As mudanças climáticas, os crimes corporativos e a injustiça ambiental

COP28 mantém a hipocrisia dos espaços multilaterais internacionais do clima. Enquanto Estados tentam redesenhar os Acordos de Paris, manipulando a contabilidade das reduções das emissões e a polêmica sobre o financiamento do clima, empresas transnacionais hegemonizam as discussões com as propostas de solução “verde”. Tais propostas envolvem investimentos do capital financeiro no uso de hidrogênio verde, em geração de energia eólica e solar e em eletrificação de carros, todas respostas pensadas nos termos de uma economia extrativa com impactos desproporcionais no Sul Global, aprofundando desigualdades e injustiças ambientais.

Enquanto isso, o Brasil acumula muitas contradições ao seguir mantendo sua subordinação às empresas transnacionais. Na própria COP 28, a tenda Brasil, organizada pelo governo, com o lema “Brasil unido em sua diversidade a caminho do futuro sustentável”, contava com painéis das empresas Vale S.A e Braskem, duas mineradoras responsáveis pelos maiores crimes socioambientais do país. Além delas, o Pacto Global da ONU (Organização das Nações Unidas),  mecanismo promotor da responsabilidade social corporativa, teve seu espaço na tenda. O que corporações conhecidas nacionalmente pela violação aos direitos humanos e ambientais dos povos, e o instrumento corporativo de “lavagem verde e social” têm para construir e agregar à nossa nação?

A Vale S.A, BHP Billiton Brasil Ltda. e Samarco Mineração S.A são responsáveis pelos rompimentos das barragens de Fundão, na cidade de Mariana, e Córrego do Feijão, em Brumadinho, ambas no estado de Minas Gerais – afora outras diversas barragens de rejeitos em risco de rompimento no país. Por anos, a empresa vinha sendo alertada pelos órgãos de fiscalização da necessidade de reforço da segurança das minas. Inclusive, especialistas apontam para o risco do uso de determinadas tecnologias no manejo do rejeito. Nenhuma das políticas corporativas conseguiu conter a destruição. E vale ressaltar que, nesses oito anos do desastre de Fundão, as vítimas seguem buscando indenização. O que os casos revelam é a reprodução de uma arquitetura da impunidade corporativa.

No caso da Braskem, a história se repete. Desde os anos 80, a sociedade civil e pesquisadores da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) alertam para as consequências da expansão da extração de sal-gema em Maceió, em Alagoas. Por décadas, a empresa extrai sal-gema, transformando o subsolo da cidade em várias crateras. Moradores da região atingidos denunciam rachaduras nas casas, cuja responsabilidade a empresa negava. Em 2018, quando ocorreu o terremoto na cidade, bairros vieram abaixo. A mineradora iniciou sua atividade instalando em um santuário ecológico estuarino; não havia dúvidas de que a destruição ambiental começava ali.

Importante destacar que os setores corporativos do agronegócio, mineração, construção civil, imobiliário e de energia têm flexibilizado a legislação. Temos tido eventos climáticos extremos resultantes das alterações do clima em função dos impactos gerados pelas corporações nos últimos séculos.  A diferença entre os crimes de Brumadinho, Mariana, Maceió e das enchentes na região de Maquiné e do Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul; em Teresópolis, no Rio de Janeiro; em Santa Catarina e em Minas Gerais é o tempo. Alguns  demoram centenas de anos para recuperar, ainda que parcialmente, a qualidade de vida das pessoas e a integridade dos ecossistemas e outras dezenas; o certo é a impunidade dessas empresas e a violação dos direitos dos povos, que estão no plano de negócios. Não é acidente, é parte do plano. Sabiam que aconteceria e que o lucro seria maior em não fazer nada do que investir em soluções reais. Assim, a impunidade segue do lado das corporações e dos Estados capturados.

Quanto ao tema da energia, no regresso da COP28, o governo brasileiro, via ANP (Agência Nacional do Petróleo), decidiu disponibilizar em leilão 603 blocos para exploração de petróleo e gás, em regiões que incluem a afetação à Amazônia brasileira. O leilão de poços irá permitir que mais empresas transnacionais venham ao país determinar os rumos de nosso desenvolvimento e reduzindo, também, a capacidade do Estado em construir, com participação popular, uma política necessária de transição energética justa para a classe trabalhadora, incluindo perspectivas da justiça ambiental e do feminismo popular. Ao invés disso, mais destruição e impactos anunciados, na contramão de um movimento de redução dos combustíveis fósseis, que foi a tônica desta COP depois de 28 conferências realizadas desde 1992.

Movimentos populares e organizações feministas têm denunciado o avanço dos aerogeradores para produção de energia eólica no Nordeste e sua relação com a violência de gênero. No polo da Borborema, na Paraíba, a instalação de parques eólicos têm alterado toda a dinâmica de produção camponesa. No litoral do Ceará, a instalação de eólicas em alto mar atrapalha a produção pesqueira, afetando pescadores e ribeirinhos. Evidenciando a contradição entre o uso de soluções tecnológicas e a sua aplicação concreta, que segue causando conflitos socioambientais.

Não podemos deixar de mencionar o papel do Congresso Nacional. O Senado Federal, como alavanca da modernização conservadora no país, aprovou, ao final de novembro, o PL 1459/2022, que flexibiliza, ainda mais, a liberação de agrotóxicos no país. Apesar dos inúmeros estudos científicos, posicionamento de Conselhos e órgãos de classe, como CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), que alertam para as perdas da biodiversidade e do risco de aumento das doenças, como câncer, relacionadas ao uso intensivo de agrotóxicos no país. O Congresso aprova, e a Presidência tem dificuldade de veto.

Nesse cenário, observamos que as soluções para a crise climática são pensadas pelos mesmos agentes causadores delas: as grandes corporações. A história ambiental nos revela como a intensificação da destruição ambiental está relacionada ao avanço da industrialização capitalista, na promoção de um desenvolvimento desigual. No qual, países do Norte Global saíram na frente na corrida imperialista, destruindo comunidades, territórios, escravizando populações e colonizando a natureza, cujos efeitos profundos são sentidos pelas atuais gerações. São os países do Norte Global e organismos multilaterais que promovem a atuação das empresas transnacionais, facilitando seu processo de acumulação por dependência.

Desse modo, qualquer solução pensada nos termos atuais das relações sociais internacionais, e de sua base, as relações sociais de produção capitalista, são mecanismos para seguir mantendo a ordem de destruição socioambiental.

Seguimos nos desencontrando, enquanto promovemos um discurso internacional avançado, e não sabemos transcender as políticas internas desenvolvimentistas apoiadas pela burguesia nacional. Dessa forma, terminamos fazendo um grande pacto de mediocridade, concedendo continuamente nossa soberania às corporações.

É a agroecologia que esfria o planeta, produzindo sem veneno alimentos saudáveis

Na construção de um Brasil novo, que seja o país do seu povo, não um país sustentável, mas um país ecológico e com justiça ambiental, é preciso aprender com as nossas práticas cotidianas, povos do campo, águas e florestas e, também, com as periferias das cidades, para manter a terra viva, suas culturas e  biomas,  onde estão as soluções para a crise climática. É a agroecologia que esfria o planeta, produzindo sem veneno alimentos saudáveis. São as Terras Indígenas demarcadas, convivendo com outras relações de produção da vida no território, assim como as terras quilombolas, os territórios de povos e comunidades tradicionais.

A nossa história não permite aceitarmos que as corporações sejam soluções, um mundo dirigido pelo crescente poder corporativo que só tem nos levado às múltiplas  crises e aos desastres socioecológicos. Precisamos, com urgência, responsabilizar as corporações pelos seus crimes corporativos. São 37 anos de impunidade do empreendimento de sal-gema em Maceió; são séculos de impunidade das mineradoras e das grandes plantações transnacionais no solo brasileiro. Em face disso, a responsabilização das empresas e a regulação estatal do setor é fundamental. Por isso, a proposta do PL n.º 572/2022 deverá ser uma pauta prioritária dos povos para 2024.

Um Brasil livre e soberano, construindo um projeto político de libertação para si e para os povos da América Latina e Caribe, é a nossa urgência. Chega de falsas soluções! Chega de impunidade corporativa.

Coluna originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, em 21 de dezembro de 2022, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/12/21/as-mudancas-climaticas-os-crimes-corporativos-e-a-injustica-ambiental 

Amigas da Terra Brasil acompanha povos amazônicos e debates sobre transição justa na Cúpula da Amazônia

Entre os dias 04 a 09 de agosto de 2023, a Amigas da Terra Brasil (ATBr) está em Belém (PA), participando da Cúpula da Amazônia. O evento, que acontece entre os dias 8 e 9 de agosto, abordará as políticas públicas da região amazônica e o fortalecimento da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), uma Organização Intergovernamental constituída por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.

Dia 04 de agosto de 2023 começaram os eventos preparatórios para a Cúpula da Amazônia, em Belém (PA).  Entre eles, o Diálogos Amazônicos, em que representantes da sociedade civil, movimentos sociais, organizações, autoridades e entidades  dos oito países da região amazônica que compõem a OTCA discutiram as principais pautas e conflitos  que incidem na região da maior floresta tropical do planeta. O evento teve como objetivo produzir e entregar cinco relatórios aos oito presidentes dos países amazônicos na Cúpula da Amazônia – material produzido a partir das discussões de cada uma das plenárias-síntese , que envolvem temas como soberania, segurança alimentar e nutricional, participação social, erradicação do trabalho escravo, saúde,  ciência e tecnologia, transição energética, mudanças climáticas e a proteção aos povos indígenas, quilombolas e tradicionais da região.

Paralelamente, também acontece a Assembleia dos Povos da Terra pela Amazônia. Nela, estarão reunidos movimentos sociais, redes, coletivos, ativistas, instituições e organizações de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caboclos, negros, camponeses, artistas, religiosos, defensores da natureza, comunicadores, academicos, mulheres e habitantes da Amazónia e de outras regiões do planeta. O intuito é influenciar a Cúpula dos Presidentes da Amazônia e acordar um processo articulado de mobilização de todos os povos da Terra pela preservação da Amazônia, fim do desmatamento e atividades exploratórias dos povos e territórios que ali coabitam, assim como para barrar as alterações climáticas e as violações sistemáticas dos direitos dos povos. A partir da Assembleia, uma série de práticas, saberes, pedagogias e experiências a partir das lutas dos povos serão abordadas, com o objetivo de promover alternativas que se reflitam em uma vida digna, em harmonia com a natureza.

Lúcia Ortiz, da Amigas da Terra Brasil, Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC) e da Frente Contra o Acordo Mercosul-UE e EFTA expõe que a pauta central da ATBR é o acompanhamento dos povos da terra pela Amazônia, em diversos espaços organizados pelos movimentos sociais populares do Brasil e da América Latina. “Nós vamos estar presentes como Amigas da Terra Brasil e também como Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC), e com um companheiro do Programa de Bosques (Florestas) de Biodiversidade da Amigos da Terra Internacional, muito alertas às contradições que estamos vendo nesse encontro de presidentes da região amazônica, que também envolvem essa ofensiva muito grande do Capital à Amazônia, à biodiversidade, às águas, ao carbono da floresta. Atentas a essas estratégias do capital que hoje em dia estão chamando de bioeconomia, mas em outra época já se chamaram soluções baseadas na natureza, REED e mercados de carbono, economia verde, financeirização da natureza, etc”

Além de observar a evolução dessas propostas, a ATBR estará em alerta com a contradição dessas estratégias de compensação de emissões aliadas a estratégias de avanço da mineração, do agronegócio, das infraestruturas de exportação e a relação destes com com Acordos de Comércio neoliberais e neocoloniais, como o Acordo União Europeia-Mercosul (UE-MERCOSUL). “Com o Grupo Carta de Belém e a Frente Contra os Acordos Mercosul-UE e EFTA estaremos em eventos, em debates públicos em conjunto com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) estamos participando de eventos que tratam do tema da Transição Justa e Popular, uma Transição Energética que não seja altamente dependente da extração de minérios, que seja de fato uma transição energética baseada numa mudança de sistema que envolva e também uma transição agroecológica, menos demandante em agrotóxicos e em energia, em combustíveis fósseis e mineração, e que seja descentralizada, mas que garanta o direito e o acesso, a democracia energética. Que valorize os serviços públicos de qualidade e os direitos e a dignidade da classe trabalhadora. Também vamos estar participando da marcha dos povos da terra pela Amazônia”, comentou.

Além de monitorar os posicionamentos, definições e decisões que os governos nacionais presentes na Cúpula farão, a Amigas da Terra Brasil estará marcando presença e com a atenção voltada, especialmente, às lutas territoriais dos povos, principalmente das mulheres quilombolas, do Pampa à Amazônia. Um dos momentos chave desse processo foi o “Escutatórios kilombola pelo Direito de Ser e Existir da Amazônia ao Pampa”, promovido pela  Amay CoMPaz (Akilombamento Morada Abya Yala de Mãe Preta – Colares, no Pará). Na ocasião, foram apresentadas as preocupações quanto ao avanço das infraestruturas – como a construção de pontes e porto, implementação de obras que têm elevado impacto socioambiental. São estes projetos de infraestrutura que garantem o escoamento/transporte de commodities para os países centrais do capitalismo, , reproduzindo uma lógica colonial em que a América Latina e o Caribe seguem dependentes da exportação de materias primas em nome do desenvolvimento de países centrais desse sistema desigual. Obras que estão relacionadas ao avanço do agronegócio, da mineração e na prática representam violações de direitos, violências múltiplas contra os corpos das mulheres e seus territórios, desmatamento e formas de exploração, destruição e mercantilização da vida, além de muitas vezes ignorarem o direito que os povos e comunidades têm à consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé (violação da OIT 169) antes de qualquer obra atravessar seu território. Os relatos também trouxeram as ameaças advindas de projetos de exploração na região e outros ataques aos aos  territórios, seja no Pampa, seja na Amazônia, seja na Bahia.

Lúcia Ortiz salientou a importância das atividades paralelas, assim como da articulação da luta dos povos e da formação de alianças políticas para barrar o avanço do capital sob a vida rumo a COP 30 do Clima, que acontecerá em Belém em 2025. Ao citar o Encontro das Mulheres-Árvores e kilombolas do Pampa a Amazônia, outra atividade que acontecerá nos dias posteriores à mobilização, Lúcia comunicou que a Amigas da Terra Brasil, assim como a Amigos da Terra América Latina e Caribe e a Frente Contra o Acordo UE-Mercosul, vão estar acompanhando uma série de ações.”Durante a Cúpula estaremos dando visibilidade e presença nesses espaços, mas que são processos que vêm de longa data e que vão continuar sendo articulados aí pra frente. Vamos seguir construindo em aliança e movimento maior poder popular de incidência nos rumos que a gente quer para o nosso país, para a nossa região, para os povos, e pela integração dos povos também da Amazônia e da América Latina”, salientou.

Fotos e vídeos por Lúcia Ortiz/ ATBr

AMIGAS DA TERRA BRASIL NA CÚPULA DA AMAZÔNIA
Belém do Pará – 4 a 9 de Agosto de 2023

Sexta-feira dia 4/8 no HANGAR

12:00 – 14:00 – Escutatórios kilombola pelo Direito de Ser e Existir da Amazônia ao Pampa Amay CoMPaz (Akilombamento Morada Abya Yala de Mãe Preta)

12:00 – 14:00 – O Controle Social e Proteção de Direitos Humanos na Amazônia Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH)

 

Sábado dia 5/8 no CENSIPAM

18:00-20:00 – Qual papel dos governos progressistas da Panamazônia na construção da Justiça Climática nesse momento de retomada: as estratégias populares dos sujeitos da Amazônia? Grupo Carta de Belém e Frente Brasileira contra os Acordos Mercosul EU/EFTA

 

Domingo dia 6/8 no HANGAR

9:00-12:00 – Mudança do clima, agroecologias e as sociobioeconomias da Amazônia: manejo sustentável e os novos modelos de produção para o desenvolvimento regional Plenária IV da Cúpula da Amazônia

13:00-16:00 – Amazônias Negras: Racismo Ambiental, Povos e Comunidades Tradicionais Plenária Transversal da Cúpula da Amazônia

14:00-18:00 – Desafios da transição energética popular na Amazônia Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e CUT Brasil

16:00 -18:00 – Mineração e Transição Energética – Os dilemas associados à expansão da mineração na Amazônia Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)

 

Segunda-feira dia 7/8 na CABANA

17:00-20:00 – Assembleia dos Povos da Terra pela Amazônia

 

Terça-feira dia 8/8 : Concentração Bosque Rodrigues Alves

8:00-12:00 –  Marcha dos Povos da Terra pela Amazônia

 

 

Emergência climática e democracia: um problema estrutural

No mês passado, mais uma vez, fortes chuvas no estado do Rio Grande do Sul deixaram um cenário de destruição ambiental, provocando a perda de vidas humanas, isolamento de famílias e agravando a situação de vulnerabilidade social de muitos territórios. A passagem do ciclone, culminando com fortes chuvas, produziu um cenário de caos social, deixando 50 famílias desalojadas no município de Maquiné (RS), 418 mil residências sem energia elétrica, estradas bloqueadas e 13 pessoas mortas. Os efeitos climáticos nos centros urbanos têm sido uma constante no país. Tragédias são vistas em Petrópolis/RJ, São Paulo/SP, alguns anos atrás em Santa Catarina. Todos esses casos se relacionam aos efeitos das mudanças climáticas e à falta de planejamento urbano e territorial.

Para os atingidos e atingidas de Maquiné, as tragédias evocam a necessidade de um repensar das relações entre sociedade e natureza. Segundo o abaixo-assinado da comunidade: “Os rastros da tragédia estão inscritos na paisagem, nos noticiários, na mente e nos corações de todos e todas. As perdas, os danos e as dores são muitas, e, nós como habitantes dessas matas, guardiões desse manancial de biodiversidade, precisamos refletir sobre o presente e o passado para planejarmos um futuro consciente e responsável, visando a reconstrução deste território sagrado, que junto com outros biomas, permite a vida na Terra.”

Os governos e gestores públicos tendem a associar tais fatos como eventos extremos da natureza, sobre os quais precisamos desenvolver soluções técnicas capazes de “controlar” esta força. A comunidade de Maquiné explica em seu abaixo-assinado que “enchentes, ciclones, deslizamentos de terra e inundações são considerados como catástrofes naturais, mas mais do que isso, representam a força da Natureza em restabelecer seu curso, suas leis e impor a necessidade de respeito, fato que precisa ser interpretado e internalizado para a elaboração de planos de recuperação e prevenção”.

Quanto à visão governamental, precisamos primeiro refletir sobre a reprodução da construção moderna que separa “homem” da natureza. Como nos ensina o professor Carlos Marés, dos diálogos do direito socioambiental, essa cisão permite um processo de objetificação da natureza no qual o homem passa a impor sobre ela um modelo de dominação. É assim que, no capitalismo, toda a abundância da natureza, a água, terra, chuvas, ar, vento, vários bens comuns podem ser mercantilizados, tornando-se “recursos naturais”.

O segundo efeito desta apreensão da realidade é supor que a crença de uma tecnicização irá resolver os problemas das mudanças climáticas; acreditamos que não foi por falta de técnica que chegamos até aqui, mas por decisões tecnificadas, visando o lucro. Por isso, as soluções propostas investem em mecanismos da economia verde, dentre eles a metrificação das políticas de compensação do carbono, como as propostas de “netzero” apresentadas na COP 26, e mais antigas como os créditos de “REDD”a proposta do Banco Mundial da “agricultura climaticamente inteligente”;  as cidades climaticamente inteligentes. No entanto, tais proposições ignoram as causas sociais e políticas mais amplas da crise climática, que envolvem as questões estruturais do modelo de produção capitalista.

Ao determinar as mudanças climáticas como um fenômeno recente se desconecta do efeito direto que o modelo de desenvolvimento adotado tem sobre a continuidade da vida no planeta Terra. Ainda que seja evidente uma emergência climática, é preciso cuidar com o uso do termo à medida que não esteja acompanhado de uma reflexão histórico-estrutural do sistema capitalista.

Com isso, queremos afirmar que o debate do clima envolve as reflexões sobre o capitalismo, colonialismo, desenvolvimento, participação e a governança global. Por isso, a construção de soluções que sejam respostas técnicas aos efeitos do clima, constituem-se apenas uma pequena parte do reconhecimento do problema que existe. Assim como as propostas históricas dos povos, em muitos momentos desconsideradas e desqualificadas, sendo que hoje a solução mais eficiente é a existência dos povos nos territórios, esta realidade de resistência foi o que garantiu a proteção ambiental territorial.

Assim, a crise climática é uma consequência das relações desiguais de poder. Não à toa seus efeitos se reproduzem igualmente de maneira desequilibrada. Enquanto países do Sul Global, especialmente regiões marginalizadas, sofrem profundas transformações ecológicas em virtude dos efeitos das mudanças climáticas e das “soluções da economia verde”, países do Norte Global dispõem de recursos para assegurar qualidade de vida a sua população.

Essa distribuição desigual de poderes e consequências compõe o cenário de uma injustiça socioambiental, que se aprofunda com o impacto da ação do Estado e de empresas em uma constante e histórica ação de “passar a boiada” no agro literalmente, mas também na construção civil e na mineração, com grandes obras de infraestrutura que, em sua busca insana de extração de capital do ambiente natural, descumpre, altera e flexibiliza a legislação ambiental, priorizando o interesse corporativo em detrimento do ambiente natural equilibrado e sadio.

Famílias desabrigadas ficaram alojadas no Ginásio Municipal de São Leopoldo, cidade da região do Vale do Rio do Sinos, no RS. Crédito: Gustavo Mansur/Secom

Inclusive, o tema de uma “justiça reparadora” é muito forte entre os povos afetados pelo clima. Países como Bolívia, e mais recentemente, Brasil, vêm afirmando a presença de uma “dívida climática” dos países desenvolvidos para com os subdesenvolvidos. Indo mais além nas questões estruturais, a presença do subdesenvolvimento é um produto direto da divisão internacional do trabalho, da presença intrínseca ao capitalismo mundial de um intercâmbio desigual entre os países, que cria a dependência. Reverter a situação de dependência, reconhecer o processo de silenciamento do colonialismo é tarefa fundamental para pensar a construção de alternativas à crise ecológica que vivemos.

A líder indígena hondurenha e lutadora ambientalista Berta Cáceres, quando recebeu o prêmio Goldman do Meio Ambiente, denunciava que as iniciativas para o clima estavam pensadas “fora do tempo”. Claramente, Berta se referia a uma injustiça histórica e social que vivem os povos da América Latina e Caribe, da África, do Sul Global, sobre os efeitos catastróficos que o colonialismo e o capitalismo impõem. De tal forma que pensar as questões do clima não significa apenas uma análise de seus efeitos físicos, mas conectar ao racismo, às desigualdades de gênero e classe que fazem com que territórios e corpos sejam mais afetados. Retomar a história de negação dos povos do Sul Global é parte fundante das discussões sobre o clima, ou seja não é somente o clima que deve ser visto, mas as causas dessas alterações e a dívida histórica aos povos que esta lógica produziu no campo das violações dos direitos dos povos, as métricas de carbono como estão colocados não respondem à diversidade da natureza e, menos ainda, na reparação dessas violações, este debate tem que estar no centro das soluções.

Desse modo, devemos nos questionar sobre os espaços internacionais promotores das soluções e a responsabilidade que determinados países têm na estruturação da crise. As metas voluntárias de redução das emissões não envolvem qualquer política de questionamento da destruição socioambiental das empresas transnacionais, pelo contrário, afirmam seu protagonismo. São os mesmos países causadores dos problemas estruturais que envolvem o clima, que estão hegemonizando a construção das soluções. Certamente, não serão eles a questionar os seus privilégios. De igual modo, lhes interessa manter as questões histórico-estruturais que lhe permitem seu domínio. Como o presidente Lula falou em Paris, “que os países que fizeram a revolução industrial são os responsáveis pela poluição do planeta, e que eles têm uma dívida histórica com a Terra”.

Importante perceber essa forma de agir das corporações, que querem ser voluntárias e não cumprem regras criadas para a garantia das leis, constituições e princípios da coletividade. Assim, lutamos para garantir regras para as empresas e direitos para os povos, como a campanha por um tratado vinculante sobre empresas transnacionais e direitos humanos, instrumento internacional vinculante que responsabiliza diretamente as empresas transnacionais pelas violações de direitos humanos decorrentes de suas atividades, como no PL 572/2022 que cria um marco nacional sobre direitos humanos e empresas e estabelece diretrizes para a promoção de políticas públicas sobre o assunto.

Retornando aos impactos das enchentes nas cidades brasileiras, os governantes locais, estaduais e federais não são menos responsáveis pela reprodução deste sistema desigual. Os ventos, a chuva, são questões climáticas; agora, a alteração dos leitos dos rios não, o assoreamento dos rios, não; o aterro em banhados e áreas de várzeas, desmatamento, resíduos sólidos sem a implementação das leis, barramentos nos rios, falta de regularização fundiária, moradia, obras de infraestruturas que alteram os caminhos das águas e as cotas nos territórios, colocando essas comunidades de forma cada vez mais expostas a essas situações de alagamento e deslizamentos, expondo famílias e os mais vulneráveis a riscos previsíveis. As elites brasileiras seguem apostando na construção de respostas vindas “de fora”, que promovem um desencontro entre nosso passado, presente e futuro. Não há, por parte de muitos governantes, um compromisso com a construção de transformações sociais profundas em nosso país. A maioria do Congresso Nacional é bastante representativa da completa ignorância da destruição do planeta, e não tem consciência para além da lógica do lucro.

Repensar o problema dos danos causados pelas mudanças climáticas, da reparação das comunidades, famílias e territórios envolve, portanto, um profundo questionamento sobre o modelo de desenvolvimento, a organização do sistema produtivo e um giro ético político de relações sociais e com a natureza. É necessário construir outras respostas governamentais para além da prestação de serviços emergenciais, pensar a construção de alternativas fora dos espaços hegemônicos, desde as lutas e resistências populares locais, da organização política popular. É fundamental que nos casos, sobretudo de emergências climáticas, a reconstrução dos modos de vida seja feita mediante a escuta das comunidades locais e com processos de verdadeira participação popular, oportunizando-se da troca de saberes locais.

Edificar um projeto político de sociedade, territórios, cidades, que garanta essas profundas transformações, não serão reais e verdadeiras se não forem construídas com a participação efetiva de cada território, com seus povos e seus conhecimentos e cultura.

Esta ética-política renovada do reconhecimento de que o problema do clima é um problema civilizatório é de um tempo presente. Ou nos organizamos e mobilizamos para uma mudança da correlação de forças desta agenda, ou estaremos reféns de um futuro incerto. Um futuro que poderá não existir quando destruirmos as condições de vida concreta.

Texto originalmente publicado no Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/07/05/emergencia-climatica-e-democracia-um-problema-estrutural 

Informe “A natureza dos negócios” defende o fim da cooptação empresarial na COP15 do Convênio sobre a Diversidade Biológica (CDB)

A cooptação empresarial se infiltra e influencia a COP15 do Convênio sobre a Diversidade Biológica (CBD) e tenta fazer da natureza um negócio. Quem mais perde e perderá com isso são os povos e o meio ambiente. O novo informe da Amigos da Terra Internacional, intitulado “A natureza dos negócios”, convoca a UN Biodiversity a salvar a biodiversidade e a resistir à Captura Corporativa. Confira o material na íntegra: 

Informe “A natureza dos negócios”

A cooptação empresarial infiltra-se e influencia a COP15 da Convenção sobre Diversidade Biológica e tenta fazer da natureza um negócio.  Quem mais perderá com esse fato são os povos e o meio ambiente. 

De acordo com o informe de avaliação global da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) e o relatório das Nove Fronteiras Planetárias, a biodiversidade está em perigo e o mesmo acontece com a vida na Terra.

Embora se saiba que as grandes empresas são um dos principais motores da crise da biodiversidade, muitas destas empresas afirmam que são parte da solução e estão à mesa das negociações; infiltram-se nos processos da ONU para assegurar que os seus interesses permaneçam protegidos e para que não existam “soluções” que prejudiquem os seus lucros.

A influência empresarial não é nada de novo, mas tem aumentado nos últimos anos. Tem sido estimulada pela necessidade de parecer responsável perante os consumidores e investidores interessados nas questões ambientais, pela sedutora possibilidade de lucros “verdes”, e pela atitude acolhedora do sistema das Nações Unidas em geral e especialmente da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB). Nestes fóruns, as grandes empresas são vistas como um interveniente necessário, em linha com a ideia de que sem as empresas (e o seu dinheiro) não podemos resolver os  problemas ambientais

Este informe com o título “A Natureza do Negócio”: A influência empresarial na Convenção sobre Diversidade Biológica e no “Marco Mundial da Diversidade Biológica”, estabelece as estratégias e táticas utilizadas pelas entidades empresariais na CDB. Também analisa em detalhe as muitas coligações empresariais e os seus membros, bem como as propostas de maquiagem verde (greenwashing) que eles elaboram.

Táticas e estratégias utilizadas pelas empresas para influenciar ou cooptar agências e processos da ONU

As grandes empresas utilizam uma variedade de táticas e estratégias para alcançar os resultados pretendidos nos processos da CDB. Em particular, formam coligações com nomes promissores para defender (e fazer lobby com) soluções sustentáveis que protegem os seus interesses comerciais, mas não fazem nada pelo meio ambiente.  Mecanismos de compensação (tais como “nenhuma perda líquida”, “ganho líquido”, “natureza positiva” e “soluções baseadas na natureza”), auto-relatórios, auto-regulação e auto-certificação são alguns exemplos.

Salvar a biodiversidade requer uma mudança transformadora, não uma cooptação empresarial

O envolvimento das grandes empresas na CDB é revelador de um conflito de interesses fundamental: como poderiam os principais responsáveis pela perda da biodiversidade – as mesmas empresas que têm de pagar dividendos aos seus acionistas – promover a transformação radical de que necessitamos? Será que aceitariam um espaço operacional restrito e receitas reduzidas como resultado?

A resposta curta é não; eles não o farão. E o impacto da influência empresarial na CBD COP15 já é evidente no projeto do Marco Mundial da Diversidade Biológica. Longe de ser transformadora, não aborda métodos de produção insustentáveis e permite que o negócio continue como de costume, que sigam fazendo os seus negócios como sempre. 

Recomendações do informe

Este informe é dirigido à ONU e aos seus estados membros para lhes lembrar que a sua prioridade máxima deve ser servir ao interesse público – incluindo todas as pessoas e seres não humanos do planeta – e abordar urgentemente a cooptação corporativa da CDB. Convida a ONU a:

– Rejeitar a pressão das grandes empresas
– Fortalecer a transparência em torno do lobby
– Limitar o papel do setor empresarial e  colocar um limite à sua participação
-Divulgar todas as relações e  vínculos existentes com o setor privado
– Estabelecer um código de conduta para as/os funcionárias/os da ONU
– Encerrar todas as parcerias existentes com grandes empresas e entidades comerciais
– Estabelecer um quadro juridicamente vinculativo de obrigações que possa responsabilizar as empresas pelas leis ambientais, de direitos humanos e de direitos laborais.

Acesse o informe na íntegra aqui! 

Conteúdo publicado originalmente no site da Amigos de la Tierra Internacional, em 05 de dezembro de 2022, em: https://www.foei.org/es/publicaciones/cooptacion-empresarial-naturaleza-negocios-informe/ 

 

A história do cerco à Amazônia

Visitamos a região do Tapajós, no Pará, junto à Terra de Direitos e ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais dos municípios de Santarém e de Alenquer, para ouvir as histórias das resistências dos povos frente ao cerco imposto pelo capital à Amazônia. E o cenário, que já era assustador, piora no atual contexto de pandemia do Covid-19: desmatadores, grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais não estão preocupados em fazer quarentena; pelo contrário, querem aproveitar a paralisia do governo para avançar ainda mais sobre os territórios. Vale acrescentar que, ao que indicam estudos (aqui, aqui e aqui, este último em espanhol), a expansão do agronegócio e a consequente destruição ambiental está por trás do avanço de diversas pandemias ao redor do mundo, o coronavírus entre elas.

*Nota: este conteúdo foi produzido no final de 2019 e início de 2020,
antes da pandemia do coronavírus tomar a proporção que tomou.

// Vídeo 1 – Grilagem de terras: como territórios amazônicos vão sendo transformados em campos de cultivo

// Vídeo 2 – Soja: Amazônia como fronteira agrícola

// Vídeo 3 – Portos: grandes empreendimentos ameaçam os modos de vida tradicionais amazônicos

// Vídeo 4 (final) – Ameaças, resistência e esperança

A engrenagem do capital esmaga a Amazônia, seus povos, a floresta e seus rios: de um lado, a expansão da soja e da pecuária, unidas à derrubada e comercialização ilegal de madeiras e às queimadas criminosas que “limpam a terra” para o agronegócio; de outro, a mineração e os megaprojetos de infraestrutura necessários ao escoamento de commodities e entrega dos bens comuns brasileiros, como portos e ferrovias. Todos de alto impacto às comunidades locais. Em meio a isso, sob grande pressão e convivendo com ameaças constantes, povos em pé e em luta, ainda firmes. São essas histórias de resistências que contaremos a seguir.

Primeiro, porém, uma breve introdução se faz necessária, para que compreendamos o contexto e a complexidade dessas lutas. A introdução está dividida em quatro partes: a primeira delas segue este parágrafo; as outras podem ser acessas pelos links que aparecem abaixo do texto. E, depois dos links, aparecem pequenos resumos de cada história que contaremos – que podem ser acessadas com um clique em seu título.

Uma breve introdução, dividida em quatro partes, e depois as histórias

1. Contexto
Não à toa as queimadas na Amazônia em 2019 chamaram a atenção do mundo: de janeiro a agosto, na comparação com o mesmo período dos últimos três anos, a alta em focos de queimada foi de 34%; houve 55% mais desmatamento na região; e, ainda assim, 11% mais chuvas, o que demonstra que a causa do fogo não foi o período seco, mas sim a ação humana.

Infelizmente, nenhuma surpresa: em agosto do ano passado, em referência ao Dia do Fogo e ao aumento das queimadas, já dizíamos:

– A mão manchada de sangue que acende a chama é a mão do capital: é à política neoliberal colonialista, tão docilmente acatada pelo governo Bolsonaro, que creditamos o ataque aos povos das florestas e a seus territórios.

Antes ainda, à época da campanha eleitoral de 2018, a completa ausência de políticas voltadas ao meio ambiente já alertava para o que estava por vir (por exemplo, a expressão “meio ambiente” aparecia apenas uma vez no programa de governo do então candidato Jair Bolsonaro). Bom… que representa um imenso retrocesso para a pauta ambiental e agrária no Brasil ele próprio deixou bastante nítido mais tarde, quando disse [aos ruralistas, é claro] – Esse governo é de vocês.

O cerco capitalista se expressa em diferentes formas e estágios: desde o “ciclo da grilagem”, que consiste em invasão de território, extração ilegal de madeira, queimadas para “limpar a terra”, introdução de monoculturas e pecuária; até o consequente uso de agrotóxicos que contaminam áreas vizinhas e fontes de água; e o despejo e expulsão das famílias agricultoras, comunidades tradicionais, quilombolas e povos originários para as periferias das cidades, onde passarão a compor a classe empobrecida da sociedade. Quem decide ficar e lutar por seus territórios e pela natureza, enfrenta ameaças e atentados contra a vida.
Os desenhos são de Paulo H. Lange.

A espreita capitalista sobre a Amazônia, sabemos bem, remete a tempos pré-Bolsonaro. Contudo, é da mesma forma óbvio o agravamento da situação hoje: ela é considerada – ela, a floresta – um imenso estoque de terras, amplo espaço disponível para a expansão do agronegócio que já consumiu quase que a totalidade de outros biomas do país (o cerrado, o pantanal, o pampa). E os números comprovam o efeito nefasto gerado pelas políticas do atual governo brasileiro: pela primeira vez na contagem histórica, que começou em 2002, foi verificado aumento de queimadas em todos os biomas no país – ao todo, a área devastada em 2019 foi 86% maior que no ano anterior. No caso do Pantanal, bioma mais atingido, o número é alarmante: a alta nas queimadas é de 573%. Os dados são do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o qual Bolsonaro – não por acaso – tenta insistentemente deslegitimar e controlar.

Ora, também não é acaso o atual governo denominar a Floresta Amazônica uma “região improdutiva e deserta”. É esse o olhar e a compreensão neoliberal sobre a natureza: um negócio a ser explorado, custe o que custar – inclusive vidas.

Nos links abaixo, continua o texto introdutório. Clique em cada um para seguir lendo:

2. As respostas de Bolsonaro às queimadas são em nome do mercado e dos grileiros do agronegócio
3. O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
4. Mas afinal, quem realmente está por trás desses crimes?

E, abaixo, leia as histórias de resistência dos povos da Amazônia ao cerco capitalista contra seus territórios, seus corpos, a floresta e os rios:

// O CERCO, DESENHADO EM UM MAPA
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STM), Manoel Edivaldo Santos Matos, o Peixe, explica o cerco do capital à Amazônia a partir de um mapa da região do Tapajós. Não à toa o Plano Diretor de Santarém, cidade que fica à beira do encontro dos Rio Tapajós e Amazonas, dos mais importantes canais d’água da Amazônia, foi alterado sob medida para a expansão do capital na região – e a mudança se deu ao apagar das luzes de 2018, na última sessão legislativa do ano.

// UM PORTO ENTALADO NA BOCA DO RIO
Projetos de construção de portos no Rio Maicá colocam em risco o modo de vida de 12 comunidades quilombolas, além de povos originários e comunidades pesqueiras. Um dos projetos, que estava mais avançado, teve o processo de licenciamento suspenso na Justiça e a empresa deverá realizar uma consulta prévia, livre e informada junto às comunidades impactadas, em acordo com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

// ANTES DO PORTO CHEGAR (SE CHEGAR), CHEGARAM JÁ OS IMPACTOS
É assim em todos megaempreendimentos e não está sendo diferente no Maicá: mesmo antes de um projeto se concretizar, seus danos às comunidades locais já podem ser sentidos – desde questões imateriais, como a insegurança por nada se saber do futuro (se as famílias serão removidas ou não, e para onde, ou a tristeza de ver ameaçados seus territórios e modos de vida); até questões bem concretas, como a ameaça de vizinhos e a grilagem de terras.

// POSTO DE SAÚDE E ESCOLA QUILOMBOLA: A LUTA MUDA A VIDA
O processo de titulação da comunidade do Tiningu, após longa demora, está quase pronto: em outubro de 2019, o Incra reconheceu a demarcação da área e, agora, falta apenas a assinatura presidencial – o que, em meio a discursos de ódio e corte de recurso para a pauta quilombola, não é “apenas”. Mas a comunidade do Tiningu tem quase 200 anos, e sabe ter calma.

// CURUAÚNA: DE UM LADO, A SOJA. DO OUTRO, A SOJA TAMBÉM
Nos arredores de Santarém, os campos de soja se estendem até o horizonte se perder de vista. Escolas são cercadas pelas plantações, nas quais há alto uso de agrotóxicos sem que se respeite o horário das aulas; a prática do “puxadinho” alonga os campos de soja pouco a pouco, todo ano, por meio de queimadas na beira dos terrenos; comunidades e culturas inteiras vão sumindo, pois as famílias, cansadas, abandonam suas casas e vidas, indo morar na periferia das cidades. Não há mesmo convivência possível com o avanço destrutivo do capitalismo.

// O ROSTO ESTAMPADO NA CAMISETA
Os assassinatos de Maria do Espírito Santo e Zé Cláudio, defensora e defensor dos direitos dos povos, e o caminho cruzado com Maria Ivete, ex-presidenta do STTR-STM. Ela conviveu por dez anos com escolta policial, parte do Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos do governo federal.

// A NOITE DAS MOTOS
Em Alenquer, município vizinho a Santarém, dois pistoleiros montaram uma emboscada para assassinar José Marques. Ele é um dos líderes de uma comunidade de pequenas e pequenos agricultores da região, e o local está em disputa após grilagem de terras com o uso de sobreposição de áreas no CAR (Cadastro Ambiental Rural). Sem qualquer vistoria dos órgãos públicos, as 86 famílias que viviam e trabalhavam ali há cerca de 13 anos foram despejadas pela Justiça, em conluio com os interesses privados dos grileiros.

// SE ORGANIZAR, TODO MUNDO LUTA
O enfrentamento do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Alenquer contra o avanço do agronegócio: as lideranças sofrem constantes ameaças mas, ainda assim, com muita organização e luta – estradas fechadas, pressão a prefeitos, cerco a locais de votação -, direitos são garantidos.

O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza

Foi o Acre o primeiro estado brasileiro a implementar políticas de financeirização da natureza. O que significa isso? Significa que o estado foi uma espécie de laboratório para medidas que transformam a natureza – as árvores, os rios e a terra, tudo isso que não podemos (ou não deveríamos) valorar – em algo quantificável, transformado em produto e, para além disso, em ativos em bolsas de valores que servirão como moeda de troca e de valorização de alguma empresa depois. Daí decorre um mar de problemas:

Essa é a parte 3 da introdução da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos voltando à página central ou pelos links abaixo:

Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: [você está aqui] O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

Veja também: O cerco explicado em um mapa

Primeiro, a privatização das terras: as empresas precisam ter áreas para a “captura de carbono”; ou seja, áreas verdes para “compensar” a poluição que geram no mundo. Assim, grandes indústrias poluidoras, como as petroleiras, as mineradoras e as empresas da aviação poderiam seguir suas atividades normalmente, com o mesmo ou até com maiores níveis de poluição, contanto que tivessem, em alguma parte do mundo, sua “fazenda de captura de carbono”.

Leia aqui a publicação “10 alertas sobre REDD para as comunidades”, preparada pela WRM (Movimento Mundial Pelas Florestas Tropicais, na sigla em português).

Aí outro problema: a própria “compensação” é, em si, uma violação de direitos. Para seguir poluindo, as empresas se adonam de um território que não é seu, em negociatas que ou não envolvem as comunidades ou são baseadas em mentiras, com promessas de compensações financeiras jamais concretizadas. Os povos originários, as comunidades tradicionais e as trabalhadoras e trabalhadores rurais, que historicamente viviam e se sustentavam da floresta, em equilíbrio, veem-se proibidos de manejar a mata a seu modo, com seus jeitos e culturas. Lhes é roubado o território e, com isso, suas existências são postas em risco: as famílias acabam sendo empurradas para as periferias das cidades, tornando-se parte da camada empobrecida da população. A riqueza fica atrás, na terra que não mais as pertence. Ora, resta-nos a dúvida: quem compensa a “compensação”?

Assim que a situação vai se complexificando: para “compensar” a poluição que emitem, as empresas violam direitos e proíbem os modos de vida tradicionais, em especial no Sul Global, e lucram também com isso ao transformar esses territórios em ativos financeiros; em resumo, quanto mais direitos violarem, mais poderão poluir e expandir seus ganhos: é lucro para poluir e para destruir e lucro pra “compensar” depois.

Veja abaixo, com mais detalhes, o “ganha-ganha” das empresas por trás das queimadas da Amazônia, em material produzido pela Amigos da Terra Brasil junto à regional do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) no Acre:

– Como o agronegócio e o mercado financeiro lucram com a devastação da maior floresta tropical do mundo

– Quanto valem a preservação e as falsas soluções do capitalismo “verde”, e quem compensa as compensações?

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Leia também a parte 2 da introdução:
Quem é favorecido pelas respostas de Bolsonaro às queimadas?

Ou avance para a parte final da introdução:
Parte 4: Afinal, quem está por trás desses crimes?

O cerco explicado em um mapa

No vídeo abaixo, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STM), Manoel Edivaldo Santos Matos, o Peixe, explica, a partir de um mapa da região do Tapajós, o cerco do capital à Amazônia:

Santarém: um Plano Diretor sob medida para a expansão do capital na Amazônia
Na última sessão legislativa de 2018, ignorando por completo toda a participação popular que havia acontecido até ali, os vereadores de Santarém – sem vergonha alguma – aprovaram a Lei nº 20534, que institui um novo Plano Diretor para a cidade: um plano feito sob medida para sojeiros, ruralistas em geral, grileiros, investidores de megaprojetos, garimpeiros e para a indústria do turismo.

Essa é a primeira história da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:

INTRODUÇÃO
Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) [você está aqui] O cerco explicado em um mapa
2) Um porto entalado na boca do rio

De um lado, ampliou-se a área portuária, convenientemente envolvendo toda região do Lago Maicá, onde há planos para a construção de cinco portos privados voltados ao escoamento da soja. De outro, cresceu a zona urbana, o que permite a construção de prédios e empreendimentos turísticos à beira do Rio Tapajós. Isso envolve toda a área em direção a Alter do Chão, considerada uma das praias mais bonitas do Brasil e que foi foco das queimadas em 2019. Ora, nada é por acaso, e o ciclo se repete: queimadas, grilagem, venda ilegal da terra – seja para a expansão do agronegócio, seja para a venda de lotes para indivíduos ou para empreendimentos turísticos. De toda forma, significa violência contra os povos e comunidades locais e a derrubada da floresta.

Fecha-se o cerco: madeireiros ilegais; grilagem; soja; agrotóxicos; pecuária; portos; mineração; ferrovias; contaminação do solo e das águas; especulação imobiliária; expulsão de famílias quilombolas, indígenas e de pequenas e pequenos agricultores para as periferias da cidade; ameaças e ataques a quem resiste. Repetimos: não há convivência possível com o ciclo de morte do capital.

Agronegócio e empreendimentos para escoar a produção avançam sobre comunidades tradicionais gerando conflitos diretos e indiretos. Fotos: Carol Ferraz/Amigos da Terra Brasil

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Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:
Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

Ou avance para a próxima história:
Um porto entalado na boca do rio

 

Um porto entalado na boca do rio

– Visagem? Não tem aparecido visagem na mata, não, moça; é na água, e a visagem toma outras formas, dá sempre jeito de assustar. (Visagem significa, em vocabulário local, “assombração”). Na região do Maicá, sudeste de Santarém, a visagem tem tomado formas bastante concretas, todo mundo vê e se preocupa: é a forma de um porto.

A Embraps (Empresa Brasileira de Portos de Santarém) pretende instalar um porto na Boca do Maicá, entrada do rio que se estica por um braço a partir do Rio Amazonas, retornando ao mesmo rio para então seguir seu fluxo em direção a Macapá (AP) e ao Oceano Atlântico. Suas águas têm rica biodiversidade e banham cerca de 50 comunidades, todas postas em risco caso o projeto do porto avance.

Essa história faz parte da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:

INTRODUÇÃO
Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) O cerco explicado em um mapa
2) [você está aqui] Um porto entalado na boca do rio
3) Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos

Pois então não é visagem: é a realidade que assombra; e é entre contações de histórias e risadas que Narivaldo dos Santos fala do Estudo de Impacto Ambiental da Embraps – Sabe, eu pesco aqui pirarucu, tambaqui, surubim, pacu, acará, pescada, aracu, carauaci, arauanã, acari, fura-calça, mapará, que é branquinho né… e tem bem mais, porque quando eu falo em acará, tem umas oito espécies só aqui na nossa região: o roxo, o bararuá, o boca-de-pote, o escama-grossa, o tinga, o açu… O tucunaré também: tem o açu, o pinima e o comum, e o surubi cabeça-chata, pinima e pintado e assim por diante. É tanto que a gente pode dizer – Hoje eu não quero esse, aí solta e pega o próximo, é um cardápio rico. Aí no estudo da empresa aparece quase nada de tipos de peixes, e nem de pássaros, jacarés, capivaras, tatus, nem o peixe-boi, que tá em extinção e a gente acha aqui no nosso rio... É, talvez os pesquisadores da Embraps não saibam pescar.

Narivaldo é líder da comunidade quilombola de Bom Jardim, tem 42 anos e não parece: corre rápido pelos troncos de palmeira caídos que servem como caminho até a área onde descansam as canoas e embarcações da comunidade pesqueira – das cerca de 120 famílias, pelo menos 90 pescam no Maicá, algumas para o comércio, outras apenas para a subsistência. Com os passos ágeis, ele faz parecer fácil o que definitivamente não é: mas embora tortuoso, as toras são ainda um caminho, e após cerca de dez minutos de frágil equilíbrio sobre as madeiras chegamos a uma bonita enseada, onde a grama verde encontra as calmas águas do rio, e ali agitam-se com leveza as canoas. A remo, o centro de Santarém está horas distante.

Pescadoras e pescadores artesanais estarão em risco caso projetos de portos avancem. No topo, Narivaldo observa enseada do Maicá. Fotos: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Vez que outra um peixe se aventura num salto, como que a exibir a riqueza do rio – Não precisa nem ir longe pra achar mais que dois tipo de peixe, ri de novo o Narivaldo, antes de voltar a falar sério – Do governo a gente percebe que não estão nem aí pra Amazônia, pros nossos rios. De certa forma, já foi dada a ordem para a construção do porto. Só parou pela ação da FOQS [Federação das Organizações Quilombolas de Santarém], que protocolou o pedido pela consulta prévia junto ao MPF [Ministério Público Federal]. Se depender do governo o porto sai, as comunidades quilombolas querendo ou não: mas o que a gente puder fazer para evitar, vamos fazer. Eles dizem que os impactos podem ser compensados, mas isso não existe: a gente quer viver como vivemos hoje.

A instalação de um porto no Maicá (não só um: existem projetos para cinco portos no rio) vai significar a destruição daquele modo de vida e é um ataque direto às 12 comunidades quilombolas do entorno, a do Bom Jardim entre elas. Em testamento, os antigos donos de escravizados da fazenda local, que não tinham herdeiros, deixaram a terra para as seis famílias que eram exploradas ali. Isso há 142 anos: são quase dois séculos de pertencimento e luta naquele espaço. Agora, em nome do lucro de poucos, tudo pode desaparecer.

Consulta prévia e a Convenção 169 da OIT
Contudo, a mobilização popular e jurídica, com o apoio da Terra de Direitos, surtiu efeito e o licenciamento do projeto foi suspenso. A empresa deverá realizar consulta prévia, livre e informada a todas as comunidades atingidas – quilombos, indígenas e pescadores -, em acordo com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Os estudos da Embraps eram tão rasos que sequer consideravam o componente quilombola, tão relevante naquela área, o que também deverá ser acrescentado em um novo estudo a ser apresentado pela empresa. Embora não tenha poder de veto, a obrigatoriedade da consulta às comunidades atingidas pode ser considerada uma vitória: após a decisão judicial favorável, as 12 comunidades organizadas na FOQS apressaram-se para construir seu próprio Protocolo de Consulta, o que também foi feito pelas comunidades indígenas e pesqueiras impactadas.

Fotos: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

A suspensão do licenciamento também atrasa o cronograma do projeto, que é de alto impacto, permitindo maior tempo para a disseminação de informação na região. A previsão da Embraps era de que, somente no primeiro ano de funcionamento, 4,8 milhões de toneladas de grãos de soja poderiam ser exportadas pelo porto instalado no Maicá, grande parte vinda da região Centro-Oeste do Brasil por meio da BR-163. Vejam que também a infraestrutura de escoamento causa impactos aos territórios: caso semelhante ao da rodovia BR-163 é o da Ferrogrão, projeto de ferrovia que ligará a cidade de Sinop (MT) até Itaituba (PA) e que também causará danos ao longo de seu trajeto, em especial em unidades de conservação e em terras indígenas.

Um porto onde não pode haver porto
Um fato estranho, porém: no mesmo local onde seria instalado o porto da Embraps, um outro empreendimento surgiu – um posto de combustível para embarcações, à revelia de estudos de impacto ou da participação da comunidade. A empresa responsável é a Atem’s, distribuidora de petróleo que opera no Norte do país. Os danos já são sentidos, em especial na pesca, com o derramamento de combustível e o aterramento da área, que mudaram o fluxo de correntes d’água e de peixes. Em março deste ano, o Ministério Público paraense denunciou a empresa, seu sócio administrador e o engenheiro responsável pelo projeto pela prática de crimes ambientais. Para o órgão, a obra avançava sem a licença do órgão ambiental competente, além de ter sido apresentado um licenciamento divergente à Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará, que se referia a cargas não perigosas – quando era sabido, desde o princípio, o objetivo de construção e instalação portuária para distribuição de combustível (carga perigosa).

Histórico da luta
Em maio, enfim uma boa notícia, após longa mobilização dos movimentos sociais de Santarém contra mais esse empreendimento que, sem qualquer consulta às comunidades locais, violava direitos e comprometia a biodiversidade da região: a Justiça Federal suspendeu as licenças prévia e de instalação do empreendimento da Atem’s e determinou a paralisação imediata das obras.

Em resumo, esse é o desenho do cerco do agronegócio aos territórios: expulsão de famílias de suas terras para o plantio da soja, contaminação das terras vizinhas pelo uso do agrotóxico, o transporte dos grãos rasgando territórios – seja via caminhão ou via trem -, sua chegada em portos que destroem os modos de vida tradicionais das redondezas, a exportação para que gere riquezas ao capital internacional. Para resistir a essa engrenagem, é necessária muita união e força. O andamento do projeto da Embraps representa ainda a remoção de famílias e a demolição de casas para a ampliação de vias, a chegada de centenas de trabalhadores de outros estados, uma mudança completa no cotidiano da região: a estimativa é que cerca de 900 carretas diárias passem pelas ruas do bairro Pérola do Maicá no percurso até o porto.

A luta contra a Embraps se dá desde 2013 (nessa linha do tempo, organizada pela Terra de Direitos, veja a cronologia das resistências à construção de portos no Maicá). São ao todo cinco portos planejados para a região, de três empresas – todos voltados para a exportação de grãos e commodities, em especial a soja. Além da Embraps, a construção de outros portos visa favorecer as atividades do Grupo Cevital, da Argélia, que atua no ramo agroalimentar e está envolvido com plantações da região Centro-Oeste do Brasil, e a empresa Ceagro.

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Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:
Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

E as histórias:
O cerco explicado em um mapa
– [você está aqui] Um porto entalado na boca do rio
Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos

Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos

Ninguém sabe ao certo: se sai, se fica, pra onde vai se sair, como fica se ficar. É uma tremenda insegurança e, de repente, toda essa terra na qual vivem começa a ter “donos” – donos que não são eles que vivem lá: alguém paga um IPTU como forma de reivindicar aquele espaço e aí crescem as ameaças, ouve-se nas esquinas – Quilombola é ladrão de terra, e vejam só que inversão, que quem chegou ali primeiro foram os negros, assim como foram os indígenas em outros locais, e é sempre assim: o invasor é outro.

Essa é uma das histórias da reportagem “História do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:

INTRODUÇÃO
Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) O cerco explicado em um mapa
2) Um porto entalado na boca do rio
3) [você está aqui] Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
4) Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida

Hoje, no Pérola do Maicá, bairro onde será instalado o porto da Embraps, vive-se com medo. E tem que se estar sempre atento, em especial em um momento político em que um presidente da República é abertamente racista – já nem se importam em esconder, e mesmo quem tem o dever institucional de defender os direitos da população negra afirma absurdos como – O Brasil tem racismo Nutella. Racismo real existe nos EUA. A negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda. São mesmo tempos estranhos, e talvez o porto da Embraps, e os outros na região do Maicá, nem saia: mas os danos que ele traz chegaram com bastante antecedência, estão aí, e a Lídia de Matos Amaral, 38 anos, da comunidade quilombola do Pérola do Maicá, é que nos conta:

ela esteve já em regiões onde foram construídos portos. Histórias bem semelhantes a que ela e suas companheiras e companheiros de quilombo e vizinhas e vizinhos de bairro vivem hoje – É muito complicado. A violência vai triplicar, vai modificar todo o estilo de vida tranquilo que temos aqui, isso vai acabar. E falam em compensações: os empresários pensam que a tudo o dinheiro pode comprar, mas como compensar um modo de vida destruído?, uma tradição esquecida?, uma conexão com o território desfeita? Mesmo o pouco que prometem, os supostos desenvolvimento e progresso, postos de trabalho, mesmo isso não é verdade, porque olha quantos megaempreendimentos já destruíram comunidades Brasil afora e seguimos sem desenvolver, não progredimos – Olha o porto da Cargill: me diz quantos santarenos trabalham lá?, e talvez este outro porto, o da Cargill, instalado de maneira irregular sem respeitar os processos de licenciamento, sem se importar com a comunidade local, e que destruiu a Praia de Vera-Paz, antigo ponto turístico e área de lazer em Santarém, talvez ele devesse servir de exemplo (para lembrar as irregularidades da Cargill: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui): porque é assim que é, e não como as falsas promessas dos empresários e dos governos dizem, é ilusão. O que há de concreto é a destruição – Pra gente fica o prejuízo, bem sabe a Lígia, que já viu em outros lugares, e está ali o porto da Cargill para nos lembrar como o capitalismo de fato se “desenvolve”.

Quem sabe disso também é a Valda

[e não à toa outra mulher, a Lígia bem sabe disso também – As mulheres estão na linha de frente, dão a cara a tapa e sofrem muitas represálias. Por isso temos que nos fortalecer, e é uma defesa do território que é uma defesa do corpo e do corpo dos outros também, das filhas e dos filhos, é uma conexão profunda, axé – E muitas mulheres que eu conheci já não estão aqui hoje, eles dão o recado deles [é o patriarcado] – Mas eles tiram uma e nascem cinco, ainda mais fortes, e que dão sequência a essa luta cruel e desigual.]

Valda (acima) e Lídia, moradoras da região do Maicá, contam as histórias de resistências do local. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

A Valda é a Valdeci Oliveira Sousa, de 52 anos. Ela faz parte da CPP (Comissão Pastoral dos Pescadores) e é presidenta da associação de moradores do Pérola do Maicá. Ela também já sente os impactos do porto da Embraps – Há cinco anos sentimos esse impacto, desde que soubemos da existência do projeto: tudo mudou, desde o mais básico, como a convivência entre vizinhos – aumentaram os conflitos, agora há desconfiança entre as lideranças, quebrou-se a harmonia. De repente, nasceram novas organizações de bairro – há sempre quem se encante pelas falsas promessas de dinheiro e “desenvolvimento” -, feitas para facilitar a entrada do projeto, o veneno escorrendo pelas artérias do bairro, pelas pequenas ruas de barro, que serão ampliadas e passarão por cima das casas caso o porto vá de fato adiante, e famílias terão que ser removidas, no bairro e no quilombo, e ninguém sabe pra onde.

Além disso, políticas públicas para o bairro passaram a ser travadas: há anos o local vem sendo esquecido, num lento e doloroso processo de expulsão – Eles precisam que a gente queira sair daqui, então não se tem mais infraestrutura viária, nenhum investimento, tivemos muita dificuldade no último inverno [que é a época de chuvas, dezembro, janeiro, fevereiro, quando é verão na maior parte do Brasil], as ruas ficam com muitos buracos e a linha de ônibus teve horários reduzidos, é esse o recado – Não querem sair? Vão sofrer.

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Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:
Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

E as histórias:
O cerco explicado em um mapa
Um porto entalado na boca do rio
– [você está aqui] Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida

De um lado, a soja. Do outro, a soja também

Acima do Tiningu e do Bom Jardim, chega-se à região de Curuaúna. De lá escorre veneno dos vastos campos de soja em direção aos quilombos e às águas do Rio Maicá.

Andando pela região, Francinaldo Miranda, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STM), ensina a engenhosa arquitetura dos sojeiros, ou talvez a habilidade em design de ambientes – Esse é o puxadinho, que se resume a um pequeno avanço, não mais que dois ou três metros, do campo de soja em direção à mata em pé; queima-se aos poucos a floresta e, ano a ano, como se nada estivesse acontecendo, a soja toma todo o espaço disponível – como se precisasse crescer mais: pode se dizer, hoje, que no meio do campo de soja havia uma floresta (e havia uma floresta no meio do campo de soja) – E eles constroem esse muro pra que a visão da estrada seja bloqueada. Ninguém vê nada e parece estar tudo bem com a floresta. O muro em questão é uma fina faixa de árvores que, de fato, cumpre seu papel: é só ao dar a volta nela que se pode contemplar a imensidão da soja, soja a se perder de vista, de um lado, do outro lado, adiante e atrás. Porém, da estrada, é como se as árvores seguissem em pé, altivas.

Essa é uma das histórias da reportagem “História do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos já publicados:

INTRODUÇÃO
Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) O cerco explicado em um mapa
2) Um porto entalado na boca do rio
3) Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
4) Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida
5) [você está aqui] Curuaúna: de um lado, a soja; do outro, a soja também
6) O rosto estampado na camiseta

Os impactos na floresta e nas comunidades locais, obviamente, são tremendos: a soja representa grilagem, queimadas, desmatamento, agrotóxicos, além de necessitar de toda uma infraestrutura para seu transporte e exportação, o que também impacta os povos da região. Alguns casos, porém, beiram o absurdo: como a situação de uma pequena escola na comunidade de Boa Sorte (e o nome parece uma sádica ironia da vida). Ali, a distância entre a janela da sala de aula e o campo de soja não chega a dois metros, e o mais grave: o uso de agrotóxicos não respeita o horário escolar e se repete várias vezes ao ano. A contaminação das crianças é direta e repetida.

A região de Curuaúna é tão impactada pelo uso de agrotóxicos da soja (o principal é o glifosato – o Round-Up da Monsanto) que estudos com coleta de sangue de moradoras e moradores estão sendo realizados para dimensionar o tamanho do dano à saúde das pessoas. Os resultados dessa pesquisa ainda não foram divulgados. Outros estudos, entretanto, estão disponíveis: é o caso da dissertação de Nayara Luiz Pires, da Universidade de Brasília, que em 2015 pesquisou a expansão da fronteira agrícola na Amazônia e a contaminação por glifosato na região de Santarém. Nela, a pesquisadora afirma “um provável risco de exposição humana a agrotóxicos, principalmente pela via respiratória”.

Castanheira, árvore protegida por lei, sobrevive sozinha em meio a campo de soja. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Escola cercada por soja: uso de veneno não respeita horário escolar e crianças são diretamente atingidas. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Área queimada para a expansão do cultivo de soja: prática do “puxadinho” é muito usada na região amazônica, e consiste em aumentar o tamanho da terra aos poucos, queimando a floresta metro a metro, ano a ano, e avançando sempre à margem de qualquer tipo de controle. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Com o avanço dos monocultivos na Amazônia, a floresta vira cinzas. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Com o constante uso de agrotóxicos, pouca coisa cresce nas terras que antes eram bastante férteis. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Fugindo da soja: cidades-fantasma e abandono
Muitas famílias, claro, não esperam para descobrir o quanto os agrotóxicos são danosos e a que velocidade estão os matando. Assim, as comunidades vão aos poucos sendo abandonadas, sumindo do mapa, deixando de existir – Ali era um campo de futebol, – Ali tinha um monte de casas, – Aqui era uma escola, mostra Francinaldo conforme se avança pela estrada que corta os campos de soja.

Mesmo as tradicionais partidas de futebol entre as comunidades vizinhas correm o risco de deixar de acontecer, simplesmente porque cidades-fantasma não têm times de futebol: ninguém mais poderá desafiar o temido São Jorge, equipe a ser batida na região. Francinaldo, natural da área de Curuaúna, era goleiro e conta quando – O centroavante tava a poucos metros de mim e era daqueles que chutava forte, meu amigo até, mas chutou com raiva, e a bola foi tão forte, mas tão forte, que rasgou a barriga de Francinaldo, e isso ele só descobriu mais tarde, depois do jogo, pois se arrastou com a bicicleta até em casa para não acusar a dor na frente do adversário. Precisou até de cirurgia e demorou anos a se recuperar plenamente. O mais importante, porém, conseguiu: defendeu o chute.

Isso que significa o avanço da soja: além da morte e da contaminação e da grilagem de terras, o fim da cultura e da vida local.

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Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:
Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

E as histórias:
O cerco explicado em um mapa
Um porto entalado na boca do rio
Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida
– [você está aqui] Curuaúna: de um lado, a soja; do outro, a soja também
O rosto estampado na camiseta

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