Chega de veneno: por um Brasil livre de agrotóxicos

 

Na última semana, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei n.º 1459/2022, o Pacote do Veneno, que altera a regulamentação de agrotóxicos no país, anteriormente a Lei n.º 7802/89. O projeto, de iniciativa do senador Blairo Maggi, conhecido como “novo rei da soja”, tinha o amplo apoio da bancada ruralista, que encontrou um caminho de articulação com a base do governo no Congresso. Durante a votação, no dia 28 de novembro, apenas a senadora Zenaide (PSD-RN), médica, manifestou contrariedade; entre os demais, o clima era de celebração. Agora, o projeto segue à Presidência da República para sanção, por isso precisamos entender porque é importante uma manifestação popular pelo veto integral.

O Brasil consome em média 720 mil toneladas de agrotóxicos, sendo um dos países do mundo que mais consome. Entre os anos de Governo Bolsonaro, a liberação de agrotóxicos atingiu níveis recordes, foram 2.182 agrotóxicos liberados. De forma que, entre 2020 e 2021, dobramos o uso de agrotóxicos no país. Entre os 10 produtos mais vendidos no país, cinco são proibidos na União Europeia. A maioria dos produtos não encontra dificuldades para liberação; não à toa, apenas por volta de 30 substâncias são proibidas de comercialização no país, enquanto que na União Europeia chegam a 269 tipos.

No atual governo, as coisas não têm sido diferentes. Até julho, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) já havia autorizado a liberação de 231 novos tipos de agrotóxicos no país, entre eles, produtos classificados como “altamente tóxicos” pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e “altamente perigosos” pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Tais aprovações se devem à vigência do Decreto n.º 10.833/2021, editado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, e não revogado pelo atual governo, que permitiu a liberação de produtos com risco de causarem doenças como câncer, desde que se estabeleça um “limite seguro de exposição”. Como podemos identificar, o agronegócio não estava encontrando qualquer barreira para liberação de agrotóxicos no país que justificasse o problema apresentado para aprovação do projeto de lei, a saber a “burocratização na liberação de agrotóxicos”. Contudo, a ganância das corporações transnacionais, aliadas ao agrofacismo brasileiro, é que estão por detrás do uso de agrotóxicos.

As alterações legislativas favorecem o poder econômico, fortalecendo as bases do agrofacismo brasileiro. Isso porque as alterações legislativas precarizam a proteção dos direitos à saúde da população e ao meio ambiente, e a coexistência de outros modos de produção e relação com a terra. Muitos dos produtos liberados causam doenças, sendo já identificados como “altamente tóxicos” para saúde humana – cerca de 20% dos agrotóxicos liberados são considerados tóxicos para a saúde humana. É o caso do glifosato, liberado no Brasil sob restrições da Anvisa. Inclusive, recentemente, a Bayer foi condenada, nos EUA, a pagar indenizações pela contaminação de pessoas com o uso de glifosato. Essa substância é apontada como uma das responsáveis pelo aumento dos casos de câncer entre crianças no Brasil.

Os impactos do uso de agrotóxicos na saúde do povo brasileiro está mais do que comprovado cientificamente. Segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, “investigações comprovam que o uso de agrotóxicos são responsáveis diretos por cerca de 200 mil mortes” no país. Os dados do Datasus revelam um crescimento do número de intoxicações por agrotóxicos no país, embora ainda seja uma realidade a subnotificação por parte dos médicos da atenção primária. Se analisarmos as regiões com maior consumo de agrotóxicos, o Centro-Oeste e o Sul, encontraremos uma correlação com os casos de câncer na zona rural, ainda mais grave em determinadas culturas de uso intensivo de venenos, como o fumo. Contudo, a bancada ruralista de senadores está despreocupada com as consequências do que aprova.

Outro problema grave é a pulverização aérea por aeronaves e drones e até mesmo a pulverização terrestre. Os latifundiários, na aplicação dos agrotóxicos, não respeitam as barreiras fitossanitárias estabelecidas pelas normativas do MAPA e nem mesmo das secretarias dos estados. São frequentes os casos de pulverização sobre escolas, perímetro urbano, aldeias indígenas, assentamentos de reforma agrária, tratadas com descaso pelos órgãos fiscalizadores. Poucos estados e municípios têm legislações que proíbem a prática de pulverização aérea, e regulamentam adequadamente as barreiras para não contaminação. As distâncias hoje previstas não são suficientes, fazendo com que a agricultura familiar, orgânica, agroecológica seja constantemente contaminada. Assim, as pulverizações são altamente perigosas para a saúde humana e para a sociobiodiversidade.

Ainda mais absurdo é a proposta do Projeto de Lei n.º 442/2023 na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (RS), que quer declarar a aviação agrícola como de relevante interesse social, público e econômico. Nos últimos anos, a luta popular no estado fez avançar para que alguns municípios tivessem a proibição de deriva aérea e o estabelecimento de polígonos de exclusão de agrotóxicos. É o caso do município de Nova Santa Rita, um dos maiores produtores de arroz orgânico do país, em assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O projeto de lei do RS é uma reação conservadora do agronegócio frente à luta pela produção de alimentos saudáveis e viola os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das famílias agricultoras agroecológicas, dos povos indígenas e kilombolas e da população em geral, no campo e na cidade.

Nas questões ambientais, igualmente o alerta tem vindo de dados. Os apicultores denunciam a mortandade de abelhas em consequência do uso do Fipronil (agrotóxico que está em reavaliação). O próprio Ministério do Meio Ambiente admite que, nos últimos quatro ou cinco anos, morreram por volta de 500 milhões de abelhas nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso e Rio Grande do Sul. As abelhas desempenham um importante papel na biodiversidade como polinizadoras, de modo que seu desaparecimento compromete nossa variabilidade genética. Além disso, o uso de agrotóxicos tem inviabilizado outros usos do solo via contaminação da terra e dos cursos de água.

Como se não bastasse todo o estrago, os agrotóxicos gozam de isenções fiscais. Sob o argumento de que contribuem para a produção de alimentos da cesta básica, são beneficiados com reduções e isenções fiscais. Hoje, os agrotóxicos têm 60% de redução do ICMS e isenção total do IPI, fazendo com que a conta não feche entre os custos do uso de agrotóxicos para o  Sistema Único de Saúde (SUS) e para a reparação ambiental, e a arrecadação inexistente. Os alimentos que vão para a nossa mesa vêm da agricultura familiar; o povo brasileiro não come soja e nem acessa os produtos exportados pelo agronegócio. Pelo contrário, é o uso de agrotóxicos que compromete a produção da agricultura familiar.

O cenário tende a se agravar ainda mais se o Brasil firmar o Acordo UE-Mercosul, que contribui para reforçar nosso papel na economia mundial como exportador de commodities, fortalecendo o agronegócio. Por meio do acordo, iremos nos aprofundar como uma lixeira química, recebendo produtos banidos em outros países e, até mesmo, como prevê o Pacote do Veneno, exportando produtos sem registro.

Não é possível coexistir com o agrofacismo

Na cerimônia dos 20 anos do Programa Bolsa Família, o presidente Lula disse: “É preciso combater o uso de pesticidas porque os que plantam com veneno não comem o que plantaram”. É exatamente por isso, senhor presidente, que questionamos: por que flexibilizar a já bastante flexível liberação de agrotóxicos, quando os dados dos impactos à saúde, ao meio ambiente e à produção de alimentos evidenciam como ele é um veneno? Com as mudanças legislativas propostas no Pacote do Veneno, caminhamos para um retrocesso de 20 anos na construção de um país com soberania alimentar. Não há política de combate à fome quando se planta veneno.

Precisamos avançar no discurso e nas ações práticas para reconhecer que os danos socioambientais e as políticas de isenção fiscal estão contribuindo para a morte. Do outro lado da propaganda do agronegócio, estão famílias com pessoas doentes; camponeses sem condições de produzir alimento saudável, com prejuízos financeiros aos seus cultivos agroecológicos e orgânicos; o sistema público sobrecarregado pelos impactos de agrotóxicos; a morte de espécies essenciais à sociobiodiversidade; a contaminação da água e do ar. Assim, não existe possibilidade de coexistência com os agrotóxicos, posto que, como o nome diz, eles são contra a vida.

A decisão sobre as formas de relação com a terra não pode ser só da bancada do agrofacismo; ela precisa ser de toda a sociedade, incluindo todos e todas que sofrem as consequências do uso de agrotóxicos. Está mais do que evidente que o agro não é capaz de gerir as consequências do uso desses produtos tóxicos.

Se todos os argumentos acima não foram suficientes, vale recordar que quem planta com agrotóxico é quem financia os golpes à democracia. Dos 16 financiadores dos atos terroristas de 8 de janeiro de 2023, 13 eram fazendeiros, como apontou a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Câmara Federal. Se o Congresso Nacional quiser seguir esse pacto de mediocridade, oxalá haja mais nobreza no Executivo. Se analisarmos com cuidado os senadores que atuaram em prol do Pacote do Veneno, veremos que a bancada do latifúndio está no controle.

Recordamos o dia 3 de dezembro na luta contra o uso de agrotóxicos e pela vida! Que avancemos na coerência de um país que se compromete em acabar com a fome, produzindo alimentos saudáveis, protegendo a nossa casa comum, cuidando da saúde e da natureza. Por isso, sejamos contra o avanço do uso de agrotóxicos e pelo apoio a políticas de redução até sua extinção, para que outros mundos, e inclusive nós como planeta, possamos continuar existindo.

O modelo, a inserção internacional e o ambiente no Mercosul: o Governo Lula como uma oportunidade

Na sua campanha, o presidente brasileiro falou da revisão do acordo entre o Mercosul e a União Europeia (UE), aceito por Bolsonaro após 25 anos de negociações. A transformação proposta pela UE contra uma mudança profunda que melhoraria as perspectivas da região. Pobreza, indústria e extrativismo no centro das atenções.

Por Lucia Ortiz, Viviana Barreto e Natalia Carrau (*)

No processo eleitoral altamente polarizado do Brasil, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, deixou algumas pistas que mais tarde retomou no seu discurso na noite do segundo turno das eleições, quando a sua vitória já era conhecida, em 30 de Outubro de 2022. O seu discurso foi marcado pelas prioridades do governo, tanto na política interna como internacional. O foco foi fortemente orientado, por um lado, para a luta contra a fome e a pobreza e, por outro, para o reposicionamento do Brasil como um ator importante nos debates regionais e internacionais.

Segundo o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e conselheiro de Lula para os assuntos internacionais, um dos pontos da agenda internacional proposta refere-se à necessidade de rever o acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, cujas negociações começaram há quase um quarto de século sem nunca terem sido ratificadas ou debatidas publicamente. Após a derrota da proposta de Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) como uma vitória regional popular que marcou a história dos governos progressistas no início dos anos 2000, o acordo UE-MERCOSUL foi negociado durante mais de duas décadas a portas fechadas, sem grandes progressos, até ser anunciado como fechado e acordado durante o governo de extrema-direita de Bolsonaro em 2019.

É especialmente importante analisar a perspectiva do acordo UE-MERCOSUL no novo contexto geopolítico e à luz dos compromissos do novo governo para garantir a participação social efetiva na formulação de políticas públicas internas e externas. E em termos regionais, é essencial considerar os riscos e oportunidades de uma forma integral, avaliando a região como um território comum onde comunidades, povos e bens comuns de grande importância coexistem.

A situação global, com as vulnerabilidades dos países e regiões – destacadas pela pandemia de COVID-19 e aprofundadas pelos impactos da guerra na Europa, localizada em territórios-chave para o fornecimento de energia e matérias-primas para a agroindústria – deve chamar a atenção para a discussão sobre as relações econômicas internacionais e o poder e controle que as empresas transnacionais têm para determinar os fluxos comerciais e de investimento e os desenhos produtivos dos países e territórios. É momento de colocar as necessidades sociais em primeiro lugar e enfrentar um modelo de comércio neoliberal obsoleto e neo-colonial, impulsionado pela oferta e exigências de mercado das empresas europeias.

A guerra comercial e tecnológica EUA-China, o desenvolvimento do projeto “Belt and Road” pelo gigante asiático, a construção do conceito de autonomia estratégica como orientação para a política internacional da UE, são exemplos claros das ações dos principais atores globais na busca de assegurar as melhores condições e os melhores recursos para a sua inserção internacional. Isso não é novidade. A evolução da UE reflete uma tendência crescente para a aplicação e exportação de regras e regulamentos protecionistas para si própria e extremamente liberalizadora e aberta a outras regiões. O conceito de autonomia estratégica pode ser interpretado como uma versão renovada e complexa do que foi outrora o lançamento da “Europa Global”. A guerra comercial e tecnológica entre os EUA e a China também não é nova, mas é agora que a UE está mais claramente a tentar sair na frente a fim de assegurar a sua quota-parte de recursos e mercados.

Na América Latina, este é um tempo de processos de mudança política num quadro de crises e tensões. Por um lado, o impacto devastador do último período do neoliberalismo, expresso em termos de aumento da desigualdade, um novo ciclo de concentração da riqueza com um recuo nas políticas públicas de bem-estar social e o avanço e reconfiguração do capital transnacional na região. Por outro lado, cenários de mudança política para a esquerda em vários países da América Latina num contexto de profunda polarização política, expansão da cultura do ódio e do conservadorismo e a deterioração das condições democráticas na vida pública.

Particularmente significativos são os movimentos e sinais dos governos do México, Argentina, Chile e Colômbia para reavivar a discussão sobre o regionalismo latino-americano e caribenho e as bases econômicas e políticas estratégicas sobre as quais a nossa relação com o mundo deve assentar. Este cenário é completado especialmente com a vitória eleitoral de Lula da Silva no Brasil, que tem sido fundamental na construção do diálogo político e no reforço institucional da integração regional e da solidariedade.

 

Desafios e riscos

Com os novos cenários políticos surge a necessidade de reposicionar velhos desafios e ponderar novos riscos. Em termos de inserção internacional e no contexto do MERCOSUL, o principal desafio para o movimento pela justiça ambiental reside em poder introduzir o debate sobre o modelo de produção à luz da insustentabilidade do modelo baseado no agronegócio e na exportação de minerais e agro-produtos. E este é um desafio partilhado com projetos políticos que promovem e lutam pela transformação social e por outros movimentos sociais, como os que lutam pela justiça social, trabalho digno e digno, soberania alimentar, justiça de gênero, igualdade racial, direitos dos povos indígenas e quilombolas, entre outros.

Responder à insustentabilidade do modelo implica pensar numa inserção internacional diferente. O principal perigo pode residir em continuar a desenvolver uma inserção internacional que aprofunde ainda mais a insustentabilidade do modelo. Avançar com o acordo entre a UE e o Mercosul sem abrir um debate com participação social sobre o seu conteúdo é, do nosso ponto de vista, um enorme risco.

Durante a campanha eleitoral, o Partido dos Trabalhadores (PT), na voz do próprio Lula, levantou em várias ocasiões a necessidade de renegociar o acordo de comércio livre assinado pelo Mercosul e pela UE. Embora no anúncio da assinatura do acordo fosse evidente que não existiam condições políticas para uma conclusão efetiva, nos últimos três anos foram levantadas objeções devido a desacordo na UE por razões centradas em políticas de proteção do setor agrícola ou preocupações sobre o impacto da política ambiental criminosa do governo de Jair Bolsonaro.

Apesar das numerosas perspectivas críticas desenvolvidas a partir de vários setores do movimento social e da esquerda latino-americana, a definição programática do PT no âmbito da campanha gerou, pela primeira vez, as condições reais para uma avaliação aprofundada dos impactos do tratado e não apenas uma leitura de alguns dos seus aspectos mais sensíveis.

A posição de Lula em relação à renegociação baseia-se no argumento central de que o tratado, tal como assinado, não respeita as necessidades de desenvolvimento do Brasil. Alguns elementos são particularmente preocupantes para o PT: restrições à implementação de políticas de reindustrialização, o impacto da abertura dos contratos públicos, maior regulamentação dos direitos de propriedade intelectual, comércio de serviços, negociações sobre tecnologia e os impactos do comércio bi-regional no ambiente.

O entusiasmo pela conclusão do acordo que vem da UE colide com a proposta de renegociação de Lula. Embora a intenção da UE tenha se concentrado na incorporação de alguns capítulos ou protocolos complementares que poderiam supostamente remediar as “fraquezas” do acordo em matéria ambiental, a nova correlação de forças estabelecida no Mercosul afirma a necessidade de mudanças profundas, mesmo em elementos que fazem parte da espinha dorsal do acordo assinado, tais como o espaço para a política industrial na região.

De uma perspectiva regional, isso deve ser visto como uma grande oportunidade para desenvolver uma discussão verdadeiramente ampla sobre alguns dos conteúdos do acordo que podem ter impactos mais prejudiciais para o nosso desenvolvimento em termos de justiça social e ambiental. Também nos oferece a oportunidade de discutir que outros modelos comerciais são hoje necessários para os povos e países da região, no contexto atual.

O texto do tratado impõe uma ampla liberalização sobre o comércio, que por parte do Mercosul é superior a 90% do total de mercadorias. Várias análises do impacto no comércio bi-regional mostram o efeito que teria no aprofundamento da matriz de intercâmbio com base na atual divisão internacional do trabalho. Segundo o estudo de impacto encomendado pela Comissão Europeia à London School of Economics, os setores econômicos que ganhariam no caso do Mercosul estariam concentrados na carne, soja e derivados, celulose, alguns produtos da indústria alimentar, tais como sucos, e outros alimentos processados, enquanto os perdedores seriam os setores industriais da produção automóvel, química e farmacêutica. A que devemos acrescentar as plantações de cana de açúcar e a indústria associada à produção de etanol, cujas quotas de exportação do MERCOSUL são consideravelmente aumentadas, principalmente a partir do Brasil. Para além de já ser uma produção altamente transnacional e agroquímica intensiva, mantém as características de enorme concentração fundiária e más condições de trabalho herdadas do período colonial, com graves impactos nos biomas da Mata Atlântica, Cerrado e Pantanal e nos seus povos nativos. Do mesmo modo, e a uma escala diferente, no caso do Uruguai, há também possíveis impactos negativos na indústria leiteira e na produção de bebidas.

Este tratado ata as mãos dos países do Mercosul em relação à possibilidade de desenvolver políticas públicas para a transformação produtiva. A UE negou expressamente a possibilidade de introduzir cláusulas de proteção para o desenvolvimento de setores industriais ou disposições para a transferência de tecnologia em investimentos. Além disso, a entrada em vigor do tratado significa a abertura das compras estatais, a nível nacional e subnacional, a empresas europeias que poderiam competir em igualdade de condições com as empresas do Mercosul. E embora alguns países, como o Uruguai, tenham protegido os contratos públicos, as negociações de comércio livre avançam no sentido de uma maior liberalização, pelo que é de esperar que esta proteção seja condicionada ao longo do tempo ou que se exija a sua liberalização total. Desta forma, o Mercosul priva-se de uma importante política de promoção industrial, dando às empresas da UE altamente competitivas um mercado atrativo.

A preocupação com o impacto no ambiente não foi acompanhada de propostas eficazes para o seu tratamento, bem pelo contrário. O esquema comercial estabelecido por este acordo terá impacto na expansão da fronteira agrícola e extrativa primária – incluindo o setor da extração de energia – com um impacto profundo e bem documentado na justiça ambiental em termos de desmatamento, apropriação de terras, efeitos na biodiversidade, qualidade da água e contaminação dos alimentos por agroquímicos, violência e deslocação contra os direitos coletivos das comunidades. Segundo o relatório elaborado por Tom Kucharz para a ala esquerda do Parlamento Europeu, o comércio com a UE está diretamente relacionado com o desmatamento anual de cerca de 120.000 hectares no Mercosul.

A afirmação da Europa de que tem a intenção, os conhecimentos e os instrumentos para forçar os países do Mercosul a cumprir as suas quotas de exportação sem causar desmatamento ou contribuir para as alterações climáticas está, pelo menos historicamente, fora do contexto. Como o presidente argentino Alberto Fernández salientou durante uma cúpula do bloco sul-americano, a UE utiliza a Amazônia como desculpa para o protecionismo da sua própria economia e, podemos acrescentar, para os interesses das suas corporações transnacionais. Apesar da insustentabilidade das cadeias de produção destas empresas e do padrão de consumo crescente de recursos externos numa sociedade desenvolvida, insiste que a solução para o acordo seria um misterioso anexo ambiental elaborado pela Comissão Europeia, a ser aplicado unilateralmente ao Mercosul.

Tendo superado o desconforto de ter assinado um acordo em 2019 com o presidente fascista e antiambiental Jair Bolsonaro, a UE coloca nas mãos de Lula a expectativa de resolver os problemas que supostamente afligem o bloco europeu, sem medir as consequências das assimetrias abismais – desde as originárias da exploração colonial até ao mais recente e não menos brutal desmantelamento dos direitos humanos e da proteção ambiental e das próprias instituições democráticas do Brasil desde o golpe de Estado de 2016 contra a Presidente Dilma Rousseff.

Demorará muito mais de seis meses ou um ano para construir políticas ambientais e de participação social no Brasil. O governo de Lula já começou nos seus primeiros três dias com a revogação dos decretos anunciados pela equipe de transição durante o mês de Novembro de 2022. Entre os mais de 200 decretos presidenciais anunciados para serem revogados estão os que fazem da monitorização, controle e proteção dos biomas brasileiros e dos seus povos uma promessa impossível de cumprir, tais como a militarização, a presença de garimpo e tráfico, o armamento de milícias em grandes propriedades fundiárias, o esvaziamento total dos orçamentos/recursos e da participação social em organismos como o Conselho Nacional do Ambiente (Conama).

As fórmulas normativas apresentadas no processo de negociação são falsas soluções porque não resolvem, mas sim aprofundam o problema estrutural acima mencionado.

Uma verdadeira solução seria limitar a exportação de agrotóxicos produzidos pelas principais indústrias químicas europeias (BASF e Bayer-Monsanto), proibidos de serem comercializados na Europa, mas exportados para utilização na produção agrícola do Mercosul, que é exportada para a UE.

A incorporação de capítulos sobre objetivos de “desenvolvimento sustentável”, ou a implementação de políticas mais próximas dos interesses do protecionismo comercial do que de uma vocação de profunda justiça ambiental, não são soluções reais nem respeitáveis. Aparentemente, a UE está a trabalhar num “documento adicional” ao tratado, aplicável a ambas as partes, que detalharia ainda mais os compromissos relacionados com a “sustentabilidade ambiental e a luta contra as alterações climáticas”. Qualquer que seja o conteúdo deste documento, é difícil prever uma solução em profundidade sem um quadro completo de renegociação do tratado.

O tratado também antecipa as obrigações relativas à proteção privada da propriedade intelectual. Isso está claramente expresso na proteção dos direitos de autor, em que o prazo de proteção previsto pelas obrigações da OMC (Organização Mundial do Comércio) é ampliado. Além disso, é possível prever os progressos nas possibilidades de patentear sementes e variedades vegetais a partir da referência às duas versões da Convenção Internacional sobre a Protecção das Obtenções Vegetais (UPOV) de 1978 e 1991. A versão de 1991 é mais exigente do que a versão em vigor para os países do Mercosul.

No capítulo sobre o comércio de serviços, o tratado permite incorporar os serviços públicos no mercado bi-regional porque a exclusão é limitada aos serviços que são prestados no exercício dos poderes governamentais e em condições de não concorrência com os prestadores privados. Este é outro aspecto que deve ser reconsiderado numa eventual renegociação do acordo, tendo em conta a valorização social da educação pública e dos serviços de saúde durante a pandemia (como o Sistema Único de Saúde do Brasil), bem como a água e o saneamento básico. Estas questões, que são consideradas mercadorias na negociação, contradizem as declarações de Lula sobre o fim da privatização dos serviços no país a partir de 1 de Janeiro de 2023. Ao mesmo tempo, no processo de atualização dos respectivos tratados da UE com o México e o Chile, tem havido uma clara vocação para incorporar os padrões mais avançados nas negociações dos serviços.

Finalmente, foi revelada a intenção de algumas autoridades europeias de separar a negociação e assinatura do acordo comercial das relacionadas com o diálogo político e a cooperação, a fim de evitar a necessidade de ratificação pelos parlamentos nacionais de todos os estados membros da UE e do Mercosul. Com esta manobra, a máscara da política externa da UE caiu finalmente, e é evidente que a sua política externa é uma política neoliberal de comércio livre muito afastada das supostas preocupações sobre transparência, democracia, direitos humanos e cooperação para o desenvolvimento conjunto bi-regional e os processos pioneiros da integração regional.

Os desafios que enfrentamos na região são enormes e podem ser todos resumidos na análise das múltiplas crises baseadas na injustiça e na opressão. É num momento como o atual que temos de apostar em políticas de conteúdo renovado, de expansão num sentido democratizante e profundamente participativo.

Este compromisso deve também estar presente na reflexão sobre a inserção internacional e as formas em que os países da região – que continua a ser os mais desiguais do mundo – se integrarão e construirão um espaço político comum. Para tal, é essencial compreender que as agendas do livre comércio são contraproducentes para projetos políticos de transformação social, que a justiça deve estar no centro desses projetos e que a defesa da democracia deve ser um tema transversal comum em todas as políticas.

Num contexto em que a experiência atual continua a ser de negação da construção da democracia e do desmantelamento dos direitos dos povos por meio do uso extremo da violência, é necessário defender o valor da política e contestar as políticas públicas com princípios e orientações construídas por organizações e movimentos populares. A política de inserção internacional deve também responder aos princípios democráticos, deve ser alinhada com um projeto transformador inclusivo, baseado na justiça. Uma política de inserção internacional que responde às necessidades do povo e que está orientada para a sustentabilidade da vida e não para a reprodução do lucro.

 

*Lucia Ortiz (Amigos da Terra Brasil); Viviana Barreto (REDES – Amigos de la Tierra Uruguay); Natalia Carrau (REDES – Amigos de la Tierra Uruguay)
Foto principal: Agencia NA / Telam

Artigo publicado originalmente em espanhol no site argentino Canal Abierto em https://canalabierto.com.ar/2023/01/23/el-modelo-la-insercion-internacional-y-el-ambiente-en-el-mercosur-el-gobierno-de-lula-como-oportunidad/

Justiça proíbe uso de agrotóxicos, entre eles o glifosato

Os químicos Abamectina, Glifosato e Tiram foram proibidos devido a inúmeros estudos que apontam seus danos à saúde humana e ao equilíbrio ambiental. Produtos já licenciados devem ser retirados do mercado em até 30 dias; novas licenças estão suspensas. Anvisa tem prazo até o final do ano para concluir reavaliação toxicológica. Decisão ainda pode ser revertida, mas representa uma grande vitória de quem defende a vida, a saúde e o meio ambiente por meio da agroecologia.

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Uma decisão da 7ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal proíbe o uso dos agrotóxicos abamectina, glifosato e tiram no Brasil. Segundo a juíza que proferiu a ordem, “está mais que suficientemente demonstrada a toxidade dos produtos para a saúde humana”, não restando dúvidas à necessidade da proibição. A conclusão judicial vem embasada por inúmeros estudos que apontam a alta nocividade destes químicos.

O glifosato é o agrotóxico mais utilizado no Brasil, em especial por produtores de soja. A Organização Mundial da Saúde (OMS), a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC, na sigla em inglês), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca) já se posicionaram sobre os malefícios da substância: para a IARC, o glifosato reduz a produção de progesterona em mamíferos, afeta a mortalidade de células placentárias e é supostamente carcinogênico; a OMS e a Abrasco o classificaram como “provável carcinógeno humano” – em uma escala de 1 a 5 da OMS, este é o segundo maior risco que pode ser dado a uma substância.

Segundo a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a exposição de animais ao glifosato causou “aumento significativo das aberrações cromossômicas e de presença de micronúcleos”. O Inca também apontou os malefícios do glifosato para a saúde humana, que contribuem para o aumento da taxa de mortalidade.

O Ministério da Saúde registra de 12 a 14 mil intoxicações por agrotóxicos no Brasil a cada ano – em 2016, foram quase 500 vítimas fatais. E a OMS estima que somente um em cada 50 casos cheguem às autoridades, o que aumentaria o registro de intoxicações para cerca de 650 mil por ano. Leia mais no site da campanha Agrotóxico Mata: Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida

A principal produtora do glifosato é a Monsanto, que o vende sob o rótulo “Roundup”. A empresa de venenos foi recentemente comprada pela Bayer (que produz os remédios para as doenças que, agora, ela própria cria). Em julgamento em 2017 nos Estados Unidos, ficou comprovada a manipulação de dados pela Monsanto a favor de seu veneno: a empresa havia contratado, em sigilo, cientistas para que produzissem dados em defesa do químico. Ou seja, as pesquisas que minimizam os efeitos danosos da substância não possuem credibilidade alguma: são encomendados pela própria culpada, a Monsanto. Ainda assim, devido ao forte lobby empresarial, o glifosato, que estava prestes a ser barrado na União Europeia, ganhou validade de mais cinco anos por lá; e a situação brasileira é muito mais grave: aqui, o limite de uso de glifosato é 200 vezes maior que no bloco europeu.

Infográfico da Repórter Brasil. AQUI, mais informações do uso de agrotóxicos no Brasil, em matéria que mostra também os focos geográficos das contaminações

A abamectina já é proibida na União Europeia. De acordo com nota da Anvisa, a substância “apresenta resultados preocupantes relativos à toxicidade aguda e suspeita de toxicidade reprodutiva dessa substância e de seus metabólitos”. Outro grave problema deste químico está na contaminação de recursos hídricos consequentes de seu uso no solo. Sobre o tiram, estudos indicam ser “provocador de efeitos neurocomportamentais, como ataxia, convulsões, letargia e malformações fetais severas, devido à existência de dissulfeto de carbono dentro de sua composição”.

“São estarrecedoras as conclusões da Fundação Oswaldo Cruz acerca do uso de abamectina, utilizando-se como base pesquisas experimentais realizadas em camundongos, macacos, cães ou coelhos, quando todos eles apresentaram sintomas e danosos que vão desde a irritação da pele até perda de peso, taquicardia e mutações no DNA” – Luciana Raquel Tolentino de Moura, 7ª Vara da Justiça Federal do DF

Além da proibição imediata de novas licenças para produtos à base destes três químicos e do prazo de 30 dias para retirada de mercado de produtos anteriormente licenciados, foi dado o prazo de 31 de dezembro deste ano à Anvisa para que finalize a reavaliação toxicológica das três substâncias. Esta reavaliação se arrasta desde 2008 – no Brasil, uma vez dada a licença a um agrotóxico, ela é permanente, podendo ser alterada somente mediante novo estudo. A multa estipulada, caso o prazo não seja respeitado, é de R$ 10 mil por dia.

Movido pelo Ministério Público Federal, o processo corre desde 2014. Leia AQUI a decisão judicial na íntegra (na nova janela, vá até a aba “Inteiro Teor” e acesse a última decisão, de 03/08/2018).

PL DOS AGROTÓXICOS
Os agrotóxicos são prejudiciais tanto a quem aplica o veneno quanto a quem o consome; e se beneficiam deste envenenamento geral da população apenas grandes empresas como Monsanto, Bayer, Syngenta ou Taminco, todas citadas no processo, além dos grandes produtores de soja e outras monoculturas, que usam amplamente venenos em sua produção e lutam contra a proibição destes químicos – e, em consequência, contra a saúde pública.

Recentemente, veio à tona um projeto de lei (PL), em trâmite no Congresso Nacional, que pretende flexibilizar a concessão de registros para agrotóxicos. Em nota, o MPF destaca os riscos desta medida, que “está na contramão da preocupação mundial com o meio ambiente e a saúde”. Pesquisadoras e pesquisadores da Abrasco e da Associação Brasileira de Agroecologia lançaram recentemente um dossiê científico contra o PL, também o condenando.

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