Coluna de maio no jornal Brasil de Fato

 

Há um ano, a população do estado do Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil, enfrentava um dos piores – se não o maior – desastres socioambientais da sua história. Nos últimos dias de abril e durante o mês de maio de 2024, os volumes de chuva registrados no estado foram muito altos na maioria das regiões,  situação sem precedentes em mais de um século de medições em diferentes municípios, segundo noticiou a Metsul, instituto de Meteorologia. Localidades de bacias hidrográficas importantes, dos quais diversos rios deságuam na região metropolitana de Porto Alegre, tiveram facilmente médias de 400mm a 800mm de chuva acumulada no período, alcançando impressionantes 1.023mm na estação meteorológica de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. Em menos de quinze dias choveu o equivalente ao que costuma chover durante cinco meses no estado.

Os resultados puderam ser acompanhados por todo o Brasil pela mídia, inclusive com transmissão ao vivo feita por âncoras famosos dos canais de TV. As imagens do caos climático correram o mundo. Cidades ficaram inundadas com as cheias dos rios e deficiência no sistema de proteção e de escoamento da água das chuvas, comunidades ilhadas devido a deslizamentos de terra e estradas destruídas, prejuízo econômico e impacto ao meio ambiente. Aproximadamente 537 mil pessoas tiveram que deixar suas casas; 80 mil precisaram recorrer a abrigos públicos; 184 pessoas morreram e outras 25 ainda seguem desaparecidas. Cerca de um a cada cinco habitantes do RS foram afetados pelas enchentes. Das 497 cidades que existem no estado, 478 foram atingidas.

Passado um ano, a histórica enchente ficou na memória para alguns mas, para muitos, ainda é uma realidade vivenciada diariamente. A classe trabalhadora, a população empobrecida, pequenos comerciantes, territórios indígenas e quilombolas, assentamentos da reforma agrária e camponeses seguem tentando recuperar suas perdas e reconstruir minimamente suas vidas. Para se ter uma ideia, no final de abril deste ano, quase 400 pessoas permaneciam em abrigos públicos por não terem para onde ir, a grande maioria na região metropolitana. O governo estadual quer esvaziá-los até o final de maio, mas utilizando soluções ainda mais precárias, como a estadia solidária e as casas temporárias, o que acaba por estender a agonia e uma insegurança que parece não ter fim. De recurso habitacional mais efetivo existe o programa do governo federal de compra de casa com verba pública (chamado de compra assistida), porém diversas famílias reclamam que não conseguem acessá-lo devido à exigência de comprovar documentação, além de o processo levar meses.

Resistir para existir: enchente escancara luta dos territórios de vida

Aldeia Mbyá Guarani Pindó Poty sofre, há anos, com alagamentos no bairro Lami, no Extremo Sul de Porto Alegre (RS). Os guaranis não contam mais quantas vezes reconstruíram suas casas,  perderam suas roupas e utensílios, plantios, animais domésticos e os que criavam para se alimentar. Na grande enchente de 2024, não foi diferente. A aldeia ficou debaixo d’água com o transbordamento do Arroio Lami, que passa ao lado do local. Temporariamente, as famílias foram abrigadas pelos parentes Kaingang da Aldeia Van-Ká, no mesmo bairro da Capital gaúcha. Quando retornaram, contaram com uma rede de solidariedade e de doações para reconstruir suas vidas novamente.

Um levantamento colaborativo, realizado de forma conjunta pelo CIMI Regional Sul, Comissão Yvyrupa Guarani (CGY), FLD/Comin/CAPA e CEPI/RS, indicou que mais de 80 comunidades e territórios indígenas foram diretamente afetados, alguns com extrema gravidade, nos meses de abril e maio passados. A CGY promoveu uma campanha de arrecadação financeira e de donativos na época, resultando na distribuição de 20 toneladas de alimentos para 37 aldeias, que também receberam água potável e itens básicos, como cobertores e colchões. Segundo relatório divulgado pela Comissão Guarani em junho de 2024, foram alcançadas 674 famílias, somando mais de 3.300 pessoas, em diversas regiões do estado do Rio Grande do Sul.

A campanha da CGY contou com ampla colaboração da sociedade civil, entre parceiros, pessoas, coletivos e organizações, muitas de fora do Brasil. Além dessa, a Amigas de Terra Brasil participou de outra frente, junto com a Rede Coop, pela qual entregamos cestas de alimentos da agricultura camponesa às famílias Guarani da Aldeia Yy Ryapu, em Palmares do Sul, no Sul do estado. Essas iniciativas resumem bem o que se viu em boa parte do período de emergência da enchente: uma rede solidária sustentada pela sociedade já organizada e por tantos indivíduos que, frente à necessidade urgente, organizaram-se. “Nenhuma das Tekoá [aldeias] atingidas teve apoio das autoridades até agora. Nem com alimentação, nem com nada. Aí é difícil. Quando aconteceu essa tragédia da enchente, conseguimos, através do apoio de parceiros indigenistas e de organizações de fora do país, como da Alemanha”, relatou Helio Wherá, da CGY.

A enchente escancara que os governos estão cada vez mais afastados dos territórios indígenas. Seja em atender a principal demanda de muitos deles, que é a demarcação da terra, quanto em fornecer a infraestrutura necessária e o acesso a serviços humanos básicos, como de saúde e saneamento, para que vivam. Em nível federal, vemos uma tentativa do Governo Lula tentar chegar nos locais, mas ocorre de forma muito lenta. A Aldeia Pekuruty resiste de forma precária há 16 anos às margens da BR 290, em Eldorado do Sul (RS), e na enchente de 2024 foi alagada, junto com cerca de 80% da cidade. O pouco que sobrou de seus pertences foi retirado por funcionários do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), tendo que recomeçar praticamente do zero e contando apenas com a ajuda de parceiros.

Assim como a Pindó Poty, a Pekuruty aguarda a demarcação para que possa se instalar em local seguro. “O governo tem terra, será que pra índio não quer dar, ou quer matar tudo? O branco pensa com dinheiro. Aí compra animal, compra vaca, terra, planta tudo, colhe dinheiro. Vende água, vende peixe. De terra, tem 2 mil, 3 mil hectares. E aqui [na aldeia], tem 400 hectares, cavalos, vacas, tem terra. Será que não dá um pouquinho, para poder morar índio?”, questionou o cacique Estevão Kuaray.

Os efeitos da emergência climática são mais um, entre tantos desafios que os povos indígenas enfrentam diariamente para sobreviver. A Retomada Indígena Tekoa Yjerê, na Ponta do Arado, margeada pelo rio Guaíba na capital gaúcha, foi totalmente atingida pela enchente. Na ocasião, as famílias, constantemente atacadas por um empreendimento imobiliário que quer se instalar no local, perderam tudo, e o cacique Timóteo Karay Mirim refletiu sobre a relação dos povos com a natureza, que vem sendo destruída pela sociedade capitalista dos não indígenas (juruá). Na mesma época, na Aldeia Tekoá Jatay´ti (Cantagalo), situada em Viamão (RS), Jaime Vherá Guyrá, que foi cacique do território, evidenciou a importância das terras para os indígenas e a relação das terras com a emergência climática. 

“Desastre” virou oportunidade de lucro para os capitalistas e as grandes empresas

Desde 2019 pelo menos, acompanhamos um pouco do drama enfrentado por famílias do loteamento Guaíba City, onde vivem em torno de 280 famílias, entre as cidades de Charqueadas e Eldorado do Sul, próximo ao Rio Jacuí. A comunidade e o Assentamento da Reforma Agrária Apolônio de Carvalho, do MST (Movimento Sem Terra), corriam sérios riscos com o projeto de instalação da mina de carvão a céu aberto da Copelmi, que seria a maior do Brasil. O alagamento severo da região em 2024 foi a pá de cal para a empresa desistir do empreendimento neste ano, o qual já enfrentava embargo judicial e forte resistência popular.

É uma vitória sem dúvida, mas Guaíba City segue abandonada. A comunidade, que estava desassistida há anos pelo poder público, vivenciou outro nível de desamparo durante a enchente, quando ficou ilhada. De acordo com os moradores, não houve aviso sobre a inundação. Perderam seus pertences e animais domésticos, contabilizaram prejuízos com o alagamento de suas casas e pequenos comércios. Após o período da enchente, em visita à região, registramos animais mortos e muito lixo nas ruas, estradas estragadas e equipamentos públicos, como posto de saúde, desativados. A comunidade ainda pedia a reconstrução de uma ponte para se deslocar. As respostas das prefeituras foram lentas.

A cidade onde fica Guaíba City e a Aldeia Guarani Pekuruty é Eldorado do Sul que, proporcionalmente, foi o município mais atingido pela enchente em todo o Rio Grande do Sul. Dos cerca de 42 mil habitantes, 34 mil foram atingidos. A estimativa é que 80% das residências tenham sido danificadas, e toda a área urbana esteve alagada. Muitos moradores que saíram durante a enchente desistiram de retornar à Eldorado por insegurança e falta de perspectiva. Nessa mesma cidade, a população que ficou tenta reconstruir suas vidas sem muito recurso e dependendo de retornos demorados dos governos,que talvez nem cheguem como prometido, enquanto o governo do RS anunciou a instalação do maior complexo de infraestrutura digital da América Latina pela empresa Scala, num dos poucos terrenos que não foram alagados. A previsão é de que essa “cidade de datacenters” esteja entre os maiores investimentos privados da história do estado e consuma mais energia que a gerada pela quarta maior hidrelétrica do Brasil.

Na cidade vizinha, Guaíba, que também sofre com a enchente de 2024, a fabricante de celulose CMPC confirmou, no final do ano, que pretende seguir com o projeto bilionário de construir um novo parque industrial na região e ampliar as áreas de plantios de monocultivo de eucalipto. As monoculturas de árvores geram perda da biodiversidade e aumento do déficit hídrico onde são implementadas, ilhando territórios de vida cercados por estes projetos de morte. As fábricas de celulose, altamente utilizadoras de água, também são grandes poluidoras, como denunciam as mulheres camponesas assentadas no seu entorno. Além disso, monocultivos agravam extremos climáticos pela influência que tem no solo, nas águas e na biodiversidade. Monocultivo é emergência climática. E, aqui no RS, esses foram facilitados pela alteração no Zoneamento Ambiental da Silvicultura (ZAS), que possibilita que as áreas de monocultivos passem dos atuais 1,2 milhões de hectares para 4 milhões de hectares, proposta que teve envolvimento da própria CMPC, que se beneficia da medida.

Na capital, Porto Alegre, o setor imobiliário desponta entre os mais beneficiados com a enchente. Regiões da cidade que já recebiam projetos imobiliários para alta renda e ficaram alagadas, deverão ter volumosos investimentos do poder público para melhoria na infraestrutura. Outras áreas sucateadas, mas com potencial de exploração, possivelmente serão alvo da especulação imobiliária. O prefeito Sebastião Melo busca avançar, neste ano, na privatização da parte mais rentável do DMAE, órgão municipal responsável pelo fornecimento de água potável e da gestão da rede de esgoto da Capital, cujo sucateamento e precarização esteve na raiz do agravamento do caos climático vivido pelos seus 2 milhões de habitantes.

Depois de meses inoperante, o único aeroporto da capital gaúcha, operado pela transnacional alemã Fraport, só retomou a reconstrução após resgate econômico pelo governo federal e, ainda, não retomou a plena capacidade. Em meio ao caos climático, governo do Estado e prefeitura convocaram empresas privadas norte-americanas, como a WayCarbon e Alvarez & Marsal, especializada no capitalismo de desastre, que também fez a gestão privada, privatista e racista do desastre climático em Nova Orleans (Estados Unidos) após o furacão Katrina.

Alheios às mudanças do clima provocadas pela exploração e pela forma de produção predatória da sociedade em que vivemos, os governos de Leite e Melo optam por falsas soluções  que beneficiam grandes empresas e capitalistas e que, certamente, aprofundarão ainda mais a situação de emergência climática. Se antes a luta era contra o negacionismo, agora o enfrentamento é contra o oportunismo climático, que tenta expandir seus projetos de morte por meio de políticas neoliberais e soluções de mercado.

A resposta está na organização popular e no fortalecimento das soluções dos povos

O avanço do capital nos territórios de vida foi motor da enchente, tragédia tão anunciada por ambientalistas, movimentos sociais e populares que pautam a emergência climática, produto do capitalismo. Grande parte dos impactos poderiam ter sido evitados, mas alertas foram ignorados em nome do lucro da especulação imobiliária, do agronegócio e da mineração. Setores que, com seus empresários ou políticos, navegam no caos climático com projeto$ de morte, por vezes fantasiados em coletes salva-vidas anunciando falsas soluções de mercado.

Um ano após a enchente, para a maior parte da população a precariedade não é só lembrança. Medidas efetivas não foram tomadas pelo poder público, fato evidente em qualquer chuva, que faz alagamentos na maior parte das cidades, trazendo riscos, destruição, doenças, falta de luz, de acesso à água potável e ao transporte. O pavor se repete. Enquanto Porto Alegre recebeu, recentemente, o South Summit Brazil, maior evento de tecnologia e inovação da América Latina, em que se falou em resiliência nos termos dos negócios privados, o estado segue sem construção de sistemas de proteção contra cheias (8 projetos foram prometidos, nenhum está em execução). A proposta dos governos é de mais privatização e mais afastamento do povo nas políticas. Pessoas fundamentais impactadas nos campos, cidades, aldeias e retomadas indígenas, quilombos e periferias, que tornam possível o alimento, o cuidado, e coletividades dentro de seus territórios de vida, precisam participar dos espaços de decisão política.


Ocupação Maria da Conceição Tavares, do MTST, no centro da Capital. Crédito: Maí Yandara/ ATBR

 

Assim como a resposta imediata às enchentes quem deu foram os movimentos sociais organizados e os territórios de vida, fundados nos princípios da solidariedade, essa também é a nossa única saída a longo prazo. As retomadas indígenas permanecem vivas e de suas raízes vêm respostas sobre como regenerar o planeta, reexistir e semear a vida. A ocupação Maria da Conceição Tavares, do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), em um prédio público desocupado há anos no centro da Capital, demonstra que a solução poderia não ter sido as casas temporárias propostas pelo governo, mas que sim, tem mais casa sem gente do que gente sem casa, e que o direito à moradia digna deve prevalecer à ganância do setor da especulação imobiliária. Cozinhas de emergência seguem operando até os dias de hoje, em uma rede de solidariedade entre o campo e a cidade que se ampliou e ganhou novos espaços.

Organizações populares atuaram com fôlego durante a maior catástrofe socioambiental do RS para garantir direitos e seguem se articulando para amparar a população e construir respostas reais às crises sistêmicas. Demandam que as devidas responsabilidades sejam assumidas pelo Estado e que as políticas sejam orientadas a partir das necessidades dos territórios de vida, com participação popular. Lembram, constantemente, que não há justiça climática sem justiça para os povos. E no seu horizonte, assim como no freio para a emergência climática, estão erguidas bandeiras pela soberania alimentar, fortalecimento da agroecologia, soberania fundiária, reforma urbana e rural popular, demarcação já de territórios indígenas e titulação quilombola. Contra o fatalismo pregado pelo sistema capitalista, que lucra com desastres, estão povos e comunidades em luta fazendo viva a memória de que é preciso transformar a realidade.

Quem disse que não existe almoço grátis?

Todos os dias, quem passa pela Avenida da Azenha às onze horas da manhã, na altura do número 608, vê uma fila se formar rapidamente. É neste horário que começam a chegar pessoas em situação de rua, aposentados, trabalhadores informais, entregadores, ambulantes, famílias com crianças em situação de vulnerabilidade para pegar suas marmitas, que começam a ser servidas ao meio-dia pela Cozinha Solidária da Azenha. A atividade tem duração de uma hora.

A iniciativa começou na pandemia por iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que luta por moradia digna. Além da localizada na capital gaúcha, existem mais de 30 cozinhas espalhadas pelo Brasil.
Em média, são servidas 250 marmitas por dia. Os insumos vêm de doações de outros movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Ação pela Cidadania e do próprio MTST em âmbito nacional.
Para conseguir manter sua autonomia financeira, o movimento aposta tanto na organização de saraus culturais com venda de pratos quentes, chamado Tempero de Luta, como em campanhas permanentes de arrecadação por meio de contribuições espontâneas.
Isaura Aparecida é uma das voluntárias que faz as refeições servidas de segundas a sextas ISABELLE RIEGER/ESPECIAL/JC
As marmitas são distribuídas nos fundos, no pátio da casa, que conta com um espaço com telhado para proteger de situações adversas de clima. Na hora da distribuição do almoço, a preferência é das mulheres, crianças e pessoas com deficiência. Depois de servidas, é a vez dos homens.

Caso algum representante dos dois primeiros grupos chegue no meio da distribuição, eles têm prioridade imediata. Repetir o prato, ou o apelidado de “repique”, também é permitido, próximo ao fechamento dos portões. Às vezes, há frutas para sobremesa.

No meio da atividade, um representante do movimento grita os avisos gerais do espaço, como necessidade maior de organização do ou atenção para o lixo espalhado no chão. Quando a reportagem esteve no local, quem fez os alertas foi o coordenador da Cozinha Solidária, Fernando Campos Costa.

Ele também explicou sobre a campanha do movimento pela redução do uso de plástico. As marmitas, que eram servidas em recipientes descartáveis de isopor, agora podem estar em potes.

A medida, de acordo com Costa, reduz o impacto ambiental e diminui os gastos com as compras dos recipientes. A Cozinha Solidária, assim, recebe doações de potes, talheres, canecas e copos para seguir com a campanha.

Ao final do almoço, as atividades do dia são encerradas. Os potes descartáveis são jogados nos lixos da Cozinha e se iniciam as despedidas. Muitas pessoas se tornam frequentadores do espaço e compartilham experiências e angústias no espaço sentadas nas cadeiras do pátio.

Sentado em um banco de madeira, o João Ferreira Trindade, 79 anos, conta como chegou no local. Movido por curiosidade, desceu da linha 398 no ponto de ônibus da Avenida Azenha e foi descobrir o que era a casa com a fachada vermelha na avenida. Agora, almoça diariamente há duas semanas por causa da iniciativa do MTST.

Já o venezuelano Juan Pablo Ortiz, 35 anos, retira sua marmita na Cozinha há um mês. Ele mora em um albergue no Centro da cidade, mas está desempregado.

Ortiz já esteve em situação de rua. Por meio de conhecidos que já frequentavam o espaço, descobriu a iniciativa da cozinha, que alivia as circunstâncias de vulnerabilidade pelas quais passa.

“Se não tem trabalho, não tem como ter subsistência. Pelo menos existem lugares para comer como a Cozinha Solidária”, afirma.

São servidas 250 marmitas por dia e, para continuar o trabalho, o Movimento dos Trabalhadores sem Teto precisa de doações que ajudem nos gastos | ISABELLE RIEGER/ESPECIAL JC

Cozinha Solidária já teve outros dois endereços

A Cozinha Solidária está agora na Avenida da Azenha, 608
/ISABELLE RIEGER/ESPECIAL/JC
A casa em que a Cozinha Solidária está situada é o seu terceiro endereço. Em 26 de setembro de 2021, o MTST ocupou um terreno abandonado para iniciar o projeto, também na Avenida da Azenha. O despejo veio 18 dias depois e levou o projeto para o térreo de um prédio na Rua Marcílio Dias, a duas quadras do atual endereço.
Lá, a distribuição de marmitas acontecia na Praça Princesa Isabel, que também comporta um ponto de táxis e feiras de artesanato durante a semana, além de estar suscetível à ação de vento e chuva. Houve reclamações, inclusive, da segurança do local, aponta Costa.
Para seguir com o projeto e garantir a integridade física de todos os participantes, o espaço de número 608 na Azenha foi alugado. Embora não seja ideal por conta dos gastos a mais que a locação acarreta, reconhece Costa, o local permite atividades maiores do que as que estavam sendo feitas na rua.

 

A biodiversidade que se constrói no território do campo à cidade

 

biodiversidade, ou diversidade biológica, tem a ver com a variedade de espécies, sejam plantas, microrganismos ou animais que habitam a Terra. Desse modo, no núcleo central da noção de biodiversidade está a vida em suas mais variadas formas. Se partimos da centralidade da vida, certamente iremos reconhecer que no sistema capitalista, cujo eixo condutor é a obtenção de mais lucro, não há possibilidade de compatibilizar com um projeto político pela proteção da vida e pela preservação da biodiversidade.

Desde os anos 70, os escândalos da contaminação ambiental e da emergência do tema das mudanças climáticas têm impulsionado a construção de uma agenda internacional de proteção à biodiversidade. Nesse sentido, o dia 22 de maio é reconhecido como Dia Internacional da Biodiversidade, com a intenção de alertar para a importância da proteção da mesma. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 25% da biodiversidade do planeta, hoje, encontra-se ameaçada de extinção. Dentro de uma ideia de usar a natureza como biblioteca de saberes e formas que o ambiente se relaciona e constrói soluções, a observação é fundamental. E mais: ter ambiente natural para observar é ter de onde buscar essas soluções, assim como andar e observar a vida se resolvendo.

A partir do Relatório de Brundtland (1987) se desenvolveu a noção de desenvolvimento sustentável, criando um terreno argumentativo para justificar a continuidade do modelo de desenvolvimento econômico sob a narrativa da possibilidade de harmonização com o meio ambiente. De igual modo, as agendas que se seguiram – Agenda 2030 e os acordos firmados nas Conferências das Partes – refletem a linha conciliatória. Inclusive, durante a ECO-92 se desenvolveu a Convenção sobre a Diversidade Biológica (1993), com o fim de promover a proteção da diversidade biológica por meio do uso sustentável da biodiversidade, com a repartição justa e equitativa de benefícios. No entanto, até que ponto essas narrativas sobre o meio ambiente refletem uma real proteção da biodiversidade?

As políticas ambientais tratam a preservação da biodiversidade no que chamamos de “conservadorismo ambiental”, no qual a Natureza é algo distante do sujeito, circunscrito a um espaço delimitado (à floresta, à reserva ou à unidade de conservação), reiterando um paradigma colonialista. Tal visão não integra as relações sociais urbanas, como a de produção alimentar, como parte da totalidade da biodiversidade, ignorando, muitas vezes, o papel que povos e comunidades têm na construção de relações de proteção, em uma visão mais completa da vida natural. Com isso, não queremos afirmar a não importância de criar espaços de proteção integral da biodiversidade, pelo contrário, inclusive denunciamos os riscos à biodiversidade da privatização e aluguel dos parques. O que se quer chamar a atenção é que a criação de espaços de proteção não coloca em xeque o modelo de produção que destrói a biodiversidade, apenas serve como uma política de compensação.

Se olharmos para o campo da produção de sementes, as formas de produção e distribuição, o ingresso de novas tecnologias ligadas à modificação genética tem destruído a diversidade de cultivos. Isso afeta diretamente a saúde humana, na falta de nutrientes. De outro lado, a produção do agronegócio demanda intensa utilização do solo, água, desterritorialização de comunidades, promovendo um desequilíbrio nas condições de reprodução das formas de vida.

Diante disso, organizações ambientalistas, como a Amigos da Terra Brasil, têm convidado a repensar as propostas de preservação da biodiversidade, entendendo o campo e a cidade como parte do mesmo sistema e que, somente juntas e juntos, podemos construir a Soberania Alimentar, difundindo a crítica aos mecanismos de falsas soluções e promovendo direitos conquistados pelos povos.

Nesse sentido, em Porto Alegre (RS), no dia 22 de maio, festeja-se desde 2007 o Dia da Biodiversidade, com a Festa da Biodiversidade (foto acima da atividade em 2012). Um encontro no qual buscamos mostrar a nossa diversidade na capital gaúcha e Região Metropolitana. Em 2023, estamos na nona edição do encontro, que festeja a biodiversidade de nossos corpos e territórios. Desde a última alteração do Plano diretor de Porto Alegre, em que se extinguiu a zona rural, viemos lutando pelo entendimento da importância desta área da cidade, evidenciando o quanto ela é estratégica para a soberania alimentar. Quando ampliamos esta realidade para a região metropolitana, essa capacidade se expande e se complexifica de tal modo a pensar a origem do que bebemos, comemos e respiramos.

Sabemos que nossa água está contaminada com agrotóxicos. Nossa comida também, e apresenta índices assustadores. E o nosso ar, ainda que não tenhamos medidores, certamente está contaminado por agrotóxicos pulverizados no entorno da cidade e pela combustão dos transportes ou das chaminés das empresas. Certos de que essa contaminação precisa ser medida e informada, precisamos de uma proteção para garantir um ambiente saudável no nosso território.

Essa luta vem sendo construída pelas agricultoras e pelos agricultores dos assentamentos da reforma agrária, que, de forma corajosa, mais uma vez, enfrentam o agronegócio e a trama de impunidade que cerca esse setor. Dentre os instrumentos utilizados está a denúncia da deriva criminosa de agrotóxicos, na qual o agronegócio pulveriza o veneno para além de suas terras, contaminando a produção camponesa; fazendo uso do agroquímico em sua função de criação, como arma da guerra. O propósito da deriva criminosa é eliminar a esperança presente na produção de alimentos saudáveis que não fazem uso de agrotóxicos, destruindo com a possibilidade de se construir outras formas de produção autônomas às grandes corporações e tornar impossível a soberania alimentar. Sem pessoas no campo, o conhecimento, as terras, as sementes serão deles, das corporações, e para lutar contra a fome vamos depender das mesmas corporações.

O Campo e a Cidade

Os movimentos sociais e as organizações pautam que o repensar a nossa relação com a biodiversidade é também um refletir sobre as relações entre o campo e a cidade. Na vida urbana, desconsideramos a presença da biodiversidade no nosso dia a dia, como nos alimentos que consumimos. Entender de onde vem a nossa água ou os alimentos em nossa mesa, ou a qualidade do ar que respiramos, e saber que práticas e formas de produção da indústria da alimentação estão destruindo o planeta e evitando que outras formas coexistem, para começar a consumir alimentos locais, de produção camponesa, que causam menor impacto ao ambiente.

Um exemplo concreto dessa relação é dado pela parceria do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) com os movimentos do campo, nas cozinhas solidárias. Durante a pandemia de covid-19 agravou-se a crise alimentar brasileira, quase 33 milhões de pessoas passaram fome. Diante disso, o MTST organizou até hoje 40 cozinhas solidárias nas grandes cidades brasileiras, distribuindo almoço grátis para trabalhadoras e trabalhadores que passavam fome.

Os alimentos utilizados na produção das marmitas são provenientes, em parte, da produção camponesa de base agroecológica – agroecologia é difundida como uma tecnologia social de produção de alimentos realizada pelos camponeses, na qual a relação estabelecida com a terra é de reciprocidade, por isso não se usam agrotóxicos, as sementes são compartilhadas e se preservam as nascentes de água. Assim, além de comerem, os trabalhadores comem produtos de qualidade nutricional, contribuindo para formas de produção alimentar que estão em harmonia com a biodiversidade.

A iniciativa obteve tanto êxito que foi apresentado o projeto de lei nº. 491/223, o PL das Cozinhas Solidárias, em trâmite na Câmara dos Deputados. Dentre os objetivos do PL, estão: a construção de práticas alimentares promotoras de saúde, ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis e o fomento à agricultura familiar.

Denunciar os mecanismo de falsas soluções

Nos últimos anos, no debate internacional, o tema da biodiversidade encontra-se secundarizado, aparecendo nos impactos de mudanças climáticas. Majoritariamente, colocam-se como foco central de investimentos as políticas da economia verde, nas quais se transfere a preservação a entes privados e se cria uma série de narrativas, como os créditos de carbono, a mineração sustentável e a agricultura climaticamente inteligente, como respostas à destruição da biodiversidade.

Todavia, essas políticas estão gerando efeitos ainda mais perversos à biodiversidade. A proposta do “carbono zero” reúne compromissos assumidos para anular as emissões de gases do efeito estufa, assim, em vez de reduzir as emissões e promover mudanças na produção, as grandes empresas passam a financiar áreas de preservação do seu interesse, para compensar. Dentro das “soluções baseadas na natureza”, pode-se incluir plantações de monocultivos de árvores, como eucalipto; os cultivos com organismos geneticamente modificados; as áreas de parques e de unidades de conservação que estão sendo privatizadas. Essas iniciativas têm ganhado a adesão de grandes empresas, que passam a pressionar as terras e os direitos de camponeses.

As empresas transnacionais também aderiram a uma narrativa sustentável constituindo políticas de responsabilidade social corporativa no tema, dentre elas a mineração sustentável e a agricultura climaticamente inteligente. Em todos esses discursos, as empresas não mudam suas práticas de produção, apenas incorporam medidas de compensação que mascaram os efeitos de suas atividades. Desse modo, a mineração tem usado da extração de metais importantes para transição energética, como lítio e níquel, para se colocar como atividade sustentável, desconsiderando que isso implica numa expansão da fronteira extrativa, destruindo territórios.

Já a agricultura climaticamente inteligente envolve a conciliação entre segurança alimentar, produção de alimentos e mudanças climáticas. No entanto, o que as organizações apontam é que o mecanismo consiste unicamente nas negociações do mercado de carbono. Inclusive, no Brasil, o agronegócio, em razão da expansão da fronteira agrícola, tem sido um dos principais responsáveis pela destruição dos biomas nacionais, do Pampa à Amazônia.

As falsas soluções que hegemonizaram os debates nos mecanismos multilaterais são controladas pelas empresas transnacionais, que buscam reconfigurar suas narrativas ideológicas para seguir justificando as práticas expropriatórias da biodiversidade. Por isso, movimentos ao redor do mundo têm erguido bandeiras de luta em torno da palavra soberania, assumindo uma crítica ao sistema produtivo como causador dos danos socioambientais e exigindo o controle popular sobre outras formas de constituição de relações com a Natureza.

Direitos por efetivar: um horizonte para lutar

A afirmação e a efetivação de direitos aos povos são um caminho para um diálogo da constituição de outras relações com a biodiversidade, entende-se como parte desta totalidade. Assim, a Declaração de Direitos Camponeses (2018), uma construção popular – com destaque à Via Campesina Internacional, estabelece claramente a relação dos camponeses com a preservação da biodiversidade, assegurando o acesso à terra, território, ao compartilhamento da sabedoria tradicional na troca de sementes, do cuidado com a terra e água.

Na mesma esteira, os direitos estabelecidos na Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhecem o papel que povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais têm na preservação da sociobiodiversidade. E que, portanto, são sujeitos que devem ser consultados sobre projetos que afetem suas terras e territórios. Igualmente, sobre o direito à participação e informação no Acordo de Escazú, ainda não ratificado pelo Brasil, que garante tais direitos para a promoção da justiça ambiental.

Que possamos reconhecer o chamado das organizações e movimentos para assumir que a preservação da biodiversidade envolve um projeto político de mudança do atual sistema de produção, no qual a vida da humanidade é parte integrante do todo da vida do planeta. Que possamos dar um basta na separação entre sujeitos e natureza, romper com as políticas de compensação e construir um novo paradigma que não produza exclusões de nenhum tipo.

Conteúdo publicado na íntegra no Jornal Brasil de Fato, em https://www.brasildefato.com.br/2023/05/23/a-biodiversidade-que-se-constroi-no-territorio-do-campo-a-cidade

 

Confira, abaixo, algumas fotos da 9ª Festa da Biodiversidade, que aconteceu nessa 2ª feira (22/05/2023), no Largo Glênio Peres, em Porto Alegre (RS). Crédito das fotos: ATBr

 

 

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