As empresas transnacionais precisam ir ao banco dos réus

 

O processo de acumulação de riquezas do capitalismo concentrou poderes políticos, econômicos e culturais nas empresas transnacionais. A partir dos anos 90, essas empresas começaram a descentralizar a produção em cadeias globais de valor, fragmentando sua estrutura produtiva em vários países, buscando as melhores condições de exploração do trabalho, da Natureza e se beneficiando da dependência dos países do Sul Global de investimentos estrangeiros diretos.

Neste período, aprofunda-se a financeirização das corporações, quando se transformam em gigantes sociedade anônimas, divididas em vários acionistas, que por sua vez, são vários fundos de investimento compostos por inúmeros investidores. Em suma, uma estrutura completamente fragmentada e pulverizada, que se constitui como grande obstáculo para a responsabilização dessas empresas.

Para atender as exigências do mercado financeiro, as empresas transnacionais organizam complexas estruturas de governança corporativa. Assim, nos últimos 20 anos, são desenhadas modelagens por economistas e administradores, nas quais se constitui uma imagem de gestão eficiente, com renomados direitos (CEOs), conselhos administrativos, assembleia de acionistas e relatórios financeiros e de sustentabilidade. Tentando emplacar uma nova imagem, as empresas transnacionais são cercadas de certificadoras, auditorias independentes, compliance e programas de responsabilidade social corporativa (em sua versão renovada ESG). Esses mecanismos compõem uma rede de negócios corporativos criada e alimentada para nos fazer crer que as corporações não são o problema, pelo contrário, são parte da solução.

A depravação é tão profunda, que as empresas transnacionais, há muito tempo, têm substituído o papel do Estado, já que são consideradas entidades muito mais eficientes. Isso ocorre por meio das parcerias público-privadas, concessões, permissões; por esses instrumentos, o Estado tem transferido à iniciativa privada o controle de atividades públicas fundamentais para a dignidade da vida. Observamos esta situação na concessão de estradas e aeroportos, como o de Porto Alegre (RS) à Fraport; a privatização de serviços públicos essenciais, como água e eletricidade; a autorregulação e fiscalização no meio ambiente etc.

Durante a pandemia, as empresas transnacionais impulsionam ações assistencialistas, tais como doação de máscaras e cestas básicas, compondo Solidariedade S.A. Enquanto vendia uma boa imagem pública, essas empresas obtinham lucros extraordinários, em muitos casos, às custas de exceções às barreiras sanitárias e superexploração de trabalhadores. Cabe mencionar, ainda, que todas essas políticas de doações resultam em redução de impostos para essas corporações.

O efeito perverso é que substituímos a administração pública por “gestão pública” ou “governança”, atores sociais legítimos por “partes interessadas”; desconsideramos assimetrias históricas de poderes em prol da força do “consenso”. Isso não é apenas uma mudança de linguagem, mas uma profunda alteração ideológica do papel do Estado. Ou melhor, o enraizamento cotidiano do neoliberalismo.

Ao transpor essas narrativas aos conflitos socioambientais, observamos que as empresas transnacionais assumem o controle político, econômico e cultural da crise. Por isso, nos casos de violações de direitos humanos, diante desta “legitimidade social”, as empresas transnacionais controlam as políticas reparatórias nos territórios. Diante disso, as comunidades atingidas não dispõem de proteção estatal, nem mesmo mecanismos de paridade de armas. Logo, terminam por se situar entre a cruz e a espada nas escolhas, uma vez que seus modos de produção de vida foram destruídos, não possuem condições materiais para sustentar suas vidas, estão marginalizadas na periferia decisória, são obrigadas a aceitar as propostas corporativas para sobreviver. Além disso, o discurso do consenso e da eficiência destrói completamente as dinâmicas de tempo dos conflitos, desarticulando as capacidades de mobilização das comunidades.

A responsabilidade social corporativa e a ética dos negócios existem há pelo menos 40 anos e não foram capazes de resolver os problemas causados pelas empresas transnacionais. Os Princípios Orientadores de Empresas e Direitos Humanos (2011) não passam de uma carta de vontades que desconhecem a realidade dos territórios. Os casos recentes no Brasil demonstram que não há boa vontade empresarial; no rompimento das barragens de rejeito da mineração de Fundão em 2015 e do Complexo Feijão em 2019, em Minas Gerais, em ambos os casos as empresas conhecem os riscos de ruptura e, mesmo assim, optaram por continuar as atividades. O mesmo ocorreu com a destruição dos bairros da capital de Maceió (Alagoas) pela extração de sal-gema, o escândalo financeiro recente das Lojas Americanas e até o trabalho escravo nas vinícolas do Rio Grande do Sul. Em todas essas situações, havia ciência dos riscos que as atividades empresariais teriam e, mesmo assim, medidas não foram tomadas; pelo contrário, utilizou-se da responsabilidade social corporativa como uma maquiagem dos problemas.

Estudos recentes comprovam a hipocrisia. O Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) realizou uma investigação sobre empresas acusadas de crimes ambientais. Mais de 340 empresas envolvidas em crimes ambientais, como extração ilegal de madeira, possuem certificação ambiental.  Em 2022, uma das vinícolas envolvidas com as denúncias de trabalho escravo no Rio Grande do Sul, Família Salton, passou a integrar o Pacto Global. Para ingressar no Pacto, maior iniciativa de sustentabilidade no mundo, supostamente as empresas devem ter altos padrões de respeito aos direitos humanos.

Em realidade, se as práticas de responsabilidade social corporativa fossem efetivas, ou mesmo a autorregulação empresarial, o número de casos tomaria uma escala decrescente e não crescente. De igual modo, não haveria tantas necessidades de reformulações e rearranjos se o desenho de tais propostas fosse eficaz. Não há, portanto, qualquer efetividade dessas medidas para resolver o problema das violações aos direitos humanos por empresas transnacionais.

Propostas à margem: o PL nº 572/2022

Em 2022, após uma longa construção da sociedade civil e movimentos populares, apresentou-se o PL nº 572/2022 em trâmite na Câmara dos Deputados. A proposta é ousada, ao criar o primeiro marco legal de direitos humanos e empresas no mundo. A iniciativa, ao contrário de outros intentos, está centrada nas necessidades dos povos de manter seus modos de produção de vida e o controle de seus territórios, situando-os como protagonistas das situações de conflito.

O PL não ignora a presença de diferenças históricas de constituição do poder, buscando justamente estabelecer medidas concretas para que as populações afetadas por empresas, especialmente transnacionais, possam realmente participar e chegar a outros desfechos dos casos. Reconhecer a existência de uma “arquitetura da impunidade corporativa” e pensar medidas para transformar a perspectiva de responsabilização nesses casos.

É precisamente por isso que o PL não é mais um marco de voluntariedade das empresas, nem tampouco se limita a conferir um papel de “dever de verificar” para as companhias. Sua centralidade está nas necessidades dos povos, diante de problemas concretos enfrentados. E apenas este olhar permite superar paradigmas.

Ao longo de toda esta semana, organizações e movimentos estarão em Brasília articulando uma agenda propositiva ao Poder Executivo e Legislativo. A Campanha pelo PL iniciou-se em 2022 no FOSPA (Fórum Social Pan-Amazônico) e tem como base as mobilizações pelo fim da impunidade corporativa. Segundo Letícia Paranhos, da Amigos da Terra Brasil, entidade que faz parte da construção da Campanha Nacional pelo PL, “o projeto de lei é uma oportunidade para que o Brasil seja pioneiro no tema de direitos humanos e empresas, dando o devido destaque ao protagonismo das comunidades e povos que são atingidos pela atuação dessas empresas. Reforçar a importância de respeitar e efetivar os direitos dos povos, e estabelecer regras para as empresas”.

Ojalá que no novo clima de Brasília, os representantes possam estar atentos às questões cadentes que nos atravessam neste momento, e repensar o desenho de projetos políticos conferindo maior autonomia aos povos e soberania estatal. É urgente sairmos das teias do poder corporativo global, e fortalecer as formas outras de produzir e pensar o mundo, assumindo uma centralidade na produção e reprodução da vida humana.

Coluna publicada originalmente no Jornal Brasil de Fato, no link: https://www.brasildefato.com.br/2023/03/14/as-empresas-transnacionais-precisam-ir-ao-banco-dos-reus

8ª Sessão de Negociações do Tratado Vinculante na ONU: os povos afetados exigem normas vinculantes para as empresas transnacionais, a nível local e internacional

As grandes empresas estão devastando o meio ambiente e as vidas humanas em todas as partes do mundo. Os Princípios Orientadores das Nações Unidas (ONU) e a abordagem de devida diligência não conseguiram conter a impunidade empresarial. É urgentemente necessário um instrumento internacional juridicamente vinculativo para regular as empresas transnacionais em matéria de direitos humanos, tal como o que está sendo atualmente negociado na ONU. Também são necessárias leis nacionais que se baseiem e deem suporte a este tratado internacional.

Normas vinculantes para as grandes empresas 

A indústria do gás está provocando destruições em Cabo Delgado, na zona norte de Moçambique, e fomenta violações de direitos humanos, pobreza, corrupção, violência e injustiça social. Durante décadas o Estado de Israel e sua empresa Mekorot negaram à população palestina o acesso e controle de suas terras, fronteiras e recursos naturais. As comunidades do Brasil seguem esperando indenização e justiça frente ao colapso da represa da Vale/Samarco/ BHP Billinton, em 2019. Estas são apenas três das  incontáveis atrocidades que cometem as empresas transnacionais e que afetam, em particular, o Sul Global.  

Os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos são uma diretiva fraca e não vinculativa aprovada em 2011. Ainda que se estabeleça que “as empresas devem proceder com a devida diligência em matéria de direitos humanos”, o documento fracassou imensamente na hora de fazer com que as grandes empresas sejam responsabilizadas por suas violações destes direitos. 

A coordenadora do Programa de Justiça Econômica da Amigos da Terra Internacional, Letícia Paranhos, explica: 

“A devida diligência não tem sido de todo suficiente. É por isso que as pessoas celebraram uma vitória no Conselho dos Direitos Humanos da ONU em 2014. Com a adoção da Resolução 26/9, foi criado um novo Grupo de Trabalho Intergovernamental para negociar um Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos. Este foi um marco fundamental para pôr fim à impunidade empresarial”. 

De 24-28 de Outubro de 2022, realiza-se em Genebra a oitava sessão de negociações deste tratado.

As comunidades afetadas de todo o mundo, com o apoio da Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Pôr Fim à Impunidade (Campanha Global), estão liderando o processo da ONU com uma lista clara de exigências relativas ao conteúdo do Tratado Vinculante. Agora, um elemento fundamental da estratégia para os movimentos sociais é, também, a promoção de leis nacionais que complementem e sustentem o tratado internacional.

Lutas complementares contra as grandes empresas do Sul Global e do Norte Global

As lutas diárias enfrentadas pelas comunidades afetadas pelas corporações exigem também uma ação a nível nacional. Do Sul Global, onde operam a maioria das empresas transnacionais, para o Norte Global, onde estas empresas estão sediadas. Nos últimos anos, tem havido um movimento de leis nacionais em vários países. 

A lei da França sobre o dever de vigilância

Num momento histórico em 2017, a França aprovou uma lei sobre o “dever de vigilância” (devoir de vigilance) das empresas-mãe e subcontratadas. “Este foi o resultado de esforços incansáveis – anos de campanha – da sociedade civil e das comunidades afetadas pelas operações das empresas transnacionais francesas no estrangeiro”, diz Juliette Renaud da Amigos da Terra França. Para além dos desafios, esta lei é um passo em frente, pois “aborda a complexidade jurídica das empresas transnacionais com as suas múltiplas filiais e subcontratadas bem como as diferentes formas de relações comerciais que frequentemente utilizam para assegurar a sua impunidade”.

A lei já está sendo utilizada: em 2019, seis organizações francesas e ugandesas, incluindo a Amigos da Terra França e a Amigos da Terra Uganda, entraram com uma ação judicial contra a gigante petrolífera francesa Total por violações dos direitos humanos e danos ambientais potencialmente irreversíveis na Uganda e na Tanzânia. O processo, que foi o primeiro a ser instaurado com base na nova norma “dever de vigilância”, segue em curso.

Agora outros países da União Europeia (UE) estão seguindo os passos da França, como Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda, Finlândia e Luxemburgo, que atualmente estão analisando propostas 

No início de 2022, a UE divulgou a sua proposta de lei sobre a devida diligência obrigatória para as empresas em matéria de direitos humanos e meio ambiente. Infelizmente, na sua forma atual, a lei “não garante justiça nem responsabiliza as empresas pelos seus impactos climáticos“. Em resposta, 220 organizações apelaram à UE para que resolvesse as principais falhas da diretiva. A participação do bloco europeu no processo do Tratado Vinculante da ONU tem estado longe de ser exemplar: desde os estados membro que votaram no bloqueio contra a resolução 26/9 em 2014, até às várias tentativas de desandar o processo ao longo dos últimos anos de negociações.

O projeto de lei do Brasil sobre um marco para as empresas e os direitos humanos

Com o colapso da barragem de Mariana e Brumadinho ainda fresco na memória, a luta para frear os abusos empresariais no Brasil atingiu um ponto-chave em 2022. As violações dos direitos humanos neste gigantesco país latino-americano são moeda corrente. E o fato de que existam grandes empresas por trás de muitas destas violações não é uma surpresa.

Apesar da contínua devastação provocada por Bolsonaro, em Agosto de 2022 o Brasil formulou o projeto Lei Marco Brasileira de Direitos Humanos e Empresas (PL 572 de 2022). Cabe destacar que movimentos sociais, organizações da sociedade civil, acadêmicos e sindicatos de pessoas trabalhadoras participaram na redação do texto. O projeto de lei irá beneficiar os povos indígenas, povos quilombolas (afrodescendentes), as comunidades afetadas por violações dos direitos humanos e a classe trabalhadora. Estes são os grupos mais afetados pelas violações corporativas. 

De forma inovadora, o projeto de lei estabeleceria a primazia dos direitos humanos e incluiria obrigações diretas para as empresas transnacionais, o que é sem precedentes a nível mundial. Por conseguinte, poderia ser utilizado para responsabilizar as empresas por violações dos direitos humanos. A proposta em si é baseada nas experiências das comunidades afetadas no Brasil. Além disso, seriam atores-chave no estabelecimento de medidas de prevenção, controle e compensação. Isto é algo sem precedentes. O projeto de lei será posto em votação, mas ainda não foi definida uma data. 

“Claramente no caso do Brasil, o desejo de trabalhar a nível das bases para uma lei nacional foi em parte inspirado pela participação dos movimentos brasileiros no processo do Tratado de Vinculação da ONU”, afirma a brasileira Letícia Paranhos. A participação na Campanha Global fortaleceu a sua confiança e a capacidade de articular as suas exigências, o que abriu o caminho para uma forte participação a nível nacional. Esta lei nacional também será útil na criação de mecanismos para implementar normas internacionais dentro do Brasil.  

Letícia Paranhos acrescenta: 

“A América Latina está cansada da devida diligência e dos Princípios Orientadores, medidas que foram impostas de maneira neocolonial no Sul Global. A Lei Marco Brasileira De Direitos Humanos e Empresas está dentro do espírito da Campanha Global. Foi redigido com base na nossa proposta de Tratado Vinculante. Precisamos avançar nos nossos contextos nacionais com leis juridicamente vinculantes baseadas nas nossas demandas para o contexto internacional. Ao mesmo tempo, estas leis nacionais dariam respaldo a esse processo na ONU, para pressionar um instrumento internacional ambicioso verdadeiramente capaz de pôr fim à impunidade empresarial”.

*Texto divulgado originalmente no dia 26 de outubro de 2022,  no site da Amigos da Terra Internacional, no link: https://www.foei.org/es/grandes-empresas-pueblos-afectados-exigen-normas-vinculantes/ 

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