Madrugada de tensão e medo na retomada Xokleng Konglui, no Rio Grande do Sul

 

Homens armados se dirigiram à retomada e efetuaram disparos de armas de fogo contra a comunidade; não houve feridos, mas os Xokleng temem novos ataques

Na madrugada do último domingo (20), homens armados se dirigiram até a retomada Xokleng Konglui, em São Francisco de Paula, no Rio Grande do Sul, e efetuaram disparos de armas de fogo contra a comunidade. Relatos das lideranças dão conta de que o ataque ocorreu por volta das 2 horas da manhã, causando tensão e medo na comunidade que abriga anciões e crianças.

Embora não haja registro de feridos, os indígenas temem novos ataques e pedem ao Ministério Público Federal (MPF) providências. Também solicitam à Polícia Federal (PF) que faça patrulhamento na região.

“O ataque ocorreu por volta das 2 horas da manhã, causando tensão e medo na comunidade que abriga anciões e crianças”

Foto: Retomada Xokleng Konglui, em São Francisco de Paula (RS)

Foto: Retomada Xokleng Konglui, em São Francisco de Paula (RS)

 

Os Xokleng da retomada Konglui vivem nas margens da rodovia estadual RS-484, em frente à Floresta Nacional (Flona) de São Francisco de Paula, onde as famílias estão acampadas. A comunidade aguarda que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) cumpra com sua responsabilidade e proceda com os estudos circunstanciados de identificação e delimitação de seu território originário, que fica dentro da Flona, de onde, por força de uma liminar da Justiça Federal de Caxias do Sul (RS), foram removidos, explica Roberto Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul.

As famílias indígenas estão expostas a enorme vulnerabilidade. “A comunidade Xokleng, ao longo dos últimos anos, passou por muito sofrimento na beira da estrada. Chuvas, vendavais, ciclones, frio intenso, falta de saneamento, de água potável e de comida, além de um precário atendimento em saúde”, relata Roberto, que acompanha a comunidade há anos.

“As famílias indígenas estão expostas a enorme vulnerabilidade”

Foto: Retomada Xokleng Konglui, em São Francisco de Paula (RS)

Foto: Retomada Xokleng Konglui, em São Francisco de Paula (RS)

 

Tem sido cruel submeter idosos, crianças e adultos a viverem em condições degradantes, denunciam as lideranças. “Juízes, desembargadores, integrantes do governo federal, MPF, AGU [Advocacia-Geral da União], todos, sem exceção, conhecem nossa realidade, mas nada têm feito para assegurar nossos direitos. Com rigor enfrentamos no cotidiano a violenta falta de humanidade”, alerta a comunidade Xokleng Konglui.

A condição que lhes é imposta não é mero acaso. As florestas estão sendo privatizadas para a iniciativa privada. “Tudo vira ‘bioeconomia’, enquanto as ‘bioexistências’ dos indígenas acabam, dramaticamente aniquiladas”, relata Roberto.

“Tudo vira ‘bioeconomia’, enquanto as ‘bioexistências’ dos indígenas acabam, dramaticamente aniquiladas”

Foto: Retomada Xokleng Konglui, em São Francisco de Paula (RS)

Foto: Retomada Xokleng Konglui, em São Francisco de Paula (RS)

 

“O Cimi Regional Sul segue acompanhando o caso e, assim como os indígenas, espera que esse fato não se repita, que medidas urgentes sejam adotadas no sentido de garantir a segurança dos indígenas Xokleng e que se inicie, imediatamente, os estudos de demarcação daquele território ancestral, originário e pelo qual aquelas pessoas, à margem de tudo, no completo abandono, resistem e dão suas vidas”, explica Roberto.

“É preciso dar um basta nos crimes contra os originários filhos destas terras. Demarcação já, não ao marco temporal”, cobram os indígenas.

* Publicação retirada do site do CIMI Sul

 

Povos indígenas existem e resistem no Brasil

Em 2018, Jair Bolsonaro (PL) foi eleito com a promessa de não demarcar nenhuma Terra Indígena no Brasil. Passados quatro anos, nenhum território foi demarcado. Mas não apenas; a violência contra os povos indígenas se tornou crescente. Em relatório recente divulgado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) sobre a violência contra os povos indígenas, com dados coletados entre os anos 2019 e 2022, registrou-se 795 assassinatos, 407 conflitos relativos aos direitos territoriais, 1.133 invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio.

“O relatório do Cimi mostra que Bolsonaro criou – em seu governo – um roteiro para o genocídio indígena por meio da desterritorialização, da desconstrução dos direitos, da devastação do ambiente, da destruição das estruturas de fiscalização, da desassistência  generalizada, da desumanização e a busca pela integração dos povos”, sintetiza Roberto Liebgott, coordenador do Cimi no Rio Grande do Sul.

Para o indigenista, “as invasões de terras foram programáticas”; o governo atuou para viabilizar o acesso de garimpeiros, madeireiros e grileiros aos territórios indígenas. As características da violência – relacionadas ao abuso de poder, racismo, intolerância e assassinatos – revelam uma “desumanização dos indígenas”, produzindo uma violência sistemática, explica Roberto. Destaca, ainda, a desassistência em saúde a partir da fragilização da assistência primária, ou seja, ausência de ações preventivas, gerando mortalidade na infância, desnutrição e um ambiente de profunda vulnerabilidade dos indígenas.

No mesmo sentido, Rose Padilha, membra do Cimi-Regional Amazônia Ocidental, salienta que os números dizem por si: “Foram 309 casos de invasões, em 218 terras de 25 estados brasileiros”. No seu estado, o Acre, a missionária ressalta que ocorreram casos emblemáticos em razão da falência da proteção do Estado. Entre eles, o aumento do suicídio entre o povo Madijá, que ocorre desde 2015, resultado da marginalidade a que são submetidos pela desassistência do poder público.

O povo Madijá enfrenta falta de acesso a documentos; também é vítima da extorsão de comerciantes locais, que retêm seus cartões de benefício social, vendem bebidas alcoólicas e alimentos vencidos. Ainda, como povo de recente contato, não falam português, não tiveram acesso à escola, nem a material didático em sua língua, ou seja, sem qualquer política específica.

O relatório do Cimi revelou a presença de um novo agente externo nos territórios indígenas: o crime organizado. Rose comenta como as facções afetam a situação da juventude Huni Kuin. Sem perspectivas de futuro, acabam se envolvendo com facções do crime. Um dos casos diagnosticados no relatório é de um jovem, assassinado com 30 facadas, nas proximidades da cidade de Jordão, no Acre.

Rose relembra, ainda, outro tipo de violência, que passa invisibilizada: a do mercado de créditos de carbono. No Acre, o governo autorizou a constituição do mercado de carbono, que passou a operar primeiro nas Terras Indígenas, afetando formas de uso e continuidade das relações territoriais. As soluções climáticas da economia verde foram se consolidando no estado, violando os direitos territoriais assegurados aos povos indígenas na Constituição como “usufruto exclusivo de suas terras”, destaca Rose.

Recentemente, em meio às atividades dos Diálogos Amazônicos, em Belém do Pará, a 200 km de distância, três lideranças indígenas do Povo Tembé foram baleados na segunda-feira, dia 7 de agosto de 2023. As lideranças se preparavam para uma visita do Conselho Nacional de Direitos Humanos em Tomé-Açu/PA. Existe um conflito na região entre os indígenas e as monoculturas de palma pertencentes ao grupo BBF (Brasil Bio Fuels), a maior empresa do ramo na América Latina, que mantém operações no entorno com frequente presença de seguranças armados dentro do território indígena. Segue a violência colonial e do capital contra os corpos das gentes, águas e florestas.

:: Diálogos Amazônicos foi uma ‘imagem falsa’, diz mãe de indígena baleado ::

Lideranças Mbya Guarani de aldeias nas cidades de Porto Alegre e de Viamão, no Rio Grande do Sul, falam, no vídeo acima, sobre a necessidade urgente de se demarcar as terras indígenas para a sobrevivência dos seus povos, de sua cultura e para a preservação do meio ambiente

E agora, o que muda no novo governo?

Ao final do relatório, confere-se destaque à iniciativa de constituição de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, como um caminho para identificar e responsabilizar atores que historicamente vêm invadindo, matando e destruindo as formas de viver dos povos indígenas no Brasil. O tema foi pauta do Acampamento Terra Livre (ATL) em abril deste ano. A Comissão foi encaminhada como uma proposta da deputada Célia Xakriabá (PSOL), acolhida pela Presidenta da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joênia Wapichana.

O governo federal iniciou sua gestão constituindo uma força-tarefa para exterminar a violência contra o povo Yanomami. Em abril, na ocasião do ATL, Lula liberou R$ 12,3 milhões para a FUNAI apoiar comunidades Yanomami. O presidente assinou, ainda, a demarcação de seis Terras Indígenas, das 13 identificadas pelo Grupo de Trabalho de Transição como prontas para serem demarcadas. Por fim, o retorno do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI).

São grandes as expectativas de avanço na proteção e efetivação dos direitos dos povos indígenas no Brasil com o atual governo. No entanto, como recorda Liebgott, ainda existe um longo caminhar para romper com os ciclos programáticos de violências. O governo precisa reconstruir toda a política indigenista desmantelada, avançar urgentemente nos processos demarcatórios e de desintrusão, explica.

Políticas como a da Instrução Normativa n.º 01/2021 da FUNAI, que autorizou a associação entre indígenas e não indígenas no arrendamento de terras, ainda que revogadas, criaram inúmeros conflitos internos e externos nas comunidades. Remover esses arrendamentos dos territórios, que com a Instrução foram realizados de boa-fé, exigirá um grande esforço do governo.

A demarcação dos territórios, o acesso às políticas públicas, os investimentos em saúde e educação indígena, a proteção social aos que vivem em áreas de retomada e acampamentos serão medidas fundamentais para a redução do quadro de violência. “A política indigenista não deve ser um faz de contas, não pode ser vista como enfeite, adorno ou pintura a ser mostrada no âmbito do governo. Há gente, comunidades, povos que padecem cotidianamente e clamam por seus direitos constitucionais. Por isso, demarcação já, e não ao marco temporal!”, defende Liebgott.

O Congresso Nacional, de maioria conservadora, também vem se constituindo como um obstáculo à ruptura com a violência contra os povos indígenas. Na semana passada, caminhou no Senado o projeto de lei sobre o Marco Temporal (PL n.º 2903/2023), com pareceres favoráveis à tese. Igualmente, segue ainda respirando o PL n.º 191/2020, que autoriza a mineração em Terras Indígenas. E no STF (Supremo Tribunal Federal), em passos lentos, o julgamento do Marco Temporal (RE 1017365).

Os novos ventos que sopram do governo em Brasília são mais favoráveis à causa indígena. Superar as políticas de retrocesso implementadas pelo governo anterior constituirá uma das tarefas prioritárias. Além dela, é preciso avançar na demarcação das terras indígenas, ampliando o orçamento para políticas públicas nelas. E educar o país para um diálogo intercultural. Como podemos ver, o caminho ainda é longo para erradicar os mais de 500 anos de violência contra os povos indígenas no Brasil.

* Coluna publicada no jornal Brasil de Fato originalmente em 

Vitória das retomadas Mbya Guarani de Canela e de Cachoeirinha no Rio Grande do Sul

🏹 Recentemente, os povos indígenas tiveram duas importantes vitórias no Rio Grande do Sul (RS) que reforçam sua árdua luta para permanecer nos territórios.

Na 3ª feira (9/05), a 3ª Turma do TRF4 (Tribunal Regional Federal), em Porto Alegre (RS), suspendeu a reintegração de posse da terra onde estão as comunidades Mbya Guarani Tekoa’s Kuryty e Yvyá Porã, na cidade de Canela, na Serra Gaúcha. A desocupação imediata pelos indígenas havia sido determinada pela Justiça Federal de Caxias do Sul, em ação movida pela CEEE, estatal de energia elétrica privatizada pelo governador Eduardo Leite.

Os Mbya Guarani marcaram presença durante a sessão no TRF (foto acima), junto com suas assessorias, organizações e apoiadores, como a Comissão Guarani Yvyrupa, CAPG, de seus aliados – o CTI, Cimi Sul, Aepin, Cepi – e outros apoiadores dos movimentos e coletivos sociais. Os Guarani celebraram, rezaram, cantaram e sorriram diante desta importante vitória!

Vale destacar que na decisão, o relator, desembargador Rogério Favreto, afirmou haver muitos elementos da ocupação tradicional dos Mbya na área, cabendo à FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas)  a criação do GT de identificação da terra. No entender dos desembargadores, é preciso ainda aguardar pelo resultado da apreciação do Recurso Extraordinário de Repercussão Geral, 1.017.365, a ser julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em que se discute a tese do marco temporal e os direitos originários dos povos sobre as terras que ocupam.

O colegiado também citou a necessidade de seguir, nas discussões jurídicas sobre os povos indígenas e seus direitos territoriais, as determinações contidas em tratados internacionais, referindo a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Dada a ênfase que a empresa detentora da CEEE deu aos riscos à saúde e à vida dos indígenas na área retomada, pois há uma hidroelétrica e a rede de transmissão, um dos desembargadores destacou que é dever da empresa criar ou encontrar mecanismos de prevenção e proteção aos indígenas, quando houver, na área em questão, algum risco.

Em síntese, o julgamento referenda a necessidade de permanência dos indígenas na terra, garantindo-lhes a posse; aponta que há elementos significativos acerca da ocupação originária Mbya Guarani naquela região, portanto, um direito que prevalece; e há de se aguardar pelo julgamento no STF, acerca da tese do marco temporal e do indigenato.

O TRF4 já tinha tomado decisão semelhante na semana passada, mantendo suspensa a reintegração de posse do terreno onde fica o “Mato do Júlio”, na cidade de Cachoeirinha, região metropolitana. A decisão garante que a comunidade indígena Mbya Guarani siga no local enquanto tramita a ação movida pela empresa Habitasul, proprietária do imóvel.

A área é reivindicada pelos indígenas, que estão com processo administrativo em aberto junto à FUNAI. Há estudo antropológico que afirma ser o local imprescindível para sustento, reprodução física e cultural da etnia, cuja permanência lá data de décadas.

Atualmente, a Retomada Mbya Guarani em Cachoeirinha faz campanha pedindo doações para montar uma escola. Veja como ajudar em http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/04/05/campanha-de-doacao-as-escolas-das-retomadas-mbya-guarani-em-porto-alegre-e-em-cachoeirinha-rs/

Leia mais sobre a decisão em relação à Retomada de Cachoeirinha (RS): https://www.brasildefato.com.br/2023/05/08/justica-confirma-permanencia-de-comunidade-mbya-guarani-no-mato-do-julio-no-rio-grande-do-sul#.ZFm1Cyk2TyA.whatsapp

*Texto de Roberto Liebgott (CIMI Sul) sobre o julgamento da Retomada de canela em 9/05. Sobre a suspensão da reintegração de posse do Mato do Julio e da Retomada de Cachoeirinha, as informações são do  TRF4

Vale do Ribeira: estado de São Paulo derruba casas e expulsa comunidade caiçara de seu território

No dia 4 de julho, três casas foram arbitrariamente demolidas no Território Tradicional Caiçara do Rio Verde/Grajaúna, localizado na região do Vale do Ribeira, entre São Paulo e Paraná. Sob ordem do governo do Estado de São Paulo, as famílias caiçara foram despejadas de seus territórios, sem oferta de qualquer alternativa habitacional pelo Estado.

As autoridades justificam as demolições e a expulsão da comunidade pelo fato de as famílias estarem vivendo em uma área de Unidade de Conservação de Proteção Integral. Contudo, as famílias tradicionais caiçaras, ancestralmente presentes na região, são as responsáveis pela conservação da rica biodiversidade existente ali. O local em que vivem foi estabelecido como “Estação Ecológica Jureia-Itatins” e há anos é alvo de inúmeros conflitos socioambientais, que injustamente recaem sobre as famílias.

Caiçaras são povos tradicionais remanescentes de indígenas, negros e colonizadores europeus, que habitam a costa do sudeste do Brasil

 

Este modelo dos parques estaduais, que foi implementado de maneira autoritária pelo governo do Estado, ocorre sem diálogos com as comunidades tradicionais caiçaras, negando a existência dos povos no local. Cabe destacar que a ordem de expulsão promovida pelo governo de São Paulo viola princípios e direitos constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos consolidados nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, na Convenção 169 da OIT, no Decreto 6.040/2007, no Sistema Nacional de Unidades de Conservação, na Lei da Mata Atlântica – que prevê a utilização de recursos naturais por comunidades tradicionais – e na Lei Estadual nº 14.982/2013, que garante expressamente o direito de permanência e existência digna das famílias caiçaras em qualquer área da Jureia, inclusive no Rio Verde/Grajaúna, região em disputa.

Modos de vida tradicionais ameaçados
As famílias destas comunidades estão na região há várias décadas, mantendo uma relação de convivência coletiva, incluindo a obtenção do sustento material com práticas tradicionais de preservação e sustentabilidade ambiental. A violação de direitos coletivos e dos povos contra as comunidades caiçaras ocorre há muitos anos: muitas famílias estiveram reféns da sobreposição de Unidades de Conservação de Proteção Integral, sendo proibidas de manter seu modo tradicional de vida. As dificuldades para continuar vivendo na região, advindas das medidas restritivas para proteção ambiental, levaram e ainda levam muitos moradores a saírem de suas comunidades e irem para os centros urbanos mais próximos, ocupando a periferia das cidades.

As famílias expropriadas de seus territórios relatam que “o que está em risco são as nossas famílias, a nossa cultura caiçara, o nosso modo de vida, rico em etnoconhecimento e, além de tudo, a natureza, com a qual a nossa tradição se formou. Natureza que mais uma vez volta a estar sob a sombra dos grandes interesses econômicos e políticos”.

Leia a carta da comunidade. Mais informações também no Cimi e Brasil de Fato.

Declaração de Sena Madureira, 17 de junho de 2018

Povos das florestas se reuniram em Sena Madureira, Acre, para denunciar as falsas soluções do capitalismo verde e exigir o direito a suas terras. A retomada dos Jaminawa de seu território foi celebrada como exemplo da força da união dos povos.

 

Entre 15 e 17 de junho de 2018, povos indígenas e de comunidades que vivem e trabalham na floresta se reuniram em Sena Madureira, Acre, para denunciar as falsas soluções propostas pelo capitalismo verde para as degradações ambientais e climáticas – causadas, paradoxalmente, pela própria lógica capitalista de produção e consumo insustentáveis. Denunciou-se os projetos que creem na falácia de que é possível seguir poluindo a terra, a água e a atmosfera em determinado ponto do planeta e “compensar” esta poluição por meio da manutenção de florestas em outra região. Além da impossibilidade, tais medidas acabam por prejudicar as populações que de fato se relacionam com as florestas de maneira equilibrada – os indígenas e as pequenas comunidades que trabalham nas florestas -, que acabam por perder a autonomia sobre seus territórios a sua capacidade de produção e subsistência.

O estado do Acre é tido como um “laboratório” para estas políticas de “compensação” e ali as comunidades tradicionais vêm sofrendo com estes projetos, sejam de REDD, REDD+, REM, PSA – as siglas são várias. Os nomes também, e ainda mais complicados: REDD significa “Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal”; o REM é “REDD Early Movers”, que são, na tradução, os “pioneiros do REDD”; PSA quer dizer “Pagamento por Serviços Ambientais”. Em comum entre estas siglas e nomes todos é que são as medidas do capitalismo verde para seguir poluindo livremente, às custas dos direitos de populações indígenas e tradicionais, que, quando enganadas a aceitarem tais projetos, perdem o direito sobre suas terras.

Em suma, governos e empresas poluidoras do norte global compram “créditos de poluição”, tirando das comunidades do sul o direito ao manejo de suas próprias terras: compram o direito a seguir poluindo, por meio da violação de direitos em outro local, desafiando a soberania dos povos sobre seu território. Privatizam e financeirizam a natureza. Confundem as comunidades com nomes estranhos, em uma linguagem distante das pessoas, e as seduzem com falsas promessas – confundir para dividir, dividir para dominar: assim age o capitalismo verde. Pois em Sena Madureira, assim como antes em Xapuri, os povos das florestas mostram o antídoto a estes ataques: união para resistir, resistir para libertar.

Como que para ressaltar a importância deste encontro, enquanto ocorria o diálogo em Sena Madureira, as empresas de aviação se reuniam em Montreal, Canadá, para discutir tais medidas de “compensação”, que em nada diminuem os níveis de poluição e ainda causam violações de direitos nos territórios onde agem. A expansão de aeroportos no mundo e da indústria aeroviária, altamente poluente, também foi criticada, e é exemplo de como funciona a lógica da “compensação”: há violações de direitos em uma ponta e na outra, enquanto as empresas mantêm seu “discurso verde”, como se de fato enfrentassem os problemas que elas próprias causam. Em Porto Alegre, por exemplo, a Fraport, empresa alemã que opera o aeroporto local, pretende expulsar a Vila Nazaré, que está há 60 anos na região, para que possa estender a pista de pouso por mais umas centenas de metros. A expulsão das pessoas, como de praxe, ocorre de maneira violenta e arbitrária, sem nenhuma transparência no processo – contra o que a comunidade da Vila Nazaré resiste.

De um lado uma comunidade sendo expulsa de sua terra para a expansão de um aeroporto; do outro, populações perdendo o direito a seu território devido aos projetos de “compensação”; no meio, uma lógica destrutiva, que ataca as comunidades nas florestas e nas cidades, e contra a qual estes povos se levantam.

Leia abaixo a íntegra do documento construído no encontro em Sena Madureira, Acre, do qual participaram indígenas Apurinã, Huni Kui, Jaminawa, Nawa, Nukini, Jamamadi, Manchineri, Ashaninka do Envira e Yawanawa, representantes de comunidades tradicionais do interior do Acre, seringueiros e seringueiras de Xapuri, além de organizações como Amigos da Terra Brasil, Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, da sigla em inglês).

DECLARAÇÃO DE SENA MADUREIRA, 17 DE JUNHO DE 2018

Nós, moradores da floresta, seringueiras e seringueiros, indígenas presentes Apurinã, Huni Kui, Jaminawa, Nawa, Nukini, Jamamadi, Manchineri, Ashaninka do Envira, Yawanawa, integrantes de organizações solidárias provenientes de diversos estados do Brasil – como Acre, Amazonas, Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Rondônia, professores e professoras de universidades, reunidos em Sena Madureira, Acre – terras ancestrais do povo Jaminawa – para o “IV Encontro de Formação e Articulação dos Povos das Florestas no Enfrentamento das Falsas Soluções”, no período de 15 a 17 de junho de 2018, declaramos:

– Reforçamos as demandas e denúncias da Declaração de Xapuri, em especial o repúdio às falsas soluções do capitalismo verde, tais como o REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), o PSA (Pagamento por Serviços Ambientais), a exploração madeireira, travestida de manejo florestal, assim como qualquer medida de “compensação” climática ou ambiental por meio da compra de créditos de poluição ou similares;

– Comprometidos com a Declaração de Xapuri, levamos adiante o espírito de união entre os povos e de enfrentamento às “soluções” dadas pelo capitalismo às crises que ele próprio causa;

– A retomada e ocupação Jaminawa de seus territórios ancestrais – Cayapucã, São Paulino e Caieté – nos dá exemplo desta força de união e de enfrentamento aos ataques do poder capitalista contra os povos. Esta conquista revigora e dá forças para que cada um de nós, comunidades, povos e organizações presentes, leve nossa luta comum adiante;

– Enfatizamos a importância das palavras do Papa Francisco na Encíclica Laudato-Si (parágrafo 171): “A estratégia de compra-venda de ‘créditos de emissão’ pode levar a uma nova forma de especulação, que não ajudaria a reduzir a emissão global de gases poluentes. Este sistema parece ser uma solução rápida e fácil, com a aparência dum certo compromisso com o meio ambiente, mas que não implica de forma alguma uma mudança radical à altura das circunstâncias. Pelo contrário, pode tornar-se um diversivo que permite sustentar o consumo excessivo de alguns países e sectores”.

– Da mesma forma, ressaltamos a condenação às medidas de financeirização da natureza contidas no parágrafo 11 da Declaração da Aliança dos Guardiões e Filhos da Mãe Terra (de 28 de novembro de 2015), que diz, a respeito das áreas de floresta primária do planeta que estão tradicionalmente sob os cuidados de povos indígenas: “Estes ecossistemas não devem ser utilizados no contexto de um mercado de carbono que quantifica e transforma a Mãe Terra em mercadoria, nem servir de pagamento para serviços ecossistêmicos, para o comércio de carbono, para as compensações de carbono, para as tarificações de carbono, para os Mecanismos de Redução de emissões decorrentes do desmatamento e da degradação de florestas (REDD), para os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL), ou para mecanismos de compensação da biodiversidade e de financeirização da natureza, transformando-a em ‘partes’ à venda nos mercados financeiros”.

– Rejeitamos o programa REM (REDD Early Movers – “Pioneiros do REDD”, em português), financiado pelo banco público alemão KfW, que induz as comunidades a aceitarem a lógica do capitalismo verde e usa o estado do Acre, indevidamente, como exemplo de “sucesso” em desenvolvimento sustentável. Na verdade, o programa divide as comunidades e ameaça a autonomia dos povos sobre o uso da terra em seus próprios territórios, colocando em risco sua soberania alimentar e seus costumes e saberes tradicionais. Estes mesmos problemas podem acontecer no Mato Grosso, estado no qual recentemente o programa vem sendo implementado;

– Além disso, o dinheiro proveniente destes projetos não responde aos anseios e necessidades das populações originárias e tradicionais, como, por exemplo, a demarcação das terras indígenas e regularização fundiária dos pequenos agricultores e agricultoras de áreas atingidas por medidas de capitalismo verde. Ainda hoje não há transparência sobre como tais recursos são aplicados, como já havíamos denunciado na Declaração de Xapuri. Cobramos do Ministério Público Federal que exija a prestação de contas dos projetos;

– Desautorizamos qualquer política construída dentro de gabinetes sem a devida consulta prévia (em acordo com a Convenção 169 da OIT) e participação das populações indígenas e tradicionais. Qualquer definição de medidas que concernem estas populações deve partir da base, de dentro das comunidades;

– Prestamos solidariedade aos povos de todos os estados do Brasil e dos países do sul global que sofrem estas mesmas violências do capitalismo verde; apelamos aos povos dos países do norte para que não caiam nas artimanhas do “discurso verde” de empresas, governos e ONGs e questionem as aplicações financeiras tais como do programa REM e do Fundo Amazônia, entre outros;

– Repudiamos veementemente a perseguição, difamação e criminalização de defensoras e defensores dos territórios, que tem a coragem de se manifestar e denunciar os ataques dos promotores do capitalismo verde.

Por fim, fortalecidos pelo intercâmbio de experiências entre os mais variados povos durante estes três dias, seguimos com a cabeça erguida e crentes que, unidos, temos plenas condições de lutar contra as falsas soluções do capitalismo verde e de construir formas alternativas de vida sustentável a partir dos territórios, respeitando a pluralidade dos povos. Convidamos todos os povos das florestas e comunidades que sofrem as violações deste sistema desumano e predatório para seguirmos juntos, caminho através do qual será possível superar a lógica destrutiva do capital.

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