Acordo Mercosul – União Europeia perde o bonde para a história: uma vitória para os povos e para a justiça ambiental

 

7 de dezembro, Rio de Janeiro, Brasil – Após mais de 20 anos de sua proposição, o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia não conseguiu chegar à 63ª edição da Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul com uma conclusão das complexas tentativas de renegociação. Com um novo presidente argentino de extrema-direita eleito e com as eleições da União Europeia no próximo ano, agora é a hora de abandonar de vez com esse acordo comercial fracassado e ultrapassado.

Organizações membros da Federação Amigos da Terra Internacional na América Latina e na Europa se opõem ao acordo comercial UE-Mercosul porque ele transferiria enormes poderes para as corporações transnacionais e minaria os direitos fundamentais das pessoas ao trabalho, à alimentação, a um meio ambiente saudável e a um clima seguro.

Segundo Maria Fernanda Lopez, de Tierra Nativa – Amigos da Terra Argentina, “O presidente eleito da Argentina, Javier Milei, é caracterizado como defensor do neoliberalismo e declara abertamente posições que afetam negativamente o meio ambiente e os direitos humanos. Sua posição discursiva integracionista é semelhante ao que observamos no passado com o ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Se a União Europeia interrompeu o Acordo UE-Mercosul por causa das políticas anti-ambientais de Jair Bolsonaro, agora com Milei deve abandonar definitivamente as negociações desse acordo neocolonial”.

O acordo exige obrigações de liberalização em uma ampla gama de áreas, incluindo serviços, compras governamentais e propriedade intelectual. Esses compromissos restringem o direito dos governos de regular nos países do Mercosul, colocam os serviços públicos em risco de serem privatizados e minam a possibilidade de avanços em soluções reais para construir sociedades sustentáveis.

Para Lúcia Ortiz, da Amigas da Terra Brasil: “É uma grande vitória para as organizações e movimentos sociais do Mercosul que as tentativas complexas de renegociar o acordo comercial com a União Europeia não tenham sido concluídas este ano. Como organização latinoamericana e integrante de uma frente brasileira que rechaça esse tipo de acordo neoliberal e neocolonial, celebramos também o retorno dos processos regionais de integração dos povos e de participação social. Assim mesmo, continuamos aguardando o anúncio oficial do abandono definitivo desse acordo, cujas bases obsoletas e assimétricas não podem ser remendadas. É hora de dar lugar a outras relações birregionais, baseadas nos princípios da democracia, da cooperação, da complementaridade, da solidariedade e da soberania dos povos”.

Segundo Julie Zalcman, de Amigos da Terra Europa, “O acordo UE-Mercosul está podre até a medula. Nenhum documento adicional de sustentabilidade pode evitar os efeitos desastrosos que ele teria sobre o clima, as pessoas e a natureza, caso seja ratificado. Isso apenas Impulsionaria o uso de pesticidas tóxicos e os lucros corporativos, aumentaria as emissões de carbono e o desmatamento às custas do meio ambiente e das comunidades locais e perpetuaria o poder corporativo do agronegócio. À medida que a COP28 se desenrola, os líderes devem priorizar nosso planeta e nossas vidas em detrimento dos lucros e pôr um fim definitivo a essas políticas comerciais destruidoras do clima.”

Amigas da Terra Brasil

Declaração sobre Acordo UE-Mercosul frente à reunião entre os presidentes Lula e Macron na Cúpula para um Novo Pacto Financeiro Internacional

 

Nos dias 22 e 23 de Junho, acontece a Cúpula para um Novo Pacto Financeiro Internacional, a ser realizada em Paris, na França. Na ocasião, os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da França, Emmanuel Macron, se reúnem para discutir o acordo de liberalização comercial que está sendo negociado entre a União Europeia e os países do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai). 

Frente a pressão para que este acordo avance, a Frente Brasileira Contra os Acordos UE-Mercosul e EFTA-Mercosul, Collectif Unitaire Stop CETA Mercosur (www.collectifstoptafta.org), a coalizão francesa “Solidarité Brésil” (https://lebresilresiste.org/) e a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) emitiram uma declaração de posicionamento, que divulgamos abaixo:

Acesse a versão do documento em PDF AQUI

 

Crédito da foto: Ricardo Stuckert

A construção da Soberania Alimentar e o retorno das políticas públicas agrárias

Nos quatro últimos anos, chegamos a 33 milhões de brasileiros e brasileiras passando fome. Esses números revelam uma situação mais grave do que a encontrada pelo presidente Lula em 2001. E apontam para a urgência de estruturação de políticas públicas que tenham na soberania alimentar seu centro. Um país que não é capaz de produzir alimentos saudáveis e acessíveis à sua população não consegue avançar para qualquer projeto de nação digna.

A principal bandeira de ação de Lula sempre foi o combate à fome. Já em sua posse, o governo lançou a retomada do Programa Bolsa Família e o retorno do Ministério do Desenvolvimento Social. Em fevereiro, Lula reinaugurou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), fechado em 2019 por Bolsonaro. O Conselho é um importante espaço de participação popular na construção do direito à alimentação adequada. Dentre suas atividades, destacam-se o controle de estoques de alimentos; programas de cisternas para agricultura familiar, com articulação entre campo e cidade; rotulagem de alimentos; monitoramento de ações e políticas públicas. Vale recordar que o direito à alimentação faz parte dos direitos sociais previstos no art. 6 da Constituição.

Embora sejam fundamentais as medidas emergenciais do combate à fome e o estabelecimento de programas de renda básica, enquanto a soberania alimentar não for tratada como pauta estruturante da política agrária brasileira, seguiremos recaindo em ciclos de retorno ao mapa da fome. A soberania alimentar envolve um olhar mais sistêmico ao modelo de produção no campo, que prioriza a produção da agricultura familiar de base ecológica. No Brasil, os alimentos que são disponibilizados em nossa mesa provêm da agricultura familiar que, no entanto, recebe menos incentivos e ocupa menores proporções de terras. As monoculturas do agronegócio não produzem a diversidade de alimentos nutricionais de que precisamos.

Nesse caminho, o governo Lula dá passos lentos. Sufocado pelo orçamento apertado, tenta encontrar caminhos para a retomada de políticas públicas em apoio à produção camponesa. Durante o Governo Bolsonaro, a reforma agrária foi paralisada, e sofreu duros golpes. Um deles foi a edição da normativa que autoriza a titulação individual dos lotes aos assentados da reforma agrária. Antes, o assentado possuía o direito de uso, sendo as terras de propriedade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o que implicava que o Estado mantinha sua responsabilidade com a função social da terra, tendo o dever de assegurar políticas públicas. Agora, estimula-se a mercantilização das terras, tornando possível que áreas destinadas à Reforma Agrária sejam incorporadas ao mercado e se destinem à especulação financeira ou ao agronegócio.

Outro efeito é a explosão de acampados que esperam acesso à terra. Segundo o Movimento Sem Terra (MST), são por volta de 100 mil pessoas que aguardam, em mais de 360 projetos de assentamentos congelados. Muito embora o orçamento de R$ 2,4 milhões seja irrisório para a compra de terras, outros mecanismos precisam ser explorados como a regularização e destinação das terras públicas, o cumprimento real da função social da propriedade e o questionamento da produtividade da monocultura, seja na geração de trabalho como de alimento. Todo esse desafio recairá no presidente do INCRA, nomeado apenas em março.

No último mês, o governo anunciou a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O PAA realiza a compra direta de alimentos da agricultura familiar, e em sua nova modalidade, incluirá comunidades indígenas e quilombolas. No anúncio realizado no dia 23 de março, o presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), Edegar Preto, comunicou: “Vamos comprar, a preço de mercado, os alimentos dos agricultores familiares de todo o Brasil e ajudar a colocá-los na mesa dos brasileiros, garantindo renda a quem produz e uma alimentação de qualidade aos consumidores”. Outra prioridade no programa é a compra de alimentos das mulheres: está prevista a cota de que ao menos 50% das compras sejam das produtoras. Também foi reinstalado o Comitê de Assessoramento do programa, assegurando a participação popular na gestão da política.

Outro passo importante foi o retorno da titulação dos territórios quilombolas. Em março, o governo assinou a titulação de três territórios: Brejo dos Crioulos (MG), com 630 famílias; Serra da Guia (SE), com 198 famílias; e Lagoa dos Campinhos (SE), com 108 famílias. Já tendo titulado tanto quanto o Governo Bolsonaro em quatro anos. A medida faz parte do Programa Aquilombar Brasil, lançado pelo Ministério da Igualdade Racial. O governo ainda comunicou a destinação de 513 milhões de reais para demarcação de territórios  indígenas.


Barra do Turvo/SP: intercâmbio de comunidades quilombolas e mulheres da agroecologia / Vanessa Silva/Amigas da Terra Brasil

O acesso à terra e ao território são condições primeiras para que indígenas, quilombolas, agricultura familiar e camponesa possam produzir alimentos saudáveis para o Brasil, garantindo também preservação e justiça ambiental. Mas as necessidades não se limitam a isso, é preciso fortalecer as redes de troca e comercialização de sementes, reconhecer os saberes e as práticas diversas dos povos do Brasil, incluir grupos informais de produção e cultura agroecológica ancestral que, ainda mais durante a pandemia, realizaram e encurtaram circuitos solidários entre campo e cidade no combate à fome e à violência. Com soluções que também respondem à crise climática, mas principalmente à garantia de renda e autonomia para as mulheres, redes como a Rede de Agroecologia de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo (RAMA), em São Paulo, em articulação com movimentos sociais e organizações da sociedade civil, como a Marcha Mundial de Mulheres (MMM) e a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) e com grupos de consumos na cidade de São Paulo, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira realizaram, em março, um intercâmbio com coletivos de mulheres do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, promovendo uma integração por meio do diálogo campo e cidade, construído na prática pela organização.

Para Lúcia Ortiz, das Amigas da Terra Brasil, “a potência dos saberes e fazeres das mulheres, solidárias no cuidado umas com as outras e generosas no trabalho em mutirão, fortalecem seus conhecimentos ancestrais e sua luta por direitos, fazendo chegar à cidade não apenas alimentos saudáveis, mas também valores de dignidade e de organização popular”.


Frutos das trocas de sementes e saberes quilombolas sobre a sociobiodiversidade e o feminismo popular / Clarissa Silveira, Sítio Libélula/Grupo Sal da Terra, em Rolante (RS)

A soberania alimentar e as políticas públicas envolvem, ainda, os desafios e atravessamentos da biotecnologia. Recentemente, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO) liberou a produção de trigo transgênico no país. O trigo liberado envolve a modificação genética em 62 genes de DNA, uma quantidade muito superior à soja de 4-5 mil, sendo que uma das modificações é realizada para resistir ao agrotóxico glufosinato de amônio, o qual pode causar danos ao sistema nervoso. Sem a devida segurança ambiental e à saúde humana, o trigo transgênico poderá chegar à mesa dos brasileiros rapidamente. Na Europa, a espécie não foi autorizada diante da falta de comprovação. Segundo Naiara Bittencourt, coordenadora do Programa Iguaçu na organização Terra de Direitos, “o processo de liberação da farinha e, agora, do cultivo de trigo transgênico no Brasil apresenta inúmeros vícios e ilegalidades que implicam a sua nulidade. Propagandeado como resistente à seca, o trigo também é modificado para resistir ao glufosinato de amônio, agrotóxico mais perigoso que o glifosato e é considerado potencial cancerígeno pela OMS [Organização Mundial da Saúde]”.

No mês do Abril Vermelho, recordamos os 27 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará; saudamos a memória de todos os filhos e de todas as filhas desta nação que lutam pelo acesso à terra e permanência no território; que plantam e semeiam a comida de nossas mesas; esses trabalhadores e essas trabalhadoras que sonham que um dia haja um governo que governe para eles e elas. Esperamos ansiosos e ansiosas pelos dias de ousadia, quando a erradicação da fome, a reforma agrária, a biodiversidade, a igualdade racial, a dignidade dos povos deste país sejam o centro, e que no projeto político de nação seja priorizada a soberania alimentar, porque é por meio dela e com ela que ergueremos a soberania popular.

Edição: Thalita Pires

Divulgamos, abaixo, depoimento de Nilce Pontes, da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos ) sobre a importância de políticas de compras públicas, entre elas o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), para a agricultura camponesa e quilombola e os riscos que correm com o Acordo UE-Mercosul (União Europeia):

Coluna da ATBr publicada no jornal Brasil de Fato originalmente em https://www.brasildefato.com.br/2023/04/11/a-construcao-da-soberania-alimentar-e-o-retorno-das-politicas-publicas-agrarias

O modelo, a inserção internacional e o ambiente no Mercosul: o Governo Lula como uma oportunidade

Na sua campanha, o presidente brasileiro falou da revisão do acordo entre o Mercosul e a União Europeia (UE), aceito por Bolsonaro após 25 anos de negociações. A transformação proposta pela UE contra uma mudança profunda que melhoraria as perspectivas da região. Pobreza, indústria e extrativismo no centro das atenções.

Por Lucia Ortiz, Viviana Barreto e Natalia Carrau (*)

No processo eleitoral altamente polarizado do Brasil, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, deixou algumas pistas que mais tarde retomou no seu discurso na noite do segundo turno das eleições, quando a sua vitória já era conhecida, em 30 de Outubro de 2022. O seu discurso foi marcado pelas prioridades do governo, tanto na política interna como internacional. O foco foi fortemente orientado, por um lado, para a luta contra a fome e a pobreza e, por outro, para o reposicionamento do Brasil como um ator importante nos debates regionais e internacionais.

Segundo o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e conselheiro de Lula para os assuntos internacionais, um dos pontos da agenda internacional proposta refere-se à necessidade de rever o acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, cujas negociações começaram há quase um quarto de século sem nunca terem sido ratificadas ou debatidas publicamente. Após a derrota da proposta de Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) como uma vitória regional popular que marcou a história dos governos progressistas no início dos anos 2000, o acordo UE-MERCOSUL foi negociado durante mais de duas décadas a portas fechadas, sem grandes progressos, até ser anunciado como fechado e acordado durante o governo de extrema-direita de Bolsonaro em 2019.

É especialmente importante analisar a perspectiva do acordo UE-MERCOSUL no novo contexto geopolítico e à luz dos compromissos do novo governo para garantir a participação social efetiva na formulação de políticas públicas internas e externas. E em termos regionais, é essencial considerar os riscos e oportunidades de uma forma integral, avaliando a região como um território comum onde comunidades, povos e bens comuns de grande importância coexistem.

A situação global, com as vulnerabilidades dos países e regiões – destacadas pela pandemia de COVID-19 e aprofundadas pelos impactos da guerra na Europa, localizada em territórios-chave para o fornecimento de energia e matérias-primas para a agroindústria – deve chamar a atenção para a discussão sobre as relações econômicas internacionais e o poder e controle que as empresas transnacionais têm para determinar os fluxos comerciais e de investimento e os desenhos produtivos dos países e territórios. É momento de colocar as necessidades sociais em primeiro lugar e enfrentar um modelo de comércio neoliberal obsoleto e neo-colonial, impulsionado pela oferta e exigências de mercado das empresas europeias.

A guerra comercial e tecnológica EUA-China, o desenvolvimento do projeto “Belt and Road” pelo gigante asiático, a construção do conceito de autonomia estratégica como orientação para a política internacional da UE, são exemplos claros das ações dos principais atores globais na busca de assegurar as melhores condições e os melhores recursos para a sua inserção internacional. Isso não é novidade. A evolução da UE reflete uma tendência crescente para a aplicação e exportação de regras e regulamentos protecionistas para si própria e extremamente liberalizadora e aberta a outras regiões. O conceito de autonomia estratégica pode ser interpretado como uma versão renovada e complexa do que foi outrora o lançamento da “Europa Global”. A guerra comercial e tecnológica entre os EUA e a China também não é nova, mas é agora que a UE está mais claramente a tentar sair na frente a fim de assegurar a sua quota-parte de recursos e mercados.

Na América Latina, este é um tempo de processos de mudança política num quadro de crises e tensões. Por um lado, o impacto devastador do último período do neoliberalismo, expresso em termos de aumento da desigualdade, um novo ciclo de concentração da riqueza com um recuo nas políticas públicas de bem-estar social e o avanço e reconfiguração do capital transnacional na região. Por outro lado, cenários de mudança política para a esquerda em vários países da América Latina num contexto de profunda polarização política, expansão da cultura do ódio e do conservadorismo e a deterioração das condições democráticas na vida pública.

Particularmente significativos são os movimentos e sinais dos governos do México, Argentina, Chile e Colômbia para reavivar a discussão sobre o regionalismo latino-americano e caribenho e as bases econômicas e políticas estratégicas sobre as quais a nossa relação com o mundo deve assentar. Este cenário é completado especialmente com a vitória eleitoral de Lula da Silva no Brasil, que tem sido fundamental na construção do diálogo político e no reforço institucional da integração regional e da solidariedade.

 

Desafios e riscos

Com os novos cenários políticos surge a necessidade de reposicionar velhos desafios e ponderar novos riscos. Em termos de inserção internacional e no contexto do MERCOSUL, o principal desafio para o movimento pela justiça ambiental reside em poder introduzir o debate sobre o modelo de produção à luz da insustentabilidade do modelo baseado no agronegócio e na exportação de minerais e agro-produtos. E este é um desafio partilhado com projetos políticos que promovem e lutam pela transformação social e por outros movimentos sociais, como os que lutam pela justiça social, trabalho digno e digno, soberania alimentar, justiça de gênero, igualdade racial, direitos dos povos indígenas e quilombolas, entre outros.

Responder à insustentabilidade do modelo implica pensar numa inserção internacional diferente. O principal perigo pode residir em continuar a desenvolver uma inserção internacional que aprofunde ainda mais a insustentabilidade do modelo. Avançar com o acordo entre a UE e o Mercosul sem abrir um debate com participação social sobre o seu conteúdo é, do nosso ponto de vista, um enorme risco.

Durante a campanha eleitoral, o Partido dos Trabalhadores (PT), na voz do próprio Lula, levantou em várias ocasiões a necessidade de renegociar o acordo de comércio livre assinado pelo Mercosul e pela UE. Embora no anúncio da assinatura do acordo fosse evidente que não existiam condições políticas para uma conclusão efetiva, nos últimos três anos foram levantadas objeções devido a desacordo na UE por razões centradas em políticas de proteção do setor agrícola ou preocupações sobre o impacto da política ambiental criminosa do governo de Jair Bolsonaro.

Apesar das numerosas perspectivas críticas desenvolvidas a partir de vários setores do movimento social e da esquerda latino-americana, a definição programática do PT no âmbito da campanha gerou, pela primeira vez, as condições reais para uma avaliação aprofundada dos impactos do tratado e não apenas uma leitura de alguns dos seus aspectos mais sensíveis.

A posição de Lula em relação à renegociação baseia-se no argumento central de que o tratado, tal como assinado, não respeita as necessidades de desenvolvimento do Brasil. Alguns elementos são particularmente preocupantes para o PT: restrições à implementação de políticas de reindustrialização, o impacto da abertura dos contratos públicos, maior regulamentação dos direitos de propriedade intelectual, comércio de serviços, negociações sobre tecnologia e os impactos do comércio bi-regional no ambiente.

O entusiasmo pela conclusão do acordo que vem da UE colide com a proposta de renegociação de Lula. Embora a intenção da UE tenha se concentrado na incorporação de alguns capítulos ou protocolos complementares que poderiam supostamente remediar as “fraquezas” do acordo em matéria ambiental, a nova correlação de forças estabelecida no Mercosul afirma a necessidade de mudanças profundas, mesmo em elementos que fazem parte da espinha dorsal do acordo assinado, tais como o espaço para a política industrial na região.

De uma perspectiva regional, isso deve ser visto como uma grande oportunidade para desenvolver uma discussão verdadeiramente ampla sobre alguns dos conteúdos do acordo que podem ter impactos mais prejudiciais para o nosso desenvolvimento em termos de justiça social e ambiental. Também nos oferece a oportunidade de discutir que outros modelos comerciais são hoje necessários para os povos e países da região, no contexto atual.

O texto do tratado impõe uma ampla liberalização sobre o comércio, que por parte do Mercosul é superior a 90% do total de mercadorias. Várias análises do impacto no comércio bi-regional mostram o efeito que teria no aprofundamento da matriz de intercâmbio com base na atual divisão internacional do trabalho. Segundo o estudo de impacto encomendado pela Comissão Europeia à London School of Economics, os setores econômicos que ganhariam no caso do Mercosul estariam concentrados na carne, soja e derivados, celulose, alguns produtos da indústria alimentar, tais como sucos, e outros alimentos processados, enquanto os perdedores seriam os setores industriais da produção automóvel, química e farmacêutica. A que devemos acrescentar as plantações de cana de açúcar e a indústria associada à produção de etanol, cujas quotas de exportação do MERCOSUL são consideravelmente aumentadas, principalmente a partir do Brasil. Para além de já ser uma produção altamente transnacional e agroquímica intensiva, mantém as características de enorme concentração fundiária e más condições de trabalho herdadas do período colonial, com graves impactos nos biomas da Mata Atlântica, Cerrado e Pantanal e nos seus povos nativos. Do mesmo modo, e a uma escala diferente, no caso do Uruguai, há também possíveis impactos negativos na indústria leiteira e na produção de bebidas.

Este tratado ata as mãos dos países do Mercosul em relação à possibilidade de desenvolver políticas públicas para a transformação produtiva. A UE negou expressamente a possibilidade de introduzir cláusulas de proteção para o desenvolvimento de setores industriais ou disposições para a transferência de tecnologia em investimentos. Além disso, a entrada em vigor do tratado significa a abertura das compras estatais, a nível nacional e subnacional, a empresas europeias que poderiam competir em igualdade de condições com as empresas do Mercosul. E embora alguns países, como o Uruguai, tenham protegido os contratos públicos, as negociações de comércio livre avançam no sentido de uma maior liberalização, pelo que é de esperar que esta proteção seja condicionada ao longo do tempo ou que se exija a sua liberalização total. Desta forma, o Mercosul priva-se de uma importante política de promoção industrial, dando às empresas da UE altamente competitivas um mercado atrativo.

A preocupação com o impacto no ambiente não foi acompanhada de propostas eficazes para o seu tratamento, bem pelo contrário. O esquema comercial estabelecido por este acordo terá impacto na expansão da fronteira agrícola e extrativa primária – incluindo o setor da extração de energia – com um impacto profundo e bem documentado na justiça ambiental em termos de desmatamento, apropriação de terras, efeitos na biodiversidade, qualidade da água e contaminação dos alimentos por agroquímicos, violência e deslocação contra os direitos coletivos das comunidades. Segundo o relatório elaborado por Tom Kucharz para a ala esquerda do Parlamento Europeu, o comércio com a UE está diretamente relacionado com o desmatamento anual de cerca de 120.000 hectares no Mercosul.

A afirmação da Europa de que tem a intenção, os conhecimentos e os instrumentos para forçar os países do Mercosul a cumprir as suas quotas de exportação sem causar desmatamento ou contribuir para as alterações climáticas está, pelo menos historicamente, fora do contexto. Como o presidente argentino Alberto Fernández salientou durante uma cúpula do bloco sul-americano, a UE utiliza a Amazônia como desculpa para o protecionismo da sua própria economia e, podemos acrescentar, para os interesses das suas corporações transnacionais. Apesar da insustentabilidade das cadeias de produção destas empresas e do padrão de consumo crescente de recursos externos numa sociedade desenvolvida, insiste que a solução para o acordo seria um misterioso anexo ambiental elaborado pela Comissão Europeia, a ser aplicado unilateralmente ao Mercosul.

Tendo superado o desconforto de ter assinado um acordo em 2019 com o presidente fascista e antiambiental Jair Bolsonaro, a UE coloca nas mãos de Lula a expectativa de resolver os problemas que supostamente afligem o bloco europeu, sem medir as consequências das assimetrias abismais – desde as originárias da exploração colonial até ao mais recente e não menos brutal desmantelamento dos direitos humanos e da proteção ambiental e das próprias instituições democráticas do Brasil desde o golpe de Estado de 2016 contra a Presidente Dilma Rousseff.

Demorará muito mais de seis meses ou um ano para construir políticas ambientais e de participação social no Brasil. O governo de Lula já começou nos seus primeiros três dias com a revogação dos decretos anunciados pela equipe de transição durante o mês de Novembro de 2022. Entre os mais de 200 decretos presidenciais anunciados para serem revogados estão os que fazem da monitorização, controle e proteção dos biomas brasileiros e dos seus povos uma promessa impossível de cumprir, tais como a militarização, a presença de garimpo e tráfico, o armamento de milícias em grandes propriedades fundiárias, o esvaziamento total dos orçamentos/recursos e da participação social em organismos como o Conselho Nacional do Ambiente (Conama).

As fórmulas normativas apresentadas no processo de negociação são falsas soluções porque não resolvem, mas sim aprofundam o problema estrutural acima mencionado.

Uma verdadeira solução seria limitar a exportação de agrotóxicos produzidos pelas principais indústrias químicas europeias (BASF e Bayer-Monsanto), proibidos de serem comercializados na Europa, mas exportados para utilização na produção agrícola do Mercosul, que é exportada para a UE.

A incorporação de capítulos sobre objetivos de “desenvolvimento sustentável”, ou a implementação de políticas mais próximas dos interesses do protecionismo comercial do que de uma vocação de profunda justiça ambiental, não são soluções reais nem respeitáveis. Aparentemente, a UE está a trabalhar num “documento adicional” ao tratado, aplicável a ambas as partes, que detalharia ainda mais os compromissos relacionados com a “sustentabilidade ambiental e a luta contra as alterações climáticas”. Qualquer que seja o conteúdo deste documento, é difícil prever uma solução em profundidade sem um quadro completo de renegociação do tratado.

O tratado também antecipa as obrigações relativas à proteção privada da propriedade intelectual. Isso está claramente expresso na proteção dos direitos de autor, em que o prazo de proteção previsto pelas obrigações da OMC (Organização Mundial do Comércio) é ampliado. Além disso, é possível prever os progressos nas possibilidades de patentear sementes e variedades vegetais a partir da referência às duas versões da Convenção Internacional sobre a Protecção das Obtenções Vegetais (UPOV) de 1978 e 1991. A versão de 1991 é mais exigente do que a versão em vigor para os países do Mercosul.

No capítulo sobre o comércio de serviços, o tratado permite incorporar os serviços públicos no mercado bi-regional porque a exclusão é limitada aos serviços que são prestados no exercício dos poderes governamentais e em condições de não concorrência com os prestadores privados. Este é outro aspecto que deve ser reconsiderado numa eventual renegociação do acordo, tendo em conta a valorização social da educação pública e dos serviços de saúde durante a pandemia (como o Sistema Único de Saúde do Brasil), bem como a água e o saneamento básico. Estas questões, que são consideradas mercadorias na negociação, contradizem as declarações de Lula sobre o fim da privatização dos serviços no país a partir de 1 de Janeiro de 2023. Ao mesmo tempo, no processo de atualização dos respectivos tratados da UE com o México e o Chile, tem havido uma clara vocação para incorporar os padrões mais avançados nas negociações dos serviços.

Finalmente, foi revelada a intenção de algumas autoridades europeias de separar a negociação e assinatura do acordo comercial das relacionadas com o diálogo político e a cooperação, a fim de evitar a necessidade de ratificação pelos parlamentos nacionais de todos os estados membros da UE e do Mercosul. Com esta manobra, a máscara da política externa da UE caiu finalmente, e é evidente que a sua política externa é uma política neoliberal de comércio livre muito afastada das supostas preocupações sobre transparência, democracia, direitos humanos e cooperação para o desenvolvimento conjunto bi-regional e os processos pioneiros da integração regional.

Os desafios que enfrentamos na região são enormes e podem ser todos resumidos na análise das múltiplas crises baseadas na injustiça e na opressão. É num momento como o atual que temos de apostar em políticas de conteúdo renovado, de expansão num sentido democratizante e profundamente participativo.

Este compromisso deve também estar presente na reflexão sobre a inserção internacional e as formas em que os países da região – que continua a ser os mais desiguais do mundo – se integrarão e construirão um espaço político comum. Para tal, é essencial compreender que as agendas do livre comércio são contraproducentes para projetos políticos de transformação social, que a justiça deve estar no centro desses projetos e que a defesa da democracia deve ser um tema transversal comum em todas as políticas.

Num contexto em que a experiência atual continua a ser de negação da construção da democracia e do desmantelamento dos direitos dos povos por meio do uso extremo da violência, é necessário defender o valor da política e contestar as políticas públicas com princípios e orientações construídas por organizações e movimentos populares. A política de inserção internacional deve também responder aos princípios democráticos, deve ser alinhada com um projeto transformador inclusivo, baseado na justiça. Uma política de inserção internacional que responde às necessidades do povo e que está orientada para a sustentabilidade da vida e não para a reprodução do lucro.

 

*Lucia Ortiz (Amigos da Terra Brasil); Viviana Barreto (REDES – Amigos de la Tierra Uruguay); Natalia Carrau (REDES – Amigos de la Tierra Uruguay)
Foto principal: Agencia NA / Telam

Artigo publicado originalmente em espanhol no site argentino Canal Abierto em https://canalabierto.com.ar/2023/01/23/el-modelo-la-insercion-internacional-y-el-ambiente-en-el-mercosur-el-gobierno-de-lula-como-oportunidad/

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