Povos e comunidades tradicionais do pampa conquistam apoio do MPF em solicitar suspensão de Licença Prévia do projeto Três Estradas e propõe alternativas à mineração de fosfato em Lavras do Sul

O Ministério Público Federal (MPF) sustenta a existência de diversas irregularidades no licenciamento ambiental do Projeto Três Estradas, proposto pela transnacional Aguia Resources e relacionado à extração de fosfato na região de Lavras do Sul. A partir da pressão popular, que levantou dados, estudos, e uma série de materiais e relatos articulados pelas lutas, o MPF reconheceu os impactos socioambientais que o projeto causaria em uma das zonas mais preservadas do Rio Grande do Sul. Sua decisão é manter o pedido liminar de suspensão deste licenciamento enquanto o processo segue tramitando na justiça. 

A febre da mineração é sintoma de uma América Latina que, historicamente, tem a violência colonial como princípio fundante de suas sociedades. Ela guarda em si uma racionalidade que compreende o progresso, o desenvolvimento, como a incorporação permanente dos espaços comuns e a sua transformação em propriedade privada. Por onde passa modifica o entorno, enfraquece laços comunitários, mercantiliza a natureza e deixa um rastro de devastação. Em contraponto, trazendo a defesa das vidas e dos territórios como valor central, estão as lutas dos povos originários, quilombolas e tradicionais. Que resistem e pautam outro horizonte. Povos que devem ser celebrados em suas batalhas e vitórias. E se somando a triunfos populares contra a mineração, como a suspensão do licenciamento da UTE Nova Seival (Copelmi e Energia da Campanha) e o arquivamento da Mina Guaíba (Copelmi) e do Projeto Caçapava do Sul (Nexa Resources), a luta proporciona conquista traduzida pelo apoio do MPF contra o Projeto Três Estradas, em Lavras do Sul (RS).

Imagem representada por benzedeira e quilombola, agricultores familiares, povo cigano e povo pomerano | Fotos do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e da FLD

Barrando a trajetória de desastres minerários que incidem negativamente nos biomas e nas vidas tantas que ali florescem, conquistas assim podem abrir o debate para uma transição energética justa, para processos de tomada de decisão realmente democráticos e que pautam a soberania dos povos. Positiva para a comunidade de pecuaristas familiares de Lavras do Sul e para toda sociobiodiversidade do Pampa, a decisão do MPF é um passo importante na luta, que ainda segue até a suspensão do projeto. “Impedir esse projeto não representa impedir o desenvolvimento econômico do município ou estado, mas sim reconhecer e respeitar os direitos de povos e comunidades tradicionais, em especial o artigo 216 da Constituição Federal, que orienta que o estado brasileiro deve garantir os modos de criar, fazer e viver de seus povos; e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) 169, que orienta sobre o direito à consulta prévia, livre e informada, direito já violado pela empresa Aguia Resources. E o cumprimento da legislação ambiental estadual e federal à qual o empreendimento está submetido e deve obedecer”, declara Fernando Pires Aristimunho, pecuarista familiar e coordenador executivo do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa. O Comitê reúne representações de oito identidades presentes no bioma Pampa – povos indígenas, povo cigano, povo pomerano, povo de Terreiro, comunidades quilombolas, pescadoras e pescadores artesanais, benzedeiras e benzedores e pecuaristas familiares. Desde 2015 vem atuando para a visibilidade e defesa de direitos étnicos e territoriais e para a defesa do bioma Pampa.

Povo de terreiro, artesanato indígena, mulher quilombola, cerro de pedra e campo nativo, povo indígena kaingang | Fotos do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e da FLD

Os territórios onde seria instalado o minério de fosfato enfrentam as problemáticas da chegada da Aguia Resources desde 2011. Por aqui, a empresa é conhecida por Águia Fertilizantes (localizada em Lavras do Sul), uma subsidiária da Águia Metais (com sede em Minas Gerais), que por sua vez é subsidiária da Aguia Resources (com sede na Austrália). A ameaça de expulsão de famílias na localidade foco do empreendimento, região de Três Estradas, se faz presente com a possibilidade de avanço da mina. O saldo para a comunidade, no caso da implementação do projeto, é a ameaça constante das pessoas serem expulsas do seu lugar de morada, perdendo a vinculação com o ecossistema e com os laços comunitários. Perdendo, portanto, os meios de reprodução de seus modos de vida tradicionais, que dependem da conservação da natureza para existirem e garantirem a centenas de famílias a produção de alimentos. Os impactos são sociais e ecológicos. “A comunidade foco do projeto, Área Diretamente Afetada (ADA), já está sendo impactada desde a chegada da empresa na comunidade. São mais de 40 famílias de pecuaristas familiares, que vivem na região há mais de três gerações, que estão na ADA do projeto e estão sendo ameaçadas. As pessoas estão adoecendo, relações sociais comunitárias foram rompidas por conta de cooptações financeiras realizadas pela empresa em algumas famílias. E não são poucos os exemplos de violências sociais que projetos dessa magnitude trazem para regiões onde são implantados”,  denuncia Aristimunho. Relatos de moradores e laudo antropológico realizado pela PGR/MPF em 2020 comprovam o ponto.

Povo de terreira, butiazal no pampa, coqueiro de jerivá e produtor quilombola | Fotos do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e da FLD

Caso ganhe na justiça a Licença de Instalação, o projeto Três Estradas, que empregaria a mineração de fosfato a céu aberto, atingiria a pecuária familiar, atacando também o modo de vida pampeano. Cavas, barragem de rejeitos e captação de água de arroio seriam necessárias para o processamento do minério. Só a área de barragem de rejeitos pode envolver espaço equivalente a mais 278 estádios de futebol, conforme assinalam os pesquisadores Marcilio Machado Morais (doutor em Engenharia Química) e Vanessa Rosseto (Mestre em Ecologia) em um estudo intitulado “Reflexões sobre a Mineração em Três Estradas, Lavras do Sul, RS”. 

Onde hoje se perde o olhar na distância do pampa, com seus bucólicos amanheceres e pôres do sol, e com uma sociobiodiversidade única deste bioma, restariam buracos de cavas e explosões constantes, com pilhas de rejeitos de minério e de poluição. O progresso do projeto é, na verdade, a supressão dos campos nativos, a drenagem de áreas úmidas e o surgimento de barragens de sedimentos, que ameaçam as bacias hidrográficas existentes na região e todas a s comunidades que dependem dessa água para o seu sustento. A contaminação da terra, do ar e das águas impediria qualquer forma de vida por ali, gerando uma nova onda de êxodo rural, miséria e desemprego.

Para completar, os rastros desse desastre respingariam também em toda a população de Dom Pedrito e Rosário do Sul, municípios abaixo da barragem e que, com a implementação da iniciativa, passariam a viver em permanente estado de alerta. E os danos se estenderiam ultrapassando os limites nacionais: em caso de rompimento, os sedimentos podem correr pelos Rios Santa Maria e Ibicuí, alcançando o Rio Uruguai e gerando um impacto ecológico de âmbito internacional. 

Planejado entre Lavras do Sul e Dom Pedrito, o projeto Três Estradas prevê a construção de uma barragem que é também uma tragédia anunciada. De acordo com modelagens e estudos sobre o impacto das barragens de rejeitos, ela teria  capacidade de armazenamento equivalente ao dobro do volume de rejeitos espalhados pela barragem da Vale S.A. em Brumadinho (MG), que figura entre um dos crimes ambientais mais reconhecidos do país, com mais de 270 mortos e a Vale impune. Mas a empresa Águia Fertilizantes (parte da Aguia Resources), não apresentou essa realidade no Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), principal instrumento que comunica as comunidades sobre o projeto.

Visando unicamente o lucro, a intenção da empresa Águia Fertilizantes é de se expandir no bioma Pampa. Inclusive em territórios de comunidades tradicionais, como é o caso do Quilombo de Palmas em Bagé, reconhecido em 2017 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Estas informações não são divulgadas pela empresa na região, violando os direitos da sociedade em geral. E o histórico da Águia já expõe o que está por vir. Ela é ligada ao grupo Forbes & Manhattan, do qual também faz parte a Golder Associates, contratada pela Samarco (BHP Billiton e Vale) após o rompimento da barragem em Mariana (MG), e depois substituída pela Fundação Renova. Tem conexão ainda com a Belo Sun e Potássio, que tiveram o licenciamento ambiental suspenso devido à ausência de consulta prévia, livre e informada junto às comunidades tradicionais, além de denúncias de compra ilegal de terras públicas e de falta de transparência.

Sede da Águia Fertilizantes, no centro de Lavras do Sul (RS)

No caminho da expansão da zona minerária estão vidas, águas, solos, fauna, flora, histórias e povos que muitas vezes sequer são consultados sobre a implementação de projetos de altíssimo impacto negativo.  Mas a luta para resistir e propor alternativas ao avanço da devastação segue em marcha. A luta pela vida segue consolidando raízes cada vez mais fortes. 

Na trajetória da luta: A articulação popular que constrói vitória e resiste ao projeto da Águia Fertilizantes

Em dezembro de 2018, o Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, junto com a Fundação Luterana de Diaconia (FLD), entregou ao MPF de Bagé e ao MPF de Rio Grande, o “Manifesto sobre violações de direitos provocadas pela mineração no Brasil e como se reproduz no projeto `Fosfato Três Estradas (RS)”.  O documento, com denúncias referentes ao projeto, foi a primeira manifestação do Comitê. Na articulação dessa luta que segue, ao lado do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa estão pessoas que vivem na região, pecuaristas  familiares e movimentos sociais organizados. Também somam na construção profissionais de diversas áreas do conhecimento ligados a universidades como a Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), associações comunitárias de pecuaristas familiares, Associação para Grandeza e União de Palmas (AGRUPA),  União Pela Preservação do Camaquã (UPP Camaquã), Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (ADAC), o Comitê de Combate a Mega Mineração (CCM), organizações apoiadoras e de defesa de direitos humanos, o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), a Fundação Luterana de Diaconia (FLD) e a Amigos da Terra Brasil (núcleo RS).

Cigana, crianças indígenas Mbyá Guarani, quilombola e benzedeira, lã ovina, benzedeira e pescadora artesanal, plantas do pampa com uso tradicional, artesanato com palha do butiá | Fotos do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e da FLD

Em 2019, após ouvir relatos dos residentes da região de Três Estradas e na continuidade da mobilização em defesa do território, o Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa escreveu um segundo manifesto, com apoio da FLD e do Núcleo Educamemória da FURG. Nomeado como “Três Estradas tem gente, tem voz e tem história, violações de direitos entre 2011 a 2019”, este foi entregue por  integrantes da comunidade de Três Estradas, do Comitê PCTs do Pampa, da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), da Associação para Grandeza e União de Palmas (AGRUPA)  à Procuradora da República no Município de Bagé, Amanda Gualtieri Varela, no dia 17 de dezembro, data referenciada como dia do Bioma Pampa. Alçando a voz das famílias da comunidade ameaçadas pelo empreendimento, o manifesto deu origem ao  Laudo Antropológico, solicitado pelo MPF e realizado pelo setor de perícias da Procuradoria Geral da República, no ano de 2020. “O laudo afirmou que a comunidade impactada pelo empreendimento “Fosfato três Estradas” é população Tradicional. A partir do Laudo Antropológico e de outras manifestações contra o empreendimento, o MPF instaurou uma Ação Civil Pública, solicitando a suspensão da Licença Prévia (LP) concedida ao empreendimento pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM)”, conta Aristimunho.

O documento afirma que as famílias não concordam com o empreendimento, que estão se sentindo ameaçadas de reproduzir seus modos de vida como pecuaristas familiares que são. As diversas identidades socioculturais dos povos tradicionais do pampa são as guardiãs da  biodiversidade local e fazem a  história do bioma. Como foi argumentado pelo manifesto escrito pelo comitê após ouvir a comunidade, e confirmado pelo laudo antropológico realizado pelo (PGR) em fevereiro de 2020: A força identitária pecuarista familiar reside em redes de interações sociais e ecológicas que se reproduzem historicamente preservando os ecossistemas do Pampa, e em nenhum outro lugar. Uma identidade intrinsecamente vinculada ao bioma: longe dos campos nativos o pecuarista e a pecuarista familiar não existem. A pecuária familiar tem com o Pampa uma conexão que é de outra natureza, é simbiótica: se você não tem o campo nativo, você não tem a pecuária familiar. O respeito à sua integridade ambiental é, por isso, um respeito à própria identidade; um movimento de autopreservação.

Assegurar os modos de vida dos povos tradicionais da região é assegurar a manutenção e preservação ecológica desta, preservando ainda a história, conhecimentos e formas de produção que se contrapõe a uma lógica mercantilista e predatória. Como evidencia o laudo antropológico: “Resultado de séculos de evolução e coexistência com o bioma Pampa, o espaço social do pecuarista familiar é exclusivo, nele desenvolvendo atividades econômicas que não transformam a natureza em algo diferente do que sempre foi. Detentores de um elevado conhecimento prático sobre os organismos naturais que manejam, os pecuaristas familiares apenas se encaixam, adaptando-se, tendo substituído os antigos herbívoros nativos, que já foram abundantes no Pampa, por outros: bovinos, ovinos e equinos. Por isso não são agricultores; no máximo cultivam o que chamam de cercado, pequena produção de hortaliças próxima às residências, e de outros alimentos para o autoconsumo da família e dos animais. Sua identidade – assim como seu estatuto de comunidade tradicional – é, desse modo, inseparável da biodiversidade nativa. Sua cultura e estilo de vida (ethos) decorrem da experiência de se viver e se reproduzir nesse ambiente natural único, por meio de uma ocupação humana intrinsecamente conservacionista. Como já mencionado, uma relação simbiótica que necessariamente conduz à conservação do bioma”. 

Com muito estudo e mobilização coletiva traduzidos em anos de luta, foi alcançado o apoio do MPF, que solicitou a suspensão da Licença Prévia (LP) do Projeto Três Estradas. “No intuito de garantir as formas de vida e de preservar o pampa, o Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, desde sua criação, vem trabalhando de forma articulada entre lideranças dos diferentes povos e comunidades tradicionais existentes no bioma, juntamente com organizações de apoio e universidades públicas, reconhecendo nossos direitos socioterritoriais, tão fragilizados e atacados no atual contexto brasileiro. Buscando dialogar com gestores públicos a partir da participação em conselhos e fóruns, buscando incidir para a efetivação e o controle social das políticas específicas, dialogando também com Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público Estadual (MPE) e Defensoria Pública Estadual (DPE), para a defesa e efetivação de direitos e políticas públicas”, comenta Aristimunho sobre a organização e os próximos passos na luta.

Pesca artesanal da Lagoa dos Patos e pescador artesanal, pecuarista familiar e área de pecuária familiar | Fotos do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e da FLD

Projeto Três Estradas é marcado por falta de transparência, processos antidemocráticos e violação de direitos e do território  

Sem consulta prévia à comunidade, sem exposição dos danos socioambientais que acarretaria e com uma série de projetos de marketing para mobilizar a opinião pública a seu favor, Águia Fertilizantes traz em seu âmago a lógica violenta da mineração

A empresa Águia Fertilizantes atua na região desde 2011, mas apenas em dezembro de 2018 que divulgou seu EIA-RIMA, tendo em vista a obrigatoriedade frente à primeira audiência do processo de licenciamento junto à FEPAM. Contra análises coerentes sobre os impactos socioambientais e de forma nada transparente, até então não expunha suas verdadeiras intenções com o projeto, buscando apenas divulgar a sua marca por meio de inúmeras atividades. Houve distribuição de brindes, lanches, doação de materiais escolares, tintas para pintar escolas, patrocínio de shows e eventos com brincadeiras envolvendo crianças, até a criação de um joguinho sobre mineração para crianças.Tudo numa perspectiva para cooptar a opinião pública a seu favor, sem informar as reais consequências do empreendimento e como ele impactaria de forma irrecuperável o bioma, as vidas e formas organizacionais de seus habitantes.  

Com foco no lucro às custas da mercantilização da vida e dos povos, a Águia chegou na região com esforços para mobilizar populações a seu favor. “A empresa desde que chegou no município, em 2011, vem apoiando feiras agropecuárias e realizando investimentos e eventos em escolas públicas. Essas manifestações públicas da empresa e aportes financeiros em equipamentos públicos, que deveriam ser feitos pela prefeitura, vêm convencendo a população urbana de que o projeto vai aumentar a oferta de empregos e trazer melhorias para a qualidade de vida da população. Mas em nenhum momento mostram para a comunidade os impactos ambientais e sociais que o empreendimento causará, se for implantado”, relata Aristimunho. 

Nessa história, a Águia contratou a empresa Nano BizTools (start up de inovação) para, em suas próprias palavras, “enfrentar a desconfiança da população e desenvolver uma comunicação empática”. Mas nunca revelou a essa população no que acarretaria o projeto, tendo utilizado inclusive técnicas como a chamada “storytelling” para, literalmente, contar história à comunidade. A comunicação feita pela empresa para os investidores e para as comunidades locais gerou interpretações parciais e equivocadas. E no processo, a Águia tampouco observou os direitos de Povos e Comunidades Tradicionais, de agricultoras e agricultores familiares e de comunidades locais presentes na região. Não houve processo de consulta específica, livre, prévia e informada junto aos Povos e Comunidades Tradicionais, fato que elucida o quanto ela contrariou a Constituição Federal de 1988, o Decreto 6040/2007 (Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais), a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU e a Convenção nº 169/1989 da OIT.

Uma série de violações de direitos perpassa a trajetória da Águia no estado. E enquanto ela ocultou informações para as comunidades locais, não as consultando, também divulgou sistematicamente informações em inglês aos seus acionistas (em documentos e notícias no site da Aguia Resources), inclusive sobre suas concretas intenções de expansão na região.

Segundo o relatório Management’s Discussion and Analysis, de fevereiro de 2020, a empresa atualmente controla mais de 1.500 km² de terra no Brasil. Em Sergipe, a mineradora explora potássio através do projeto Atlantic, na Paraíba e Minas Gerais, explora fosfato através dos projetos Lucena e Mata da Corda, respectivamente (GEOLOGY, 2015). Além destes projetos a empresa “garantiu um pacote estratégico de terras” ao longo do Cinturão do Cobre, na região de Caçapava do Sul/RS, contando hoje com uma área de 86.782 hectares, tendo como alvos as localidades de Canhada, Fazenda Grande, Carlota, Passo Feio, Seival, Lagoa Parada, Primavera e Andrade. Porém, o projeto Três Estradas é considerado o seu principal, pois desencadearia e viabilizaria economicamente uma série de minas a céu aberto para exploração de fosfato na região. A Aguia tem realizado perfurações para pesquisa mineral de fosfato (que, segundo a empresa têm se mostrado altamente promissoras e rentáveis) nas localidades de Mato Grande, Joca Tavares, Cerro Preto e Porteira (próximas a Três Estradas). Portanto é importante entender que se trata de um grande e amplo projeto chamado de Rio Grande (GLOBALFERT, 2015; SINFERBASE, 2016), sendo Três Estradas somente o primeiro passo. 

Área como é hoje
Área como ficaria com o projeto Três Estradas
Trajeto possível em caso de um rompimento da barragem de rejeitos prevista, que tem o dobro da capacidade que a barragem da mina do Córrego Feijão que rompeu em Brumadinho
Bacias hidrográficas Santa Maria, Camaquã e Negro

O projeto visava se instalar muito próximo ao divisor de águas das Bacias Hidrográficas Santa Maria, Camaquã e Negro. As águas que correm dessas bacias vão de encontro a 33 municípios, onde pulsa em grande concentração a vida de comunidades e povos tradicionais. São 31 áreas de povos indígenas, 57 comunidades quilombolas, 22 coletivos de pescadoras e pescadores artesanais, mais de 500 famílias de pecuaristas familiares, mais de 60 mil domicílios autodeclarados de povos  de terreiro e tradicionais de matriz africana, mais de 2 mil pessoas autodeclaradas do povo pomerano, e rotas de passagem do povo cigano, de benzedeiras e benzedores. Além de 124 assentamentos da reforma agrária, com mais de 4 mil famílias. E por mais que sejam muitas gentes, não existe número possível que retrate o significado dessas vidas e de suas histórias.

O Projeto Três Estradas é o contrafluxo da preservação do bioma do pampa. Preservação essa que é fruto do trabalho e das relações que estes povos tradicionais cultivam ao longo de gerações, que têm em seu cerne o convívio harmônico com a natureza e sistemas de cooperação. Para garantir suas formas de vida e a sociabilidade ecológica foi apresentado em 2019, pelo Comitê dos Povos Tradicionais do Pampa e outras articulações, estudo do componente socioeconômico que traz sistematização e análises a fim de expor de forma mais explícita as violações de direitos do Projeto Três Estradas. Elaborado a partir de matérias, depoimentos, documentos, vídeos e trabalho de campo, o estudo apresenta análise histórica desde a chegada da empresa na região de Lavras do Sul, em 2011, até dezembro de 2019.  Neste, é possível averiguar o lastro de consequências nefastas da mina de fosfato a céu aberto na localidade. Que em seu projeto, além de desconsiderar a dinâmica sociocultural e espacial, o modo de vida, o sentimento de pertencimento, os costumes locais e a ancestralidade, que não foram devidamente considerados no EIA RIMA, traria ainda a contaminação, poluição e devastação das formas de vida pampeanas. 

Enquanto empresas mineradoras extraem vida, povos tradicionais a colocam no centro propondo a valorização da natureza 

Artesanato quilombola, ervas utilizadas pelo povo de terreiro, pinheiro araucária e pilão quilombola | Fotos do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e da FLD

O apoio do MPF em solicitar suspensão da LP Projeto Três Estradas é uma vitória dos povos indígenas, quilombolas, pomeranos, ciganos, de terreiro e tradicionais de matriz africana. Vitória de pessoas pescadoras artesanais, pecuaristas familiares e benzedeiras. Ela repercute para todo estado e reverbera no país, dando força às lutas que seguem. Aristimunho faz a síntese do porque esse comprometimento é tão importante para os pecuaristas familiares da região: “A permanência e reprodução do modo de vida de pecuaristas familiares, que há gerações vivem da pecuária familiar. Criando e cuidando de gado bovino, ovino, cavalos e outros pequenos animais, produzindo alimentos para suas famílias e gerando renda naquela região, convivendo e conservando a partir dos seus usos aqueles ecossistemas que compõem os campos nativos da região. Não será um projeto, como o proposto, que trará desenvolvimento econômico. Pelo contrário, esse projeto gerará destruição ambiental e pobreza a longo prazo no município. Essa luta contra a mineração em Lavras do Sul tem fortalecido comunidades de pecuaristas familiares no estado todo, pela defesa do Bioma Pampa”.

O projeto Três Estradas, da Águia Fertilizantes, encontrou respaldo em figuras, governos e políticas que visam a privatização da vida e o avanço do capital, que para a concentração de poder econômico e político de poucos colocam toda a sociobiodiversidade em cheque. Ignorando ainda toda a poluição e os impactos na emergência climática causados por projetos extrativistas. Teve resguardo de setores da política institucional que desconsideram os impactos ecológicos, a preservação dos biomas e as consequências negativas para os povos. Levando isso em consideração, os documentos entregues ao MPF pela articulação em luta fizeram referência aos planos e políticas na área da mineração que vêm sendo construídos pelas empresas em associação aos governos, sem participação da sociedade civil. A exemplo do Plano Energético do RS para o período de 2016 a 2025, do Plano Estadual de Mineração-RS e da Política Estadual do Carvão Mineral e da instituição do Polo Carboquímico do RS (Lei 15.047 de 2017). 

Setores e políticos que defendem o projeto Três Estradas comunicam a que vieram. Em recentes reportagens sobre evento da pecuária industrial previsto para acontecer em Lavras do Sul, a Águia Fertilizantes é citada positivamente pelo deputado Paparico Bacchi, líder da bancada do Partido Liberal (PL) na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.  Complementando esse posicionamento que tanto ameaça os povos e territórios, a Câmara de Vereadores de Lavras do Sul ofereceu congratulação ao gerente geral da Águia. E ainda a nível municipal, a prefeitura de Lavras do Sul tentou junto a Águia sensibilizar a opinião pública para passar o projeto. Além disso, o prefeito da cidade, Sávio Prestes (PDT), fez esforços e coalizões políticas para tentar viabilizá-lo. Ao contrário do discurso oficial da empresa e de seus aliados, as possibilidades de empregos, energia, cultura e produção no local não precisam, e nem devem, significar a destruição dos modos de vida tradicionais e do bioma. Aliás, a preservação destes é o requisito básico para a sobrevivência de todas as formas de vida que por ali transitam. Outras alternativas são possíveis, e já vêm sendo apresentadas pelos povos há muito tempo, com iniciativas de agroecologia e pecuária familiar, por exemplo. “Precisamos é que os gestores públicos em nível municipal, estadual e federal nos reconheçam como população tradicional, guardiãs e guardiões da sociobiodiversidade do Pampa, que somos. E criem políticas públicas específicas para a valorização do modo de vida de pecuaristas familiares, identidade sociocultural tão característica do bioma Pampa, considerando nossos modos de fazer, criar e viver como recentemente foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e também pelo Inventário Nacional de Referências Culturais Lida Campeira na Região de Bagé (RS)”, propõe Aristimunho.

Mulher do povo pomerano, artesanato indígena, milho crioulo e peça artesanal em lã ovina | Fotos do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e da FLD

Outro ponto crítico é que o Projeto Três Estradas e a mineração de fosfato para produção de fertilizantes fazem parte de uma lógica que pauta a alimentação via agropecuária industrial e expansão do agronegócio, em especial a soja e sua dependência por fosfato. Sendo este um modelo primário agroexportador que aprofunda a relação de dependência do país, desconsiderando ainda as formas de interação socioambiental e de preservação que são defendidas e implementadas pelos povos que há gerações preservam a sociobiodiversidade. Aristimunho explica: “A pecuária familiar e a agricultura agroecológica não dependem de fertilizantes químicos nem de fosfato para a produção de alimentos. Precisamos de políticas públicas de apoio e promoção da agroecologia e da pecuária familiar agroecológica, criando alternativas frente a dependência de fertilizantes químicos e insumos veterinários. Assim como estamos comendo veneno a partir dos produtos alimentícios da agricultura industrial, estamos também nos envenenando com produtos veterinários através da carne, oriunda da pecuária industrial”. 

A guerra contra as populações do campo, das florestas e das águas é ininterrupta. Assim como a luta dos povos que em sua coletividade, organização social e na prática cotidiana apresentam alternativas ao sistema colonial e ao seu extrativismo violento.  “Até quando vamos viver essa guerra que expropria os territórios e ameaça os modos de vida das populações tradicionais?”, indaga Aristimunho. 

Na contramão de perspectivas extrativistas exploratórias, que carregam em si a genealogia do desastre, está a organização popular. E dessa vez, a articulação da luta garantiu decisão positiva do Ministério Público Federal (MPF), em favor dos povos tradicionais do pampa e da comunidade de pecuaristas familiares de Lavras do Sul. O que significa, também, um passo a mais na caminhada pela preservação de toda a sociobiodiversidade do Pampa. Mas ainda há muita luta a ser travada. Embora o MPF tenha manifestado apoio, solicitando a suspensão da Licença Prévia (LP) do Projeto Três Estradas e também emitindo recomendação para a FEPAM suspender a LP (que não acatou), quem decide é a justiça, e o processo segue em tramitação, tornando possível que a Licença de Instalação (LI) do projeto seja concedida a qualquer momento.

Ervas do uso tradicional quilombola, povo cigano e roda da capoeira | Fotos do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e da FLD

A mineração tem em sua história a memória viva da destruição, das ruínas e da guerra. De Potosí para cá, a geografia mineira da América Latina remonta o tempo e o espaço de uma colonização que segue em curso. Numa articulação entre poder econômico, político e militar, os projetos mineiros trazem em seu cerne a expropriação, impondo um projeto de sociedade e de desenvolvimento que ruma ao colapso ecológico e humanitário.  Enquanto representa riqueza concentrada para alguns, para a grande maioria a mineração é a violência sedimentada, que se traduz no fim de seus modos de vida, na intoxicação de seus alimentos, na poluição de suas águas, na erosão do solo, na ameaça das relações comunitárias e na superexploração da natureza e do trabalho. A luta segue! É nos saberes dos povos tradicionais e na preservação de seus modos de vida, que sobrevivem há séculos de privação, que está a resposta para o coabitar em um mundo justo, sustentável e de bem viver.


No dia 12 deste mês, matéria publicada no Jornal Minuano aponta que a Águia Fertilizantes apresentou informações complementares sobre o Pedido de Licença de Instalação (LI), solicitadas pela FEPAM. A expectativa da empresa é de que, caso saia a LI, a operação da Águia comece em 12 meses.  A luta segue!

Quer saber mais sobre o Projeto Três Estradas? Não deixe de ler o artigo “A Experiência de Construção do Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul, na luta contra o avanço da nova fronteira mineral”, de Michele Cristina Martins Ramos e Eduardo Raguse, que integra o livro “Mineração: Realidades e resistências”

Aqui você confere mais sobre a temática no artigo “Rio Grande do Sul, Minas Gerais”, também do engenheiro ambiental Eduardo Raguse, do Comitê de Combate a Megamineração no RS e da Amigos da Terra Brasil

Clique aqui para conferir na íntegra as imagens utilizadas nessa reportagem, assim como galeria de fotos dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa

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