“É um tempo de guerra, é um tempo sem sol”, como diria Maria
Bethânia. Neste tempo sombrio, temos que ter a ousadia de levantar a
nossa voz contra os donos do poder. Depois do golpe de 2016,
implementou-se uma agenda autoritária de retirada de direitos da classe
trabalhadora, consolidada por um governo fascista e genocida eleito em
2018. A crise de saúde pública, o retorno ao mapa da fome,
o número de desempregados e desempregadas sem teto, a resistência aos
despejos, o avanço brutal do capital sobre os territórios e a entrega do
meio ambiente ao mercado, tudo tem tornado dramática a vida do povo.
Neste ano, temos a oportunidade de resgatar minimamente as condições democráticas pré-golpe para poder voltar a discutir os rumos que queremos para o país. Longe da ilusão de que unicamente por meio de uma eleição e da formalidade do voto podemos transformar a realidade, acreditamos que a construção coletiva de um programa de país, realizada no debate baseado na ação concreta, na ruas e no cotidiano dos territórios, unindo campo e cidade, pode contribuir para o fortalecimento de um projeto político comum e popular, no caminho de uma transição que abale as estruturas injustas da sociedade e aponte para uma mudança de sistema.
As eleições de 2022 já começaram. A escalada da violência, desinformação, notícias falsas,
disseminação do medo e ódio percorrem as ruas das cidades. O plano
econômico é seguir a cartilha neoliberal: retalhar todo o Estado Social e
entregar o controle político e econômico inteiramente à iniciativa
privada. O discurso da segurança pública ganha popularidade com a
militarização, o punitivismo e a repressão, fortalecendo o
conservadorismo de uma sociedade racista-patriarcal.
Esse processo eleitoral deve ser travado com crítica, em concreto com o povo, não apenas pelas redes sociais. Temos a urgência de estar nas ruas, de construir mobilizações e celebrar alianças. Uma ação transformadora é aquela que caminha para a construção do poder popular, que defende a sustentabilidade da vida, o meio ambiente, e os direitos dos povos, e que só é possível a partir de uma recuperação democrática das condições para justiça social, ambiental, econômica, de gênero e contra todas as formas de opressão.
Por isso, nesta semana do Dia Mundial do Meio Ambiente, há 50 anos da
primeira conferência da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre
Desenvolvimento Sustentável em Estocolmo, como uma organização do
movimento por Justiça Ambiental que tem persistido por mais de meio
século e para além do período compreendido entre os golpes (1964 e 2016)
na politização da ecologia e na ecologização da política, apresentamos
nossa contribuição coletiva para a construção programática de um
processo histórico de retomada da democracia, organizada em três eixos:
Organizar e mobilizar para construir o poder e a soberania dos povos
É tempo de ousadia, de assumir nosso papel como povo brasileiro
construtor da nossa própria história. Precisamos nos esforçar em cada
organização territorial para resgatar a capacidade de construção e
trabalho a muitas mãos, articular nossos projetos comuns e iniciativas
emancipatórias. Afirmar a importância dos sujeitos políticos históricos
do campo popular, reconhecer a nossa história de lutas contra a
escravidão, o racismo, o patriarcado, as desigualdades de classe, pela
moradia, pela terra, pela soberania alimentar, pelo direito de ser,
existir e, assim, aumentar nossas capacidades e possibilidades de
organização.
Devemos atuar em direção à valorização dos sujeitos coletivos e das coletividades, acabando com a deslegitimação e criminalização da organização política, especialmente dos movimentos sociais. Construir processos de formação política continuada que se retroalimentam na mobilização popular, a tecer lutas unitárias por meio de ações significantes para um processo de transformação social, visando a construção de sociedades sustentáveis dentro de uma visão internacionalista e popular pela justiça ambiental.
Recuperar a história comum negada à nossa América Latina e construir
um trabalho de solidariedade e de alianças em toda nossa região,
fortalecendo atuações regionais e transregionais em prol da libertação
dos povos, em processos como a Jornada Continental pela Democracia e
contra o Neoliberalismo.
Concretamente, exigiremos ao próximo governo aprofundar a democracia
no Brasil como condição básica de sustentação de sua própria
legitimidade, a qual se dará no cumprimento da Constituição e na
realização dos direitos humanos e dos povos assegurados e conquistados
historicamente pelas lutas populares, e propomos avançar:
1) No fortalecimento dos conselhos de participação social, em
especial os intersetoriais como o CNDH (Conselho Nacional de Direitos
Humanos) e o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional), e na reativação dos conselhos setoriais como o CONAMA
(Conselho Nacional do Meio Ambiente), desmantelados nos últimos anos,
estabelecendo condições para o controle social das políticas setoriais e
transversais e do orçamento público, e na ampliação das esferas de
controle popular para o Poder Judiciário e para a Política Externa;
2) Na proteção dos defensores e das defensoras de direitos humanos e
dos povos, dos territórios, do meio ambiente e dos bens comuns;
3) Na promoção da organização política e social, valorizando as
iniciativas que já temos com riqueza como movimentos sociais –
cooperativas, redes, sindicatos, organizações não-governamentais,
institutos e associações de povos e comunidades – atuando contra a
criminalização da política e promovendo a organização e o diálogo
social;
4) Na construção de políticas estruturantes de incentivo e
instrumentos de parcerias público-comunitárias para fortalecer a
agroecologia, o manejo comunitário dos territórios, da água e da
biodiversidade, as práticas e princípios da economia feminista, a
diversidade nas candidaturas e mandatos, a organização comunal e a
autodeterminação dos povos indígenas e tradicionais e, assim, a
soberania dos povos e a contribuição da diversidade das culturas e modos
de ser e existir para a redução das desigualdades e para um projeto
popular de sociedade mais justa, sustentável e democrática.
Contribuir para o desmantelamento de todas as formas de opressão e do poder empresarial
Grandes empresas de tecnologia e comunicação têm investido pesado e
apoiado processos eleitorais. Querem nos fazer crer que têm as soluções
para o mundo, e que cada vez menos precisamos de Estados para efetivar
conquistas sociais. A política tem sido assim subordinada ao mercado
financeiro e ao lucro do capital transnacional, ao qual pode ser
funcional tanto à democracia neoliberal como à ditadura militar, ao
conservadorismo e ao fascismo.
As grandes corporações, durante a pandemia, concentraram ainda mais
poder e riquezas. Empresas transnacionais, capitalismo, racismo e
patriarcado se entrelaçam de maneiras inseparáveis para acumular mais
riqueza em detrimento dos direitos das maiorias sociais, dos povos e da
natureza, por isso denominamos esse poder empresarial como um mal do
nosso tempo. Trabalhadores e trabalhadoras, a Natureza são bens a serem
consumidos em prol de lucros extraordinários cada vez mais concentrados.
Daí advém o colapso social e ecológico que vivemos.
Esse modelo se sustenta com a manutenção da divisão sexual do
trabalho, as cadeias globais de valor e cuidado, o trabalho reprodutivo
não pago e invisibilizado, a precariedade da vida das mulheres, a
apropriação de seus corpos. As disparidades raciais sustentam o mercado
informal de trabalho e se expressam no racismo institucional. Assim, é
no capitalismo que as opressões de classe, raça e gênero se entrelaçam.
Desnudá-las e romper com essas estruturas é tarefa de uma política de
Estado em prol de uma nova sociedade.
Nossas propostas concretas para um novo governo democrático e para as
candidaturas legislativas, que têm como base o compromisso com o
desmantelamento do poder corporativo e a eliminação de todas as formas
de discriminação e opressão, têm como medidas concretas:
1) Avançar em marcos regulatórios vinculantes para as empresas, a exemplo do PL 572/2022.
Mas também, no plano internacional, o apoio do Brasil à efetivação do
Tratado Vinculante de Direitos Humanos e Empresas, atuando em
proximidade com as posições da sociedade civil;
2) A não aceitação do Acordo União Europeia (UE) – MERCOSUL,
o qual impõe o avanço da privatização de serviços públicos, a expansão
da fronteira do agronegócio e da mineração, o aumento da importação de
agrotóxicos e a abertura das compras públicas à concorrência com
empresas transnacionais. Reabrir um debate público, assegurar a
participação popular e a primazia dos direitos humanos na negociação de
quaisquer acordos comerciais para que, ao invés de reproduzirem relações
coloniais, atendam às necessidades da população, reduzam desigualdades e
respeitem o meio ambiente.
3) Apoio a iniciativas como a Aliança Feminismo Popular e
outros exemplos de ações solidárias das mulheres na periferia que, ao
atuarem na linha de frente no combate à fome, promovam autonomia
econômica das mulheres, localizem circuitos comerciais de alimentos
saudáveis sem veneno desde o campo até as hortas urbanas e cozinhas
solidárias e promovam o diálogo e acolhimento feminista no combate à
violência de gênero no campo e cidade. Mais do que a retomada de uma
Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, com status de
ministério dotado de orçamento e capacidade de transversalizar a
realização dos direitos das mulheres em todas as pastas, demandamos ao
próximo governo que assuma uma visão desmercantilizada de uma Política Nacional de Cuidados,
de modo que o cuidado fora da família não seja acessível só para quem
pode pagar e o Estado assuma responsabilidade ampliando infraestruturas
públicas.
Combate às falsas soluções e articulação das iniciativas emancipatórias populares como alternativa às crises sistêmicas
Vivemos um período de crise. Nesses momentos, o capital se articula
para dar respostas que não enfrentam as causas estruturais, apenas
suavizam efeitos, como as campanhas do empresariado
em prol de doações durante a pandemia. Destacamos sobretudo o avanço
das propostas de financeirização da natureza, que movimentam novos
mercados bilionários duvidosos, com lastro em medidas antidemocráticas
– como a recente regularização do mercado nacional de carbono por decreto presidencial.
São medidas governamentais no âmbito doméstico e internacional que
permitem compensar o desmatamento e a poluição ambiental, justificando o
seu avanço com a compra e venda do que chamamos “créditos de poluição”,
inclusive com recursos públicos do BNDES para projetos de empresas privadas ligadas ao agronegócio,
aumentando ainda mais o assédio e a perda de soberania popular sobre os
territórios que as comunidades tradicionais ainda mantêm verde.
Enquanto isso, empresas como a Uber precarizam a vida dos trabalhadores,
mas anunciam sua “ajuda para combater o desmatamento” em uma área de conservação de mais de 39 hectares no município de Feijó, Acre.
Um programa que se assuma popular precisa combater a financeirização
da natureza e desmascarar seus diversos mecanismos de mercado, que vem
se metamorfoseando em nomes cada vez mais complexos de traduzir e mais
usados pelo setor empresarial (como REDD, CCB, ESG, Soluções Baseadas na
Natureza, NET Zero, Agricultura Climaticamente Inteligente…). Nesse
sentido, construímos coletivamente as contribuições do Grupo Carta de Belém ao debate eleitoral e à reconstrução da política socioambiental brasileira.
Por outro lado, fazer com que os serviços públicos essenciais como
energia elétrica, água, a educação, bem como recursos estratégicos como
petróleo, gás, minerais e a biodiversidade sejam desprivatizados e
retornem ao controle público e popular. Por isso, propomos:
1) A construção de uma Transição Energética Justa e Feminista
– com controle social das políticas energéticas, universalização do
acesso à energia, descentralização da geração, defesa dos serviços
públicos e das parcerias público-comunitárias, redução das emissões de
GEE (gases de efeito estufa) da extração de combustíveis fósseis com
respeito aos direitos da classe trabalhadora (emprego digno,
qualificação/recolocação, diálogo social, direitos sindicais…) e
colocando as necessidades da sustentabilidade da vida no centro, e não o
lucro e o assédio das empresas transnacionais do setor;
2) O combate à fome:
com promoção de ações de solidariedade e de unidade entre campo e
cidade; propostas de recuperação econômica justa e feminista; retomada
de programas de aquisição de alimentos (PAA) e do PNAE (Programa
Nacional de Alimentação Escolar); aprovação da Política Nacional de Redução dos Agrotóxicos (PNRA);
3) Uma política de Moradia para todes e de atenção às necessidades da
crescente População em Situação de Rua, numa perspectiva de Direito à
Cidade com Justiça Ambiental, o que significa a garantia de políticas e
equipamentos públicos que realizem o direito humano à água, à
alimentação, à educação e a saúde, públicas e de qualidade nos centros e
nas periferias urbanas, a segurança para a mobilidade e circulação das
mulheres e população LGBTQIA+ nos espaço públicos, e o direito a um
ambiente ecologicamente equilibrado, com saneamento, qualidade do ar, da
água do solo para viver, respirar, plantar, se alimentar, trabalhar,
desfrutar e fazer cultura;
4) A defesa e cuidado popular dos territórios, com políticas que
protejam e promovam o manejo comunitário dos ecossistemas, as retomadas
indígenas e a resistência comunitária contra mineração, barragens,
estradas, agronegócio, especulação imobiliária; metas reais de reforma
agrária e titulação de terras indígenas e quilombolas em todo o país, fim da tese do Marco Temporal
e efetiva aplicação institucional da Convenção 169 e do direito à
Consulta Livre Prévia Informada e de Boa Fé às populações atingidas por
grandes empreendimentos.
“Se você chegar a ver essa terra da amizade, onde o homem ajuda ao
homem. Pense em nós, só com vontade”, assim vamos superar os tempos de
guerra. Na nossa terra, Brasil, são abundantes as experiências
e construções de iniciativas que se contrapõem às falsas soluções e se
colocam como reais alternativas à crise sistêmica. Durante a
pandemia, a criatividade deu lugar à organização popular, e mesmo com o
isolamento físico, fomos capazes de construir as Marmitas da Terra, as
Cozinhas Solidárias do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), a
Campanha pelo Despejo Zero. O povo organizado se manteve em suas casas,
conseguiu acesso a alimentos, água, saúde, lutando contra um Estado
genocida.
É por isso que somos a força e a esperança. A alternativa para mudar o
sistema somos nós, povo organizado. Um programa de governo popular
precisa reconhecer a história de luta do nosso povo e trabalhar para
construir nossa soberania como nação nas mais diversas frentes:
alimentar, energética, política. Pensemos nas políticas de incentivo à
agricultura familiar e camponesa, o Programa Fome Zero, como foram a
chave para superar a fome em anos anteriores e como podemos avançar para
que esses programas sejam acompanhados por movimentos populares num
processo autônomo, educativo e pedagógico, que enraíze essas conquistas
no imaginário popular e nas estruturas de Estado e melhore a vida
cotidiana das pessoas.
Como Amigos da Terra Brasil, em Aliança Feminismo Popular com o MTST e a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), estamos comprometidas/os na organização popular para construir um Brasil que seja bom para o povo brasileiro com base no princípio da justiça ambiental, que só se realiza com justiça social, econômica e de gênero e no combate emancipatório frente a todas as formas de opressão. Queremos superar esses tempos sombrios de nossa história e construir juntes um futuro de esperança em nossas terras.
Crédito da imagem de destaque: Isabelle Rieger/ ATBr
Artigo publicado no jornal Brasil de Fato neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/06/08/um-programa-de-justica-ambiental-que-supere-os-tempos-de-guerra