso, cenário genocida, no Mato Grosso do Sul, os guarani-kaiowás lutam através de retomadas há anos pelo mantenimento do seu povo em terras ancestrais. Enfrentam, as escopetas dos capangas dos fazendeiros, acobertados pelas polícias locais e federais (assista o filme Martírio [2017] ou acompanhe o CIMI). Vários são executados, outros tantos estão se suicidando por causa deste cenário. Mesmo assim não aceitam sair das terras em que há muitas gerações vivem.

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro diz que os indígenas precisam receber o mesmo “tratamento digno do restante da população”, muitos povos originários decidem retomar suas terras, colocar o seu corpo pelo mantenimento dos seus modos de vida, resistindo ao genocídio e ao etnocídio, que nunca parou de acontecer na história do Brasil.

Os guaranis da Ponta do Arado se referem ao responsável pela gerência da fazenda como “capataz”. Sofreram ameaças de terem búfalos soltos onde vivem. Pelo Brasil, notícias de, no Sertão Pernambucano, escola do Povo Pankararu queimada, base da Funai de proteção a índios isolados atacada por homens armadosEstes são exemplos de notícias, deste último mês de 2018, que mostra que ainda vivemos a disputa pela terra e os ataques aos povos originários do período colonial.

Conheça mais sobre a Tekoá Yjere na reportagem que fizemos dias após a retomada, ainda em julho, clicando AQUI.

Veja mais fotos da visita à Tekoá Yjere em dezembro de 2018:

Financeirização da Natureza: organizações de 40 cidades denunciam violações de direitos contra povos e territórios

Seminário Financeirização da Natureza ocorreu nos dias 27, 28 e 29 de agosto, em Porto Alegre, para discutir as violações de direitos contra Povos e Territórios

Após a realização do seminário “Financeirização da natureza: violações contra povos e territórios”, em Porto Alegre, grupos e organizações campesinas, povos e comunidades tradicionais e trabalhadoras/es do campo e da cidade de 40 municípios brasileiros e também do Uruguai divulgaram uma carta final denunciando o contexto de violência e violações de direitos que vem se agravando com a expansão do agronegócio, da mineração e do crescimento urbano e industrial (abaixo, carta na íntegra).

De acordo com os movimentos, o judiciário também não vem cumprindo o seu papel diante das denúncias que são feitas pelas comunidades.

Durante o seminário, foram discutidos os efeitos da financeirização da natureza contra os povos tradicionais. Sob o argumento da preservação ambiental, a expulsão dessas comunidades acontece de forma sistemática, como se não fossem estes povos e comunidades que vêm conservando a biodiversidade ainda existente no país.

A financeirização da natureza consiste na prática de estabelecer preço aos bens comuns, como o ar, a água e a biodiversidade. Para saber como isso ocorre, assista o vídeo a seguir.

Sobretudo, as armadilhas da chamada Economia Verde buscam dar lugar à construção de condomínios, aeroportos, hidrelétricas e complexos agroindustriais.

O contexto de violência e ataques aos direitos dos povos e territórios pode ser conferido no vídeo abaixo.

Carta na íntegra

“Nós, campesinas e campesinos, povos e comunidades tradicionais, trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade, de 40 municípios de 6 estados Brasileiros (RS, SC, PR, SP, RJ, AC) e do Uruguai, participantes do Seminário Financeirização da Natureza: violações de direitos contra Povos e Territórios, realizado durante os dias 27 a 29 de agosto de 2018, em Porto Alegre, RS, reafirmamos que somos maioria neste país e estamos – há séculos – vivenciando violências, ameaças e violações de direitos conquistados. Contexto que só vem se agravando. A expansão do agronegócio, da silvicultura, da mineração, a expansão urbana e industrial, as grandes obras como hidrelétricas, estradas, ferrovias, vêm fragilizando as comunidades locais.

Sabemos que esta é uma situação provocada que, juntamente com a perseguição e morte de lideranças locais, busca desestruturar as relações comunitárias. Assim, novas formas de controlar nossas vidas e nossos territórios vão avançando, inclusive com respaldo legal, a exemplo da Lei
13.465/2017 (lei da grilagem), do Programa Produtor de Água da Agência Nacional de Águas (ANA) vinculado a Lei 9.433/1997 (Política Nacional de Recursos Hídricos) e do recente ataque ao Decreto 6040/2007 (Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais).

Observamos que o judiciário não tem cumprido seu papel de garantir o cumprimento dos nossos direitos frente às violações que são denunciadas, é cúmplice e tem também responsabilidade pelo cenário de violações de direitos, exemplo disso é a recente realização de reintegração de posse contra os Kaingang que estavam em processo de retomada de seu território tradicionalmente ocupado na Floresta Nacional (FLONA) de Canela, da qual foram retirados e levados para a beira da estrada sem abrigo, com idosos e crianças colocados no frio, por ordem judicial. Se até o momento o argumento usado para tantas injustiças era econômico, agora o argumento é também ambiental. Na Economia Verde a expulsão dos povos e comunidades quer se justificar pela proteção da natureza, como se não fossem estes povos e comunidades que vêm conservando a biodiversidade ainda existente no país. São armadilhas que resultam na remoção das comunidades para dar lugar à expansão do capital, como a construção de condomínios, aeroportos, hidrelétricas e complexos agroindustriais. As falsas soluções da Economia Verde buscam mapear nossos territórios e nossas práticas, interpretando os bens comuns como “serviços ecossistêmicos”, como a captação de carbono e a conservação das águas, para que o modelo neoliberal de desenvolvimento, violador de direitos e devastador da sociobiodiversidade, não mude.

A transformação dos bens comuns (que são nossos territórios, a biodiversidade, a água, o solo e o subsolo, o ar puro e o conhecimento tradicional) em mercadorias, e a especulação e financeirização sobre estes bens comuns tem afetado nossas identidades, modo de vida, nossas
relações culturalmente baseadas na reciprocidade, nossa sobrevivência, além de ser uma estratégia que visa a nossa dominação, a nossa expulsão dos territórios e a transferência destes bens comuns ao mercado especulativo de grandes corporações.

Diversos instrumentos de opressão têm provocado nossa invisibilidade e descaracterização enquanto povos e comunidades que mantém uma relação não mercadológica e não especulativa com a Terra e com o conjunto dos seres. Estamos cientes que estes instrumentos, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) e outros, estão a
serviço da manutenção do poder e da concentração da riqueza na mão da elite econômica e política que transita entre setores públicos e privados.
Também estamos cientes que os instrumentos da Economia Verde, como Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) e Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD) reduzem nossos saberes e nossa autonomia, criminalizando nossas práticas tradicionais
relacionadas à biodiversidade. Políticas nacionais relacionadas ao clima estão sendo construídas e implementadas sem a participação de povos e comunidades violando seus direitos de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Esclarecido antes de qualquer política ou programa que afete nossa sustentabilidade cultural, social e econômica. Essa é uma norma supralegal que prevê respeito à autodeterminação dos povos e comunidades tradicionais. Este modelo degradador que impacta nossas vidas e territórios também tem repercussões na vida de pessoas e comunidades que estão em outros contextos, inclusive urbanos.

A falta de água em quantidade e qualidade, pela mudança no regime hídrico – com maiores e mais intensos períodos de estiagem e/ou de precipitações torrenciais e o aumento da frequência de chuva ácida – é um exemplo de como o cotidiano de todas pessoas é afetado pela mercantilização e financeirização da natureza. Nossa autonomia e liberdade é nossa maior riqueza! Estamos unidas e unidos, em organizações locais, movimentos sociais, em redes e articulações, resistiremos como temos resistido há séculos de tantas ameaças e violações. Seguiremos observando, debatendo, resistindo e reagindo. Ampliaremos nossos espaços de estudo para compreender tantas siglas e mecanismos que, sabemos, tem o intuito de nos amedrontar, oprimir, criminalizar e dominar. Seguiremos construindo nossos instrumentos de luta, resguardando nossos segredos da ganância do capital. Usaremos de nossa sabedoria, habilidade e espiritualidade para estarmos fortes e cada vez mais unidas e unidos em defesa de nossos direitos pois, somos a maioria nesse país!

Exigiremos mais e melhores políticas públicas, adequadas a cultura e contexto vivido por cada povo ou comunidade, com participação efetiva de representações destes povos e comunidades na sua elaboração e implementação. A NATUREZA NÃO SE VENDE, SE AMA E SE DEFENDE!”

Organizações e grupos presentes no Seminário Financeirização da Natureza:
1. Aldeia Mbyá Guarani Tekoá Jata’ity/ Ka’aguy Mirim – Cantagalo
2. Aldeia Mbyá Guarani Tekoá Nhundy – Estiva
3. Aldeia Mbyá Guarani Tekoá Para Rõke
4. Aldeia Kaingang Vãn Ka – Lami
5. Aldeia Kaingang Ymã Fàg Nhin – Lomba do Pinheiro
6. Amigos da Terra Brasil
7. Amigos da Terra Internacional
8. Amigos do Meio Ambiente – AMA
9. Assentamento Nova Estrela
10. Assentamento Novo Alegrete
11. Assentamento Santa Maria do Ibicuí
12. Associação Filhos da Terra
13. Associação Homens e Mulheres do Mar – AHOMAR
14. Associação Nascente Maquiné – ANAMA
15. Cáritas Brasileira – Regional RS
16. Centro de Apoio e promoção da Agroecologia – CAPA
17. Centro de Estudos Bíblicos – CEBI
18. Coletivo Ambiente Crítico
19. Coletivo Catarse de Comunicação
20. Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa
21. Comunicação Kuery
22. Comunidade Kilombola Morada da Paz
23. Comunidade Quilombola Armada
24. Comunidade Quilombola Corredor dos Munhos
25. Comunidade Quilombola Unidos de Lajeado
26. Conselho de Missão entre Povos Indígenas – COMIN
27. Conselho Estadual de Direitos Humanos – CEDH
28. Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas – CONAQ
29. Forum de Mudanças Climáticas e Justiça Social – FMCJS
30. Frente Quilombola – RS
31. Fundação Luterana de Diaconia – FLD
32. Grupo Carta de Belém
33. Instituto Biofilia
34. Instituto de Assessoria as Comunidades Remanescentes de Quilombo -IACOREQ
35. Instituto Econsciência
36. Marcha Mundial das Mulheres – MMM
37. Movimento de Mulheres Camponesas – MMC
38. Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
39. Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD
40. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST
41. Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST
42. Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM
43. Movimento Roessler
44. Movimiento Mundial por los Bosques Tropicales – WRN
45. Núcleo de Ecojornalistas – NEJ
46. Povos da Floresta / Acre
47. Rede Ecovida de Agreocologia
48. União Pela Preservação do Camaquã – UPP
49. Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP
50. Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS

AQUI a carta em PDF, para download.

Mais vídeos sobre a Financeirização da Natureza:

Ao índio o que é do índio: retomada Guarani Mbya no Arado Velho, Porto Alegre

Há dez dias, indígenas Guarani Mbya retomaram suas terras ancestrais no Arado Velho, no bairro Belém Novo, Porto Alegre. Desde então, veem-se ameaçados — inclusive com armas — pelo empreendimento que quer privatizar a área e expulsá-los dali para que deem lugar a duas mil casas em três condomínios de luxo.

Foi num sonho que a terra chamou, e isso o homem branco jamais entenderá: ele que insiste em expulsá-los para as periferias de suas cidades barulhentas e poluídas ou cercá-los em um só canto, tirando-os de seus locais sagrados, é surdo já, não escuta; o chamado da terra, porém, impõe-se com clareza a quem sabe ouvir: estava ali, no Arado Velho, bairro Belém Novo, Porto Alegre, a terra usurpada – apenas uma delas. E era hora de retomá-la.

Assim que um grupo de Guarani Mbyas navegou pelo Rio Guaíba até as areias sagradas, sabendo ir ao encontro do que sempre procuraram, atentos à convocação do território. Ao desembarcar, o cacique Timóteo Karai Mirim olhou a mata verde e as árvores cobertas de barba de bode — que deixavam o cenário ainda mais bonito: que alegria!, que tranquilidade!, sentiu, de coração leve. Os pés estavam enfim postos no chão do qual jamais deveriam ter saído. O grupo avançou algumas dezenas de metros e montou acampamento.

Contudo, logo nas primeiras noites, aquelas de frio mais intenso, uma visita pouco agradável: homens armados, dizendo-se policiais, ameaçaram os índios e os empurram de volta à orla — área pública na qual os Guaranis se viram cercados. Ali montaram uma vez mais suas barracas, duas lonas azuis grandes seguras por paus de madeira, propiciando algum teto para proteger da chuva. O ataque dos supostos policiais tem explicação: no território ancestral indígena, um empreendimento de luxo pretende construir três condomínios fechados com cerca de duas mil casas; a presença Guarani por óbvio é incômoda.

Desde a chegada indígena, na sexta-feira, dia 15/6, seguranças privados circulam pela área, fotografando e filmando a movimentação do grupo e, além disso, a de qualquer pessoa que se aproxime dali, inibindo a chegada de ajuda e doação de roupas e alimentos. Os pescadores da região foram ameaçados para que não façam o transporte de apoiadoras e apoiadores até a área (para que se evite a parte já privatizada, onde a passagem é bloqueada, é necessário que se percorra um trecho pelas águas do Guaíba). O barco que ajudou na travessia dos indígenas foi misteriosamente sabotado, tendo o motor danificado.

O projeto dos condomínios de luxo levanta muitas controvérsias: ainda em 2015, houve uma alteração no Plano Diretor de Porto Alegre para que se ampliasse em 12 vezes o número de casas permitidas na área da Fazenda do Arado Velho, território em disputa. Tal mudança foi feita sem nenhuma consulta popular: não houve sequer uma audiência pública para debater a questão. A decisão arbitrária foi mais tarde suspensa pela Justiça, exatamente pela ausência de participação popular. Também tramita uma acusação de fraude na parte geológica do estudo apresentado pelo empreendimento.

Crianças são também permanentemente vigiadas por seguranças privados

Vista aérea da fazenda, inundada em época de cheia. Foto do Preserva Arado

Mas a terra chamou, e ela não prioriza os interesses privados de empresas que querem somente o lucro; pelo contrário, protege-se deles: a presença indígena é a garantia da preservação e do equilíbrio ambiental na região. Um empreendimento megalomaníaco, promovendo a mega-concentração de casas, carros e pessoas, além de privatizar a natureza do Arado, tão rica, certamente acabaria por degradar o lugar. Para se ter noção, como o terreno ali é baixo, seria necessário aterrar uma área equivalente a 200 campos de futebol para a construção de ruas e casas com a utilização de cerca de um milhão de metros cúbicos de terra. E para carregar essa terra toda seriam necessárias 125 mil caçambas de caminhão. O impacto que isso causaria é devastador.

Mais que isso, o empreendimento pretende agora expulsar os indígenas de suas terras sagradas: sítios arqueológicos datados da era pré-colonial foram encontrados na região do Arado Velho, com diversos artefatos, ferramentas e cerâmicas típicas dos Guarani, mostrando que ali estavam estabelecidas aldeias inteiras até a invasão do homem branco.

Mesmo nas noites frias e escuras, Timóteo não teme o enfrentamento com os interesses de grandes corporações: sabe estar seguro pelo espírito de seus ancestrais, verdadeiros donos do território. Logo na primeira noite na Ponta do Arado Velho, seu tio os viu, cercando o grupo e zelando por eles. Ora, de nada adiantam metralhadoras contra os ventos e trovões e tempestades que o homem branco terá que enfrentar; as balas não podem sangrar a natureza sagrada, e isso Timóteo sabe bem. Por isso, sente-se alegre e tranquilo: é esse o sentimento que descansa no coração daquele que sabe estar em seu lugar, enquanto medo e ameaças fazem sombra no coração do invasor.

Olhando as crianças que brincam nas areias, duas delas suas — e todas elas vigiadas ameaçadoramente pelos seguranças privados —, Timóteo esboça um sorriso leve ao dar uma longa tragada em seu petynguá: está exatamente onde deve estar; o chamado da terra fora ouvido. Alegria e tranquilidade mesmo: afinal a retomada, como a própria palavra indica, apenas deu ao índio o que é, e sempre foi, do próprio índio.

Timóteo e o seu petynguá

Para ver mais fotos da retomada Guarani Mbya no Arado Velho, acessa o nosso Flickr. As fotos são do Douglas Freitas.

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