Um país com a democracia em disputa

O coração dos progressistas se encheu de alegria e esperança com as imagens simbólicas da posse presidencial no início do mês e com os discursos dos novos ministros no decorrer dos dias. Já o dos bolsonaristas estava carregado de ódio e de vingança, quando destruíram os prédios dos três poderes, no dia 8 de janeiro, em Brasília. Apesar da vitória eleitoral e de uma coalizão ampla de setores e interesses, unidos na centralidade do restabelecimento da democracia no país, os golpistas seguem fortemente organizados. Evidenciando que a derrota eleitoral e a posse foram somente uma das batalhas vencidas, e que, ainda, são muitas as trincheiras para derrotar o fascismo.

Movimentos e organizações sociais participaram em peso dos atos nacionais em defesa da democracia na semana passada – Foto: Jorge Leão

Um dos exemplos concretos disso é a presença contínua de pessoas na porta de quarteis confabulando mentiras e atentando contra a Constituição ao pedirem a intervenção militar. Mesmo após meses, seguem sob sol e chuva, nesse delírio coletivo. De igual modo, assusta a adesão e o apoio de empresários, celebridades, parlamentares e muitos membros das forças repressoras, aos atos antidemocráticos, os quais, a despeito da posição que ocupam, não estão comprometidos com o respeito às instituições. E claro, o espetáculo do caos armado no dia 8 de janeiro, em que golpistas confundem manifestação da liberdade de crítica com vandalismo, banalizando o patrimônio histórico nacional. Longe de fatos espontâneos e isolados, a desordem parece muito bem financiada e organizada para confundir as massas.

Há, ainda, uma grande adesão de parcelas da sociedade brasileira ao bolsonarismo. Muito embora algumas delas não apoiem os rumos que a destruição dos prédios dos três poderes tomaram, seguem alimentando mentiras nas redes sociais. Esses quinhões sociais não frequentam debates públicos e nem se colocam abertos ao diálogo, pelo contrário, estão refugiados em bolhas virtuais acessando um conteúdo perigoso, destinado a produzir e reproduzir alienação. Que os dilemas das redes sociais são um risco para a democracia, especialistas já apontavam na última década; resta saber até quando permitiremos que este seja um espaço não regulado que ameace valores democráticos e de coletividades. 

 Recordemos que as permissividades de práticas autoritárias vêm marcando nossa história desde as marchas de 2013. Naquela época a polícia militar, em diversos estados, repreendeu violentamente manifestantes que, neste caso sim, lutavam por direitos constitucionalmente assegurados. Ao longo de toda a resistência ao golpe de 2016, que depôs a presidenta Dilma Rousseff, parlamentares e a grande mídia foram coniventes com ilegalidades. Com a perseguição política ao presidente Lula, também observamos a seletividade do sistema punitivo, quando a Operação Lava Jato quebrou com as garantias fundamentais do presidente, sem qualquer comprometimento com o devido processo legal. Nesse período, nascia o ódio à organização política partidária, especialmente ao Partido dos Trabalhadores (PT), emergindo valores conservadores e violentos na sociedade que, agora,  desafiam a democracia.  

Os bolsonaristas estão nas famílias, nas escolas, nos condomínios, nas empresas que compramos produtos e, como cada vez mais sinalizam as investigações, possuem ligações com o agronegócio, o garimpo e as madeireiras. As revelações da quebra do sigilo de 100 anos mostram que, ao invés de combater a corrupção – uma das principais pautas do governo anterior – estes grupos estão inteiramente ligados a ela, e pior, foram eleitos ao Congresso. 

Como enfrentar este desafio e unir o Brasil? Certamente, as saídas que apresentaremos a esses fascistas dirão muito sobre que tipo de democracia iremos construir, sobretudo, como política de governo. Questões estruturais históricas que antes vinham sendo negligenciadas estão colocadas na mesa por alguns dos novos ministros. A decisão pela existência de um Ministério dos Povos Indígenas (MPI), as indicações para cargos que envolvem população negra e LGBTQI+, a preocupação com o aumento da representatividade de mulheres, situam um outro lado da disputa.

“Nunca mais, um Brasil sem nós!”

Ministra Sônia Guajajara participa de ritual indígena do povo Terena durante sua posse / Sérgio Lima / AFP

A frase de Sônia Guajajara, proferida em seu discurso de posse como ministra dos Povos Indígenas, ecoou durante a semana, demarcando que um grupo historicamente excluído do poder chegou a ele.  Disse ela: “Estamos aqui, de pé! Para mostrar que não iremos nos render. A nossa posse aqui hoje, minha e de Anielle Franco (Ministério da Igualdade Racial), é o mais legítimo símbolo dessa resistência secular preta e indígena no Brasil!”. Será que os donos do poder, com seus bárbaros bolsominions, irão aceitar? 

Sônia, e toda a simbologia de sua posse, relembra os muitos indígenas e seus aliados que perderam a vida diante de toda a violência do colonialismo, convidando todos a caminhar, a partir da cosmologia indígena, para repensar o uso da terra e coabitarem junto a outros seres. Em suas palavras, define um sentido para a democracia que quer construir, a “democracia do bem-viver”.

A democracia também esteve marcada na fala de Anielle Franco que, recordando a memória de sua irmã, comprometeu-se a pôr fim à política de morte e construir justiça, reparação e democracia. Assim, enunciou: “Precisamos identificar e responsabilizar quem insiste em manter esta política de morte e encarceramento da nossa juventude negra, comprovadamente falida. Assim como estamos identificando e responsabilizando quem executou, provocou e financiou a barbárie que assistimos no último domingo”. 

Brazilian new Minister for Racial Equality, Anielle Franco, gestures during her swearing-in ceremony at the Planalto Palace in Brasilia on January 11, 2023. (Photo by Sergio Lima / AFP)

Para construir o “verdadeiro Brasil que tomou posse”, “juntas”, Anielle destacou que será necessário enfrentar as dívidas do passado “até que os sonhos de nossos ancestrais se tornem realidade”. Em sua posse, a ministra convidou os demais ministros, o governo e o povo brasileiro a revisitar nosso passado para responsabilizar os atores e, assim, construir equidade. 

Duas mulheres, uma negra e uma indígena, que chegam à posição de ministras neste país inundado de contradições sociais, aguerridas e determinadas a mudar o sentido da democracia, que até agora as elites dominantes proveram. Diferentemente daquelas que usam da violência, as imagens movidas são da reciprocidade, da coletividade, da solidariedade, das relações de afeto com a terra. Oposto ao Brasil da barbárie, Sônia diz: “o Brasil é plural, é alegria, é colorido e solidário!”.

* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2023/01/17/um-pais-com-a-democracia-em-disputa 

Em defesa da biodiversidade, do Brasil e da democracia: frente ao fascismo não pode haver hesitação

Muitos dos retrocessos expressos na candidatura de Jair Bolsonaro podem ser irrecuperáveis. O desprezo pelos valores básicos da democracia e a intolerância em seu discurso de ódio são evidentes. Na pauta ambiental, o cenário é também grave, seja pelo fim do Ministério do Meio Ambiente ou pela ausência de propostas relativas a desmatamento e saneamento básico; seja pela expansão extrativista na Amazônia ou pelo ataque aos povos originários e tradicionais, entre outros impropérios de uma candidatura construída sobre mentiras, fake news e desinformação.

O discurso de ódio já se materializa nas ruas do Brasil, causando mortes como a de Moa do Katendê, liderança negra da Bahia, assassinado por revelar ter votado em Haddad no primeiro turno. Frente a isso, a Amigos da Terra Brasil publica nota oficial, demarcando seu posicionamento histórico em defesa da democracia e da biodiversidade brasileiras, postas em risco nas eleições deste ano.

“Divergências à parte em relação às gestões do PT ao longo dos anos, o momento atual exige um posicionamento claro: a nossa defesa é pela vida, pela liberdade, pela diversidade. Pela soberania e autonomia dos povos sobre seus territórios. Hoje, é algo fundamental e inegociável que está em jogo: a própria democracia. O direito à discordância e à oposição está em xeque; a diferença é posta como o inimigo da vez. Contra isso, portanto, não se trata mais de um “voto útil”. O voto a ser dado é de sobrevivência – o que vai muito além de disputas partidárias”

Confira a nota na íntegra:

EM DEFESA DA BIODIVERSIDADE, DO BRASIL E DA DEMOCRACIA: FRENTE AO FASCISMO NÃO PODE HAVER HESITAÇÃO

Os perigos são vários – e iminentes. Uma candidatura violenta e despreparada desponta como a favorita à vitória, erguida sobre mentiras, notícias falsas, desinformação e medo. Neste momento, são as nossas chances de futuro que precisam ser defendidas. Afinal, para muitas das políticas e intenções de Jair Bolsonaro não haverá cura posterior; certos danos não podem ser desfeitos. O candidato do PSL pretende acabar com o Ministério do Meio Ambiente, subordinando questões ambientais à pasta da Agricultura, ou seja, aos interesses do agronegócio. A mineração avançará sem restrições sobre terras ancestrais indígenas na Amazônia e em todo o território nacional, destruindo a nossa biodiversidade. O ataque aos povos originários e tradicionais será sistemático, sem demarcação de terras ou garantia de direitos adquiridos. Propostas sobre temas complexos e importantes, como saneamento básico e desmatamento, inexistem; o candidato ataca as Unidades de Conservação, os tratados internacionais que regulamentam as políticas de clima, como o Acordo de Paris, critica as regras do licenciamento ambiental, algo, para ele e seus financiadores, dispensável. Ibama e o ICMBio são vistos como adversários. Risível, não fosse trágico: está já anunciada a criminalização de todo o tipo de ativismo, de ONGs e todas as organizações da sociedade civil que se colocam no caminho da devastação, lutando, em parceria com povos e comunidades, por autonomia – no país que mais mata defensoras e defensores dos territórios, o futuro é sombrio. No campo da saúde e da educação, Bolsonaro foi favorável ao congelamento de gastos pelos próximos 20 anos; em segurança, apresenta ideias macabras como a liberação do porte de armas, que trará somente mais mortes e violência, em especial nas áreas rurais e nas periferias das cidades. Quem mais morre hoje vai morrer ainda mais amanhã.

Percebe-se, assim, que o adversário de Fernando Haddad nesta eleição não é um mero opositor, alguém que diverge em ideias e políticas econômicas; isto seria próprio da democracia. Não: do outro lado está uma candidatura que se constrói da violência e da intolerância. Jair Bolsonaro afirmou aos ventos já: julga que uma colega deputada só não deveria ser estuprada devido ao fato de ser “feia”; que sua filha, única mulher, foi resultado de uma “fraquejada”; que mulheres merecem receber salários inferiores aos de homens porque engravidam; que quilombolas não servem sequer para reproduzir, reduzindo a existência do negro a de um animal reprodutor; disse que não demarcará um centímetro de terras indígenas – pelo contrário, vai atacá-las em favor de um extrativismo insustentável; que as minorias devem se curvar às maiorias, ou então desaparecerem; e, entre outros absurdos, que o erro da ditadura foi torturar ao invés de matar, a maneira mais eficaz de silenciar um opositor. O seu absoluto desprezo pela democracia ele deixou claro ao homenagear, em seu voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff, um sádico torturador que violentou mulheres – a ex-presidenta inclusive – das maneiras mais macabras durante a ditadura civil-militar brasileira.

Aos que alegam serem só palavras, percebam que o discurso de ódio já toma forma nas ruas: seus apoiadores assassinaram Mestre Moa do Katendê, liderança negra na Bahia, pelo simples fato de ele ter votado em Haddad; uma jovem porto-alegrense teve o corpo violado, tendo uma suástica, a cruz nazista, “tatuada” com um canivete em sua pele por utilizar um adesivo com a inscrição “Ele Não”; um estudante do Paraná foi espancado por estar usando um boné com a identificação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), aos gritos de “Aqui é Bolsonaro!”. Além destes, existem diversos outros casos, tão horríveis e chocantes quanto, e a eleição sequer acabou. É bem verdade que o Brasil é, historicamente, um país racista, patriarcal e homofóbico. Os números mostram: é o país que mais assassina LGBTs no mundo; o assassinato de quilombolas cresceu 350% entre 2016 e 2017. Contudo, caso a eleição de Bolsonaro se concretize, não restam dúvidas de que o cenário irá piorar: as violências históricas estarão justificadas – e serão mesmo incentivadas – pelo ocupante da maior representação política do país, o presidente.

Divergências à parte em relação às gestões do PT ao longo dos anos, o momento atual exige um posicionamento claro: a nossa defesa é pela vida, pela liberdade, pela diversidade. Pela soberania e autonomia dos povos sobre seus territórios. Hoje, é algo fundamental e inegociável que está em jogo: a própria democracia. O direito à discordância e à oposição está em xeque; a diferença é posta como o inimigo da vez. Contra isso, portanto, não se trata mais de um “voto útil”. O voto a ser dado é de sobrevivência – o que vai muito além de disputas partidárias. Não queremos que os nossos morram, nem apanhem, nem silenciem, nem se amedrontem. Queremos direitos garantidos e ampliados. Bolsonaro é uma ameaça a isso tudo. E a tendência, agora, é um Congresso ainda mais retrógrado, com o crescimento da bancada BBB – Bala, Bíblia e Boi, ou seja, armamentista, conservadora-evangélica e do agronegócio, que atacarão ferozmente a natureza ainda protegida das monoculturas e do desmatamento – proteção essa garantida exatamente pelos modos de vida indígena, quilombola e campesino, postos, por isso, sob grave ameaça.

Frente ao fascismo, não pode haver dúvida ou hesitação: Bolsonaro representa o que de mais nefasto existe, a tortura, a barbárie, a violência, o racismo e a misoginia. É tal qual um símbolo deste neoliberalismo patriarcal tosco que aponta seus canhões ao Brasil – e antes ao Paraguai, ao Haiti e a Honduras, entre outros, em uma onda fascista que periga invadir a América Latina agora que se derrama por um dos países mais proeminentes da região: em 2016, após a promoção deliberada da instabilidade política, testemunhamos um golpe de estado – incentivado por nossas podres instituições, o Judiciário, o Legislativo e a mídia -, a fim de entregar nossas riquezas a transnacionais e governos estrangeiros. Agora, em um risco talvez não tão calculado por uma elite que não suporta a soberania popular, assistimos à ascensão do fascismo, que poderá, paradoxalmente, ser eleito pelas vias democráticas para destruir o pouco de democracia que aqui havia, já reduzida a escombros com o apequenamento de suas instituições nos últimos anos – vide a embaraçosa atuação do Poder Judiciário em julgamentos recentes, com claros fins políticos. Juízes, procuradores e desembargadores veem agora, do alto de seus pedestais, o fantasma do fascismo se materializar e nada fazem; apenas observam – alguns com indisfarçada satisfação.

O confronto está posto e, dada a massiva votação do candidato fascista no primeiro turno, turbinado pela proliferação de notícias falsas, pode mesmo parecer perdido. Há tempo, porém – embora curto -, e o desespero nada nos trará de benefício. Ninguém está eleito ainda. Além disso, a luta contra o fascismo é histórica e se estende para além das urnas; a disputa por cargos legislativos e executivos, ainda que importante, é apenas parte de um embate mais amplo contra as injustiças sociais, econômicas e ambientais e contra todas as formas de opressão. O crescimento dos ideais da extrema-direita, avessos à diversidade, deixará sequelas e cicatrizes difíceis de superar ou de esconder, e impõe-se sobre nós a responsabilidade de nosso tempo: é então hora, enfim, de enfrentarmos o histórico racismo e patriarcalismo incrustados em nós, em nossa sociedade e em nosso país. Enfrentemos o neoliberalismo colonialista que, ganancioso, apropria-se de nossas riquezas naturais e impede os nossos modos de vida. Hoje estas mazelas expressam-se por meio da bestialidade de Jair Bolsonaro, que deve ser derrotado. Para isso, são muitas as frentes e os grupos que se organizam, já com algum atraso, em um justo e necessário esforço. Tais alianças devem ser mantidas mesmo após o pleito de 28 de outubro: a defesa da democracia e da diversidade dos modos de vida deve ser permanente, independente do que digam urnas – e reafirmamos aqui o nosso compromisso em sustentá-la.

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