Crises sistêmicas e o Estado que queremos

O respeito ao outro, ao meio ambiente e modos de produção que não gerem crises estruturais são soluções para as crises

As tempestades, os ciclones, os desmoronamentos, as enchentes, as secas estão por todos os lados no Brasil. As crises desencadeadas por esses eventos mostram o completo colapso das relações de produção, como consequência delas as relações sociais, e nossa interação com a natureza, no sistema capitalista. O desequilíbrio entre as chuvas e as secas é resultado das mudanças climáticas, que como podemos ver no Brasil já não são eventuais, começam a se tornar contínuas.

Em julho deste ano, a cidade de Maquiné, dentre outras da região no estado do Rio Grande do Sul, sofreu com as fortes chuvas, deixando populações desabrigadas, isoladas, com problemas de acesso à energia e alimentos. No mês passado, novamente o estado enfrentou a mesma problemática. A tempestade deixou, pelo menos, 51 mortos; causou enchentes, destruição de casas e quebra de pontes. Os efeitos atingiram o estado de Santa Catarina. Segundo os meteorologistas, a intensidade desses eventos aumenta porque as águas dos oceanos estão mais quentes.

Na região Norte do país, o evento extremo oposto, as secas. As cidades amazônicas registram as maiores temperaturas. Oito estados enfrentam a mais severa seca dos últimos 40 anos. O voluptuoso Rio Amazonas está baixando, em média, 13 a 14 centímetros por dia. Os estados decretaram emergência ambiental pela escassez da água. Os animais morrem. As populações ribeirinhas perdem o rio, seu meio de transporte, e ficam isoladas. Os fatores para tais alterações são atribuídos ao El Niño, mas também às intensas modificações no meio ambiente do bioma, sobretudo o desmatamento.

Nos últimos anos, várias cidades brasileiras sofreram os impactos dos desastres climáticos. Apesar disso, os estados não modificaram suas escolhas econômicas. As opções políticas pelos subsídios ao agronegócio, à mineração, aos grandes empreendimentos e a políticas desiguais de ordenação territorial afetam diretamente na produção das catástrofes climáticas, assim como nas sequelas deixadas por elas. As políticas climáticas reduzem-se ao conservacionismo ambiental, da criação de  áreas de proteção, e às metas de redução de carbono, insuficientes para dar respostas à crise socioambiental.

O clima não é um assunto apenas físico, é profundamente social, histórico e cultural. Enquanto as soluções à crise climática forem pensadas sem envolver mudanças estruturais, notadamente a de sistema, seguiremos produzindo desencontros. A questão é que as altas classes não enfrentam os males do clima da mesma forma. Sua condição econômica lhes permite viver em zonas privilegiadas ou ter recursos para atendimento emergencial. Por isso, é no Sul Global, assim como na periferia, que as repercussões climáticas produzem maiores danos. Nessa história, comunidades e sujeitos, que pouco ou nada contribuem para as mudanças climáticas, são os que mais pagam sua conta.

Os estados, além das opções equivocadas de política econômica, não investem na estruturação da atenção da Defesa Civil, da assistência social emergencial e nem na provisão de apoio adequado às vítimas dos desastres naturais. Mesmo que os fatos estejam se repetindo ano a ano, mês a mês, governantes não conseguiram estruturar políticas públicas. Muitos dos recursos destinados às calamidades não são adequadamente empregados no atendimento às vítimas e na adoção de medidas de prevenção de desastres.

Isso porque o Estado assume uma percepção de que a vulnerabilidade social é um problema do indivíduo. Assim, pessoas que vivem em casas precárias, em barrancos, morros, próximas de rios, são responsáveis individualmente por desenvolver capacidades para lidar com essas situações. Isso ocorre da mesma forma nas situações trágicas. Os Estados não consideram que a situação econômica, de moradia, é resultado do acesso desigual, dos problemas de distribuição de renda, próprios da economia capitalista. O desfecho é que as vítimas estão completamente desamparadas pelo Estado.

Contra essa lógica, movimentos populares e organizações da sociedade civil, em sua luta anticapitalista, exercem valores solidários de apoio às vítimas, demonstrando uma prática de ser distinta. No Vale do Taquari, a região mais atingida com as enchentes de setembro no Rio Grande do Sul, criou-se a Campanha “Sementes da Solidariedade”.

Cozinha Solidária no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul – Victor Frainer | Levante Popular da Juventude

Composta pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Consea/RS (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional), MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), CPT (Comissão Pastoral da Terra), MAB (Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens), Cáritas, Sindicato de Trabalhadores Rurais e Instituto Cultural Padre Josimo, visitou a região atingida levantando informações sobre as perdas, fornecendo apoio emergencial, inclusive da entrega de sementes para plantarem lavouras perdidas. Também foi construída uma cozinha solidária para apoiar na alimentação das famílias.

A experiência da militância do MAB, com o cenário de calamidade que se instaura aos rompimentos da barragem, contribuiu no apoio para as vítimas poderem se organizar em grupos, reivindicar indenizações, articularem-se para acessar moradias. Experiência apreendida na luta popular, que se constitui como um saber partilhado entre o povo. “Além da entrega das quentinhas, nós do MAB, fomos fazendo contato com pessoas, lideranças e referências, e percebemos que tinham demandas de casas, acesso a informações e direitos”, comenta Alexania Rossato, do MAB/RS. “Mais que levar comida, é preciso levar organização para as famílias”, “de serem sujeitos do processo histórico”, descreveu Alexania. Segundo a militante do MAB, a solidariedade “é parte do princípio do movimento, na situação delicada, gravíssima, que as pessoas passaram”.

Na esteira do acúmulo da experiência histórica da luta popular, a Cozinha Solidária do MTST serviu de referência para a construção da solidariedade no Vale do Taquari. Caio Belloli de Almeida, militante do MTST que esteve na região, destacou ser “muito importante a participação do MTST na Cozinha Solidária, nesta iniciativa, porque como movimento social que proveu a alimentação para as pessoas assistidas, a Prefeitura apenas entregava, não ajudava a construir. Inclusive, em alguns momentos, a Prefeitura ameaçou interromper o processo, foi muito importante o MTST estar lá para conseguir incidir na política”.

Lucas Gertz, do Levante Popular da Juventude, participou deste processo da cozinha. Para ele, os aprendizados da solidariedade da pandemia na produção de alimentos ajudaram a construir a experiência histórica para organizar as cozinhas emergenciais. Lucas caracteriza que vivemos “um processo de aquecimento, de ebulição global, o que torna muito mais importante e urgente as nossas organizações e a sociedade se voltarem ao debate ambiental”. Todo o processo vivenciado nas enchentes está relacionado à forma como estabelecemos as relações de produção, o fenômeno da privatização e a falta de prioridade para a vida na Terra, destaca Lucas.

De forma semelhante, o MST montou uma cozinha solidária no município de Encantado, também no Vale do Taquari, fornecendo marmitas diárias aos desabrigados. A cozinha, organizada com apoio do Levante Popular da Juventude, distribuiu marmitas produzidas com produtos da reforma agrária, orgânicos, vindos de cooperativas do movimento. Marildo Mulinari, militante do MST, conta que a cozinha foi instalada logo no dia seguinte à tragédia. A vivência tem sido rica com a comunidade: “O pessoal vem nos agradecer, dizer que se não fosse nós, não teriam o que comer porque foi a casa, foi tudo embora, as pessoas não tinham mais as coisas”.

Segundo Marildo, mais de 500 militantes estiveram envolvidos em toda a produção das marmitas, uma força tarefa mobilizada para o apoio às pessoas afetadas. Salete Carollo, uma das militantes do MST que foi à região em solidariedade, nos descreveu que foi uma experiência muito forte “para a gente que vem da agricultura, e principalmente, olhando para essa dimensão. É de como o ser humano se move, é pelo amor, pela terra, pela ternura; e se move com o coração para ajudar aqueles que mais precisam”. A fala de Salete é tocante do espírito, dos valores da militância que movem a ajuda humanitária, que são o valor da vida em sua integralidade. A comida que os assentados produzem, da terra que conquistaram, foi o que alimentou os atingidos. As mesmas mãos que trabalharam na produção do alimento trabalharam para o transformar em comida, para servir ao outro. É essa lógica de orientação do trabalho vivo, a da produção de mais vida, a que o mundo deveria estar orientado.

Cedenir de Oliveira, coordenador do MST, também esteve na Cozinha Solidária de Encantado e nos contou que todos que participaram da solidariedade ficaram impactados com a tragédia. “Nós do MST entendemos que poderíamos contribuir na confecção de alimentos, com o aprendizado ao longo de nossos 40 anos de existência, de produzir alimentos em condições adversas, nas estradas, nas marchas, então nós já adquirimos uma expertise”. Cedenir ressalta que o MST recebeu muita solidariedade até se consolidar nos assentamentos, produzir, ter cooperativas. Hoje, conquistou sua dignidade e encontra-se em condições de retribuir. Nas palavras do militante do MST, a solidariedade é um “valor importante para desenvolver não só na tragédia, mas no dia a dia, para romper a cultura do ódio e ignorância para construir uma sociedade mais justa e igualitária”.

A solidariedade militante aos efeitos trágicos das enchentes semeia os valores da sociedade que estamos construindo, centrada na vida humana e na natureza como maiores riquezas do universo. O respeito ao outro, a reciprocidade, o cuidado como política, a construção de outras relações com o meio ambiente, o fim do modo de produção que dá origem estrutural a essas crises são os caminhos para uma real transformação da sociedade, e o horizonte de solução da nossa crise.

Coluna originalmente publicada no Jornal Brasil de Fato, em 11 de outubro de 2023, na página: www.brasildefato.com.br/2023/10/11/crises-sistemicas-e-o-estado-que-queremos 

Parceria entre Consultório de Rua e Cozinha Solidária leva saúde para a população em Situação de Rua

No da 19 de julho, o Consultório de Rua, programa do SUS, foi até a Cozinha Solidária Azenha para atender a população

Com o objetivo de facilitar o acesso a serviços de saúde, a Cozinha Solidária da Azenha e o Consultório de Rua, de Porto Alegre, firmaram parceria para atender a população que frequenta o espaço. Uma vez por mês equipes multidisciplinares compostas por enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, auxiliares de enfermagem, dentistas, entre outros profissionais estará prestando serviços afim de levar direitos básicos a uma parcela da população que sempre teve esses direitos negados.

:: Combate à fome: um dia na rotina da Cozinha Solidária do MTST ::

Prestes a cumprir um ano de funcionamento na Avenida Azenha, nº 608, em Porto Alegre, a Cozinha Solidária da Azenha recebe, todos os dias cerca de 160 pessoas em situação de vulnerabilidade social, proporcionando alimentação nutritiva, além de ser um espaço de formação política social e cultural. E desde o dia 19 de julho, está levando assistência em saúde.

A Cozinha da Azenha faz parte de um projeto nacional idealizado pelo MTST que visou a instalação de cozinhas solidárias em diversas regiões do país durante a pandemia da covid-19. Na capital gaúcha, iniciou suas atividades em uma ocupação. Como o imóvel pertencia à União, foi despejada em menos de um mês. No mesmo dia, a cozinha foi realocada para outro local cedido por uma moradora da região, que possibilitou o prosseguimento da preparação das refeições. Por nove meses, as marmitas foram distribuídas na Praça Princesa Isabel, também situada na Av. Azenha.

:: Após quase oito meses servindo almoço na rua, Cozinha Solidária ganha espaço próprio ::

Em Porto Alegre, de acordo com um levantamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), e da Unisinos, por meio do grupo de pesquisa e extensão interdisciplinar Passa e Repassa, existem 5.788 pessoas vivendo nas ruas da Capital. Pela estimativa da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) há 2.371.

Acesso à saúde 

“A parceria com o consultório da rua iniciou quando o pessoal nos procurou. As pessoas que a gente atende aqui na cozinha seguido têm problemas de saúde, é uma coisa bem recorrente, a dificuldade de acesso à saúde”, expõe o militante do MTST e Coordenador da Cozinha Solidária da Azenha, Fernando Campos Costa.

Ele comenta que o movimento sempre dialogou com os trabalhadores e trabalhadoras da saúde, assim como a prática de encaminhar as pessoas para os centros de saúde, para os postos de saúde, e buscar essas soluções para os frequentadores do espaço.

“Fomos procurados pelos trabalhadores, pela galera do consultório de rua, e eles vieram nos consultar se poderiam atender aqui na cozinha, uma vez por mês. Desde então tem sido bem bom o atendimento. Começa a rolar uma cultura desse cuidado com a saúde, de ver a saúde mais próxima”, afirma.


”Chamamos de Consultório na Rua equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integrais de saúde frente às necessidades dessa população” / Foto: Marco Antonio de Faria

O coordenador explica que há cerca de três meses os atendimentos vêm sendo realizados de forma paliativa. Fernando ressalta o trabalho feito pelas equipes e sobre a importância do Sistema Único de Saúde. “O SUS é um modelo de saúde que, pós-pandemia, se mostrou muito fundamental, importante para garantir o direito à saúde. Para nós, é muito importante que esse serviço exista e que essas pessoas, que estão em situação de rua, outras que estão vindo do Interior, pessoas que moram em comunidades aqui no entorno, como Cabo Rocha, Princesa Isabel, e outras.”

“É um processo de dignidade. Ter um prato de comida é dignidade, conseguir ter uma roupa é dignidade, ter uma pia, um banheiro é dignidade. Poder ter a saúde, garantir essa dignidade são coisas que a gente vem tentando”, complementa.


“A gente acredita que cada vez mais serviços possam ser desenvolvidos dentro da cozinha e que a cozinha seja realmente um lugar de reconstrução da dignidade do nosso povo” / Foto: Marco Antonio de Faria

Fernando destaca também a aprovação, dentro do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a aprovação a política pública de cozinhas solidárias. “A gente acredita que cada vez mais serviços possam ser desenvolvidos dentro da cozinha e que a cozinha seja realmente um lugar de reconstrução da dignidade do nosso povo. Com a PAA a partir de agora, as cozinhas vão começar a receber alimentos, infraestrutura”, destaca o coordenador.

Somado a isso, continua Fernando, há decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe a remoção compulsória da população em situação de rua. “A gente espera que isso seja um novo momento para enfrentar essa situação. Estamos bem esperançosos com essas iniciativas, com essas conquistas que tem tido nos últimos dias. A gente acredita que vai conseguir mudar essa realidade e enfrentar melhor esses impactos todos que a gente teve, tanto na pandemia quanto durante o governo Bolsonaro”, finaliza.

:: MTST combate a fome e promove segurança alimentar através de cozinha solidária no RS ::

Sobre o consultório de rua 

Conforme explica a gerente do Consultório na Rua Centro e Unidade Móvel de Saúde SMS/ IBSAÚDE e educadora Social de Rua do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), Luciana Moro Machado, a estratégia Consultório na Rua foi instituída pela Política Nacional de Atenção Básica, em 2011. Tento em vista ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde, ofertando, de maneira mais oportuna, atenção integral à saúde para esse grupo populacional, o qual se encontra em condições de vulnerabilidade e com os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados.

”Chamamos de Consultório na Rua equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integrais de saúde frente às necessidades dessa população. Elas devem realizar suas atividades de forma itinerante e, quando necessário, desenvolver ações em parceria com as equipes das Unidades Básicas de Saúde do território”, expõe


Consultório de rua oferece uma escuta qualificada, atendimento por equipe multidisciplinar, testes rápidos, orientações de necessidades mais emergenciais para a saúde / Foto: Marco Antonio de Faria

De acordo com Luciana, ações compartilhadas e integradas aos serviços especializados, redes de suporte, como por exemplo a Cozinha Solidária, com estratégias para a melhoria de qualidade de vida das pessoas, potencializam e qualificam as ações do Consultório na Rua.

“Buscamos através das ações realizadas conhecer as pessoas e/ou dar continuidade ao acompanhamento e atendimento com o cuidado continuado e longitudinal. Além de uma escuta qualificada, atendimento por equipe multidisciplinar, testes rápidos, orientações de necessidades mais emergenciais para a saúde da pessoa, conseguimos acessar e reencontrar cada um atendido e criar vínculo para saber se a vida de cada um que nos pede auxílio, está sendo eficaz e minimamente aliviar os sofrimentos causados por estarem na rua. Nosso clima e tempo como o inverno aqui no Sul, trazem situações mais agravadas para a saúde das pessoas vulnerabilizadas”, detalha a gerente.

Luciana afirma que a Cozinha Solidária é muito significativa para todos, tanto para as pessoas em situação de rua, como também para os profissionais que fazem parte do SUS e acreditam em um acolhimento e tratamento justo e solidário para todos, todas e todes.

“A fome é um dos maiores problemas enfrentados pela população que atendemos, pois nas ruas enfrentamos diariamente o maior abandono que um ser humano pode ter em toda a sua existência, e não há solução para o problema da fome sem política pública. A Cozinha Solidária é um exemplo de inspiração para novas estratégias de humanização em saúde coletiva e políticas públicas”, frisa.


“A Cozinha Solidária é um exemplo de inspiração para novas estratégias de humanização em saúde coletiva e políticas públicas” / Foto: Jonathan Heckler

Texto de Fabiana Reinholz, do Brasil de Fato RS. Publicado originalmente em 01 de agosto de 2023, em: https://www.brasildefators.com.br/2023/08/01/parceria-entre-consultorio-de-rua-e-cozinha-solidaria-leva-saude-para-a-populacao-em-situacao-de-rua 

Ambientalistas voltam a alertar para perigos do acordo UE-Mercosul

Associações ambientalistas alertam para o eventual impacto do acordo UE-Mercosul no ambiente, direitos humanos, trabalhadores, pequenos agricultores e no bem-estar animal.

Na segunda-feira, ativistas montaram na Praça do Luxemburgo, em Bruxelas, uma “torre Jenga da ganância UE-Mercosul”, apelando ao fim do acordo comercial UE-Mercosul | Foto: Johanna de Tessieres, Greenpeace


O acordo comercial entre a União Europeia (UE) e o bloco Mercosul, que reúne Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, foi um dos tópicos de debate na Cúpula da UE com os países da Comunidade de Estados da América Latina e Caribe (CELAC). Este pacto continua a ser criticado por associações ambientalistas, que convergiram em Bruxelas para alertar para o impacto do acordo no meio-ambiente, direitos humanos, trabalhadores, pequenos agricultores e no bem-estar animal.

A Cúpula UE-CELAC decorreu esta segunda e terça-feira em Bruxelas, após oito anos sem reuniões de alto nível entre os blocos, com a participação de mais de 50 líderes, entre os quais o Presidente brasileiro, Lula da Silva, e o primeiro-ministro português, António Costa.

No final da Cúpula, a coligação Stop EU-Mercosur, que reúne mais de 450 organizações da Europa e da América Latina, lançou um comunicado  que critica o anúncio dos líderes da UE e do Mercosul de que pretendem concluir o tratado até ao fim deste ano.

Na segunda-feira, ativistas montaram na Praça do Luxemburgo, em Bruxelas, uma “torre Jenga da ganância UE-Mercosul”, apelando ao fim do acordo comercial UE-Mercosul | Foto: Johanna de Tessieres, Greenpeace

“Mais conversações secretas apenas conduzirão a um resultado que coloca as florestas, o clima e os direitos humanos sob uma pressão insuportável”, alertou Lis Cunha, da Greenpeace Alemanha, citada num comunicado da coligação Stop EU-Mercosur.

“Em vez de avançar com um acordo concebido para a exploração empresarial, a UE e os países do Mercosul devem começar de novo e repensar a sua relação de uma forma que coloque o planeta, as pessoas e os animais acima da destruição do nosso planeta para obter lucros a curto prazo”, sublinha a ativista.

Na segunda-feira, ativistas de 50 organizações tinham montado na Praça do Luxemburgo, em Bruxelas, uma “torre Jenga da ganância UE-Mercosul”, recriando uma versão gigante do jogo. Os grupos ambientalistas apelam aos decisores políticos de ambos os lados do Atlântico para “pararem o acordo comercial UE-Mercosul e reabrirem as negociações pelas pessoas, animais e o planeta”.

Desmatamento  e sustentabilidade

O acordo de livre comércio entre a UE e o Mercosul, alvo de negociações ao longo de 20 anos, atingiu um compromisso político em 2019, mas a ratificação continua por concluir devido a questões ambientais levantadas pela UE durante o período em que Jair Bolsonaro presidiu ao Brasil.

No ano seguinte ao compromisso alcançado, o Presidente francês, Emmanuel Macron, rejeitou o acordo, depois de um estudo revelar o risco de um aumento de desmatamento com a entrada em vigor. Dentro da UE, também a Áustria apresenta reservas em relação ao acordo da UE-Mercosul por razões comerciais e ambientais.

A Comissão Europeia propôs um adendo sobre desmatamento e sustentabilidade e aguarda neste momento uma resposta do Mercosul ao documento complementar proposto pelo bloco comunitário. Apesar das críticas, a atual presidência espanhola da UE espera que esta Cúpula seja um ponto de partida para desenvolvimentos na conclusão do acordo UE-Mercosul.

Na segunda-feira, o Presidente brasileiro, Lula da Silva, defendeu um acordo UE-Mercosul “baseado na confiança mútua” e não “em ameaças”, argumentando que as exigências ambientais europeias são “desculpa para o protecionismo”.

Lula da Silva afirmou esperar que a UE e o Mercosul finalizem este ano o acordo comercial, para “abrir horizontes” aos blocos regionais, pedindo “um sinal” do compromisso. “Queremos um acordo que preserve a capacidade das partes e que responda a desafios presentes e futuros.”

Para algumas organizações ambientalistas, pelo contrário, o adendo proposto pela UE não é sequer suficiente para sanar as ameaças ambientais que identificam no tratado. Alberto Villarreal, da Amigos de la Tierra América Latina y Caribe (ATALC), defende que “nenhum protocolo ambiental suplementar será alguma vez capaz de eliminar as ameaças às pessoas, aos territórios e ao planeta que estão embutidas neste acordo de comércio livre neocolonial e perversamente orientado para o lucro empresarial”.

Citado no comunicado da coligação Stop EU-Mercosur, o ativista apela a “acordos socio-ambientais multilaterais vinculativos”, que permitam reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, “e não de falsa soluções baseadas no mercado”.

Questionado sobre o acordo comercial que falhou em 2019, o primeiro-ministro português, António Costa, recordou que o quadro político do Brasil era diferente na altura e que o então Presidente Jair Bolsonaro “não tinha nenhum compromisso com as alterações climáticas, cuja existência negava”. “Hoje o Presidente do Brasil é o campeão da defesa da Amazónia, é o campeão da luta contra o desmatamento, o campeão da luta contra as alterações climáticas”, acrescentou.

António Costa reconheceu que “há avanços entre os países do Mercosul” e que, em princípio, já está preparada a resposta que vai ser apresentada à União Europeia.

Emmanuel Macron e Lula da Silva | Foto: REUTERS

Ritmo alarmante de destruição da natureza

Em entrevista ao Azul, no início de Junho, a diretora da Human Rights Watch no Brasil, Laura Canineu, alertou que “é importante que a UE se mantenha vigilante, para que Lula possa realmente cumprir o que prometeu, em relação aos povos indígenas e a ser um líder na maior crise que a humanidade está vivendo, que é a crise climática”.

“Entendemos que a União Europeia, por exemplo, não pode ratificar o acordo Mercosul-UE se o Brasil não mostrar progresso efetivo na redução do desmatamento e no combate à impunidade por atos de violência e criminalidade contra os defensores da floresta”, acrescentou ainda Laura Canineu.

De acordo com o comunicado da coligação Stop EU-Mercosur, várias análises têm mostrado que “a redução dos direitos aduaneiros e dos controles de produtos como as peças de automóveis, os pesticidas provenientes da UE e a carne bovina e aves de capoeira provenientes de países da América do Sul aumentarão o ritmo já alarmante de destruição da natureza”.

Morgan Ody, da coordenação europeia da organização La Via Campesina, alerta que “os acordos de comércio livre tornam impossível aos agricultores de média e pequena escala viverem da agricultura, e é por isso que os camponeses são contra eles”.

“Os agricultores de ambos os lados não querem produzir para exportar e competir”, defende a ativista francesa, citada no comunicado subscrito por 450 organizações. “Queremos produzir para alimentar as comunidades locais, dando prioridade ao comércio local, nacional e regional acima do comércio internacional.”

Morgan Ody apela, assim, aos membros do Parlamento Europeu e aos governos “de ambos os continentes” para que se unam como “aliados da soberania alimentar e aumentem a pressão para anular o acordo UE-Mercosul”.

Em Novembro do ano passado, mais de 200 organizações de todo o mundo (incluindo 16 associações portuguesas) apelaram aos decisores políticos para que defendam “o controle democrático dos acordos comerciais” e se oponham às tentativas de aprovar o acordo comercial sem a ratificação pelos parlamentos de todos os Estados-membros. As ONG afirmam, baseadas numa análise jurídica, que esta manobra constitui uma violação do mandato de negociação que os Estados-membros da UE conferiram à Comissão.

No seu todo, a região da América Latina e Caribe é responsável por mais de 50% da biodiversidade do planeta, representando também 14% da produção mundial de alimentos e 45% do comércio agro-alimentar internacional líquido. É ainda uma potência para energias renováveis, com as fontes alternativas a serem responsáveis por cerca de 60% do cabaz energético da região.

Texto  Escrito por  e

Fluxos cosmológicos na cidade: a (des)invisibilização indígena

Artigo  de Carmem Lúcia Thomas Guardiola¹ e Roberta Deroma² aborda as retomadas Mbya Guarani na Ponta do Arado (Porto Alegre-RS). No extremo sul da cidade de Porto Alegre, no bairro Belém Novo, um movimento cosmológico em busca de territorialidade acontece em terras de propriedade privada. Indígenas da etnia Mbya Guarani retomam território na Ponta do Arado até então destinado a construção de um empreendimento imobiliário. O movimento de Retomada de territorialidade perpassa a cidade e seus habitantes em relações de conflitos e afetos, no qual interesses econômicos e de bem viver vão construindo histórias. Confira: 

Porto Alegre tem seus bairros centrais repletos de concreto, prédios uns ao lado dos outros e muitos carros soltando fumaça cinza percorrendo ruas asfaltadas de sentimentos expostos nos ritmos urbanos. Os bairros mais afastados do centro na zona sul mesclam o concreto ao verde em uma mistura de asfalto e de terra, de pessoas e de não humanos, de áreas urbanas e de áreas rurais.

Entre todas estas ambiências — bairros, cores, chãos, pessoas, ruídos –, encontramos os Mbya. Estes indígenas têm seu território de vivências não demarcado por linhas fronteiriças divisórias, mas em uma vasta área ao sul da América do Sul. Eles caminham e vivenciam estes espaços, mas é nas matas ou próximo a elas que se constituem como indígenas Mbya.

É em busca destes territórios, perpassados por concreto, que os Mbya caminham rumo ao seu fortalecimento: três lideranças se deslocaram por terra e por água até chegarem a ponta do Arado Velho. De barco seguiram e aportam no dia 15 de junho de 2018 na Ponta do Arado onde Alexandre, Timóteo e Basílio com suas famílias encontraram todos os elementos de vivência para potencialização de seus corpos.

Neste mesmo espaço geográfico existe outra história.

A Ponta do Arado é uma área de preservação de 223 hectares e faz parte de um todo de 426 hectares da Fazenda do Arado Velho que está localizada às margens do Guaíba no bairro Belém Novo, extremo sul da cidade de Porto alegre. Uma área territorial estranha aos moldes do indígena por ser privada e com donos. Nessa história, os proprietários, representados pela Arado Empreendimentos Ltda., idealizam um projeto de urbanização que prevê a construção de condomínios de alto padrão e centros comerciais.

Conflitos emergem diante de diferentes visões de mundo relacionadas às questões ambientais, estéticas e econômicas. Sentimentos desabrocham, constroem e transformam a história do bairro atravessada pelas disputas sociais e políticas em torno de uma terra singular que é significada através da longa vivência de seus moradores.

Após denúncias e pressões do movimento socioambiental composto por estudantes, ambientalistas e moradores do bairro Belém Novo, o projeto de urbanização está suspenso por questões legais no momento desta publicação. Tais conflitos com os empreendedores se intensificaram frente a uma nova presença antes invisibilizada: a presença indígena Mbya Guarani.

Enquanto os idealizadores do empreendimento imobiliário demandam na justiça a concretização de seus planos, criam conflitos ideológicos e morais entre os moradores e causam indisposições e constrangimentos para os Mbya que permanecem fortes e determinados em estado de Retomada das terras e do seu modo de ser.

Neste estado de Retomada, os indígenas recebem apoio de um movimento em alguns momentos de tensão. Os Mbya foram expulsos das matas da Ponta do Arado e encurralados nas areias da praia sem acesso à água potável, impedidos de transitar nas matas da região para buscarem materiais à construção de casas e de plantar suas sementes milenares passadas de Guarani à Guarani. Quando são constrangidos pelos não-indígenas, o movimento lhes oferece alimentos, filtros de água, roupas, materiais para erguerem seus abrigos, um barco para se locomoverem e visitarem seus familiares ou mesmo recebê-los em visita. Recebem também o apoio afetivo do Juruá (não-indígenas) ao irem em busca de redes de apoio em eventos na cidade.

A cidade perpassa o mundo Mbya. Não mais somente os campos, os rios, os lagos, os arroios e os outros indígenas, como também os espaços urbanos.

Em meio a acusações — como de destruidores do meio ambiente –, as famílias Guarani na Ponta do Arado estão em um espaço ínfimo ao lado de sítios arqueológicos com vestígios de seus ancestrais. Estes, que eram canoeiros, circulavam pelo Guaíba e pela Lagoa dos Patos de ponta em ponta, e a ponta do Arado Velho era somente mais um espaço de vida sem propriedades privadas. Hoje o local se configura enquanto periférico tanto a respeito de sua localização quanto de sua inserção nos espaços de diálogo sobre a cidade de Porto Alegre. Seu próprio status de zona rural se encontra fragilizado, tornando-se alvo de alterações e projetos de leis que denotam parcialidade ao se empenharem em propiciar a construção do empreendimento e ao desconsiderar a malha de conflitos e questões emergentes.

A região segue acompanhada do risco de estar fadada a um único modo de se conceber a cidade sob o discurso de progresso e de crescimento. Modo este que desconhece presenças indígenas no território urbano e que reforça estereótipos em torno da pessoa indígena ao negar este espaço a elas.

O estado de Retomada de terras dentro da sua compreensão enquanto resiliência pode ser entendido como um modo de se retomar uma cosmovisão aniquilada e ressignificar lugares, questionando acerca das funções dos espaços urbanos e o quanto correspondem às necessidades daqueles que, de vários modos, fazem parte deles. Terra e ancestralidade se somam em forma de Retomada, indagações e perspectivas.

Esta distinta forma de interrogar, interpretar e sentir o mundo nos traz respostas para a questão: como em tanto tempo de suas existências, constrangidos a se contentar com cada vez menos matas, suas crianças ainda brincam nas areias das praias da cidade?

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[1] Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora associada ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT/PPGAS/UFRGS), guardiolars2@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/4343383842143051

[2] Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), integra o Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/PPGAS/UFRGS), deromaroberta@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/3096737094617446

Referências:

LADEIRA, Maria Inês. O caminhar sob a luz: o território Mbya à beira do oceano. São Paulo: UNESP, 1992.

PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: UNESP/ISA, Rio de Janeiro: NUTI, 2007.

O artigo foi publico originalmente aqui, confira

Pau que dá em Francisco não dá em Chico

Movimentos e organizações sociais participaram em peso dos atos nacionais em defesa da democracia na semana passada – Foto: Jorge Leão

O coração dos progressistas se encheu de alegria e esperança com as imagens simbólicas da posse presidencial no início do mês e com os discursos dos novos ministros no decorrer dos dias. Já o dos bolsonaristas estava carregado de ódio e de vingança, quando destruíram os prédios dos três poderes, no dia 8 de janeiro, em Brasília. Apesar da vitória eleitoral e de uma coalizão ampla de setores e interesses, unidos na centralidade do restabelecimento da democracia no país, os golpistas seguem fortemente organizados. Evidenciando que a posse foi somente uma das batalhas vencidas, e que, ainda, são muitas as trincheiras para derrotar o fascismo.

Um dos exemplos concretos disso é a presença contínua de pessoas na porta de quarteis confabulando mentiras e atentando contra a Constituição ao pedirem a intervenção militar. Mesmo após meses, seguem sob sol e chuva, nesse delírio coletivo. De igual modo, assusta a adesão e o apoio de empresários, celebridades, parlamentares e muitos membros das forças repressoras, aos atos antidemocráticos, os quais, a despeito da posição que ocupam, não estão comprometidos com o respeito às instituições. E claro, o espetáculo do caos armado no dia 8 de janeiro, em que golpistas confundem manifestação da liberdade de crítica com vandalismo, banalizando o patrimônio histórico nacional. Longe de fatos espontâneos e isolados, a desordem parece muito bem financiada e organizada para confundir as massas.

:: Posse presidencial: saiba quem subiu a rampa e passou a faixa para Lula ::

Há, ainda, uma grande adesão de parcelas da sociedade brasileira ao bolsonarismo. Muito embora algumas delas não apoiem os rumos que a destruição dos prédios dos três poderes tomaram, seguem alimentando mentiras nas redes sociais. Esses quinhões sociais não frequentam debates públicos e nem se colocam abertos ao diálogo, pelo contrário, estão refugiados em bolhas virtuais acessando um conteúdo perigoso, destinado a produzir e reproduzir alienação. Que os dilemas das redes sociais são um risco para a democracia, especialistas já apontavam na última década; resta saber até quando permitiremos que este seja um espaço não regulado que ameace valores democráticos e de coletividades.

Recordemos que as permissividades de práticas autoritárias vêm marcando nossa história desde as marchas de 2013. Naquela época a polícia militar, em diversos estados, repreendeu violentamente manifestantes que, neste caso sim, lutavam por direitos constitucionalmente assegurados. Ao longo de toda a resistência ao golpe de 2016, que depôs a presidenta Dilma Rousseff, parlamentares e a grande mídia foram coniventes com ilegalidades. Com a perseguição política ao presidente Lula, também observamos a seletividade do sistema punitivo, quando a Operação Lava Jato quebrou com as garantias fundamentais do presidente, sem qualquer comprometimento com o devido processo legal. Nesse período, nascia o ódio à organização política partidária, especialmente ao Partido dos Trabalhadores (PT), emergindo valores conservadores e violentos na sociedade que, agora,  desafiam a democracia.

Os bolsonaristas estão nas famílias, nas escolas, nos condomínios, nas empresas que compramos produtos e, como cada vez mais sinalizam as investigações, possuem ligações com o agronegócio, o garimpo e as madeireiras. As revelações da quebra do sigilo de 100 anos mostram que, ao invés de combater a corrupção – uma das principais pautas do governo anterior – estes grupos estão inteiramente ligados a ela, e pior, foram eleitos ao Congresso.

Como enfrentar este desafio e unir o Brasil? Certamente, as saídas que apresentaremos a esses fascistas dirão muito sobre que tipo de democracia iremos construir, sobretudo, como política de governo. Questões estruturais históricas que antes vinham sendo negligenciadas estão colocadas na mesa por alguns dos novos ministros. A decisão pela existência de um Ministério dos Povos Indígenas (MPI), as indicações para cargos que envolvem população negra e LGBTQI+, a preocupação com o aumento da representatividade de mulheres, situam um outro lado da disputa.

:: “A resistência secular preta e indígena” toma posse: Guajajara e Anielle são ministras ::

“Nunca mais, um Brasil sem nós!”

A frase de Sônia Guajajara, proferida em seu discurso de posse como ministra dos Povos Indígenas, ecoou durante a semana, demarcando que um grupo historicamente excluído do poder chegou a ele.  Disse ela: “Estamos aqui, de pé! Para mostrar que não iremos nos render. A nossa posse aqui hoje, minha e de Anielle Franco (Ministério da Igualdade Racial), é o mais legítimo símbolo dessa resistência secular preta e indígena no Brasil!”. Será que os donos do poder, com seus bárbaros bolsominions, irão aceitar?

Ministra Sônia Guajajara participa de ritual indígena do povo Terena durante sua posse / Sérgio Lima / AFP

Sônia, e toda a simbologia de sua posse, relembra os muitos indígenas e seus aliados que perderam a vida diante de toda a violência do colonialismo, convidando todos a caminhar, a partir da cosmologia indígena, para repensar o uso da terra e coabitarem junto a outros seres. Em suas palavras, define um sentido para a democracia que quer construir, a “democracia do bem-viver”.

A democracia também esteve marcada na fala de Anielle Franco que, recordando a memória de sua irmã, comprometeu-se a pôr fim à política de morte e construir justiça, reparação e democracia. Assim, enunciou: “Precisamos identificar e responsabilizar quem insiste em manter esta política de morte e encarceramento da nossa juventude negra, comprovadamente falida. Assim como estamos identificando e responsabilizando quem executou, provocou e financiou a barbárie que assistimos no último domingo”.

Durante a posse da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, foi sancionada a lei que tipifica a injúria racial como racismo / Sergio Lima / AFP

Para construir o “verdadeiro Brasil que tomou posse”, “juntas”, Anielle destacou que será necessário enfrentar as dívidas do passado “até que os sonhos de nossos ancestrais se tornem realidade”. Em sua posse, a ministra convidou os demais ministros, o governo e o povo brasileiro a revisitar nosso passado para responsabilizar os atores e, assim, construir equidade.

Duas mulheres, uma negra e uma indígena, que chegam à posição de ministras neste país inundado de contradições sociais, aguerridas e determinadas a mudar o sentido da democracia, que até agora as elites dominantes proveram. Diferentemente daquelas que usam da violência, as imagens movidas são da reciprocidade, da coletividade, da solidariedade, das relações de afeto com a terra. Oposto ao Brasil da barbárie, Sônia diz: “o Brasil é plural, é alegria, é colorido e solidário!”.

Um país com a democracia em disputa

O coração dos progressistas se encheu de alegria e esperança com as imagens simbólicas da posse presidencial no início do mês e com os discursos dos novos ministros no decorrer dos dias. Já o dos bolsonaristas estava carregado de ódio e de vingança, quando destruíram os prédios dos três poderes, no dia 8 de janeiro, em Brasília. Apesar da vitória eleitoral e de uma coalizão ampla de setores e interesses, unidos na centralidade do restabelecimento da democracia no país, os golpistas seguem fortemente organizados. Evidenciando que a derrota eleitoral e a posse foram somente uma das batalhas vencidas, e que, ainda, são muitas as trincheiras para derrotar o fascismo.

Movimentos e organizações sociais participaram em peso dos atos nacionais em defesa da democracia na semana passada – Foto: Jorge Leão

Um dos exemplos concretos disso é a presença contínua de pessoas na porta de quarteis confabulando mentiras e atentando contra a Constituição ao pedirem a intervenção militar. Mesmo após meses, seguem sob sol e chuva, nesse delírio coletivo. De igual modo, assusta a adesão e o apoio de empresários, celebridades, parlamentares e muitos membros das forças repressoras, aos atos antidemocráticos, os quais, a despeito da posição que ocupam, não estão comprometidos com o respeito às instituições. E claro, o espetáculo do caos armado no dia 8 de janeiro, em que golpistas confundem manifestação da liberdade de crítica com vandalismo, banalizando o patrimônio histórico nacional. Longe de fatos espontâneos e isolados, a desordem parece muito bem financiada e organizada para confundir as massas.

Há, ainda, uma grande adesão de parcelas da sociedade brasileira ao bolsonarismo. Muito embora algumas delas não apoiem os rumos que a destruição dos prédios dos três poderes tomaram, seguem alimentando mentiras nas redes sociais. Esses quinhões sociais não frequentam debates públicos e nem se colocam abertos ao diálogo, pelo contrário, estão refugiados em bolhas virtuais acessando um conteúdo perigoso, destinado a produzir e reproduzir alienação. Que os dilemas das redes sociais são um risco para a democracia, especialistas já apontavam na última década; resta saber até quando permitiremos que este seja um espaço não regulado que ameace valores democráticos e de coletividades. 

 Recordemos que as permissividades de práticas autoritárias vêm marcando nossa história desde as marchas de 2013. Naquela época a polícia militar, em diversos estados, repreendeu violentamente manifestantes que, neste caso sim, lutavam por direitos constitucionalmente assegurados. Ao longo de toda a resistência ao golpe de 2016, que depôs a presidenta Dilma Rousseff, parlamentares e a grande mídia foram coniventes com ilegalidades. Com a perseguição política ao presidente Lula, também observamos a seletividade do sistema punitivo, quando a Operação Lava Jato quebrou com as garantias fundamentais do presidente, sem qualquer comprometimento com o devido processo legal. Nesse período, nascia o ódio à organização política partidária, especialmente ao Partido dos Trabalhadores (PT), emergindo valores conservadores e violentos na sociedade que, agora,  desafiam a democracia.  

Os bolsonaristas estão nas famílias, nas escolas, nos condomínios, nas empresas que compramos produtos e, como cada vez mais sinalizam as investigações, possuem ligações com o agronegócio, o garimpo e as madeireiras. As revelações da quebra do sigilo de 100 anos mostram que, ao invés de combater a corrupção – uma das principais pautas do governo anterior – estes grupos estão inteiramente ligados a ela, e pior, foram eleitos ao Congresso. 

Como enfrentar este desafio e unir o Brasil? Certamente, as saídas que apresentaremos a esses fascistas dirão muito sobre que tipo de democracia iremos construir, sobretudo, como política de governo. Questões estruturais históricas que antes vinham sendo negligenciadas estão colocadas na mesa por alguns dos novos ministros. A decisão pela existência de um Ministério dos Povos Indígenas (MPI), as indicações para cargos que envolvem população negra e LGBTQI+, a preocupação com o aumento da representatividade de mulheres, situam um outro lado da disputa.

“Nunca mais, um Brasil sem nós!”

Ministra Sônia Guajajara participa de ritual indígena do povo Terena durante sua posse / Sérgio Lima / AFP

A frase de Sônia Guajajara, proferida em seu discurso de posse como ministra dos Povos Indígenas, ecoou durante a semana, demarcando que um grupo historicamente excluído do poder chegou a ele.  Disse ela: “Estamos aqui, de pé! Para mostrar que não iremos nos render. A nossa posse aqui hoje, minha e de Anielle Franco (Ministério da Igualdade Racial), é o mais legítimo símbolo dessa resistência secular preta e indígena no Brasil!”. Será que os donos do poder, com seus bárbaros bolsominions, irão aceitar? 

Sônia, e toda a simbologia de sua posse, relembra os muitos indígenas e seus aliados que perderam a vida diante de toda a violência do colonialismo, convidando todos a caminhar, a partir da cosmologia indígena, para repensar o uso da terra e coabitarem junto a outros seres. Em suas palavras, define um sentido para a democracia que quer construir, a “democracia do bem-viver”.

A democracia também esteve marcada na fala de Anielle Franco que, recordando a memória de sua irmã, comprometeu-se a pôr fim à política de morte e construir justiça, reparação e democracia. Assim, enunciou: “Precisamos identificar e responsabilizar quem insiste em manter esta política de morte e encarceramento da nossa juventude negra, comprovadamente falida. Assim como estamos identificando e responsabilizando quem executou, provocou e financiou a barbárie que assistimos no último domingo”. 

Brazilian new Minister for Racial Equality, Anielle Franco, gestures during her swearing-in ceremony at the Planalto Palace in Brasilia on January 11, 2023. (Photo by Sergio Lima / AFP)

Para construir o “verdadeiro Brasil que tomou posse”, “juntas”, Anielle destacou que será necessário enfrentar as dívidas do passado “até que os sonhos de nossos ancestrais se tornem realidade”. Em sua posse, a ministra convidou os demais ministros, o governo e o povo brasileiro a revisitar nosso passado para responsabilizar os atores e, assim, construir equidade. 

Duas mulheres, uma negra e uma indígena, que chegam à posição de ministras neste país inundado de contradições sociais, aguerridas e determinadas a mudar o sentido da democracia, que até agora as elites dominantes proveram. Diferentemente daquelas que usam da violência, as imagens movidas são da reciprocidade, da coletividade, da solidariedade, das relações de afeto com a terra. Oposto ao Brasil da barbárie, Sônia diz: “o Brasil é plural, é alegria, é colorido e solidário!”.

* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2023/01/17/um-pais-com-a-democracia-em-disputa 

Nota de repudio contra los actos terroristas que destruyeron el patrimonio público del pueblo brasileño en un intento fracasado de golpe. En defensa de la democracia: ¡el pueblo que ha elegido a Lula va a garantizar su gobierno!

Amigos de la Tierra Brasil, organización social con más de 50 años de actuación nacional por Justicia Ambiental, viene a público, en ese momento vil de la historia de Brasil, repudiar vehementemente los actos golpistas practicados por bolsonaristas de destrucción del Congreso Nacional, del Supremo Tribunal Federal y del Palacio del Planalto (predio de la administración central del gobierno federal). Tales actos son antidemocráticos y se configuran como prácticas terroristas. Las intenciones violentas de estos grupos han sido claramente expuestas a la sociedad brasileña.

Con enorme pesar e indignación, asistimos los actos violentos y de depredación, con connivencia de la seguridad pública e inacción insubordinada de las Fuerzas Armadas, en la Plaza de los Tres Poderes. El mismo lugar en que, hace algunos días, en el 1° de enero de 2023, vivenciamos, con más de 40 mil personas delante de la rampa del Palacio del Planalto, y más de 300 mil en total en las celebraciones en el Eje Monumental en Brasilia, la mayor fiesta popular y democrática de todos los tiempos: la toma de posesión del presidente Luiz Inácio Lula da Silva, recibiendo la banda presidencial de las manos de representantes del pueblo brasileño.

Delante de la barbarie, la Policía Militar del Distrito Federal no actuó, siendo no solamente negligente, sino connivente. También es condenable la postura del gobernador del distrito ahora alejado, Ibaneis Rocha, quien solo después de presión política exoneró el jefe de seguridad pública, exministro de la Justicia de Bolsonaro. Por eso, es necesario pesquisar y punir a los responsables por la gobernabilidad, por la seguridad pública y por no haber ejercido sus mandatos y compromisos con el Estado Democrático de Derecho, ni haber resguardado, como responsables según la ley, los marcos civilizatorios y democráticos de una nación.

Todos los involucrados, desde los que estuvieron presentes en los actos hasta los financiadores de tales movilizaciones, deben ser severamente pesquisados y punidos por la destrucción, pero sobre todo por el atentado contra la democracia. ¡No podrá haber cualquier tipo de amnistía a esta barbarie fascista y golpista! Es necesario cambiar la historia y responsabilizar a aquellos que usan la violencia contra las elecciones y las instituciones democráticas. ¡Que episodios como este, de avance fascista, no vuelvan a existir en Brasil, en América Latina y en el mundo! ¡Basta de tentativas de golpes contra gobiernos democráticamente elegidos por el pueblo! 

Como personas brasileñas y diversas, integrantes de una organización social comprometida con la justicia ambiental, social, económica, de género y en el combate a la opresión de clase, raza o heteronormatividad, no podemos dejar de solidarizarnos delante de este atentado contra el pueblo brasileño. Esperamos que este episodio sirva de lección para la construcción de caminos de superación de tantas heridas, violencias y deudas históricas que el país tiene que enfrentar con las mujeres, los pueblos originarios, quilombolas y negro, para poder convertirse en una sociedad dignamente humana y democrática.

Convocamos, con el conjunto de movimientos populares del campo democrático brasileño, a todas las personas que defienden la democracia, la paz, el amor y el respeto; a todos los pueblos de este país en su grandiosa riqueza y diversidad, a estar en las calles hoy (9/01). Contamos, también, con la solidaridad internacionalista de los movimientos sociales en todo el mundo que actúan en la defensa de la democracia, contra el fascismo y en la construcción de sociedades justas y sustentables, interdependientes y eco dependientes, libres de todas las formas de opresión, en las que los derechos humanos de los pueblos sean respetados y cumplidos, y con la sustentabilidad de la vida en el centro de su acción, construcción social y política. Se hace necesaria toda manifestación pública de apoyo en defensa de esos valores compartidos y ¡en contra los ataques a la democracia y los pueblos de Brasil! 

Rodas de conversa da AFP: enfrentamento à fome, à violência e construção de soberania alimentar

A Aliança Feminismo Popular constrói, junto às mulheres, espaços de diálogos pelo fim da violência contra a mulher, do racismo estrutural, da falta de moradia e da fome. No mês de novembro, as companheiras relembraram a luta contra o racismo com o Dia da Consciência Negra (20) e o Dia de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres (25), ressaltando que a luta é diária.
 
A Aliança também denuncia o absoluto descaso do governo federal frente às desigualdades e a falta de políticas públicas, pois a violência ocorre em todos os lugares e atinge mulheres de todas as idades, raças e classes sociais. E a sua raiz está no sistema capitalista, patriarcal e racista, que exerce controle, apropriação e exploração do corpo, da vida e da sexualidade.
 
Esse debate é permanente na agenda da Aliança Feminismo Popular, que salienta que a violência não é um fenômeno isolado e individual de um homem contra uma mulher. Mas sim um instrumento de controle e de disciplina do corpo, da vida e do trabalho das mulheres.
 

No mês de novembro, para avivar a luta e memorar o Dia Latino-americano e Caribenho de Luta Contra a Violência às Mulheres, a Aliança Feminismo Popular preparou o vídeo abaixo.

A coordenadora da Amigos da Terra Brasil, Letícia Paranhos, lê um trecho do manifesto publicado pela AFP para marcar a data:

Clique aqui e confira o manifesto preparado pela Aliança Feminismo Popular na íntegra

Em dezembro deste ano, dando continuidade às pautas de novembro, que são cotidianas na vida de todas nós, a AFP realizou atividades com mulheres em Porto Alegre (RS). Marcadas por dois encontros e muita construção coletiva.

Roda de conversa na Cozinha Solidária do MTST

No dia 15 aconteceu uma roda de conversa com as mulheres da Cozinha Solidária da Azenha, projeto do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) que desde o início da pandemia de Covid-19 assegurou, em Porto Alegre, de 200 a 250 almoços diários para a população em vulnerabilidade. A Cozinha Solidária da Azenha se soma a outras 31 Cozinhas Solidárias do MTST espalhadas pelo Brasil, e ao longo do ano, com carinho e afeto, distribuiu mais de 1,5 milhões de refeições gratuitamente.

Roda de conversa na Cozinha Solidária do MTST

Conheça mais sobre a Cozinha Solidária da Azenha aqui

Cerca de 15 mulheres que tocam o cotidiano da cozinha e são responsáveis pela organização e limpeza do espaço, pelo preparo das refeições e atendimento à população que circula por ali estiveram presentes, além das representantes da AFP. Conversaram sobre a dura condição das mulheres nesta sociedade capitalista e patriarcal e as violências que sofrem.

Roda de conversa na Cozinha Solidária do MTST

No encontro, assistiram ao vídeo da Campanha Sem Culpa, Nem Desculpa, lançada pela Sempreviva Organização Feminista (SOF) e a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), em 2017. Ambas são organizações feministas que abordam de forma geral como a violência afeta a vida das mulheres, assim como as formas e formatos de violência que incidem em nossos cotidianos.

Abaixo você confere o vídeo Sem Culpa, Nem Desculpa:

A AFP também fez a entrega de kits de higiene para as companheiras da Cozinha Solidária. Todas ficaram comprometidas em buscar um outro momento para avançar na auto-organização das mulheres.

Roda de conversa na Cozinha Solidária do MTST

Dando sequência, o dia 18 de dezembro contou com mais uma roda de conversa, dessa vez com as mulheres envolvidas no projeto da horta comunitária do Morro da Cruz. A horta está completando dois anos de existência, e começou na pandemia devido à necessidade de fazer enfrentamento às situações de fome e insegurança alimentar.

Roda de conversa na Horta Comunitária do Morro da Cruz

Para além da resistência, e como anúncio de novas possibilidades para a alimentação, a Aliança pauta ainda a construção da soberania alimentar. Tendo isso em vista, desde 2020, teve início a construção de uma horta em espaço público da comunidade, que antes era utilizado como estacionamento de carros.

E assim vem se fortalecendo a organização das mulheres no espaço, que em dois anos conta com cerca de vinte companheiras com as suas famílias – entre crianças e companheiros, que também se envolvem nos debates e construções. O dia 18 foi um momento de confraternização e encerramento do ano, e contou também com a roda de conversa sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres, tema que perpassa a vida das mulheres e de suas famílias. Ainda nessa perspectiva, este dia também contou com apresentação e diálogo sobre o filme “Sem culpa nem desculpa”.

Horta Comunitária do Morro da Cruz

Tendo em vista que muitas vezes a falta de dinheiro pressupõe priorizar a comida ao invés de absorventes ou produtos de higiene, que ajudam na vida das companheiras, a Aliança distribuiu novamente kits de higiene neste encontro. Uma ação que também foi voltada a um resgate de processos de autocuidado e de autoestima das companheiras. Em conexão com outra pauta fundamental da horta comunitária, que é a alimentação, também foram distribuídos alimentos do Movimento Sem Terra (MST), que em aliança constante e solidariedade com a AFP constrói momentos assim. Feijão, arroz, leite e farinha láctea compuseram o kit alimentar.

Entrega de kits na Horta Comunitária do Morro da Cruz

O momento contou com cerca de 15 mulheres. A maioria segue participando dessa construção de luta desde o início: se auto organizando, se sentindo cada vez mais um grupo, e se percebendo em um espaço de segurança para conversar. E, sobretudo, para pensar a alimentação, no caso da horta, como um fomentador para o debate do feminismo e da vida cotidiana das mulheres na periferia de Porto Alegre.

A violência contra a mulher não é o mundo que queremos. O fortalecimento do feminismo popular segue, assim como a luta contra a exploração, as opressões, o capitalismo, o patriarcado e o racismo. Estamos juntas para transformar o mundo.

Não deixe de acompanhar o blog da Aliança Feminismo Popular, onde é possível conhecer as construções coletivas e de luta das companheiras

 

A violência contra a mulher não é o mundo que a gente quer

A Aliança Feminismo Popular desde seu início tem se pautado na luta pela autonomia das mulheres em seus territórios, o enfrentamento às múltiplas crises sistêmicas ao mesmo tempo em que tem construído junto às mulheres espaços de diálogos para um olhar coletivo para a problemática da violência e do racismo estrutural.

Nestes dias de ativismo que vão desde o 20 de novembro – Dia da Consciência Negra e passa pelo 25 de novembro – Dia de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres – denunciamos a misoginia, o racismo estrutural, o feminicídio também como uma forma de mostrar o absoluto descaso do governo federal frente às desigualdades e a falta de politicas públicas que respondam a tudo isto. E o que é ainda mais grave, o avanço da extrema direita, com o aval do Governo Federal, trouxe ainda mais insegurança e violência para a vida das mulheres, das mulheres pobres, das mulheres jovens e sobretudo das mulheres negras.

Ao mesmo tempo que chegamos ao final de 2022 renovadas de esperanças, depois de enfrentar nas urnas a necropolítica misógina da extrema direita, as fake news, a compra de votos – saímos vitoriosas elegendo Lula novamente presidente do Brasil e dando sobrevida a nossa recente democracia.

Somos um coletivo forte, irmanadas nesta esperança e com muita vontade de seguirmos na construção de um mundo mais justo e mais igual para todas nós. Com esta força precisamos retomar a agenda de políticas públicas para as mulheres, em especial às de enfrentamento da violência e reconstrução de toda uma rede de apoio necessária para que as mulheres não só rompam o ciclo da violência, como também consigam retomar suas histórias de vida.

 A violência ocorre em todos os lugares da sociedade, seja em casa, nas ruas, no transporte, no ambiente de trabalho, escola, faculdade, clubes, sindicatos, partidos políticos ou nas redes sociais. E atinge as mulheres de todas as idades, raças e classes sociais. É a maior expressão das desigualdades vividas entre homens e mulheres na sociedade, e a raiz disto tudo está neste sistema capitalista, patriarcal e racista que exerce controle, apropriação e exploração do corpo, vida e da sexualidade das mulheres.

A pandemia associada a um governo genocida de extrema direita só fez aumentar a violência contra as mulheres e os casos de feminicídio. É evidente a falta de compromisso e omissão das instituições, dos governos e do sistema judiciário em erradicar a violência contra as mulheres e meninas em nossa sociedade além da compreensão de que as mulheres são sujeitas de direitos e devem assim exercer este direito de forma plena e emancipatória.

Este debate é permanente na agenda da Aliança Feminismo Popular. As denúncias do movimento feminista tem desnaturalizado a violência e a colocado como um tema que deve ser tratado publicamente no âmbito dos direitos das mulheres a uma vida sem violência onde cada vez mais as mulheres reconhecem suas diversas manifestações e denunciam. Outro aspecto muito importante é a compreensão de que a violência não é um fenômeno isolado e individual de um homem contra uma mulher, mas sim um instrumento de controle e disciplina do corpo, da vida e do trabalho das mulheres na sociedade capitalista/patriarcal e racista.

O combate à violência é um compromisso de toda a sociedade, não só das mulheres. Esta luta deve ser de todos os movimentos sociais, todos os dias, numa campanha permanente. Enfrentar a violência contra as mulheres deve ser um compromisso do novo governo e seremos parceiras nesta retomada. Não se trata apenas de punir os homens, mas de mudar toda a sociedade.

🚩 Para avivar a luta e memorar o Dia Latino-americano e Caribenho de Luta Contra a Violência às Mulheres, a Aliança Feminismo Popular preparou o vídeo abaixo e atividades com mulheres em Porto Alegre (RS), que ocorrerão nos próximos dias. Confira o relato das companheiras:

* Conteúdo publicado no blog da Aliança Feminismo Popular (AFP), em: https://afeminismopopular.wixsite.com/site/post/a-viol%C3%AAncia-contra-a-mulher-n%C3%A3o-%C3%A9-o-mundo-que-a-gente-quer 

 

Em meio ao segundo turno e com pouca visibilidade, governo gaúcho tenta avançar com privatização da Corsan

Uma audiência pública online foi anunciada para o próximo dia 18/10, às 11h

Sem diálogo popular, constrói-se mais um ataque aos direitos básicos da população: um dia após as eleições do primeiro turno , o governo gaúcho tenta avançar com a entrega da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) para a iniciativa privada, lançando a convocação para audiência pública online com objetivo de avançar com o processo. A empresa pública é responsável pelo abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos de mais de 6 milhões de usuários em 317 dos 497 municípios gaúchos e existe desde 1965.

Na segunda-feira (3), uma convocação para discutir a privatização foi publicada no Diário Oficial do Estado anunciando a audiência pública a ser realizada no próximo dia 18 de outubro, terça-feira, a partir das 11h, de forma virtual. De acordo com o governo,  a audiência tem por objetivo “garantir a publicidade de todas as condições relevantes da desestatização da Corsan, bem como colher sugestões e contribuições para o aprimoramento do processo”. Processo esse que avança quase sem diálogo social, em meio a um segundo turno das eleições. Vale lembrar que a não privatização da Corsan era uma das promessas do ex-governador Eduardo Leite (PSDB).

O andamento da privatização sequer leva em consideração a possibilidade da população dizer não à venda de uma empresa que atende a um setor estratégico como o saneamento. Na proposta, não são lembrados os riscos que essa medida poderá gerar para os municípios mais pobres e para a população em geral. Na mesa, durante a audiência deverão estar representantes da Corsan, do governo do Estado, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Banco Genial. O link de acesso para participação será divulgado no site da Sema (Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura): www.sema.rs.gov.br/privatizacoes.

Afinal, quem disse que a Corsan precisa ser privatizada? 

A verdade é que não. Em junho deste ano, um estudo da Consultoria GO Associados afirma que a Corsan possui capacidade financeira para cumprir com as metas do chamado Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, aprovado pela Câmara Federal e sancionado em 2020, sob a Lei 14.026. O próprio levantamento indica que a empresa pública gaúcha está entre as 10 companhias que cumprem as 4 exigências econômico-financeiras estabelecidas pela nova legislação: índices de margem líquida, grau de endividamento, retorno sobre patrimônio líquido e suficiência de caixa. A Corsan arrecada mais do que gasta e tem capacidade de realizar os investimentos para cumprir as metas de saneamento que o país precisa atingir, até 2033: 99% da população com acesso à água potável e 90% com saneamento básico. Contraditoriamente, o principal argumento do governo gaúcho para realizar a privatização, é afirmar, sem comprovar através de dados, que por uma questão financeira só seria possível atingir a meta com a venda de ações da empresa gaúcha.

A Corsan teve nos últimos 5 anos um lucro líquido médio de R$ 300 milhões por ano, chegando em 2020, a um faturamento bruto de R$ 3,2 bilhões. Além disso, desde 2019, ganhou na Justiça o direito de não pagar impostos federais, por ser uma empresa pública e lidar com um setor fundamental como o saneamento. Em 2021, isso gerou uma economia de R$ 126 milhões de impostos, na média, até 2033 esse valor poderia chegar a aproximadamente R$ 1,5 bilhão, mais do que o R$1 bilhão que o governo esperava arrecadar com a venda de ações na bolsa de valores. Os dados são do Sindiágua/RS.

Além disso, é importante entendermos porque dizemos que as empresas públicas são estratégicas. A Corsan, através do subsídio cruzado, cumpre com um papel que empresas privadas não cumpririam: de investir recursos em municípios cuja arrecadação das tarifas é mais baixa do que os custos de operação do sistema de tratamento.

Reafirmamos que a água é um bem público e o acesso à água potável deve ser assegurado pelo Estado sem torná-lo uma mercadoria, onerando a população. Sabemos que municípios empobrecidos sofrerão mais com a lógica de mercado e podem ter sua segurança hídrica comprometida, pois a iniciativa privada tende a se interessar somente por cidades grandes e ricas para destinação de recursos. É preciso articulação para barrar esse retrocesso, primeiro enterrar a privatização da Corsan, e em um novo governo, reverter a legislação privatista do Novo Marco Legal do Saneamento,  que visa beneficiar as empresas privadas.

Sempre é tempo de reverter ações que não beneficiam o povo. Seguindo o exemplo de países europeus, como aponta um estudo do Instituto Transnacional (TNI), que entre 2000 a 2019, 312 cidades em 36 países reestatizaram seus serviços de tratamento de água e esgoto. Entre elas, Paris (França), Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina) e La Paz (Bolívia). No país vizinho, Bolívia, nos anos 2000, uma massiva mobilização popular conseguiu expulsar a transnacional norte-americana, Bechtel Holding, que geria o sistema de água e esgoto de Cochabamba, região central do país, após o aumento de até 200% no preço da água, em um episódio que ficou conhecido como a Guerra da Água.

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