O modelo, a inserção internacional e o ambiente no Mercosul: o Governo Lula como uma oportunidade

Na sua campanha, o presidente brasileiro falou da revisão do acordo entre o Mercosul e a União Europeia (UE), aceito por Bolsonaro após 25 anos de negociações. A transformação proposta pela UE contra uma mudança profunda que melhoraria as perspectivas da região. Pobreza, indústria e extrativismo no centro das atenções.

Por Lucia Ortiz, Viviana Barreto e Natalia Carrau (*)

No processo eleitoral altamente polarizado do Brasil, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, deixou algumas pistas que mais tarde retomou no seu discurso na noite do segundo turno das eleições, quando a sua vitória já era conhecida, em 30 de Outubro de 2022. O seu discurso foi marcado pelas prioridades do governo, tanto na política interna como internacional. O foco foi fortemente orientado, por um lado, para a luta contra a fome e a pobreza e, por outro, para o reposicionamento do Brasil como um ator importante nos debates regionais e internacionais.

Segundo o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e conselheiro de Lula para os assuntos internacionais, um dos pontos da agenda internacional proposta refere-se à necessidade de rever o acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, cujas negociações começaram há quase um quarto de século sem nunca terem sido ratificadas ou debatidas publicamente. Após a derrota da proposta de Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) como uma vitória regional popular que marcou a história dos governos progressistas no início dos anos 2000, o acordo UE-MERCOSUL foi negociado durante mais de duas décadas a portas fechadas, sem grandes progressos, até ser anunciado como fechado e acordado durante o governo de extrema-direita de Bolsonaro em 2019.

É especialmente importante analisar a perspectiva do acordo UE-MERCOSUL no novo contexto geopolítico e à luz dos compromissos do novo governo para garantir a participação social efetiva na formulação de políticas públicas internas e externas. E em termos regionais, é essencial considerar os riscos e oportunidades de uma forma integral, avaliando a região como um território comum onde comunidades, povos e bens comuns de grande importância coexistem.

A situação global, com as vulnerabilidades dos países e regiões – destacadas pela pandemia de COVID-19 e aprofundadas pelos impactos da guerra na Europa, localizada em territórios-chave para o fornecimento de energia e matérias-primas para a agroindústria – deve chamar a atenção para a discussão sobre as relações econômicas internacionais e o poder e controle que as empresas transnacionais têm para determinar os fluxos comerciais e de investimento e os desenhos produtivos dos países e territórios. É momento de colocar as necessidades sociais em primeiro lugar e enfrentar um modelo de comércio neoliberal obsoleto e neo-colonial, impulsionado pela oferta e exigências de mercado das empresas europeias.

A guerra comercial e tecnológica EUA-China, o desenvolvimento do projeto “Belt and Road” pelo gigante asiático, a construção do conceito de autonomia estratégica como orientação para a política internacional da UE, são exemplos claros das ações dos principais atores globais na busca de assegurar as melhores condições e os melhores recursos para a sua inserção internacional. Isso não é novidade. A evolução da UE reflete uma tendência crescente para a aplicação e exportação de regras e regulamentos protecionistas para si própria e extremamente liberalizadora e aberta a outras regiões. O conceito de autonomia estratégica pode ser interpretado como uma versão renovada e complexa do que foi outrora o lançamento da “Europa Global”. A guerra comercial e tecnológica entre os EUA e a China também não é nova, mas é agora que a UE está mais claramente a tentar sair na frente a fim de assegurar a sua quota-parte de recursos e mercados.

Na América Latina, este é um tempo de processos de mudança política num quadro de crises e tensões. Por um lado, o impacto devastador do último período do neoliberalismo, expresso em termos de aumento da desigualdade, um novo ciclo de concentração da riqueza com um recuo nas políticas públicas de bem-estar social e o avanço e reconfiguração do capital transnacional na região. Por outro lado, cenários de mudança política para a esquerda em vários países da América Latina num contexto de profunda polarização política, expansão da cultura do ódio e do conservadorismo e a deterioração das condições democráticas na vida pública.

Particularmente significativos são os movimentos e sinais dos governos do México, Argentina, Chile e Colômbia para reavivar a discussão sobre o regionalismo latino-americano e caribenho e as bases econômicas e políticas estratégicas sobre as quais a nossa relação com o mundo deve assentar. Este cenário é completado especialmente com a vitória eleitoral de Lula da Silva no Brasil, que tem sido fundamental na construção do diálogo político e no reforço institucional da integração regional e da solidariedade.

 

Desafios e riscos

Com os novos cenários políticos surge a necessidade de reposicionar velhos desafios e ponderar novos riscos. Em termos de inserção internacional e no contexto do MERCOSUL, o principal desafio para o movimento pela justiça ambiental reside em poder introduzir o debate sobre o modelo de produção à luz da insustentabilidade do modelo baseado no agronegócio e na exportação de minerais e agro-produtos. E este é um desafio partilhado com projetos políticos que promovem e lutam pela transformação social e por outros movimentos sociais, como os que lutam pela justiça social, trabalho digno e digno, soberania alimentar, justiça de gênero, igualdade racial, direitos dos povos indígenas e quilombolas, entre outros.

Responder à insustentabilidade do modelo implica pensar numa inserção internacional diferente. O principal perigo pode residir em continuar a desenvolver uma inserção internacional que aprofunde ainda mais a insustentabilidade do modelo. Avançar com o acordo entre a UE e o Mercosul sem abrir um debate com participação social sobre o seu conteúdo é, do nosso ponto de vista, um enorme risco.

Durante a campanha eleitoral, o Partido dos Trabalhadores (PT), na voz do próprio Lula, levantou em várias ocasiões a necessidade de renegociar o acordo de comércio livre assinado pelo Mercosul e pela UE. Embora no anúncio da assinatura do acordo fosse evidente que não existiam condições políticas para uma conclusão efetiva, nos últimos três anos foram levantadas objeções devido a desacordo na UE por razões centradas em políticas de proteção do setor agrícola ou preocupações sobre o impacto da política ambiental criminosa do governo de Jair Bolsonaro.

Apesar das numerosas perspectivas críticas desenvolvidas a partir de vários setores do movimento social e da esquerda latino-americana, a definição programática do PT no âmbito da campanha gerou, pela primeira vez, as condições reais para uma avaliação aprofundada dos impactos do tratado e não apenas uma leitura de alguns dos seus aspectos mais sensíveis.

A posição de Lula em relação à renegociação baseia-se no argumento central de que o tratado, tal como assinado, não respeita as necessidades de desenvolvimento do Brasil. Alguns elementos são particularmente preocupantes para o PT: restrições à implementação de políticas de reindustrialização, o impacto da abertura dos contratos públicos, maior regulamentação dos direitos de propriedade intelectual, comércio de serviços, negociações sobre tecnologia e os impactos do comércio bi-regional no ambiente.

O entusiasmo pela conclusão do acordo que vem da UE colide com a proposta de renegociação de Lula. Embora a intenção da UE tenha se concentrado na incorporação de alguns capítulos ou protocolos complementares que poderiam supostamente remediar as “fraquezas” do acordo em matéria ambiental, a nova correlação de forças estabelecida no Mercosul afirma a necessidade de mudanças profundas, mesmo em elementos que fazem parte da espinha dorsal do acordo assinado, tais como o espaço para a política industrial na região.

De uma perspectiva regional, isso deve ser visto como uma grande oportunidade para desenvolver uma discussão verdadeiramente ampla sobre alguns dos conteúdos do acordo que podem ter impactos mais prejudiciais para o nosso desenvolvimento em termos de justiça social e ambiental. Também nos oferece a oportunidade de discutir que outros modelos comerciais são hoje necessários para os povos e países da região, no contexto atual.

O texto do tratado impõe uma ampla liberalização sobre o comércio, que por parte do Mercosul é superior a 90% do total de mercadorias. Várias análises do impacto no comércio bi-regional mostram o efeito que teria no aprofundamento da matriz de intercâmbio com base na atual divisão internacional do trabalho. Segundo o estudo de impacto encomendado pela Comissão Europeia à London School of Economics, os setores econômicos que ganhariam no caso do Mercosul estariam concentrados na carne, soja e derivados, celulose, alguns produtos da indústria alimentar, tais como sucos, e outros alimentos processados, enquanto os perdedores seriam os setores industriais da produção automóvel, química e farmacêutica. A que devemos acrescentar as plantações de cana de açúcar e a indústria associada à produção de etanol, cujas quotas de exportação do MERCOSUL são consideravelmente aumentadas, principalmente a partir do Brasil. Para além de já ser uma produção altamente transnacional e agroquímica intensiva, mantém as características de enorme concentração fundiária e más condições de trabalho herdadas do período colonial, com graves impactos nos biomas da Mata Atlântica, Cerrado e Pantanal e nos seus povos nativos. Do mesmo modo, e a uma escala diferente, no caso do Uruguai, há também possíveis impactos negativos na indústria leiteira e na produção de bebidas.

Este tratado ata as mãos dos países do Mercosul em relação à possibilidade de desenvolver políticas públicas para a transformação produtiva. A UE negou expressamente a possibilidade de introduzir cláusulas de proteção para o desenvolvimento de setores industriais ou disposições para a transferência de tecnologia em investimentos. Além disso, a entrada em vigor do tratado significa a abertura das compras estatais, a nível nacional e subnacional, a empresas europeias que poderiam competir em igualdade de condições com as empresas do Mercosul. E embora alguns países, como o Uruguai, tenham protegido os contratos públicos, as negociações de comércio livre avançam no sentido de uma maior liberalização, pelo que é de esperar que esta proteção seja condicionada ao longo do tempo ou que se exija a sua liberalização total. Desta forma, o Mercosul priva-se de uma importante política de promoção industrial, dando às empresas da UE altamente competitivas um mercado atrativo.

A preocupação com o impacto no ambiente não foi acompanhada de propostas eficazes para o seu tratamento, bem pelo contrário. O esquema comercial estabelecido por este acordo terá impacto na expansão da fronteira agrícola e extrativa primária – incluindo o setor da extração de energia – com um impacto profundo e bem documentado na justiça ambiental em termos de desmatamento, apropriação de terras, efeitos na biodiversidade, qualidade da água e contaminação dos alimentos por agroquímicos, violência e deslocação contra os direitos coletivos das comunidades. Segundo o relatório elaborado por Tom Kucharz para a ala esquerda do Parlamento Europeu, o comércio com a UE está diretamente relacionado com o desmatamento anual de cerca de 120.000 hectares no Mercosul.

A afirmação da Europa de que tem a intenção, os conhecimentos e os instrumentos para forçar os países do Mercosul a cumprir as suas quotas de exportação sem causar desmatamento ou contribuir para as alterações climáticas está, pelo menos historicamente, fora do contexto. Como o presidente argentino Alberto Fernández salientou durante uma cúpula do bloco sul-americano, a UE utiliza a Amazônia como desculpa para o protecionismo da sua própria economia e, podemos acrescentar, para os interesses das suas corporações transnacionais. Apesar da insustentabilidade das cadeias de produção destas empresas e do padrão de consumo crescente de recursos externos numa sociedade desenvolvida, insiste que a solução para o acordo seria um misterioso anexo ambiental elaborado pela Comissão Europeia, a ser aplicado unilateralmente ao Mercosul.

Tendo superado o desconforto de ter assinado um acordo em 2019 com o presidente fascista e antiambiental Jair Bolsonaro, a UE coloca nas mãos de Lula a expectativa de resolver os problemas que supostamente afligem o bloco europeu, sem medir as consequências das assimetrias abismais – desde as originárias da exploração colonial até ao mais recente e não menos brutal desmantelamento dos direitos humanos e da proteção ambiental e das próprias instituições democráticas do Brasil desde o golpe de Estado de 2016 contra a Presidente Dilma Rousseff.

Demorará muito mais de seis meses ou um ano para construir políticas ambientais e de participação social no Brasil. O governo de Lula já começou nos seus primeiros três dias com a revogação dos decretos anunciados pela equipe de transição durante o mês de Novembro de 2022. Entre os mais de 200 decretos presidenciais anunciados para serem revogados estão os que fazem da monitorização, controle e proteção dos biomas brasileiros e dos seus povos uma promessa impossível de cumprir, tais como a militarização, a presença de garimpo e tráfico, o armamento de milícias em grandes propriedades fundiárias, o esvaziamento total dos orçamentos/recursos e da participação social em organismos como o Conselho Nacional do Ambiente (Conama).

As fórmulas normativas apresentadas no processo de negociação são falsas soluções porque não resolvem, mas sim aprofundam o problema estrutural acima mencionado.

Uma verdadeira solução seria limitar a exportação de agrotóxicos produzidos pelas principais indústrias químicas europeias (BASF e Bayer-Monsanto), proibidos de serem comercializados na Europa, mas exportados para utilização na produção agrícola do Mercosul, que é exportada para a UE.

A incorporação de capítulos sobre objetivos de “desenvolvimento sustentável”, ou a implementação de políticas mais próximas dos interesses do protecionismo comercial do que de uma vocação de profunda justiça ambiental, não são soluções reais nem respeitáveis. Aparentemente, a UE está a trabalhar num “documento adicional” ao tratado, aplicável a ambas as partes, que detalharia ainda mais os compromissos relacionados com a “sustentabilidade ambiental e a luta contra as alterações climáticas”. Qualquer que seja o conteúdo deste documento, é difícil prever uma solução em profundidade sem um quadro completo de renegociação do tratado.

O tratado também antecipa as obrigações relativas à proteção privada da propriedade intelectual. Isso está claramente expresso na proteção dos direitos de autor, em que o prazo de proteção previsto pelas obrigações da OMC (Organização Mundial do Comércio) é ampliado. Além disso, é possível prever os progressos nas possibilidades de patentear sementes e variedades vegetais a partir da referência às duas versões da Convenção Internacional sobre a Protecção das Obtenções Vegetais (UPOV) de 1978 e 1991. A versão de 1991 é mais exigente do que a versão em vigor para os países do Mercosul.

No capítulo sobre o comércio de serviços, o tratado permite incorporar os serviços públicos no mercado bi-regional porque a exclusão é limitada aos serviços que são prestados no exercício dos poderes governamentais e em condições de não concorrência com os prestadores privados. Este é outro aspecto que deve ser reconsiderado numa eventual renegociação do acordo, tendo em conta a valorização social da educação pública e dos serviços de saúde durante a pandemia (como o Sistema Único de Saúde do Brasil), bem como a água e o saneamento básico. Estas questões, que são consideradas mercadorias na negociação, contradizem as declarações de Lula sobre o fim da privatização dos serviços no país a partir de 1 de Janeiro de 2023. Ao mesmo tempo, no processo de atualização dos respectivos tratados da UE com o México e o Chile, tem havido uma clara vocação para incorporar os padrões mais avançados nas negociações dos serviços.

Finalmente, foi revelada a intenção de algumas autoridades europeias de separar a negociação e assinatura do acordo comercial das relacionadas com o diálogo político e a cooperação, a fim de evitar a necessidade de ratificação pelos parlamentos nacionais de todos os estados membros da UE e do Mercosul. Com esta manobra, a máscara da política externa da UE caiu finalmente, e é evidente que a sua política externa é uma política neoliberal de comércio livre muito afastada das supostas preocupações sobre transparência, democracia, direitos humanos e cooperação para o desenvolvimento conjunto bi-regional e os processos pioneiros da integração regional.

Os desafios que enfrentamos na região são enormes e podem ser todos resumidos na análise das múltiplas crises baseadas na injustiça e na opressão. É num momento como o atual que temos de apostar em políticas de conteúdo renovado, de expansão num sentido democratizante e profundamente participativo.

Este compromisso deve também estar presente na reflexão sobre a inserção internacional e as formas em que os países da região – que continua a ser os mais desiguais do mundo – se integrarão e construirão um espaço político comum. Para tal, é essencial compreender que as agendas do livre comércio são contraproducentes para projetos políticos de transformação social, que a justiça deve estar no centro desses projetos e que a defesa da democracia deve ser um tema transversal comum em todas as políticas.

Num contexto em que a experiência atual continua a ser de negação da construção da democracia e do desmantelamento dos direitos dos povos por meio do uso extremo da violência, é necessário defender o valor da política e contestar as políticas públicas com princípios e orientações construídas por organizações e movimentos populares. A política de inserção internacional deve também responder aos princípios democráticos, deve ser alinhada com um projeto transformador inclusivo, baseado na justiça. Uma política de inserção internacional que responde às necessidades do povo e que está orientada para a sustentabilidade da vida e não para a reprodução do lucro.

 

*Lucia Ortiz (Amigos da Terra Brasil); Viviana Barreto (REDES – Amigos de la Tierra Uruguay); Natalia Carrau (REDES – Amigos de la Tierra Uruguay)
Foto principal: Agencia NA / Telam

Artigo publicado originalmente em espanhol no site argentino Canal Abierto em https://canalabierto.com.ar/2023/01/23/el-modelo-la-insercion-internacional-y-el-ambiente-en-el-mercosur-el-gobierno-de-lula-como-oportunidad/

Justiça Ambiental: diálogos necessários na agenda da transição

Lula na COP 27, no Egito, com lideranças de movimentos populares do Brasil – Foto: Ricardo Stuckert

Durante os últimos quatros anos de governo, os criminosos ambientais tiveram um verdadeiro regime de “passada da boiada”. O orçamento da preservação ambiental foi reduzido drasticamente, os órgãos fiscalizatórios foram completamente desestruturados, o país praticamente parou de produzir dados sobre desmatamento e, no Congresso, projetos de lei escandalosos avançaram para o Senado.

Tais projetos de lei estão paralisados na Casa, que é presidida por Rodrigo Pacheco (PSD). Dentre eles, constam a mudança no licenciamento ambiental para praticamente extingui-lo (PL nº. 3729/2004) e a tão defendida, pelo bolsonarismo, regularização da grilagem de terras públicas (PL nº. 2633/2020 e PL nº. 510/2021). Ainda, a liberação da mineração em terras indígenas, além de outras formas de intervenção nos territórios originários previstas no PL nº. 191/2020. E também, as alterações no regime de liberação dos agrotóxicos (PL nº. 1459/2022), conhecido como o Pacote do Veneno.

Senadores e deputadas e deputados progressistas, que compõem a Frente Parlamentar Ambientalista, têm buscado empreender esforços para segurar o “avanço da boiada”. Mas é preciso atenção e mobilização social para garantir que este pacote de maldades não seja aprovado nos dias que ainda restam do Governo Bolsonaro. A pressão dos derrotados por aprovar mais retrocessos frente ao desespero da perda do poder e o oportunismo político criado no desvio de atenção para trancamento de estradas e acampamentos em quartéis são um caldeirão ainda em ebulição. Portanto, em meio às comemorações da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, que nos traz de volta o direito de sonhar e fazer a luta real pela reconstrução do país, é preciso seguirmos atentas e fortes.

O problema e as soluções na mão da equipe de transição

Talvez como nunca antes, as questões ambientais pautam as agendas governamentais. As mudanças climáticas já são permanentes e sentidas pela população em seu cotidiano. Os desastres ambientais mais que triplicaram nos últimos anos. A destruição da Amazônia e do Cerrado foi vista em todo o mundo. Não será mais possível aos governos progressistas investir num modelo de desenvolvimento cunhado no avanço da exportação de commodities. É precisamente o avanço do extrativismo e da fronteira agrícola que destrói os ecossistemas e os povos que os habitam e cuidam. A ferida aberta e pulsante colonial, precisará ser enfrentada.

É diante deste cenário que a equipe de transição terá o desafio de construir a passagem do Governo Bolsonaro para a efetivação das ousadas propostas de campanha de Lula. Em seu plano de governo, construído com aliança programática com Marina Silva, encontra-se o combate ao desmatamento e a conservação de todos os biomas. Apresenta-se ainda o compromisso de cumprir as metas do Acordo de Paris, com políticas para redução das emissões de gases de efeito estufa, com investimento em sustentabilidade produtiva. Em diálogo com tais propostas, estão a retomada do Ministério da Pesca, a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a promessa de titulação dos territórios quilombolas.

Diferentemente de outros governos, o tema da política ambiental aparece como transversal a toda a política de governo, além de indissociável dos esforços de combate à fome e às desigualdades, com centralidade também na política econômica. Reflete, portanto, uma consciência histórica e um entendimento inédito para um governante, ainda que no plano das ideias, de que a Justiça Ambiental e Climática não o é sem justiça social, econômica e de gênero. Bem como não se dissocia do enfrentamento a todas as formas de opressão, de classe, raça, identidade ou orientação sexual.

Geraldo Alckmin ainda não anunciou os integrantes da equipe de transição ambiental. No entanto, já solicitou dados do desmatamento na Amazônia e no Cerrado. A despeito da demora, algumas movimentações apontam para a conformação de uma equipe promissora. Durante a COP 27 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), que aconteceu recentemente no Egito, a deputada Joênia Wapixana; as recém eleitas Sônia Guajajara e Célia Xakriabá; as ex-ministras Marina Silva e Izabella Teixeira e o Senador Randolfe Rodrigues estiveram representando interesses do futuro governo.

Espera-se agora que o diálogo entre as políticas de combate à fome e as questões ambientais avance também em direção a uma convergência com as políticas de reparação histórica racial e territorial. Essas são questões ainda em aberto a serem respondidas pela equipe de transição com propostas concretas. No entanto, é importante destacar que, ao lado dos desafios, existem construções históricas dos movimentos populares no Brasil que podem facilitar nessa elaboração.

Neste sentido, no debate sobre os impactos à saúde e ao meio ambiente decorrentes do uso de agrotóxicos, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida  possui uma sistematização de dados, estudos e zonas de afetação que precisam de atenção e ação protetiva imediata. No campo da transição agroecológica, os movimentos da Via Campesina no Brasil são exemplo para o mundo em investimento na construção do paradigma da soberania alimentar e de políticas de incentivo à produção e comercialização saudável, justa, sustentável, solidária e feminista de alimentos, que precisa se expandir. O estabelecimento de políticas contra as queimadas e desmatamento, especialmente na responsabilização do agronegócio, já encontra inúmeras propostas feitas pela Campanha em Defesa do Cerrado e, do mesmo modo, a liderança dos povos originários, na denúncia da cumplicidade das corporações no desmatamento, e de um modo geral, nos efeitos das mudanças climáticas na Amazônia brasileira. Há ainda propostas de revisão de toda a regulamentação do setor minerário no país, paralisando especialmente projetos de lei que flexibilizam o licenciamento e autorizam o garimpo de larga escala, retomando políticas de estruturação para órgãos ambientais e agências reguladoras.

E finalmente, falta colocar no topo da lista das prioridades o combate ao racismo ambiental, marcado na pele do povo preto, pobre e periférico que se compreende também na cartografia das desigualdades e das injustiças climáticas nas cidades do Brasil. Pensar a organização das cidades, na democratização do acesso à moradia, trabalho e, também, de uma transição ecológica, dentro da retomada do Ministério das Cidades e da Plataforma de Lutas pelo Direito à Cidade.

“Não existem dois planetas Terra”

O Brasil definitivamente voltou à cena ambiental internacional quando o presidente Lula foi convidado a fazer parte da COP 27 sem ainda ter tomado posse. Em seu discurso, destacou o momento de alerta que o planeta vive: “São tempos difíceis. Mas foi nos tempos difíceis e de crise que a humanidade sempre encontrou forças para enfrentar e superar desafios. Precisamos de mais confiança e determinação. Precisamos de mais liderança para reverter a escalada do aquecimento. Os acordos já finalizados têm que sair do papel”.

A COP 27 estava sendo esperada como a “COP da implementação”. Após firmar todo o documento de regras do Acordo de Paris em Glasgow, na Escócia, em 2021, esperava-se que os Estados viessem para negociar o financiamento climático e mecanismos de compensação por perdas e danos. No entanto, pouco se avançou na criação do Fundo Verde para o Clima e, portanto, não há qualquer reconhecimento consequente das responsabilidades históricas dos países desenvolvidos quanto ao seu papel como poluidores, nem tampouco solidariedade real frente ao reconhecimento dos impactos diferenciados da crise climática ao Sul global.

As apostas continuam sendo no papel do setor privado para a transição verde, sem importar quais corporações ganham com isso e onde estão os povos atingidos pela indústria extrativa, que sustentam as chamadas energias limpas, como o Hidrogênio “Verde”. Também, no campo da redução das emissões por desmatamento, o grupo Carta de Belém lançou a Carta se perguntando “juntos com quem e para que?” se vai a COP. As entidades criticam os investimentos nas soluções baseadas na natureza (NBS), que na prática são “falsas soluções” por criarem “mercados verdes” e se construírem em mais uma ferramenta da especulação financeira, ou mesmo pelas soluções apresentadas envolverem a mercantilização das florestas, do ar, da biodiversidade e dos saberes populares, onerando ainda mais povos indígenas, povos quilombolas e comunidades tradicionais, bem como ignorando completamente o passivo histórico de destruição ambiental e a violação de direitos nas áreas já degradadas. Se não avançarmos para pensar soluções na construção de políticas públicas, dentro de um sistema de governança de Estados, transparente e democrático, iremos continuar reproduzindo injustiças ambientais, racismo e a dívida climática.

Na mesma semana da COP27, uma delegação de ambientalistas e lutadores/as sociais esteve no parlamento europeu alertando para os riscos do avanço do Acordo Mercosul- UE (União Europeia). Argumentaram que há o risco do aumento da fronteira agrícola para atender ao mercado de commodities, com destaque para a expansão da exportação da soja, do etanol e da carne e para a intensificação da mineração. De igual modo, projeta-se uma maior importação brasileira de agrotóxicos, a maioria deles proibidos nos seus países de origem. O novo governo eleito já declarou intenção de reabrir as negociações do Acordo em condições de maior respeito, com preocupações destacadas quanto à restrição para  a reindustrialização do país e das compras públicas, área chave para as políticas sociais e de geração de emprego. A UE, mesmo tendo aparentemente ouvido a sociedade civil, anunciou que espera apresentar “diretamente ao governo do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, suas demandas de compromissos adicionais do Mercosul na área ambiental”. Apesar do impecável e impactante discurso de Lula na COP, parece que o outro lado do Atlântico ainda não captou a mensagem de que o Brasil voltou e vai lutar contra as desigualdades e assimetrias coloniais.

Para buscar o envolvimento com todos os setores de modo transversal, a ex-ministra Marina Silva defende a criação de um mecanismo de autoridade nacional para fiscalizar os compromissos climáticos assumidos e reduzir os riscos climáticos. O novo governo tem realizado diálogos para retomada do Fundo Amazônia e a reestruturação do Programa de Desmatamento (Prodes) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Resta saber até onde chega a influência do campo popular da justiça ambiental na discussão de pontos da agenda da política externa. Apesar de parecerem temas aparentemente distantes, como a primazia dos direitos humanos e dos povos sobre os interesses das empresas transnacionais e do comércio internacional, a retomada das relações de integração econômica e solidária entre os povos da América Latina e do Caribe não devem estar apartados das ações afirmativas de descolonialidade e de combate ao racismo, dívidas sociais que são reconhecidas e caras para o nosso novamente eleito presidente operário.

As vozes dos povos na transição e no futuro governo

Dia 20 de Novembro foi o Dia da Consciência Negra no país, e não podemos deixar de destacar o papel das comunidades quilombolas, indígenas e populações racializadas no Brasil para a luta da “floresta em pé”. Assim como reconhecer a sobrecarga dos danos ambientais sobre seus corpos e territórios. Quando ouvimos o presidente Lula, em sua passagem pelo Egito, abordando as questões ambientais atreladas ao combate às desigualdades sociais, cercado pela mística e presença dos povos indígenas, presenciamos o semear de um novo caminho rumo à Justiça Ambiental em sua integralidade neste país.

* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato RS em https://www.brasildefators.com.br/2022/11/23/justica-ambiental-dialogos-necessarios-na-agenda-da-transicao 

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