Queridos companheiros e companheiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
Em nome de todos nós, Amigas da Terra Brasil, é com imensa alegria e gratidão que nos dirigimos a vocês para felicitá-los pelos 40 anos de luta e resistência do MST. Desde a sua fundação, em 1984, vocês têm sido uma inspiração para todos nós, demonstrando que a esperança e a determinação podem mover montanhas, ou melhor, transformar terras improdutivas em espaços de vida, esperança e justiça.
Ao longo dessas quatro décadas, vocês têm sido incansáveis na defesa dos direitos dos trabalhadores rurais, na luta pela reforma agrária, na busca por uma distribuição mais justa e equitativa da terra e na construção de um modelo agrícola mais sustentável e inclusivo. Suas ocupações, marchas, acampamentos e projetos de assentamento não apenas demonstram uma resistência inabalável, mas também apontam para um futuro onde a dignidade e os direitos de todos os trabalhadores rurais são respeitados e garantidos.
O MST não é apenas um movimento social, mas sim uma escola de vida, onde se aprende a importância da solidariedade, da cooperação e da organização popular. Vocês têm sido um farol de esperança em tempos sombrios, mostrando que um mundo melhor é possível quando nos unimos em prol de uma causa maior.
Neste aniversário de 40 anos, queremos expressar nossa profunda admiração e apreço por tudo o que vocês têm realizado. Que este seja apenas o começo de uma jornada ainda mais longa e frutífera, rumo a um Brasil e a um mundo mais justo, igualitário e sustentável.
Parabéns, MST, pelos 40 anos de luta e resistência! Estamos ao seu lado hoje, amanhã e sempre.
Meio a invasão da fronteira agrícola e a mercantilização da vida, que dilacera o bioma Pampa e traz uma série de violações de direitos, povos e territórios resistem. Organizado por produtores agroecológicos e assentados do Movimento Sem Terra (MST RS) atingidos pela pulverização aérea de agrotóxicos, com a solidariedade de parceiros urbanos, encontro em Nova Santa Rita (RS) pauta estratégias e alianças da luta por agroecologia, direitos humanos e soberania alimentar
O domingo do dia 17 de dezembro foi marcado por confraternização entre famílias gaúchas atingidas pela deriva de agrotóxicos de Nova Santa Rita, Eldorado do Sul e Tapes, e apoiadores. Com o intuito de revisitar o histórico de luta das pessoas atingidas pelo crime de deriva (pulverização aérea de agrotóxicos), a atividade contou com roda de conversa, relatos diversos e levantamento tanto de violações de direitos como das vitórias dos atingidos. Também foram debatidos os caminhos traçados pela resistência ao modelo do agronegócio (de coexistência impossível) além de estratégias e táticas contra a pulverização de veneno, que incide violentamente no cotidiano de indígenas, quilombolas, comunidades periféricas, pessoas assentadas, pequenas produtoras de alimentos e se estende para além do rural, afetando todos ecossistemas e quem vive no meio urbano. Seja no corpo, na água, no ar ou nos alimentos contaminados por agrotóxicos, venenos, pesticidas, fungicidas e defensivos. Nomes tantos que descrevem verdadeiras armas químicas. Nomes que impactam, mas que importam menos do que o seu efeito na realidade: matam uma morte lenta, silenciosa e perversa, que conta com a impunidade corporativa e com a captura do estado, que é conivente com este modelo de aniquilação.
Para além das articulações da luta, o momento foi importante por ser uma confraternização das famílias que sofrem tantas violências por parte do agronegócio. Um modelo que avança nas vidas carregando uma forma de ação criminosa, que gera impactos para além do envenenamento. “O agronegócio faz todo o contrário do que a reforma agrária faz, e não deixa acontecer o trabalho na terra. Tira e expulsa as pessoas do campo”, salientou Graciela de Almeida, assentada do MST RS, que produz sem agrotóxicos e de forma agroecológica¹. A assentada contou que por anos as famílias da região vêm sendo afetadas por verdadeiras chuvas de veneno, utilizado pelo agronegócio. Destacou, ainda, a importância de parceiros urbanos e de organizações socioambientais, que também tornam possível que o trabalho de quem vive o rural, assim como as suas lutas, sejam exemplo em outros lugares.
“Precisamos continuar nessa luta. Resistir para existir, como o povo da Palestina. Não posso deixar de dizer que viva o povo da Palestina”, comentou em solidariedade, trazendo a conexão das lutas para além de fronteiras impostas pelo capital. Graciela defendeu que é preciso disputar espaços e incidir na esfera internacional, como foi realizado em novembro de 2022, quando uma delegação brasileira e a Frente Contra o Acordo Mercosul União Europeia levaram denúncias a cinco países do continente Europeu. “Fomos para denunciar precisamente a questão dos agrotóxicos no Brasil e como isso impacta nas comunidades, barrando um desenvolvimento realmente sustentável”, explicou.
Na ocasião, a delegação brasileira, composta por representantes da Amigos da Terra Brasil, da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares) e do MST realizou uma Jornada pela Europa. Além de denúncias, foram feitas reivindicações em debates que ocorreram com parlamentares, jornalistas, acadêmicos e organizações da sociedade civil. O foco foi apresentar os impactos do Acordo Mercosul – União Europeia sob os povos indígenas, comunidades camponesas e produtoras agroecológicas, ecossistemas e populações atingidas pela mineração e pelos agrotóxicos no Brasil. Colonial e violento, o acordo comercial daria lastro ao avanço do agronegócio, ampliando a liberação de agrotóxicos (proibidos em seus países de origem) na América Latina. Aprofundaria, ainda, a relação de dependência econômica do sul global em relação ao norte, intensificando a superexploração da natureza, dos povos e dos territórios na periferia do sistema, onde estamos situados.
¹ A produção de alimentos de forma agroecológica vai além de um método de produção de alimentos, e se conecta ao todo. É muito mais do que produzir sem veneno, embora englobe este quesito. É uma forma de produção alimentar, mas é uma forma de ser e agir no mundo, que constrói outros horizontes de mundos, com base em valores éticos centrados na vida, e não na lógica de lucro, dos negócios, do mercado ou da mercantilização de tudo. É uma luta permanente, e uma construção permanente que está enraizada na luta pela terra, na consciência e luta de classes, na luta contra o patriarcado, anticolonialista, anti-imperialista, anticapitalista e contra qualquer forma de exploração e dominação. Saiba mais aqui
A luta por alimentos, pessoas e ambientes saudáveis pulsa da semeadura à colheita nos assentamentos do MST, que resistem ao envenenamento da vida
A região de Santa Rita é reconhecida pelos assentamentos da reforma agrária que produzem alimentos sem veneno, onde se concentram algumas das áreas de maior produção de arroz agroecológico da América Latina. Também é marcada por um conflito que compromete as formas de vida e de produção econômica de inúmeras famílias da agricultura agroecológica – a pulverização aérea de agrotóxicos em fazendas das proximidades.
O veneno, aliado ao monocultivo e a uma forma única de compreender a relação com a terra – a da mercantilização, contamina solos, águas, ar, gentes, e bichos, e causa impactos irreversíveis na saúde ecossistêmica. Quem trabalha na terra de uma forma justa e harmônica, garantindo alimentos saudáveis de verdade, que abastecem diversas cidades, acaba sofrendo na pele os efeitos das pulverizações. Queimaduras, feridas, alergias, enjoos, mal súbito, câncer, depressão e sufocamento são alguns dos sintomas da exposição aos agrotóxicos. Sintomas, também, de um sistema nefasto que entende que mais importante que alimentar o país, é produzir commodities para o capital estrangeiro. O lucro do agronegócio significa contaminação. É o empobrecimento das famílias, o empobrecimento geral.
Fernando Campos, da Amigas da Terra Brasil, expôs: “Para nós é muito importante essa virada de ano com uma perspectiva de alguma forma positiva. O que acontece aqui acontece, de alguma forma, em vários lugares. A grande diferença é a gente reunir forças para conseguir enfrentar esse grande setor que é o agronegócio, que tem por trás de si empresas, corporações que estão no mundo inteiro tomando territórios. Expulsando pessoas do campo e levando para a cidade, empobrecendo o nosso povo. Seja com as doenças, seja com a ação permanente de uso dos agrotóxicos como arma química na expansão do território, impossibilitando quem está na sua volta e que tem outra relação com a agricultura (sem veneno, sem transgênico) de sobreviver. A decisão do uso destas tecnologias de morte não param na cerca, elas vão para o mundo”.
Tendo isso tudo em vista, os presentes no encontro debateram quais foram os desafios e conquistas de 2023, se posicionando contra o modelo de produção do agronegócio e traçando um horizonte de construção para a soberania alimentar. Foram discutidos aspectos como ferramentas de luta, ferramentas legais, com marcos como a assessoria jurídica aos afetados, além da lei que restringe as pulverizações aéreas na região metropolitana, mais especificamente na zona de amortecimento do Parque do Delta do Jacuí.
Fernando ressaltou que para avançar na luta contra o veneno é preciso de ferramentas e se instrumentalizar, até mesmo para que seja possível reunir provas e realizar denúncias de forma concisa. A recente garantia de estações climatológicas em cidades que sofrem com a deriva de agrotóxicos foi um dos passos fundamentais nessa direção. “Conseguimos, a partir das conversas e diálogo, garantir para famílias de Nova Santa Rita, do assentamento Santa Rita de Cássia, assim como de Tapes e Eldorado, cada um ter uma estação climatológica para poderem eles mesmos terem seus dados das medições de vento, velocidade, temperatura. Aqui em Santa Rita há uma no parque mesmo, iniciativa muito importante da prefeitura. Mas é importante que as famílias tenham as suas próprias informações, os seus dados, para bater com os dados do Estado”, analisou.
A instalação das estações citadas está prevista para janeiro de 2024, junto a um conjunto de iniciativas e ações para fortalecer a luta das famílias afetadas pela deriva. Entre elas, formas para monitorar e documentar violações de direitos. “A gente sabe que ter uma vida, que viver do lado do agronegócio não é possível produzindo agroecologia. A gente precisa de fato mudar essa realidade. Por isso, também, que a ideia da poligonal, de uma área livre de agrotóxicos aqui na região, importa muito”, frisou Fernando.
Emerson José Giacomelli, militante do MST, assentado do Assentamento Capela e Secretário de Agricultura de Nova Santa Rita, destacou a Lei da Deriva e a importância de ferramentas de luta construídas coletivamente. Mencionou, também, as políticas públicas do município voltadas para a agroecologia, para produtores de melão, pequenos produtores e quanto ao meio ambiente e educação, afirmando que uma diversidade de programas chegam nas propriedades. Citou, ainda, convênio com laboratório de São Paulo, responsável pela análise de amostras para detectar agrotóxicos, que já vem sendo utilizado e será posto à disposição dos assentados. “Começaremos o ano na Secretaria da Agricultura com orçamento de mais de 11 milhões. Poucos municípios têm investimento e prioridade tão fortes para a agricultura familiar como Santa Rita. Mas não podemos nos acomodar, mesmo com novos projetos e parcerias”, destacou, se comprometendo a buscar parceria com o Governo Federal para ampliar o atendimento aos atingidos.
Álvaro Dellatorre, da Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs), definiu a confraternização e o momento trazendo o conceito de agroecologia. “Achávamos que a técnica pela técnica resolvia as questões, mas chegamos no conceito de agroecologia. O que acontece aqui nessa roda de conversa é exatamente essa dimensão, porque percebemos que atrás da técnica há sociologia, antropologia, outras dimensões da vida que explicam a agroecologia, que permitem que entidades e pessoas que não estão produzindo somem nesse processo. Isso é o que vemos aqui”.
A agroecologia, presente no trabalho do MST e de atingidos pela pulverização de agrotóxicos de Nova Santa Rita, é um exemplo de realização do direito humano à alimentação. Este direito deve tratar da alimentação saudável considerando quantidades adequadas, qualidade dos alimentos, serem livres de substâncias tóxicas e adversas, serem ambientalmente sustentáveis, acessíveis e disponíveis para todos. A Promotora de Justiça aposentada do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP RS) e especialista em Direito Humano à Alimentação Adequada, Miriam Balestro, incidiu na conversa destacando que o direito humano à alimentação adequada tem que ser cada vez mais mobilizado e utilizado como instrumento de luta.
“O que ocorre hoje no Congresso Nacional é que o agronegócio, por suas curvas, está atacando o direito humano à alimentação adequada previsto no artigo 6º da Constituição Federal. Eles querem trocar a palavra por segurança alimentar. Segurança alimentar não é o direito, é a política. É como dizermos que direito a remédio de hospital é direito à saúde, não é. A construção internacional fala de direito à alimentação”, denunciou. De acordo com Miriam, o Brasil tem a melhor legislação do mundo quanto a direito à alimentação, o problema é que ela é pouco utilizada.
O agro é morte, o agro é emergência climática
Para além do agronegócio e da violência do uso de agrotóxicos, assentadas e produtoras rurais enfrentam ainda questões da emergência climática. Esta, intensificada justamente pela sanha de poder de corporações e empresas, especialmente do setor minerário e do agronegócio, este segundo que impõe o avanço da fronteira agrícola. A consequência é o desmatamento e perda de biomas, para além do extermínio de povos tradicionais e uma série de violações de direitos. No Brasil, sexto maior emissor de dióxido de carbono (CO2), gás poluente que mais tem impacto no aquecimento global, o principal fator de emissão está conectado ao desmatamento, que provém da alteração de uso de solo liderada pelo agronegócio.
“A questão ambiental é uma questão de direito humano. O que acontece com o problema da deriva, das enchentes, catástrofes ambientais, é problema de direito humano. Estamos vivendo um novo momento histórico. Não existe pensar um mundo diferente se a gente não incorporar a dimensão ambiental no que faz. E o componente carbonero é um componente fundamental da nossa estratégia, a luta só começou”, contextualizou Dellatorre.
Marina Dermmam, presidenta do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), relatou como este vem trabalhando dentro da temática: “O CNDH começou atividades hoje cedo nos assentamentos para verificar como a emergência climática têm atravessado a realização dos direitos humanos de vocês. A maioria aqui foi vítima, também, das últimas enchentes. Perderam novamente suas produções. Não bastasse o agronegócio e o veneno, agora vem as questões climáticas. Junto com o Conselho viemos com equipe de relatores aqui para monitorar as violações e conhecer a realidade”.
Embora a ofensiva do capital e do agronegócio sigam ameaçando a vida, é na organização da luta coletiva que se faz caminho para garantir uma alimentação que considere a potência da sociobiodiversidade, saudável para os povos e para os ecossistemas
“O agronegócio é um setor tóxico, que vive do empobrecimento das pessoas. É muito triste ver pessoas que lutaram pela terra, que buscam os seus direitos, que estão em luta para garantir um ambiente saudável, sendo atacadas permanentemente pelo agronegócio”, expôs Fernando Campos. Apesar de abordar a realidade brutal no campo, Fernando destacou que ao mesmo tempo há muita esperança, e que encontros como este emanam força pois reforçam que não há como defender o indefensável, ou naturalizar o envenenamento massivo. Como retratou: “Estamos do lado certo da história. Não é mais admissível o uso do agrotóxico. O agronegócio é um setor criminoso, formado por pessoas sem escrúpulos, sem ética, que realmente fazem de tudo pelo lucro. A gente lida com questões éticas, ambientais, de cuidado. Eles não”
Além das iniciativas previstas para 2024, que dão chão para que a luta travada pelos atingidos pela deriva seja mais justa, a sociedade vem se organizando. O próprio PL do Veneno vem sendo acusado. “Todo mundo que tem consciência do mal dos agrotóxicos deve se unir, somar e fazer a sua parte para que a gente possa derrotar esse projeto de morte, que tem matado no meio urbano e no meio rural. Com uma situação muito crítica de contaminação real de químicos”, mencionou Fernando.
Apesar das dificuldades e do tamanho do inimigo, encoberto em dinheiro marcado à sangue, há uma boa perspectiva de avanços das lutas dos povos. Há um vasto somatório de esforços, de organizações que estão juntas pelo fim da contaminação, para enfrentar o terror. Meio a políticas de morte emergem potências de vida, que vêm dos esforços coletivos, do trabalho árduo no campo e do suor cotidiano de quem produz para alimentar gentes, para correrem livres os rios e os ventos, para crescerem as matas em toda sua diversidade. E neste cuidado com a terra, com os biomas, uns com os outros, que a luta dos assentados contra os agrotóxicos se apresenta também como uma luta pela possibilidade de mundos socialmente justos e ecologicamente equilibrados.
A COP28 mantém a hipocrisia dos espaços multilaterais internacionais do clima. Enquanto Estados tentam redesenhar os Acordos de Paris, manipulando a contabilidade das reduções das emissões e a polêmica sobre o financiamento do clima, empresas transnacionais hegemonizam as discussões com as propostas de solução “verde”. Tais propostas envolvem investimentos do capital financeiro no uso de hidrogênio verde, em geração de energia eólica e solar e em eletrificação de carros, todas respostas pensadas nos termos de uma economia extrativa com impactos desproporcionais no Sul Global, aprofundando desigualdades e injustiças ambientais.
Enquanto isso, o Brasil acumula muitas contradições ao seguir mantendo sua subordinação às empresas transnacionais. Na própria COP 28, a tenda Brasil, organizada pelo governo, com o lema “Brasil unido em sua diversidade a caminho do futuro sustentável”, contava com painéis das empresas Vale S.A e Braskem, duas mineradoras responsáveis pelos maiores crimes socioambientais do país. Além delas, o Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas), mecanismo promotor da responsabilidade social corporativa, teve seu espaço na tenda. O que corporações conhecidas nacionalmente pela violação aos direitos humanos e ambientais dos povos, e o instrumento corporativo de “lavagem verde e social” têm para construir e agregar à nossa nação?
A Vale S.A, BHP Billiton Brasil Ltda. e Samarco Mineração S.A são responsáveis pelos rompimentos das barragens de Fundão, na cidade de Mariana, e Córrego do Feijão, em Brumadinho, ambas no estado de Minas Gerais – afora outras diversas barragens de rejeitos em risco de rompimento no país. Por anos, a empresa vinha sendo alertada pelos órgãos de fiscalização da necessidade de reforço da segurança das minas. Inclusive, especialistas apontam para o risco do uso de determinadas tecnologias no manejo do rejeito. Nenhuma das políticas corporativas conseguiu conter a destruição. E vale ressaltar que, nesses oito anos do desastre de Fundão, as vítimas seguem buscando indenização. O que os casos revelam é a reprodução de uma arquitetura da impunidade corporativa.
No caso da Braskem, a história se repete. Desde os anos 80, a sociedade civil e pesquisadores da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) alertam para as consequências da expansão da extração de sal-gema em Maceió, em Alagoas. Por décadas, a empresa extrai sal-gema, transformando o subsolo da cidade em várias crateras. Moradores da região atingidos denunciam rachaduras nas casas, cuja responsabilidade a empresa negava. Em 2018, quando ocorreu o terremoto na cidade, bairros vieram abaixo. A mineradora iniciou sua atividade instalando em um santuário ecológico estuarino; não havia dúvidas de que a destruição ambiental começava ali.
Importante destacar que os setores corporativos do agronegócio, mineração, construção civil, imobiliário e de energia têm flexibilizado a legislação. Temos tido eventos climáticos extremos resultantes das alterações do clima em função dos impactos gerados pelas corporações nos últimos séculos. A diferença entre os crimes de Brumadinho, Mariana, Maceió e das enchentes na região de Maquiné e do Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul; em Teresópolis, no Rio de Janeiro; em Santa Catarina e em Minas Gerais é o tempo. Alguns demoram centenas de anos para recuperar, ainda que parcialmente, a qualidade de vida das pessoas e a integridade dos ecossistemas e outras dezenas; o certo é a impunidade dessas empresas e a violação dos direitos dos povos, que estão no plano de negócios. Não é acidente, é parte do plano. Sabiam que aconteceria e que o lucro seria maior em não fazer nada do que investir em soluções reais. Assim, a impunidade segue do lado das corporações e dos Estados capturados.
Quanto ao tema da energia, no regresso da COP28, o governo brasileiro, via ANP (Agência Nacional do Petróleo), decidiu disponibilizar em leilão 603 blocos para exploração de petróleo e gás, em regiões que incluem a afetação à Amazônia brasileira. O leilão de poços irá permitir que mais empresas transnacionais venham ao país determinar os rumos de nosso desenvolvimento e reduzindo, também, a capacidade do Estado em construir, com participação popular, uma política necessária de transição energética justa para a classe trabalhadora, incluindo perspectivas da justiça ambiental e do feminismo popular. Ao invés disso, mais destruição e impactos anunciados, na contramão de um movimento de redução dos combustíveis fósseis, que foi a tônica desta COP depois de 28 conferências realizadas desde 1992.
Movimentos populares e organizações feministas têm denunciado o avanço dos aerogeradores para produção de energia eólica no Nordeste e sua relação com a violência de gênero. No polo da Borborema, na Paraíba, a instalação de parques eólicos têm alterado toda a dinâmica de produção camponesa. No litoral do Ceará, a instalação de eólicas em alto mar atrapalha a produção pesqueira, afetando pescadores e ribeirinhos. Evidenciando a contradição entre o uso de soluções tecnológicas e a sua aplicação concreta, que segue causando conflitos socioambientais.
Não podemos deixar de mencionar o papel do Congresso Nacional. O Senado Federal, como alavanca da modernização conservadora no país, aprovou, ao final de novembro, o PL 1459/2022, que flexibiliza, ainda mais, a liberação de agrotóxicos no país. Apesar dos inúmeros estudos científicos, posicionamento de Conselhos e órgãos de classe, como CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), que alertam para as perdas da biodiversidade e do risco de aumento das doenças, como câncer, relacionadas ao uso intensivo de agrotóxicos no país. O Congresso aprova, e a Presidência tem dificuldade de veto.
Nesse cenário, observamos que as soluções para a crise climática são pensadas pelos mesmos agentes causadores delas: as grandes corporações. A história ambiental nos revela como a intensificação da destruição ambiental está relacionada ao avanço da industrialização capitalista, na promoção de um desenvolvimento desigual. No qual, países do Norte Global saíram na frente na corrida imperialista, destruindo comunidades, territórios, escravizando populações e colonizando a natureza, cujos efeitos profundos são sentidos pelas atuais gerações. São os países do Norte Global e organismos multilaterais que promovem a atuação das empresas transnacionais, facilitando seu processo de acumulação por dependência.
Desse modo, qualquer solução pensada nos termos atuais das relações sociais internacionais, e de sua base, as relações sociais de produção capitalista, são mecanismos para seguir mantendo a ordem de destruição socioambiental.
Seguimos nos desencontrando, enquanto promovemos um discurso internacional avançado, e não sabemos transcender as políticas internas desenvolvimentistas apoiadas pela burguesia nacional. Dessa forma, terminamos fazendo um grande pacto de mediocridade, concedendo continuamente nossa soberania às corporações.
É a agroecologia que esfria o planeta, produzindo sem veneno alimentos saudáveis
Na construção de um Brasil novo, que seja o país do seu povo, não um país sustentável, mas um país ecológico e com justiça ambiental, é preciso aprender com as nossas práticas cotidianas, povos do campo, águas e florestas e, também, com as periferias das cidades, para manter a terra viva, suas culturas e biomas, onde estão as soluções para a crise climática. É a agroecologia que esfria o planeta, produzindo sem veneno alimentos saudáveis. São as Terras Indígenas demarcadas, convivendo com outras relações de produção da vida no território, assim como as terras quilombolas, os territórios de povos e comunidades tradicionais.
A nossa história não permite aceitarmos que as corporações sejam soluções, um mundo dirigido pelo crescente poder corporativo que só tem nos levado às múltiplas crises e aos desastres socioecológicos. Precisamos, com urgência, responsabilizar as corporações pelos seus crimes corporativos. São 37 anos de impunidade do empreendimento de sal-gema em Maceió; são séculos de impunidade das mineradoras e das grandes plantações transnacionais no solo brasileiro. Em face disso, a responsabilização das empresas e a regulação estatal do setor é fundamental. Por isso, a proposta do PL n.º 572/2022 deverá ser uma pauta prioritária dos povos para 2024.
Um Brasil livre e soberano, construindo um projeto político de libertação para si e para os povos da América Latina e Caribe, é a nossa urgência. Chega de falsas soluções! Chega de impunidade corporativa.
O Projeto de Lei 037/2023 reflete exponencialmente o que tem sido a gestão na prefeitura de Porto Alegre (RS) neste último período, durante o governo de Sebastião Melo (MDB). Uma prefeitura que demonstra uma aliança mais que evidente com o empresariado, governando para manter os privilégios e consequentemente o acúmulo de capital destes, às custas dos territórios e iniciativa dos povos, da classe trabalhadora, dos direitos humanos e da natureza.
Para a prefeitura e para os ricos da cidade, assim como para o modelo neoliberal a qual ela governa, não é interessante que exista um processo auto-organizado, autogestionado da sociedade civil, que garanta os alimentos sadios pelas agricultoras e consumidoras por meio de laços de confiança que existem e se mantém ao menos há 30 anos – este exemplo não é bom para o projeto neoliberal de Melo e do empresariado. Por isso, existe a tentativa de eliminar a autonomia das feiras ecológicas. Feiras que há décadas realizam um trabalho que o Estado deveria dar apoio. Mas não, ele faz de tudo para atrapalhar.
Este processo de interferência, de mercantilização da vida e fragmentação de espaços coletivos, infelizmente, se reflete em relação a cidade toda. Está presente quanto à moradia, a questão do saneamento, na lógica de privatizar o transporte público, água, saúde, educação e a economia. E esta mesma dinâmica violenta incide na questão das feiras ecológicas, que tem um histórico e uma característica importante de auto organização que perdura há décadas.
No caso das feiras ecológicas de Porto Alegre, a sociedade civil se organiza a partir dos consumidores, dos produtores e de parceiros urbanos, em uma diversidade coletiva que torna a experiência não só uma das pioneiras na América Latina, como um espaço que pauta outras possibilidades de refletir sobre a alimentação, a cultura, o comum e a própria cidade.
Iniciativas assim, que trazem a imaginação política de que outros mundos são possíveis para além do reducionismo de “compra e venda” (numa lógica do cliente tem sempre razão ou de que “não tem almoço grátis, narrativas neoliberais), incomodam quem detém o poder político e econômico. O incômodo se deve, principalmente, ao fato de que são essas forças coletivas que evidenciam o exemplo de que há como se organizar. De que é possível trilhar outros caminhos. E o Estado, que deveria apoiar essas construções, na verdade se empenha em criar barreiras para que essa coletividade aconteça.
Como apontou Fernando Campos, coordenador do Programa Soberania Alimentar e Biodiversidade da Amigas da Terra Brasil: “O PL 037/2023 diz muito sobre esse governo que privilegia o empresariado e desorganiza a sociedade civil em relação à incidência na auto organização, no processo organizativo. É importante para eles que não exista um bom exemplo para mostrar que a sociedade civil pode tomar iniciativas e ter as suas próprias soluções, e que o Estado tem que apoiá-la”.
A Amigas da Terra Brasil apoia as pessoas produtoras de alimentos da zona rural e do urbano. Estamos ao lado do Conselho de Feiras, das feiras ecológicas de Porto Alegre e das iniciativas coletivas que rompem com o imperativo capitalista de reduzir todas as relações a práticas mercadológicas.
Que a autonomia dos espaços coletivos seja preservada, para que alimentos saudáveis para as pessoas, territórios e planeta sejam uma realidade que se amplie a cada dia.
Seguimos na luta construída nas bases, pela agroecologia, pelo fim da fome e pela soberania alimentar.
Maioria dos agricultores expõe que a proposta de autoria do Executivo retira a autonomia do Conselho de Feiras, ameaçando a construção coletiva dos espaços, a autogestão dos feirantes e a produção ecológica de alimentos
A última terça-feira (14) foi marcada pela Audiência Pública virtual sobre o Projeto de Lei 037/2023, que ocorreu na Câmara de Vereadores de Porto Alegre (RS). O PL, proposto pela prefeitura, não está de acordo com o Conselho de Feiras Ecológicas de Porto Alegre (CFEPOA) e fere a cultura, autogestão, identidade e o acúmulo histórico das feiras, construído com esforços para garantir uma alimentação saudável para as pessoas e para os territórios.
Na ocasião estiveram presentes presencialmente cerca de 90 pessoas, além de 160 pessoas por videoconferência. A presença física no espaço se deu via articulação de entidades ambientalistas, organizações da sociedade civil, parlamentares, movimentos sociais, produtores ecológicos/agricultores e parceiros urbanos. Isto devido a audiência ter sido marcada apenas de forma online pelas autoridades públicas – formato que inviabiliza a participação de agricultores e agricultoras do interior do estado, que ainda enfrentam dificuldades de acesso à internet.
Mesmo com solicitação à presidência da Câmara para audiência híbrida, que permite a participação presencial da sociedade, as entidades não tiveram de pronto o retorno. Fato que também demonstra os reais interesses por trás do PL e a forma com que o debate vem sendo conduzido. Mesmo assim, as articulações em defesa da autogestão e da autonomia das feiras ecológicas estiveram fisicamente presentes, ocupando o espaço.
A Audiência reuniu agricultores agroecológicos de diversos municípios, frequentadores das feiras, representantes de entidades e vereadores. Foi presidida pela vereadora Lourdes Sprenger (MDB), que fez a abertura dos trabalhos e passou a palavra ao secretário de Governança Local e Coordenação Política, Cássio Trogildo, que apresentou detalhes do projeto. Foram ouvidas cinco pessoas contrárias e cinco favoráveis ao PL 037/23.
Em maioria, as pessoas presentes se posicionaram evidenciando que a proposta de autoria do Executivo retira a autonomia do Conselho de Feiras. O Conselho de Feiras Ecológicas é uma entidade que representa os produtores ecologistas do Rio Grande do Sul, o qual é constituído por produtores, consumidores, entidades da sociedade civil e órgãos públicos, como o Ministério da Agricultura, Associação Agroecológica do RS, entre outros.
Embora o Executivo afirme que o projeto foi construído com participação popular, grande parte dos participantes da Audiência criticaram o PL 037/23, sublinhando que ele é imposto sem diálogo com quem torna as feiras possíveis há décadas. Contrária ao PL, a agricultora familiar Franciele Bellé, cuja a família está na Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE) há 29 anos, evidenciou: “As feiras foram criadas pelos movimentos sociais, pela necessidade que a população de Porto Alegre tinha de consumir alimentos saudáveis”. Para ela, as feiras da Capital são referência pela relação produtor consumidor e o referido projeto vai contra isto, no intuito de instituir “uma norma de cima para baixo”.
Os participantes contra o PL da prefeitura estavam mobilizados reivindicando mais tempo para discussão e ao menos um novo encontro, em outra audiência pública de formato presencial, que ainda não teve data definida.
Durante o encontro, foram salientados aspectos como a relevância da participação popular como parte da construção da agroecologia. Ponto que desembocou na reivindicação de mais espaço para participação de produtores que integram as feiras ecológicas na construção do PL. No sentido de levar em consideração os acúmulos, história e lutas por uma cultura que dissemine uma alimentação saudável para pessoas, meio ambiente e planeta.
A pesquisadora em sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e conselheira do Conselho de Segurança Alimentar do RS, Potira Price, comentou que o poder público sempre teve uma participação muito tímida no fomento das feiras ecológicas. “As feiras são uma conquista social”, sintetizou.
As feiras ecológicas resistem em meio às pressões do setor imobiliário, tanto na zona rural (com o avanço dos condomínios fechados, com a perda de área de plantio e a contaminação das águas), como no urbano, que privatiza os espaços públicos e avança sobre a cidade na lógica da especulação imobiliária e de transformar Porto Alegre em uma cidade “ctrl C+ ctrl V” de outras cidades, retirando a construção cultural e histórica das ruas e da memória do povo porto-alegrense.
O desafio vai além de resistir a uma hegemonia marcada pela mercantilização da vida, pela redução dos espaços coletivos à ideia de compra e venda, pela fragmentação das coletividades e espaços dos comuns. Também é sobre pautar outras possibilidades e caminhos, o que as feiras ecológicas de Porto Alegre vem ensinando há décadas, sem se descaracterizar.
Quanto ao PL 037/23, que em breve pode ser votado na Câmara Municipal, a base do governo tem maioria, podendo aprovar o projeto. Porém, entre feirantes e parceiros urbanos, é mínimo o setor que está de acordo com a proposta da prefeitura. O argumento contra o PL, advindo da maioria de feirantes/produtores, é de que o autocontrole, organização e consensos das feiras ecológicas sejam debatidos como vem sendo feitos desde o início: com autonomia, participação popular e na coletividade de quem constrói, de fato, os espaços. Hoje, da instalação de luz elétrica e das lonas para cada tenda, até toda a organização da feira, são afazeres realizados por feirantes. As pessoas produtoras que fazem tudo, a prefeitura só tem que ceder a rua.
Parceiros urbanos se aliam aos feirantes, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que para além da luta por moradia constrói o sonho da soberania alimentar e do fim da fome no Brasil. Em 2021, na pandemia de Covid-19 e auge da fome, o movimento implementou um projeto nacional para garantir a alimentação de quem precisa: as Cozinhas Solidárias. Hoje, a Cozinha Solidária da Azenha, de Porto Alegre (RS), garante por dia em torno de 350 a 400 marmitas para a população, fazendo o que o Estado não faz.
Unindo a produção de alimentos ecológicos com a distribuição de quentinhas, o MTST e a FAE se encontram na luta. E quanto ao PL 037/23, Eduardo Osório, da coordenação estadual do MTST, expôs: “O que está em jogo é uma disputa de modelo, uma disputa pela cidade. E a FAE, as feiras, sintetizam um sonho de uma outra sociedade, que aqui na cidade junta os urbanos e a turma do rural para garantir saúde, alimentação digna, dignidade do nosso povo. Nós do MTST estamos nessa disputa da cidade, pelo direito à cidade. Vivendo as expulsões do dia a dia nas ocupações, a negação do acesso aos serviços, com despejos administrativos e forçados, com a criação da periferia da periferia. E sempre contamos com a solidariedade e o apoio dos trabalhadores e trabalhadoras do rural, visionários, que há mais de trinta anos apostaram num modelo de agroecologia, sem uso de venenos, com uma outra relação com a natureza. E vem se provando que esse é um modelo de saúde, de futuro”.
Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), defendeu que as feiras não podem ter interferência da prefeitura. Apontou, ainda, o erro do PL em confundir os conceitos de orgânico e ecológico. “Temos que falar o que é ecologia, sobre a relação da vida com todas espécies e meios. E nesse sentido, já achamos que a lei tem que ser regulada. Precisamos de uma lei para as feiras, mas não essa da prefeitura”, mencionou.
Finalizando a Audiência, foram debatidas as tentativas da prefeitura, fechada com empresários, de mercantilizar e privatizar os espaços coletivos. Além disso, o governo atua para dividir feirantes, incentivando a ideia da mercadoria como valor central, quando na agroecologia o valor está na vida e na diversidade das relações – vai muito além do simples ato de comprar e vender. Foi pontuada também a necessidade de atenção a esses processos de fragmentação das lutas e coletividades, botando em prática uma ecologia da ação que paute outros horizontes de mundos.
O PL 037/2023 fere de morte as feiras ecológicas de Porto Alegre
Saiba o que é o PL 037/23 e quais são os pontos abordados em sua construção
Ferindo as feiras ecológicas, e até mesmo os princípios da ecologia, que se propõe a construções democráticas, diversas e plurais, o PL 037/2023 não contempla demandas importantes dos coletivos que compõem as feiras
Uma das principais críticas ao projeto de lei da prefeitura é o esvaziamento do protagonismo do Conselho de Feiras, que tem em si um acúmulo de décadas de organização coletiva e gestão. Da forma que as feiras funcionam hoje, tudo é debatido entre entidades e pessoas produtoras. Conforme a proposta do PL 037/23, as feiras ecológicas acontecerão em logradouros públicos municipais definidos pelo Executivo. E a ocupação das vagas disponíveis nas feiras ecológicas existentes, assim como nas futuras, serão preenchidas mediante edital de seleção publicado pela administração municipal.
A proposta da prefeitura retira a autonomia da gestão de sete Feiras Ecológicas: Feira de Agricultores Ecologistas (FAE) José Bonifácio, quadra 1, Feira Ecológica do Bom Fim, José Bonifácio quadra 2, Tristeza, Três Figueiras, Auxiliadora, Rômulo Telles e Park Lindóia. Houveram várias tentativas de diálogo com a Secretaria de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV). Os participantes do Conselho das Feiras se reuniram com o prefeito Sebastião Melo e saíram com a promessa de avaliação e de participação para os próximos passos do PL. Só que a proposta acabou indo para o legislativo sem considerar o que havia sido acordado. O PL do Executivo foi protocolado em 19 de outubro, na Câmara Municipal de Porto Alegre (RS).
O Projeto de Lei 037/23 está tramitando na Câmara de Vereadores e prevê que a SMGOV regule as Feiras Ecológicas realizadas nos espaços públicos do município.O que pode acarretar, ainda, em feiras menos ecológicas e mais voltadas para o mercado convencional de hortigranjeiros.
Com esse PL, a atual administração do município pretende alterar vários pontos do funcionamento desses espaços, privilegiando produtores e fornecedores de Porto Alegre. Fator que implica na quebra da diversidade de alimentos da feira, tendo em vista que os produtores aqui da região não tem uma produção diversificada.
“A gente quer muito que a prefeitura abra espaço. Mais uma vez a gente pede diálogo. São 34 anos de construção de um trabalho que é reconhecido hoje nacionalmente, mundialmente, por ser berço de um movimento ecológico, um movimento de luta em defesa da agricultura sustentável e da agricultura saudável.Nós somos um pilar dessa força. Que permita que a nossa identidade seja preservada e essa gestão seja compartilhada de fato”, assinalou Ezequiel Cardoso Martins, agricultor do litoral norte gaúcho, da Banca das Raízes, que faz parte da FAE.
O PL segue para análise da Comissão de Economia, Finanças, Orçamento e do Mercosul (CEFOR). A relatoria ficará a cargo da vereadora Biga Pereira (PCdoB).
O Brasil é líder mundial do uso de agrotóxicos. Os efeitos desses venenos na saúde humana são devastadores. Segundo a “Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida”, rede que reúne diversas organizações da sociedade civil e movimentos populares, 20% dos agrotóxicos que consumimos são altamente tóxicos. Inclusive, 30% dos que são utilizados no país estão proibidos na União Europeia.
Grandes empresas transnacionais farmacêuticas buscam incidir na política nacional para abrir mercados para a entrada de seus agrotóxicos. Um dos exemplos é o lobby corporativo em torno do projeto de lei nº 6299/2002, o chamado “Pacote do Veneno”, aprovado em fevereiro de 2022 na Câmara dos Deputados. A proposta prevê a mudança completa do marco legal sobre a comercialização de agrotóxicos no país, visando facilitar o registro. O texto contém uma série de eufemismos para a toxicidade do produto, como a utilização dos termos “pesticidas” e “produtos de controle ao meio ambiente”. No texto, o banimento de determinados agrotóxicos fica restrito aos casos de “risco inaceitável” à saúde humana, que como a própria terminologia designa, significa que existem riscos aceitáveis.
Inclusive recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu a ADPF n.º 910, interposta pelo Partido dos Trabalhadores, para revogar a flexibilização da produção, pesquisa e registro de agrotóxicos no Brasil apresentada pelo Decreto nº. 10.833/2021. A Ministra Carmen Lúcia entendeu que o decreto deveria ser considerado inconstitucional, pois acarretava retrocesso ambiental e uma proteção deficiente. Assim, a Corte reconhece os alertas e riscos que eram apontados pelas organizações à época.
Outro aspecto chave sobre a comercialização de agrotóxicos no Brasil são as isenções e reduções fiscais. O governo federal concede redução de cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); isenta a cobrança de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), pois contém em suas fórmulas determinados ativos; ainda estando prevista isenção de PIS/PASEP e Cofins, que envolve diretamente questões previdenciárias dos trabalhadores.
Alguns estados prevêem outras isenções envolvendo os mesmos impostos e contribuições. Somente no Rio Grande do Sul, em 2016, o estado concedeu R$ 182 milhões de isenção de ICMS, como aponta sistematização do Prof. Drº. Althen Teixeira Filho, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). De acordo com levantamento do professor, as empresas do agronegócio deixaram de pagar R$ 10 bilhões, entre isenções e reduções fiscais.
Dessa forma a conta não fecha, pois com as isenções aos agrotóxicos não se compensa o aumento da sobrecarga no sistema de saúde pública. Conforme o Datasus, entre 2010-2019 houve um aumento de 109% dos casos de intoxicação por agrotóxicos.
O tema sofreu alterações recentes com a proposta de Reforma Tributária, aprovada na Câmara dos Deputados. Agora, termina-se com as isenções totais, passando a fixar a alíquota de descontos ao máximo de 60%. Segundo a avaliação da Campanha dos Agrotóxicos, o Congresso perdeu uma oportunidade histórica de acabar definitivamente com a isenção dos agrotóxicos. Preocupa, ainda, a possibilidade de que os agrotóxicos sejam incluídos como produtos “agropecuários” base para produção de “alimentos para consumo humano”, e continuem sendo beneficiários com reduções. Não se aplicou, por exemplo, uma tributação mais dura, com fins de reduzir o consumo de agrotóxicos no país.
Os agrotóxicos também estão sendo usados como armas químicas; em verdade, sua criação envolve esse uso. Tal fato ocorre devido à autorização da prática de pulverização aérea, proibida em outros países. Por meio delas, fazendeiros violam normas sanitárias, ou mesmo se beneficiam da falta de uma regulamentação mais rígida para disseminar o veneno, expandindo assim a fronteira agrícola sobre assentamentos, acampamentos e territórios indígenas e quilombolas. Utilizando-se da pulverização para afastar cultivos agroecológicos, formas e usos distintos da terra.
Frente a isso, alguns estados estão avançando na regularização do uso de agrotóxicos. Um marco nessa iniciativa é a Lei Zé Maria do Tomé, no Ceará. A lei proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos naquele estado. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a constitucionalidade da lei, abrindo as portas para um movimento em outros estados. Cabe recordar que a lei leva o nome do camponês Zé Maria do Tomé, que lutou contra o uso de agrotóxicos pelo agronegócio na Chapada do Apodi (CE).
Alguns pesquisadores têm atribuído o uso de agrotóxicos no Brasil como uma nova espécie de prática colonialista, o “colonialismo molecular”. O termo designa não apenas o uso indiscriminado de agrotóxicos, mas também sua combinação com o uso de plantas geneticamente modificadas; o cercamento das sementes, que produzem uma dependência com empresas transnacionais.
As maiores empresas do mercado de agrotóxicos, Syngenta, Bayer CropScience e Basf, são europeias e vendem seus produtos tóxicos, muitos deles proibidos em seus países, para o Sul Global. Não por acaso, essas mesmas empresas são donas das patentes de sementes geneticamente modificadas, que necessitam de seus agrotóxicos para cultivo, criando uma profunda dependência por meio do controle das sementes e insumos. A situação é ainda mais grave para a reprodução dos ciclos de vida, à medida que estudos apontam para um crescimento da resistência de pragas e “ervas daninhas” ao uso de agrotóxicos, o que tem exigido cada vez mais produtos fortes e novos patenteamentos de organismos geneticamente modificados.
De acordo com o estudo das organizações Public Eye e Unearthed, das 17 empresas europeias que exportam agrotóxicos ao Brasil, a Syngenta é a que mais envia produtos. Cerca de 10,4 mil toneladas, o equivalente a 79% do total, desembarca no país proveniente dos portos da Bélgica, Espanha, França, Alemanha, Áustria, Grécia e Hungria. Dentre os componentes dos agrotóxicos encontram-se neonicotinóide, tiametoxam e lambdacialotrina, que são totalmente tóxicos para as abelhas.
A resistência do Assentamento em Nova Santa Rita (RS) aos agrotóxicos
Além da resistência das comunidades da Chapada do Apodi (CE) ao uso dos agrotóxicos, as famílias que vivem em um assentamento na cidade de Nova Santa Rita, na região metropolitana de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, denunciam o uso da pulverização aérea de agrotóxicos como uma estratégia para destruição de seus cultivos agroecológicos.
Nos últimos anos, o agronegócio que cerca o assentamento tem pulverizado veneno sobre as plantações e casas das famílias assentadas. Segundo estudos que vêm sendo realizados, encontram-se vestígios de contaminação na água e na plantação. A área faz parte de um polígono de produção de arroz orgânico no estado – aliás, o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Os ataques causam contaminação, inviabilizando a continuidade do selo de orgânico que as comunidades possuem.
As famílias se organizaram e conquistaram uma lei municipal (nº. 1680/21), que estabelece restrições e condições para a pulverização aérea no município. O objetivo dos camponeses é avançar, constituindo um polígono de exclusão à pulverização aérea de agrotóxico na região, que é banhada pelo Rio Jacuí, importante manancial hídrico para todo o estado. Outra luta vem sendo travada na Justiça para que o Estado desenvolva um plano de pulverização que permita a coexistência das formas de produção livre de agrotóxicos. Na ação, solicita-se ainda que a União faça análise das amostras coletadas para determinar grau de contaminação.
Em 2021, o governador Eduardo Leite aprovou, na Assembleia Legislativa gaúcha, o PL nº 260/2020, que flexibiliza a Lei nº. 7.747/1982, liberando o uso, no estado, de agrotóxicos proibidos em outros países. A medida é um retrocesso da luta ambiental no RS.
A tecnologia tem agregado dificuldades à resistência à deriva de agrotóxicos, à medida que novos pacotes têm sido apresentados como o uso de drones, dificultando ainda mais as estratégias de fiscalização. Assim, com a autorização de novos agrotóxicos, atualmente no Brasil, 562 tipos são comercializados.
Agrotóxicos contra a vida
Inúmeros estudos apontam para a gravidade das consequências do uso de agrotóxicos, tanto para contaminação humana como para o meio ambiente. A atrazina, por exemplo, um dos agrotóxicos mais comercializados no país, tem sido encontrada nas águas. Estudos realizados constataram seus efeitos sobre a produção de hormônios em sapos, ocasionando severas mutações, como a do sexo. Por isso, a luta central dos povos é pela afirmação da vida, havendo como única pauta possível a luta contra os agrotóxicos.
Segundo ele, é preciso revisar as relações Norte-Sul Global, para que os agrotóxicos banidos na Europa não sejam produzidos e comercializados nos nossos territórios, nos países da América Latina. Além disso, aponta como caminho fundamental a responsabilização das corporações que os produzem, mesmo com os estudos científicos comprovando seu caráter nocivo, sendo que diversos desses estudos apontam também seu caráter cancerígeno.
A gravidade do “colonialismo molecular” precisa ser revertida na construção de um modelo de produção no campo que possa existir em coexistência com as outras formas de produção da vida, assegurando a possibilidade de reprodução dos ciclos das águas, da vida humana, dos solos. Estamos falando de uma produção voltada para a alimentação saudável e conservação do meio ambiente. Nesse cenário, a agroecologia, a agrosociobiodiversidade, estão no centro da proposta alternativa dos povos.
Afirmar a vida e a luta contra os agrotóxicos é questionar o agronegócio. Afinal, é a produção de commodities agrícolas em larga escala que aprofunda a dependência com sementes transgênicas e agrotóxicos. A produção agrícola, que tem seu cerne no lucro, não organiza uma cadeia produtiva em função da demanda por alimento e da natureza. Repensar esse lugar será tarefa fundamental para a continuidade da vida humana.
A biodiversidade, ou diversidade biológica, tem a ver com a variedade de espécies, sejam plantas, microrganismos ou animais que habitam a Terra. Desse modo, no núcleo central da noção de biodiversidade está a vida em suas mais variadas formas. Se partimos da centralidade da vida, certamente iremos reconhecer que no sistema capitalista, cujo eixo condutor é a obtenção de mais lucro, não há possibilidade de compatibilizar com um projeto político pela proteção da vida e pela preservação da biodiversidade.
Desde os anos 70, os escândalos da contaminação ambiental e da emergência do tema das mudanças climáticas têm impulsionado a construção de uma agenda internacional de proteção à biodiversidade. Nesse sentido, o dia 22 de maio é reconhecido como Dia Internacional da Biodiversidade, com a intenção de alertar para a importância da proteção da mesma. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 25% da biodiversidade do planeta, hoje, encontra-se ameaçada de extinção. Dentro de uma ideia de usar a natureza como biblioteca de saberes e formas que o ambiente se relaciona e constrói soluções, a observação é fundamental. E mais: ter ambiente natural para observar é ter de onde buscar essas soluções, assim como andar e observar a vida se resolvendo.
A partir do Relatório de Brundtland (1987) se desenvolveu a noção de desenvolvimento sustentável, criando um terreno argumentativo para justificar a continuidade do modelo de desenvolvimento econômico sob a narrativa da possibilidade de harmonização com o meio ambiente. De igual modo, as agendas que se seguiram – Agenda 2030 e os acordos firmados nas Conferências das Partes – refletem a linha conciliatória. Inclusive, durante a ECO-92 se desenvolveu a Convenção sobre a Diversidade Biológica (1993), com o fim de promover a proteção da diversidade biológica por meio do uso sustentável da biodiversidade, com a repartição justa e equitativa de benefícios. No entanto, até que ponto essas narrativas sobre o meio ambiente refletem uma real proteção da biodiversidade?
As políticas ambientais tratam a preservação da biodiversidade no que chamamos de “conservadorismo ambiental”, no qual a Natureza é algo distante do sujeito, circunscrito a um espaço delimitado (à floresta, à reserva ou à unidade de conservação), reiterando um paradigma colonialista. Tal visão não integra as relações sociais urbanas, como a de produção alimentar, como parte da totalidade da biodiversidade, ignorando, muitas vezes, o papel que povos e comunidades têm na construção de relações de proteção, em uma visão mais completa da vida natural. Com isso, não queremos afirmar a não importância de criar espaços de proteção integral da biodiversidade, pelo contrário, inclusive denunciamos os riscos à biodiversidade da privatização e aluguel dos parques. O que se quer chamar a atenção é que a criação de espaços de proteção não coloca em xeque o modelo de produção que destrói a biodiversidade, apenas serve como uma política de compensação.
Se olharmos para o campo da produção de sementes, as formas de produção e distribuição, o ingresso de novas tecnologias ligadas à modificação genética tem destruído a diversidade de cultivos. Isso afeta diretamente a saúde humana, na falta de nutrientes. De outro lado, a produção do agronegócio demanda intensa utilização do solo, água, desterritorialização de comunidades, promovendo um desequilíbrio nas condições de reprodução das formas de vida.
Diante disso, organizações ambientalistas, como a Amigos da Terra Brasil, têm convidado a repensar as propostas de preservação da biodiversidade, entendendo o campo e a cidade como parte do mesmo sistema e que, somente juntas e juntos, podemos construir a Soberania Alimentar, difundindo a crítica aos mecanismos de falsas soluções e promovendo direitos conquistados pelos povos.
Nesse sentido, em Porto Alegre (RS), no dia 22 de maio, festeja-se desde 2007 o Dia da Biodiversidade, com a Festa da Biodiversidade (foto acima da atividade em 2012). Um encontro no qual buscamos mostrar a nossa diversidade na capital gaúcha e Região Metropolitana. Em 2023, estamos na nona edição do encontro, que festeja a biodiversidade de nossos corpos e territórios. Desde a última alteração do Plano diretor de Porto Alegre, em que se extinguiu a zona rural, viemos lutando pelo entendimento da importância desta área da cidade, evidenciando o quanto ela é estratégica para a soberania alimentar. Quando ampliamos esta realidade para a região metropolitana, essa capacidade se expande e se complexifica de tal modo a pensar a origem do que bebemos, comemos e respiramos.
Sabemos que nossa água está contaminada com agrotóxicos. Nossa comida também, e apresenta índices assustadores. E o nosso ar, ainda que não tenhamos medidores, certamente está contaminado por agrotóxicos pulverizados no entorno da cidade e pela combustão dos transportes ou das chaminés das empresas. Certos de que essa contaminação precisa ser medida e informada, precisamos de uma proteção para garantir um ambiente saudável no nosso território.
Essa luta vem sendo construída pelas agricultoras e pelos agricultores dos assentamentos da reforma agrária, que, de forma corajosa, mais uma vez, enfrentam o agronegócio e a trama de impunidade que cerca esse setor. Dentre os instrumentos utilizados está a denúncia da deriva criminosa de agrotóxicos, na qual o agronegócio pulveriza o veneno para além de suas terras, contaminando a produção camponesa; fazendo uso do agroquímico em sua função de criação, como arma da guerra. O propósito da deriva criminosa é eliminar a esperança presente na produção de alimentos saudáveis que não fazem uso de agrotóxicos, destruindo com a possibilidade de se construir outras formas de produção autônomas às grandes corporações e tornar impossível a soberania alimentar. Sem pessoas no campo, o conhecimento, as terras, as sementes serão deles, das corporações, e para lutar contra a fome vamos depender das mesmas corporações.
O Campo e a Cidade
Os movimentos sociais e as organizações pautam que o repensar a nossa relação com a biodiversidade é também um refletir sobre as relações entre o campo e a cidade. Na vida urbana, desconsideramos a presença da biodiversidade no nosso dia a dia, como nos alimentos que consumimos. Entender de onde vem a nossa água ou os alimentos em nossa mesa, ou a qualidade do ar que respiramos, e saber que práticas e formas de produção da indústria da alimentação estão destruindo o planeta e evitando que outras formas coexistem, para começar a consumir alimentos locais, de produção camponesa, que causam menor impacto ao ambiente.
Um exemplo concreto dessa relação é dado pela parceria do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) com os movimentos do campo, nas cozinhas solidárias. Durante a pandemia de covid-19 agravou-se a crise alimentar brasileira, quase 33 milhões de pessoas passaram fome. Diante disso, o MTST organizou até hoje 40 cozinhas solidárias nas grandes cidades brasileiras, distribuindo almoço grátis para trabalhadoras e trabalhadores que passavam fome.
Os alimentos utilizados na produção das marmitas são provenientes, em parte, da produção camponesa de base agroecológica – agroecologia é difundida como uma tecnologia social de produção de alimentos realizada pelos camponeses, na qual a relação estabelecida com a terra é de reciprocidade, por isso não se usam agrotóxicos, as sementes são compartilhadas e se preservam as nascentes de água. Assim, além de comerem, os trabalhadores comem produtos de qualidade nutricional, contribuindo para formas de produção alimentar que estão em harmonia com a biodiversidade.
A iniciativa obteve tanto êxito que foi apresentado o projeto de lei nº. 491/223, o PL das Cozinhas Solidárias, em trâmite na Câmara dos Deputados. Dentre os objetivos do PL, estão: a construção de práticas alimentares promotoras de saúde, ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis e o fomento à agricultura familiar.
Denunciar os mecanismo de falsas soluções
Nos últimos anos, no debate internacional, o tema da biodiversidade encontra-se secundarizado, aparecendo nos impactos de mudanças climáticas. Majoritariamente, colocam-se como foco central de investimentos as políticas da economia verde, nas quais se transfere a preservação a entes privados e se cria uma série de narrativas, como os créditos de carbono, a mineração sustentável e a agricultura climaticamente inteligente, como respostas à destruição da biodiversidade.
Todavia, essas políticas estão gerando efeitos ainda mais perversos à biodiversidade. A proposta do “carbono zero” reúne compromissos assumidos para anular as emissões de gases do efeito estufa, assim, em vez de reduzir as emissões e promover mudanças na produção, as grandes empresas passam a financiar áreas de preservação do seu interesse, para compensar. Dentro das “soluções baseadas na natureza”, pode-se incluir plantações de monocultivos de árvores, como eucalipto; os cultivos com organismos geneticamente modificados; as áreas de parques e de unidades de conservação que estão sendo privatizadas. Essas iniciativas têm ganhado a adesão de grandes empresas, que passam a pressionar as terras e os direitos de camponeses.
As empresas transnacionais também aderiram a uma narrativa sustentável constituindo políticas de responsabilidade social corporativa no tema, dentre elas a mineração sustentável e a agricultura climaticamente inteligente. Em todos esses discursos, as empresas não mudam suas práticas de produção, apenas incorporam medidas de compensação que mascaram os efeitos de suas atividades. Desse modo, a mineração tem usado da extração de metais importantes para transição energética, como lítio e níquel, para se colocar como atividade sustentável, desconsiderando que isso implica numa expansão da fronteira extrativa, destruindo territórios.
Já a agricultura climaticamente inteligente envolve a conciliação entre segurança alimentar, produção de alimentos e mudanças climáticas. No entanto, o que as organizações apontam é que o mecanismo consiste unicamente nas negociações do mercado de carbono. Inclusive, no Brasil, o agronegócio, em razão da expansão da fronteira agrícola, tem sido um dos principais responsáveis pela destruição dos biomas nacionais, do Pampa à Amazônia.
As falsas soluções que hegemonizaram os debates nos mecanismos multilaterais são controladas pelas empresas transnacionais, que buscam reconfigurar suas narrativas ideológicas para seguir justificando as práticas expropriatórias da biodiversidade. Por isso, movimentos ao redor do mundo têm erguido bandeiras de luta em torno da palavra soberania, assumindo uma crítica ao sistema produtivo como causador dos danos socioambientais e exigindo o controle popular sobre outras formas de constituição de relações com a Natureza.
Direitos por efetivar: um horizonte para lutar
A afirmação e a efetivação de direitos aos povos são um caminho para um diálogo da constituição de outras relações com a biodiversidade, entende-se como parte desta totalidade. Assim, a Declaração de Direitos Camponeses (2018), uma construção popular – com destaque à Via Campesina Internacional, estabelece claramente a relação dos camponeses com a preservação da biodiversidade, assegurando o acesso à terra, território, ao compartilhamento da sabedoria tradicional na troca de sementes, do cuidado com a terra e água.
Na mesma esteira, os direitos estabelecidos na Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhecem o papel que povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais têm na preservação da sociobiodiversidade. E que, portanto, são sujeitos que devem ser consultados sobre projetos que afetem suas terras e territórios. Igualmente, sobre o direito à participação e informação no Acordo de Escazú, ainda não ratificado pelo Brasil, que garante tais direitos para a promoção da justiça ambiental.
Que possamos reconhecer o chamado das organizações e movimentos para assumir que a preservação da biodiversidade envolve um projeto político de mudança do atual sistema de produção, no qual a vida da humanidade é parte integrante do todo da vida do planeta. Que possamos dar um basta na separação entre sujeitos e natureza, romper com as políticas de compensação e construir um novo paradigma que não produza exclusões de nenhum tipo.
Confira, abaixo, algumas fotos da 9ª Festa da Biodiversidade, que aconteceu nessa 2ª feira (22/05/2023), no Largo Glênio Peres, em Porto Alegre (RS). Crédito das fotos: ATBr
Nesse mês de abril, a Cozinha Solidária da Azenha, de Porto Alegre (RS), está se transformando. Para garantir ainda mais refeições para quem precisa, está sendo realizada uma campanha de arrecadação de potes, copos, canecas, colheres ou garfos e facas de plástico. Os utensílios podem ser doados diretamente na Cozinha Solidária, na Av. Azenha, 608, de segunda-feira à sexta-feira, das 9h às 14h. A ideia é substituir gradualmente as embalagens de isopor, reduzindo os custos com a compra de embalagens e o impacto ambiental.
As marmitas de isopor começaram a ser utilizadas por questões sanitárias durante a pandemia de covid-19. Eram necessárias para evitar o contágio e garantir a segurança de todos. Além do custo das embalagens, que quase se equiparavam a verba utilizada na compra de alimentos para o preparo das refeições, o isopor tem um impacto na geração de lixo.Fazem parte da construção da soberania alimentar os debates sobre cuidados com a terra, vínculos entre campo e cidade, as relações de solidariedade e a redução da produção de lixo. Por isso, para além de alimentar mais bocas e mais sonhos, a Cozinha tem na campanha a ideia de dialogar sobre como podemos construir espaços de nutrir pensando em alternativas que são, também, mais ecológicas.
E o principal: alimentar mais pessoas. Com a arrecadação de utensílios, mais gente vai poder compartilhar das refeições da Cozinha da Azenha e acessar o espaço. Com potes, copos, talheres e canecas, as embalagens de plástico não serão mais necessárias e a verba que anteriormente era destinada a elas pode ser revertida para a compra de mais alimentos, ampliando o número de pessoas que o projeto vai conseguir atender. O que se desdobra, ainda, no fortalecimento de alianças importantes, como a relação de maior vínculo da Cozinha Solidária com movimentos sociais, entre eles o Movimento Sem Terra (MST) e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), que a abastecem com alimentos sem veneno e saudáveis, tão especiais no preparo dos almoços distribuídos a quem precisa.
Além de assegurar condições para que mais pessoas possam ser alimentadas, a iniciativa expande o debate sobre como construir soberania alimentar, laços comunitários e uma relação de mais cuidado com o planeta. Com a arrecadação dos utensílios e substituição das embalagens de plástico, a Cozinha segue firme na luta pela construção de espaços em que alimento é direito de todas, todos e todes, e não uma mercadoria.
Hoje, a companheirada segue propondo ações para alimentar cada vez mais pessoas. E nessa trajetória, faz da solidariedade um dos vínculos mais fortes para a construção da soberania alimentar e de um Brasil sem fome. É com partilha, coletividade e engajamento que acontecem as transformações.
Vem com a gente nessa transformação e no combate à fome? Tem potes, copos e pratos sobrando por aí? Faça a sua doação direto na Cozinha Solidária da Azenha, ou combine com a companheirada da Cozinha ou do MTST_RS como você pode somar na luta.
O que doar: Potes, copos, talheres (colheres ou garfo e faca de plástico) e canecas
Quer ajudar a Cozinha Solidária com pix? A chave é o e-mail rededeabastecimento@gmail.com
Com a arrecadação de potes, copos, canecas, colheres ou garfos e facas de plástico, a Cozinha vai se transformando e ampliando a sua capacidade de acolhimento e atendimento. Outras iniciativas, como os jantares “Tempero de Luta” e a “Lojinha do MTST”, também se somam na construção de diálogo sobre a cidade, as ocupações urbanas, a importância do combate à fome e da construção de soberania alimentar. Acompanhe o MTST RS e fique por dentro das novidades.
Famílias assentadas, organizações e movimentos sociais debatem problemáticas da pulverização de agrotóxicos no Fórum Social Mundial de Porto Alegre e constroem aliança para garantir a produção de alimentos sem veneno
A advogada e ouvidora da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Marina Dermmam destacou em sua fala o descaso do poder público em relação a fiscalização de crimes vinculados à agrotóxicos, mencionando a relevância do trabalho jurídico realizado para ajudar as famílias atingidas por pulverização aérea de agrotóxicos em Nova Santa Rita. “Os agrotóxicos podem violar uma série de direitos humanos, em especial os direitos que chamamos de DHESCAs (Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais). A gente tem uma série de legislações muito protetivas aqui no Brasil, especialmente que surgiram na década de 80 e 90: o nosso plano nacional de meio ambiente, a política nacional de meio ambiente, leis de crimes ambientais, de fato são muito protetivas, mesmo no que teve em desregulamentação no último momento que vivemos. Mas é um grande desafio quando vamos no sistema de justiça procurar responsabilidade”, mencionou. Marina manifestou ainda a importância dos polígonos de exclusão, locais em que a pulverização de agrotóxicos deve ser proibida.
Acordo Mercosul-União Europeia: acordo comercial sem participação dos afetados intensifica projeto neocolonial de superexploração dos povos e territórios no Sul Global
Para além das lutas cotidianas nas bases dos territórios, abordadas nos encontros do “Povos contra agrotóxicos na República Sojeira”, foi dimensionada como estas se travam dentro da geopolítica global. Na correlação de forças entre centro e periferia do sistema capitalista, países embobrecidos por esta economia hegemônica, como os da América Latina, são grifados pela violenta situação de dependência escancarada no modelo primário agroexportador do agronegócio. Modelo que privilegia o desenvolvimento dos países colonizadores, como os membros da União Europeia, a partir do subdesenvolvimento e superexploração do Sul Global.
Na prática, um acordo que intensifica o racismo ambiental, o ecocídio, a mercantilização da natureza e o genocídio dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, tradicionais, campesinos e das periferias, que são os mais afetados pela emergência climática. Emergência essa causada pelo capitalismo e diretamente fomentada pelo agronegócio, ainda mais tendo em vista que o maior motivo de emissões de gases poluentes da atmosfera no Brasil é a alteração de uso de solos, via desmatamento para a ampliação da fronteira agrícola.
Exemplos que escancaram essa realidade são acordos como a Alca, barrado pelas lutas anos atrás. Caso que a assentada do MST e atingida pela pulverização de agrotóxicos, Graciela Almeida, trouxe a memória evidenciando a necessidade de uma rearticulação para também vetar o Acordo Mercosul- União Europeia, agora em abertura de diálogo no governo Lula.
Graciela Almeida, trouxe a memória evidenciando a necessidade de uma rearticulação para também vetar o Acordo Mercosul- União Europeia, agora em abertura de diálogo no governo Lula. Foto: Maiara Rauber
Logo, na luta contra a exploração dos corpos, territórios e da natureza na América Latina, este acordo é mais um ponto a ser considerado. Ele se relaciona diretamente com o avanço do agronegócio, que traz o uso de agrotóxicos que poluem águas, solos, afetam a saúde e integram um modelo de produção desigual. Graciela abordou essa situação de dependência econômica prolongada pelo Acordo, assim como o uso de agrotóxicos como armas químicas a qual estão submetidas as comunidades. “O Acordo Mercosul-União Europeia a maioria das pessoas desconhece. Quem conhece um pouco, e um pouco porque nem sequer foi traduzido nas línguas dos países que supostamente estão envolvidos, sabe muito bem que é uma nova exploração dos nossos territórios. É um aprofundamento da exploração do sistema capitalista nos nossos territórios e nos nossos corpos. E isso significa que a fronteira da soja, a república unida da soja como falava a Syngenta, vai querer se expandir muito além. E isso vai acontecer com todas as monoculturas se nós não paramos, não conversamos e dizemos para esse novo governo que não queremos mais exploração nos nossos territórios”, situou Graciela quanto a necessidade de incidência das lutas neste Acordo.
Encontros fortalecem as alianças entre movimentos e organizações que assumem o compromisso no processo de conscientização da sociedade da América Latina
Leonardo Melgarejo, do Movimento Ciência Cidadã, explicou a importância dessa atividade multi-institucional que envolveu ativistas que lutam contra o agrotóxicos na América Latina, e contou com uma comitiva de quatro instituições da Argentina. “Nós discutimos um fato básico, temos doenças que são as mesmas, que afetam as famílias de todos os países da América Latina, que são causadas por agrotóxicos que são os mesmos comercializados com instituições que são as mesmas. Precisamos estabelecer uma forma de defesa conjunta para atuarmos de uma mesma maneira e não isoladamente, para atuarmos conjuntamente contra este problema que se associa aos avanços das lavouras transgênicas, das lavouras geneticamente modificadas tolerantes agrotóxicos que estão inundando os nossos territórios”, declarou.
Foi concluído no final do debate a importância de superar processos de alienação da sociedade de todos os países da América Latina, pois segundo Melgarejo a água que habita, que dá vida aos territórios da América Latina está sendo contaminada de maneira irreversível sendo que essa água faz parte dos organismos, das crianças, idosos, e também nos rios, lagos e aquíferos. “Uma maneira de tirar esse veneno dos espaços é evitando que ele chegue lá. Para isso temos que estabelecer mecanismos de comunicação que ajudem a sociedade a tomar consciência do problema que está em andamento e esses mecanismos exigem que nós pautamos ações em comum em conjunto nos vários espaços ao mesmo tempo”, reforçou o integrante do MCC.
Um dos exemplos citados por Melgarejo é o documento produzido pelas famílias assentadas de Nova Santa Rita, o qual conta a sua história e as estratégias que vem desenvolvendo para estabelecer essas alianças com as populações urbanas. Para fortalecer o documento estão captando assinaturas de adesão para levar adiante a sociedade do que acontece aqui no Rio Grande do Sul e que por extensão é o que acontece em todo o conjunto da América Latina.
Por fim, Melgarejo encarou o encontro positivamente, ao destacar a relação estabelecida com companheiros de lugares diferentes da América Latina. E novas etapas dessa luta conjunta já estão previstas. Segundo Leonardo, em junho deste ano haverá um momento na Universidade de Rosário, na Argentina, durante o Congresso de Saúde Coletiva e Saúde Ambiental. Outro encontro será realizado em novembro na cidade do Rio de Janeiro, no Congresso Brasileiro de Agroecologia (ABA).
“Nesse meio tempo nós temos um compromisso de apoiar as instituições que trabalham nessa linha e ajudar a proteger esses ativistas que estão envolvidos com essas ações de proteção, pois eles são perseguidos, discriminados e ameaçados. Devemos construir gradativamente esse processo de conscientização da sociedade da América Latina, e tomar medidas em conjunto para superar essa crise”, finalizou Leonardo Melgarejo.
Confira alguns dos registros das atividades na nossa galeria de fotos:
Créditos: Carolina C.
Não foi possível estar presente? Confira a transmissão ao vivo da atividade na Assembleia Legislativa, que conta com apresentação da Carta dos atingidos pela deriva de agrotóxicos e debate internacionalista, da sociedade civil, movimentos e organizações sobre a pauta
Integrantes da Amigos da Terra, MST, RENAP (advogados populares) e APIB (indígenas) visitaram países europeus para denunciar os impactos do Acordo UE-Mercosul. Na foto, protesto na Alemanha. Crédito: Amigos da Terra Europa
A história da América Latina é marcada por uma espiral, na qual passado, presente e futuro se encontram e se distanciam em ciclos revisitados de exploração. Nossas independências nunca marcaram rupturas profundas com a hegemonia europeia. Desde que o capitalismo é capitalismo, temos um lugar periférico na divisão internacional do trabalho. Somos os que vivem sob as condições da superexploração do trabalho, dos territórios, para produzir uma riqueza extraordinária constante, que é diretamente transferida às potências globais. Assim, portanto, nosso subdesenvolvimento não é causa do nosso fracasso civilizatório, é estruturante para que outros se creiam desenvolvidos.
A pilhagem colonial se reinventa nesses ciclos históricos. Antes, a barbárie da escravidão, da destruição da natureza, da violação dos corpos das mulheres, temas ainda cadentes e não resolvidos, que permitiram o acúmulo primitivo da riqueza dos países ditos desenvolvidos para constituírem seu avanço industrial e a estruturação de Estados sociais. Amargam ditaduras sangrentas quando a sombra de ideias revolucionárias perpassa o mundo, para que nos mantivessem presos na subordinação. Nos anos 90, a expansão do neoliberalismo nos prendeu nas dívidas externas, obrigando a vender todo nosso patrimônio nacional, a desregulamentar nossos setores, a sujeitar-nos aos comandos do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização Mundial do Comércio (OMC). Eis a produção e reprodução da dependência.
Uma luz surgiu no final dos anos 90 e anos 2000 em vários países. A Venezuela, sempre na liderança revolucionária na região, Equador, Bolívia, Brasil, Argentina, Uruguai, Honduras e Paraguai tiveram a experiência da chegada de governos progressistas. Ainda que na reprodução de um modelo de desenvolvimento hegemônico, centrado na produção e exportação de commodities, os avanços de setores industriais como o petróleo, a cooperação sul-sul e a efetivação de políticas sociais avançaram e incomodaram muito. Por isso, a contrarrevolução foi brutal, os golpes arquitetados contra nossas democracias, com todo o requinte da guerra híbrida, passaram, mas deixam as forças auxiliares presentes da extrema-direita. Os donos do mundo, as empresas transnacionais, usam alguns fantoches de países desenvolvidos para recolocar as regras do jogo, a lex mercatoria no lugar, e interferem na soberania dos países para assegurar suas melhores posições no mercado internacional.
Hoje, governos progressistas retornam à Abya Yala. À exceção de Equador, Uruguai e Paraguai, vivemos um novo momento da esquerda. Certamente a eleição no Brasil, com a vitória de Lula, deu peso a esta nova onda. Se de um lado a América Latina busca forças para seguir respirando, a Europa encontra uma crise econômica com sua dependência energética com a Rússia, e os Estados Unidos (EUA) tentam uma corrida de hegemonia com a China. Nesse cenário, a pressão por novos tratados e acordos comerciais que sejam favoráveis à recolocação dos países desenvolvidos está crescente.
O desenvolvimento é sempre a chave utilizada para as políticas imperialistas. Como a desigualdade de inserção no mercado internacional nos condiciona a produtores de matérias-primas (commodities), estamos sempre buscando investimento estrangeiro direto e reduzindo nossos padrões de proteção social e ambiental. A onda de acordos que estão em negociação com a região, entre eles o Acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul e o Acordo de Associação Transpacífico, prevê a expansão da exportação de commodities, sem mensurar seus impactos sociais e ambientais e, ainda, a transferência de produtos e tecnologias defasadas para nossa região e a privatização de setores de serviços. Claramente, acordos com vantagens econômicas aos países do Norte e o aprofundamento da dependência para nós.
O Acordo UE-MERCOSUL e o Brasil
Há mais de 20 anos, a negociação do Acordo UE-Mercosul, a portas fechadas, ficou estagnada. Em 2019, os países anunciaram a conclusão do acordo. No entanto, começaram movimentos da sociedade civil e de parlamentos de países europeus para evitar uma assinatura com o Governo Bolsonaro, com medo de serem associados ao momento crítico do desmatamento no Brasil. O presidente Lula, juntamente com o ex-chanceler Celso Amorim, ainda em campanha, anunciaram a intenção de revisitar o acordo na próxima gestão, com particular preocupação quanto a elementos como restrições à implementação de políticas de reindustrialização, impacto da abertura das compras públicas às transnacionais europeias, maior regulamentação sobre direitos de propriedade intelectual, comércio e privatização de serviços e os impactos do comércio bi-regional sobre o meio ambiente. Por outro lado, a União Europeia tem pressa e faz pressão para garantir suas cadeias de suprimento de energia, agro e minero commodities afetadas pela guerra na Ucrânia, e está propondo um protocolo adicional, com promessas sobre os impactos climáticos, para amenizar as críticas e resistências.
O acordo tem como eixo central a exportação de matérias-primas pelo Brasil – como grãos, carnes e minérios, cujo modelo de produção gera conhecidos conflitos socioambientais no nosso país, e a importação de produtos industrializados de transnacionais europeias, muitos que já não são mais utilizados ou são até proibidos na Europa – como os agrotóxicos, que tanto afetam a saúde das pessoas e dos animais, a biodiversidade e a qualidade das águas. Em suma, não se trata de um acordo no qual duas partes saem beneficiadas; é mais uma solução neocolonial para a crise europeia.
Nesta linha, Luana Hanauer, da Amigos da Terra Brasil, destacou que “O que está em jogo nos capítulos dos acordos comerciais com a Europa é perpetuar e aprofundar a agenda de violações e retrocessos dos direitos. O acordo acentua a reprimarização da economia brasileira e atualiza os dispositivos coloniais que mantêm a dependência do país em relação à Europa, além de incentivar a violência racista contra povos indígenas, comunidades negras, camponesas e tradicionais. Isso porque o dano ambiental, associado à expansão do desmatamento e do agronegócio, recai desproporcionalmente sobre os povos negro e indígena e, em particular, sobre as mulheres”.
Inspiradas nas lutas dos anos 2000 contra o Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), 120 organizações da sociedade civil e movimentos populares construíram a Frente contra o Acordo UE-Mercosul. Desde 2020, a Frente vem realizando formações e diagnósticos dos impactos do acordo na vida da população brasileira, apresentando documentos de posicionamento, como a Carta à equipe de transição do governo. A Frente reafirma as consequências do aumento da exportação de commodities em troca da importação de carros, agrotóxicos, das privatizações e dos riscos para a economia nacional da restrição das compras governamentais, evidenciando como o texto beneficia a atuação das empresas transnacionais.
Em turnê realizada na Europa, ativistas brasileiros que compõem a Frente reiteraram oposição ao acordo e demandaram participação social com debate público, após o anúncio do governo eleito no Brasil da intenção de reabrir os diálogos com o Mercosul e, posteriormente, com a Europa, sobre o Acordo, especialmente para que sejam apresentadas as críticas e propostas populares sobre outros modelos de comércio, condizentes com as necessidades do povo brasileiro. Reabrir as negociações e frear seu avanço rumo à ratificação do Acordo pelos parlamentos nacionais, com compromisso de diálogo e participação popular, é também reconhecer a possibilidade de dizer não ao acordo, de ouvir as vozes das populações atingidas diante dos seus impactos sociais, ambientais e econômicos para um projeto popular e democrático de nação. Nas palavras de Graciela Almeida, liderança do MST (Movimento Sem Terra) no Assentamento Santa Rita, afetado pela pulverização de agrotóxicos no Rio Grande do Sul, “no acordo UE – Mercosul se pretende que, países como Brasil, continue sendo exportador de commodities e importador de agrotóxicos, entre outros. Transforma o agronegócio num grande negócio para poucos, submetendo as comunidades dos territórios de reforma agrária, territórios ancestrais, a todo tipo de violação de direitos humanos e da natureza”.
Que projetos de nação nos esperam
Muitas dúvidas pairam sobre os novos governos progressistas da América Latina; as mesmas condições de crescimento, com o boom de commodities de anos anteriores, não estão dadas. Países estão falidos, seja pelo fascismo, pela pandemia de COVID, com populações empobrecidas, especialmente o Brasil. Qual será a resposta de inserção econômica no mercado mundial que irão construir?
Luis Lacalle, presidente do Uruguai, anunciou na recente cúpula do Mercosul a intenção de assinar o Acordo de Associação Transpacífico, sem qualquer consulta ou diálogo com o Mercosul, fragilizando o bloco. Por isso, recebeu duras críticas de Alberto Fernández, presidente da Argentina, para quem a negociação de acordos comerciais internacionais cada vez envolve menos a solidariedade entre os países. No mesmo momento, o Peru, assim como a Argentina, vivem sob forte pressão da direita para retomar o poder, com o uso da máquina do lawfare. Desse modo, está a pleno as táticas de cooptação de lideranças e do exemplo pedagógico do terror, para engrossar o caldo dos desafios dos novos governos.
Embora os povos de nossa Américasejam muito aguerridos, nas lutas e organizações políticas – não à toa a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), essência do projeto imperialista americano, foi derrotada no último ciclo de governos progressistas com base na força de um referendum popular regional, nossa governabilidade é sempre um caminho de poucas escolhas diante de nossa subordinação ao mercado mundial. Os arranjos políticos que levaram a vitórias eleitorais e as derrotas ao fascismo certamente condicionarão essas escolhas. Resta saber que tipo de semente tais governos irão semear neste novo ciclo.
Serão os primeiros passos rumo à superação de nossa dependência? Se este for o caminho, as velhas formas de acordos comerciais e tratados de livre comércio, revisitados criticamente e à luz do atual momento histórico e dos compromissos de um novo governo no Brasil, suleado pelo combate à fome e pela qualificação (e não privatização) dos serviços públicos essenciais à garantia de direitos, deverão nele florescer as iniciativas econômicas emancipatórias populares, solidárias e feministas que, na resistência, sustentaram a vida e a política nesses duros anos de obscuridade, abrindo alas para uma reconstrução democrática no país. Se as apostas trilharem outros rumos, norteados por interesses empresariais neocoloniais, a história se repetirá, e o ciclo da espiral novamente estará longe de se quebrar.
* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2022/12/20/ate-quando-as-veias-estarao-abertas-na-america-latina