Amigas da Terra Brasil se soma à luta contra captura corporativa do Planejamento Urbano de Porto Alegre

Em 2 de abril, com apoio dos parceiros e das parceiras, a Amigas da Terra Brasil (ATBr) tomou posse no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) em Porto Alegre (RS), reafirmando seu compromisso por justiça ambiental e pela defesa do ambiente e das pessoas nas cidades.

A ATBr foi eleita em 27 de fevereiro para compor o CMDUA (também chamado de Conselho do Plano Diretor), mas sabe que essa gestão não será fácil. As instituições empresariais e imobiliárias da cidade estão fortemente articuladas para mudar leis e regramentos, isto para permitir construções e adensamentos populacionais com o objetivo de lucrarem com a especulação imobiliária. O cenário é de destruição das áreas verdes que ainda resistem na Capital em razão da construção de prédios caros que, em muitos casos, ficam vazios, enquanto centenas de pessoas seguem vivendo nas ruas e morando em condições precárias em ocupações.

A eleição da Amigas da Terra Brasil para a gestão 2024/2025 do CMDUA contou com o apoio de um coletivo de organizações e entidades sociais. Estamos entre as nove entidades não governamentais que integrarão o conselho responsável por definir as novas regras urbanísticas da capital gaúcha, especialmente a revisão do Plano Diretor, que está em andamento. Ao todo, concorreram 75 organizações para as vagas das entidades da sociedade civil. A Amigas da Terra Brasil ocupará uma das vagas das entidades Ambientais e Instituições Científicas, junto com a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes-RS), reeleita para o conselho.

A união dessas entidades foi, inclusive, o que garantiu a realização da eleição. Aproveitando-se da pandemia, o governo do prefeito Sebastião Melo havia prorrogado por cinco vezes a continuidade do conselho, sem fazer novas eleições. Uma ação judicial movida por cidadãos proibiu que o velho conselho se perpetuasse e impediu que a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre pelo CMDUA fosse votada ou deliberada sem que as novas conselheiras e conselheiros fossem empossados.

Fernando Campos, da ATBR e o suplente Arq. João Rovatti professor titular aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS durante posse do CMDUA

De acordo com Fernando Campos Costa, conselheiro pela Amigas da Terra Brasil para o CMDUA, Porto Alegre é uma cidade de luta e disputa. Embora, historicamente, tenhamos conquistado o direito de participação, legislações e de regras democratizantes, tais conquistas sempre se deram de forma limitada, pois não chegaram a romper com privilégios à burguesia.

“Porto Alegre vive um sufoco, um afogamento. Estamos há muito tempo sem respirar, sem criar, sem criatividade. Hoje, a cidade vive a mediocridade do capital neoliberal que desterritorializa e homogeneíza o mundo inteiro com suas mesmices culturais que excluem as diferenças construídas pelas realidades específicas de cada lugar. A nossa cidade precisa acordar, dar um basta, reagir, lutar contra as corporações que lucram e exploram a cidade e seus moradores”, comenta Fernando.

Posse do CMDUA na Câmara de Vereadores de POA

O setor imobiliário vem comandando a prefeitura de Porto Alegre. Com o velho CMDUA não era diferente. As propostas de alteração ou destruição do nosso Plano Diretor explicitaram o processo de captura corporativa. A eleição do novo CMDUA representou um retrocesso, pois a comissão eleitoral composta somente pela prefeitura e não por entidades, como sempre ocorreu, permitiu a participação de um grande número de entidades que não fariam parte se as regras fossem seguidas – de entidades de classe e afins do urbanismo. 

A busca de um conselho que realmente seja um alento para os que desejam uma Porto Alegre inclusiva e que alie a defesa do meio ambiente com as formas de vida, de moradia digna e de subsistência econômica da população e dos trabalhadores e das trabalhadoras fica mais distante, pois o CMDUA está capturado por quem visa o lucro, por quem comercializa a nossa vida na cidade. 

Eleição para conselheiros CMDUA

“Existe a expectativa de mudança, de vencer a extrema direita e a lógica do mercado na nossa cidade. O CMDUA, hoje, é onde a especulação imobiliária se alojou por meio do setor da construção civil, internacional, nacional e local. Hoje, eles entram com uma carne de pescoço e saem com um filé. A Amigas da Terra vem para somar com diversas iniciativas, organizadas ou não, que se indignam com a lógica corporativa imposta em Porto Alegre. O CMDUA é uma ferramenta de incidência no planejamento urbano e fonte de informações, garantindo visibilidade para a promoção de direitos para os territórios urbanos e rurais da cidade de porto alegre”, avalia Fernando.

Jussara Kalil Pires, socióloga e vice-presidenta da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental do Rio Grande do Sul (ABES RS) e Letícia Paranhos, presidenta da ATBr


Amigas da Terra Brasil

As mudanças climáticas, os crimes corporativos e a injustiça ambiental

COP28 mantém a hipocrisia dos espaços multilaterais internacionais do clima. Enquanto Estados tentam redesenhar os Acordos de Paris, manipulando a contabilidade das reduções das emissões e a polêmica sobre o financiamento do clima, empresas transnacionais hegemonizam as discussões com as propostas de solução “verde”. Tais propostas envolvem investimentos do capital financeiro no uso de hidrogênio verde, em geração de energia eólica e solar e em eletrificação de carros, todas respostas pensadas nos termos de uma economia extrativa com impactos desproporcionais no Sul Global, aprofundando desigualdades e injustiças ambientais.

Enquanto isso, o Brasil acumula muitas contradições ao seguir mantendo sua subordinação às empresas transnacionais. Na própria COP 28, a tenda Brasil, organizada pelo governo, com o lema “Brasil unido em sua diversidade a caminho do futuro sustentável”, contava com painéis das empresas Vale S.A e Braskem, duas mineradoras responsáveis pelos maiores crimes socioambientais do país. Além delas, o Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas),  mecanismo promotor da responsabilidade social corporativa, teve seu espaço na tenda. O que corporações conhecidas nacionalmente pela violação aos direitos humanos e ambientais dos povos, e o instrumento corporativo de “lavagem verde e social” têm para construir e agregar à nossa nação?

A Vale S.A, BHP Billiton Brasil Ltda. e Samarco Mineração S.A são responsáveis pelos rompimentos das barragens de Fundão, na cidade de Mariana, e Córrego do Feijão, em Brumadinho, ambas no estado de Minas Gerais – afora outras diversas barragens de rejeitos em risco de rompimento no país. Por anos, a empresa vinha sendo alertada pelos órgãos de fiscalização da necessidade de reforço da segurança das minas. Inclusive, especialistas apontam para o risco do uso de determinadas tecnologias no manejo do rejeito. Nenhuma das políticas corporativas conseguiu conter a destruição. E vale ressaltar que, nesses oito anos do desastre de Fundão, as vítimas seguem buscando indenização. O que os casos revelam é a reprodução de uma arquitetura da impunidade corporativa.

No caso da Braskem, a história se repete. Desde os anos 80, a sociedade civil e pesquisadores da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) alertam para as consequências da expansão da extração de sal-gema em Maceió, em Alagoas. Por décadas, a empresa extrai sal-gema, transformando o subsolo da cidade em várias crateras. Moradores da região atingidos denunciam rachaduras nas casas, cuja responsabilidade a empresa negava. Em 2018, quando ocorreu o terremoto na cidade, bairros vieram abaixo. A mineradora iniciou sua atividade instalando em um santuário ecológico estuarino; não havia dúvidas de que a destruição ambiental começava ali.

Importante destacar que os setores corporativos do agronegócio, mineração, construção civil, imobiliário e de energia têm flexibilizado a legislação. Temos tido eventos climáticos extremos resultantes das alterações do clima em função dos impactos gerados pelas corporações nos últimos séculos.  A diferença entre os crimes de Brumadinho, Mariana, Maceió e das enchentes na região de Maquiné e do Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul; em Teresópolis, no Rio de Janeiro; em Santa Catarina e em Minas Gerais é o tempo. Alguns  demoram centenas de anos para recuperar, ainda que parcialmente, a qualidade de vida das pessoas e a integridade dos ecossistemas e outras dezenas; o certo é a impunidade dessas empresas e a violação dos direitos dos povos, que estão no plano de negócios. Não é acidente, é parte do plano. Sabiam que aconteceria e que o lucro seria maior em não fazer nada do que investir em soluções reais. Assim, a impunidade segue do lado das corporações e dos Estados capturados.

Quanto ao tema da energia, no regresso da COP28, o governo brasileiro, via ANP (Agência Nacional do Petróleo), decidiu disponibilizar em leilão 603 blocos para exploração de petróleo e gás, em regiões que incluem a afetação à Amazônia brasileira. O leilão de poços irá permitir que mais empresas transnacionais venham ao país determinar os rumos de nosso desenvolvimento e reduzindo, também, a capacidade do Estado em construir, com participação popular, uma política necessária de transição energética justa para a classe trabalhadora, incluindo perspectivas da justiça ambiental e do feminismo popular. Ao invés disso, mais destruição e impactos anunciados, na contramão de um movimento de redução dos combustíveis fósseis, que foi a tônica desta COP depois de 28 conferências realizadas desde 1992.

Movimentos populares e organizações feministas têm denunciado o avanço dos aerogeradores para produção de energia eólica no Nordeste e sua relação com a violência de gênero. No polo da Borborema, na Paraíba, a instalação de parques eólicos têm alterado toda a dinâmica de produção camponesa. No litoral do Ceará, a instalação de eólicas em alto mar atrapalha a produção pesqueira, afetando pescadores e ribeirinhos. Evidenciando a contradição entre o uso de soluções tecnológicas e a sua aplicação concreta, que segue causando conflitos socioambientais.

Não podemos deixar de mencionar o papel do Congresso Nacional. O Senado Federal, como alavanca da modernização conservadora no país, aprovou, ao final de novembro, o PL 1459/2022, que flexibiliza, ainda mais, a liberação de agrotóxicos no país. Apesar dos inúmeros estudos científicos, posicionamento de Conselhos e órgãos de classe, como CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), que alertam para as perdas da biodiversidade e do risco de aumento das doenças, como câncer, relacionadas ao uso intensivo de agrotóxicos no país. O Congresso aprova, e a Presidência tem dificuldade de veto.

Nesse cenário, observamos que as soluções para a crise climática são pensadas pelos mesmos agentes causadores delas: as grandes corporações. A história ambiental nos revela como a intensificação da destruição ambiental está relacionada ao avanço da industrialização capitalista, na promoção de um desenvolvimento desigual. No qual, países do Norte Global saíram na frente na corrida imperialista, destruindo comunidades, territórios, escravizando populações e colonizando a natureza, cujos efeitos profundos são sentidos pelas atuais gerações. São os países do Norte Global e organismos multilaterais que promovem a atuação das empresas transnacionais, facilitando seu processo de acumulação por dependência.

Desse modo, qualquer solução pensada nos termos atuais das relações sociais internacionais, e de sua base, as relações sociais de produção capitalista, são mecanismos para seguir mantendo a ordem de destruição socioambiental.

Seguimos nos desencontrando, enquanto promovemos um discurso internacional avançado, e não sabemos transcender as políticas internas desenvolvimentistas apoiadas pela burguesia nacional. Dessa forma, terminamos fazendo um grande pacto de mediocridade, concedendo continuamente nossa soberania às corporações.

É a agroecologia que esfria o planeta, produzindo sem veneno alimentos saudáveis

Na construção de um Brasil novo, que seja o país do seu povo, não um país sustentável, mas um país ecológico e com justiça ambiental, é preciso aprender com as nossas práticas cotidianas, povos do campo, águas e florestas e, também, com as periferias das cidades, para manter a terra viva, suas culturas e  biomas,  onde estão as soluções para a crise climática. É a agroecologia que esfria o planeta, produzindo sem veneno alimentos saudáveis. São as Terras Indígenas demarcadas, convivendo com outras relações de produção da vida no território, assim como as terras quilombolas, os territórios de povos e comunidades tradicionais.

A nossa história não permite aceitarmos que as corporações sejam soluções, um mundo dirigido pelo crescente poder corporativo que só tem nos levado às múltiplas  crises e aos desastres socioecológicos. Precisamos, com urgência, responsabilizar as corporações pelos seus crimes corporativos. São 37 anos de impunidade do empreendimento de sal-gema em Maceió; são séculos de impunidade das mineradoras e das grandes plantações transnacionais no solo brasileiro. Em face disso, a responsabilização das empresas e a regulação estatal do setor é fundamental. Por isso, a proposta do PL n.º 572/2022 deverá ser uma pauta prioritária dos povos para 2024.

Um Brasil livre e soberano, construindo um projeto político de libertação para si e para os povos da América Latina e Caribe, é a nossa urgência. Chega de falsas soluções! Chega de impunidade corporativa.

Coluna originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, em 21 de dezembro de 2022, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/12/21/as-mudancas-climaticas-os-crimes-corporativos-e-a-injustica-ambiental 

Ninguém tem que sair para onde não quer: decisão judicial reconhece direito à nova opção de moradia para famílias da Nazaré

Apesar do reconhecimento do direito a uma nova alternativa a quem não aceitar a remoção para o Timbaúva ou para o loteamento Nosso Senhor do Bom Fim, decisão judicial retrocede em pontos importantes, dando aparência de legitimidade às violações de direitos promovidas por Fraport e prefeitura de Porto Alegre. Desejo das cerca de 2 mil famílias é de permanecer na região onde construíram suas raízes há mais de 60 anos.

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Ao andar pelas ruas da Vila Nazaré, zona norte de Porto Alegre, percebe-se logo o abandono: não há saneamento, as poças se multiplicam e invadem as casas em dias de chuva, o lixo não recolhido se acumula pelos cantos. O posto de saúde foi fechado; a escola infantil também. Serviços básicos de infraestrutura, como iluminação pública e pavimentação de ruas e calçadas, são inexistentes. Completam a cena as paredes reduzidas a escombros que surgem ora à direita ora à esquerda, em sequência: são os restos das casas de quem já aceitou sair da comunidade e se mudou para o loteamento Nosso Senhor do Bom Fim (cerca de 120 famílias, o que representa aproximadamente 5% do total de habitantes da Vila Nazaré). O abandono do poder público é tamanho que faz da vida no local quase insuportável: e eventualmente as pessoas cedem, cansadas de ver o esgoto invadindo seus terrenos, aceitando sair de suas casas mesmo que para longe e para apartamentos menores. “Pelo menos lá tem calçada, tem saneamento”, muitos pensam, sem perceber a tática usada por poderes públicos e privados para criar, nas moradoras e nos moradores, o desejo pela saída.

Mais preocupante, porém, é a Justiça não identificar essa velha tática: as decisões publicadas na noite da última quarta-feira (13/8) a respeito do processo de remoção das famílias da Vila Nazaré ignoram diversas violações de direitos cometidas por prefeitura de Porto Alegre e Fraport (empresa alemã concessionário do aeroporto), que não são poucas e vêm sendo denunciadas há tempos. Em qualquer conversa com moradoras e moradores da comunidade, as denúncias não demoram a surgir:

– Existem ainda famílias não cadastradas, o que impossibilita o argumento utilizado por Fraport e prefeitura (e aceito pela justiça sem nenhuma verificação) de que há apartamentos para todos. Afinal, como isso poderia ser afirmado sem que se saiba exatamente quantas pessoas vivem na comunidade?
– O cadastro foi feito de maneira intimidatória, com a presença de soldados da Brigada Militar;
– A Itazi, contratada pela Fraport para realizar o cadastramento, não foi transparente em seu questionário e seus métodos. Eram feitas perguntas descabidas e sem nenhuma relação com o processo de remoção – por exemplo, sobre antecedentes criminais. A Itazi, aliás, orgulha-se em seu site da “agilidade que consegue impor ao processo expropriatório”; ou seja, da rapidez com que consegue expulsar as famílias que estão no caminho de grandes empreendimentos;
– Há denúncias de ameaças veladas por parte do Demhab (Departamento Municipal de Habitação), cujos funcionários informam àqueles que não aceitam a remoção para o Timbaúva que ficarão sem casa;
– Terrenos habitados por mais de um núcleo familiar estão sendo considerados como uma única casa – assim, famílias de sete ou oito pessoas que viviam em casas separadas, mas em um mesmo terreno, serão forçadas a dividir um único apartamento;
– Famílias estão sendo divididas, indo parte para um loteamento, parte para outro. O critério, segundo o próprio Demhab, é sorteio;
– Forçadas a tomar uma decisão, as famílias não são informadas sobre a terceira opção, a ser ainda oferecida pela Fraport e pela prefeitura de Porto Alegre a quem se negar a ir para o Timbaúva ou para o Nosso Senhor do Bom Fim – quer seja uma indenização financeira, quer seja um novo loteamento a ser construído na região onde hoje está a Nazaré.

 

Esses são só alguns exemplos: as denúncias são várias, muitas delas documentadas. Mas para ouvi-las, é claro, é preciso ir até lá, escutar as pessoas e tentar entender a realidade local. A voz das pessoas atingidas, porém, não tem sido ouvida pelas autoridades ao longo do processo.

Ainda assim, apesar de diversos entendimentos equivocados, a decisão judicial é clara em um ponto crucial: ninguém deverá sair para onde não quer ir. Ou seja, não deverão ocorrer remoções forçadas: as famílias que não aceitarem o que está sendo agora ofertado deverão ser contempladas com outra opção de moradia, a ser oferecida por Fraport e prefeitura de Porto Alegre. Segundo os planos iniciais da empresa alemã e do prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr. (PSDB/MBL), cerca de 85% das famílias da Nazaré seriam removidas para o Loteamento Irmãos Marista, no Timbaúva, bairro Rubem Berta. As famílias da Nazaré, porém, já deixaram bastante claro que não querem ir para este local: em audiência pública promovida pelo então deputado estadual Pedro Ruas (PSOL) – quando a Fraport recusou sentar-se à mesa e responder aos questionamentos da comunidade -, a principal exigência das famílias foi gritada por todas e todos os presentes: Timbaúva não! Hoje o lema estampa bandeiras e faixas usadas em protestos realizados na região e é uma das demandas mais marcantes na luta da comunidade pelos seus direitos. O desejo das famílias é permanecer na região onde há 60 anos nutre suas raízes sociais e familiares.

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Quem possui comércio na vila também demonstra grande preocupação: como manter a sua forma de sustento em outro lugar, perdendo os laços e a confiança construídas dentro da Nazaré? A promessa de que comércios serão considerados no realojamento das famílias é recente, fruto da pressão popular: ainda assim, não há nenhuma garantia de que será cumprida – afinal, desde o início o processo ocorre sem nenhuma transparência e com pouca informação.

Muitas famílias sobrevivem graças ao trabalho com reciclagem; indo para pequenos apartamentos no Timbaúva, o serviço ficará impossibilitado, seja pela distância dos locais de coleta, seja pela falta de espaço para armazenamento dos materiais. Quem possui animais também se assusta: há um limite de cães e gatos por apartamento; com isso, muitos animais serão deixados para trás. Além disso, as famílias que possuem horta e plantações em seus terrenos verão comprometida também a sua soberania alimentar, já que não conseguirão manter seus modos de vida nos pequenos apartamentos do programa Minha Casa, Minha Vida.

E eis outra questão importante: os loteamentos Nosso Senhor do Bom Fim e Irmãos Marista foram construídos com investimento público para enfrentar o déficit habitacional de Porto Alegre. Por sua vez, o contrato de concessão é claro ao afirmar a Fraport como responsável pela remoção das famílias. Logo, além de ser obrigada a apresentar uma nova alternativa que contemple o desejo das famílias de permanecer na região, a empresa alemã deve ressarcir o Estado brasileiro em relação às casas que ocupar nos lotes do Minha Casa, Minha Vida – é a Fraport, afinal, que deve abarcar todos os custos do realojamento (inclusive os relativos à construção dos empreendimentos). Além disso, a maioria das casas da Nazaré é mais ampla e está em terrenos maiores que os dos loteamentos propostos – onde quase todas as unidades são apartamentos. É direito das famílias serem ressarcidas pelas suas casas, e não apenas trocar um lugar maior e melhor por apartamentos menores e mais distantes.

Nenhum desses fatos, denunciados primeiro pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e pela Amovin (Associação dos Moradores da Vila Nazaré) – que então acionaram os Ministérios Públicos Estadual e Federal e as Defensorias Públicas Estadual e da União -, parece sensibilizar a Justiça. Na linguagem rebuscada do Direito, quase que de maneira incompreensível, é dito não haver problemas relacionados à remoção das famílias; que o que está acontecendo é normal e as soluções apresentadas até agora são suficientes. Durante audiência no início de agosto, prévia a estas decisões, foram ouvidos na Justiça Federal os autores da ação civil pública (que são os Ministérios Públicos Federal e Estadual e as Defensorias Públicas da União e do Estado) e os réus (prefeitura de Porto Alegre e Fraport, além da União e da ANAC [Agência Nacional de Aviação Civil]). Centenas de moradoras e moradores foram até o prédio da Justiça Federal, mas foram impedidos de participar da audiência que definia os seus futuros.

Talvez, da sala do quarto andar onde ocorria a audiência, os gritos das famílias que se recusaram a voltar para casa sem passar seu recado tenham sido ouvidos. Com faixas e cantos, permaneceram por horas em vigília em frente ao local: mais tarde, em sua decisão, a juíza substituta da 3ª Vara Federal de Porto Alegre Thais Helena Della Giustina reafirmou o fato de que nenhuma família poderá ser expulsa de sua casa contra a sua vontade: há mais de meio século naquele território, as famílias da Nazaré tem a posse de suas terras. Têm direitos. Assim que a juíza afirma:

“Quanto às famílias que motivadamente recusarem a remoção para as unidades oferecidas nos loteamentos Senhor do Bom Fim e Irmãos Maristas, após a realização de sorteio e observadas as prioridades estabelecidas, há de ser desenvolvida, oportunamente, solução junto ao DEMHAB, Município de Porto Alegre e Fraport […]”.

Ou seja: a recusa em ir ao Timbaúva, já expressa pela comunidade, gerará a obrigação da construção de uma terceira alternativa de moradia às famílias. A decisão judicial, porém, é muito reticente, jogando para um futuro incerto a decisão sobre esta terceira opção, que pode ser tanto um novo loteamento na região como a devida indenização financeira pelas casas, terrenos e comércios. Mas o atraso e a falta de firmeza da Justiça podem ser fatais: como as pessoas podem decidir livremente sem sequer saber quais são todas as suas opções? Como garantir que a terceira via será mesmo respeitada, em especial se poucas famílias resistirem ao medo e ao descaso e permanecerem na Nazaré, em meio a escombros? E como garantir também que, por lutar por seus direitos, essas famílias não serão penalizadas mais tarde? A estigmatização de quem luta por seus direitos acontece com frequência: há, hoje, uma forte campanha difamatória na imprensa contra as famílias da Nazaré.

Essas são perguntas que seguem sem resposta. Por isso, a luta continua: novas etapas judicias se seguirão e a comunidade manterá sua mobilização. No dia seguinte à publicação da decisão judicial, uma assembleia realizada por moradoras e moradores, pela Amovin e pelo MTST debateu as questões levantadas no processo e planejou os próximos passos, reafirmando o espírito coletivo da luta e de união da comunidade. No dia 27/8, terça-feira, uma audiência na Cuthab (Comissão de Urbanização, Transportes e Habitação), da Câmara de Vereadores, será uma nova oportunidade para fazer ouvir o grito das famílias da Vila Nazaré, que contra todas as injustiças permanece unida e em luta por seus direitos. Vale frisar: a luta da comunidade não é contra o aeroporto; é simplesmente pela garantia dos seus direitos fundamentais.

Hoje, crianças brincam sobre o cimento partido, os azulejos quebrados e o metal retorcido dos escombros das casas. O rastro de destruição deixado pelos tratores do Demhab simboliza bem a política habitacional posta em prática pela prefeitura de Porto Alegre no caso da Vila Nazaré (e de tantas outras comunidades antes, como a Vila Dique, a Ocupação Progresso e a Vila Tronco): a expulsão de famílias pobres sempre para mais longe, sem que tenham seus direitos respeitados, afastadas do centro da cidade e de serviços básicos de educação, saúde e transporte público.

Há tempo ainda para que não se repitam os erros do passado, mas para isso as autoridades tem que fazer o oposto do que tem feito até agora, e ouvir as pessoas.

[Leia aqui a íntegra da decisão da Justiça]

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