Missão de Monitoramento no Vale do Taquari é marcada por relatos que expõem série de violações

Comitiva de entidades visitou as cidades de Lajeado, Roca Sales e Arroio do Meio nos dias 27 e 28 de novembro

Após visita a três cidades gaúchas fortemente impactadas pelas enchentes no Vale do Taquari, que contou com conversa com pessoas afetadas, a Missão de Monitoramento de Direitos Humanos realizou uma audiência pública para ouvir moradores de regiões atingidas pelas enchentes. Uma série de denúncias evidenciou o descaso do poder público municipal e estadual. Encerrando as atividades, a Missão realizou, no dia 28, uma reunião com representante do governo federal, movimentos sociais e moradores. Convidadas, as prefeituras locais não compareceram, se isentando do diálogo.

Em audiência, moradores da região relataram as dificuldades enfrentadas após as enchentes que atingiram o estado – Foto: Carolina Colorio
Moradoras atingidas pelas enchentes reivindicam os seus direitos | Foto: Carolina Colorio

A roda de diálogo contou com a participação de representantes de variados entes sociais: Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST-RS), Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), Amigas da Terra Brasil, Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS, Conselho Estadual de Direitos Humanos, Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES), Defensoria Pública do RS (DPE-RS), Ouvidoria da DPE-RS,  Conselho Estadual do Direito da Mulher, deputados e representantes de mandatos, Fórum Permanente de Mobilidade Humana (FPMH) do RS, Secretaria Estadual de Direitos Humanos, Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), Ministério do Desenvolvimento Social, Organização Internacional para Migrações das Nações Unidas (ONU-OIM), sindicatos e outros movimentos sociais.

Presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, a deputada estadual Laura Sito (PT) abriu o encontro falando sobre a escuta realizada com moradores atingidos pelas enchentes nas cidades de Lajeado, Roca Sales e Arroio do Meio, respectivamente nos bairros Conservas, Centro e Navegantes.

A parlamentar também citou a audiência realizada no dia anterior, ressaltando que a Missão convidou representantes das prefeituras locais e autoridades, que não compareceram ao debate. “Foi muito emblemático porque convidamos todas as prefeituras da região para acompanharem a nossa ação e a audiência pública. Chamamos para reunião de hoje. Nos causou bastante estranheza o descaso das prefeituras de responderem a um chamado sobre situações muito mais ligadas à sua atuação cotidiana. A única prefeitura que esteve na audiência foi a de Arroio do Meio”, afirmou.

Segundo Laura, a escuta foi permeada por relatos que se assemelham e entrelaçam, especialmente no tocante a questões estruturais ligadas à saúde, política de aluguel social, casas provisórias, acesso limitado à água potável, aumento na conta de luz e uma série de humilhações. “A RGE e a Corsan não respeitaram acordos com a Defensoria Pública, e as contas de água e de luz das pessoas aumentaram”, denunciou, mencionando o acordo de isenção de cobrança.

Também chamou atenção para a dificuldade do manejo de lixos e dejetos nos municípios atingidos, além da preocupação com as zoonoses (doenças transmitidas por animais). Quanto à educação, destacou a questão das escolas afetadas, da falta de infraestrutura adequada e das crianças que não conseguem dar continuidade ao ano letivo. Pontuou ainda que é muito preocupante a questão dos imigrantes. Muitas vezes refugiados de seus países, vêm ao Brasil em busca de melhores condições de vida, mas se deparam mais uma vez com um cenário de violações de direitos, desamparo e com a condição de refugiados climáticos. Laura relatou que foi até embaixadas buscando diálogo.

Outra violação constantemente presente nos relatos da população foi quanto ao atendimento socioassistencial, via Centros de Referência em Assistência Social (CRAS). O serviço não tem dado conta, o que gera uma série de humilhações e exaustão em quem busca atendimento.

“Justiça para limpar essa lama” | Foto: Carolina C.

Assista a integra da audiência aqui

Na sequência, o coordenador do escritório do governo federal em Lajeado, secretário de Comunicação Institucional da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Emanuel Hassen de Jesus (conhecido como Maneco), fez um relato sobre as ações do governo federal no atendimento à crise das enchentes no estado. Começou sua fala evidenciando a necessidade de olhar para o meio ambiente. “Temos que recolocar esse tema na pauta. Meio Ambiente não é só cuidar do desmatamento da Amazônia. Cada um de nós, como cidadãos, temos que colocar esse tema no nosso dia a dia, o da sustentabilidade. Ou eventos extremos serão cada vez mais frequentes, causando tragédias.”

Ex-prefeito de Taquari, Maneco lembrou que o governo federal realizou duas visitas ao Rio Grande do Sul. Ele apontou que, na região, 99% dos anúncios da União se realizaram ou estão para se realizar. “Na educação o dinheiro está lá, faltando o município licitar. Demora para a pessoa enxergar o livro de volta, o computador, tem um processo até ser comprado. Mas o dinheiro está garantido e os municípios estão trabalhando para ele ser viabilizado. Mesma coisa com o Minha Casa Minha Vida. Vamos enxergar as casas quando elas forem construídas. Em Lajeado e Encantado a tendência é que em 30, 45 dias comece a construção. Dois municípios que tiveram portaria publicada. Algumas prefeituras são mais rápidas, outras mais devagares”, comentou.

Entre as ações do governo federal, destaca-se a criação do “Minha Casa Minha Vida Rural Calamidades”. De acordo com o secretário, até a sexta-feira passada (24) haviam 110 casas cadastradas na região. Em relação à construção de omradias, a União dividiu a responsabilidade: o município providencia as áreas e o governo do estado constroi as casas temporárias, até o governo federal fazer a moradia definitiva pelo Minha Casa Minha Vida.

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O secretário também afirmou que mais de 52 milhões foram destinados à Defesa Civil aos municípios, recursos para sotuaçoes como abrigo ou aluguel social. “O governo deu tudo que os municípios tinham direito, conforme número de pessoas desabrigadas.”

Na saúde, afirma que o repasse foi de 100% do que os municípios pediram. “Vieram R$ 49 milhões na região para recursos em hospitais e reequipar postos de saúde, R$ 29 milhões para a educação, e todos os municípios da região que requisitaram recursos para reequipar Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) receberam 100% do que pediram”, disse.

Quanto à agilidade no processo de atendimento à população, Maneco mencionou que uma casa pode demorar mais de ano e meio para ficar pronta e que os processos demoram. Salientou, ainda, que não é papel do governo federal fiscalizar.

“Não é culpa de ninguém, é de todo mundo. Não tinha legislação e programas para momentos como a gente tá vivendo, de uma sequência de tragédias no país inteiro. Temos enchentes no sul, seca na Amazônia, incêndio no Pantanal, todo dia, toda hora. O Brasil chegou a ter quase 30% dos municípios em estado de calamidade. Precisamos melhorar, porque a tendência é essas coisas seguirem acontecendo”, defendeu.

As cidades ainda estão cheias de entulhos das enchentes / Foto: Carolina Colorio

Moradores relatam preocupações 

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Arroio do Meio, Astor Klaus, ressaltou que os pequenos agricultores perdem muito com as enchentes. “Se perdeu muita produção de alimentos, que replantamos depois da primeira enchente. A segunda enchente veio e foi-se de novo o plantio”, contou, questionando qual recurso para este tipo de situação.

Diego Alexandre Dutra, atingido da cidade de Cruzeiro do Sul, pontuou que tanto o governo federal quanto o estadual mandam recursos, contudo ele não chega até a população. “Eu fiz sete cadastros mas em nenhum deles eu fui contemplado, porque não tenho Bolsa Família. Mas a enchente não pegou só aqueles de baixa renda, na extrema pobreza. Cruzeiro do Sul está esquecida. Dinheiro chega, mas falta organização e principalmente transparência: onde o recurso está sendo utilizado, como?”

Bairro Centro, em Roca Sales. Novembro, 2023. Foto: Carolina Colorio

De acordo com ele, em relação à assistência social havia só uma pessoa para fazer o cadastro. ”Filas e filas e filas, pessoal reclamando e ninguém atendido. Pedimos atenção especial do poder público do estado, do poder federal”, adicionou. Pai de três meninas, Diego conta que essa é a primeira enchente que ele enfrenta, e que a enchente de setembro levou tudo. “Cruzeiro do Sul tem pouco maquinário, ninguém veio nos salvar. A Defesa Civil não tem um barco, um motor, nada. Fomos para o telhado na primeira enchente, amarraram cordas para o pessoal ir subindo. Cruzeiro precisa de muita atenção agora.”

Rever a política de assistência social

Carine Bagestam, consultora do Ministério de Desenvolvimento Social, em parceria com a ONU-OIM, mencionou ser nítido que as assistências sociais nos municípios são uma política fragilizada. “Antes da emergência tinha um déficit, sem equipe mínima”, disse. Para ela, especialmente agora, é fundamental uma reformulação dos critérios e cadastros. “Ontem tivemos reunião com a secretária do estado e reforçamos que tem que ter uma construção estadual e federal para rever a política de assistência social, especialmente em contexto de calamidade”, reiterou.

Ela também chamou atenção sobre a crise habitacional. “Não há informação clara sobre as casas provisórias. As famílias estão esperando, querem saber em quantos dias chega a casa e quem vai acessar.” Contou que o recurso da assistência social está em caixa, que os municípios receberam. “O que sentimos no Vale é que os alojamentos são muito provisórios. A maioria dos municípios começou a tirar pessoas dos alojamentos sem uma inspeção de segurança das casas e nem saber para onde essas famílias iriam, correndo perigo eminente dessas famílias voltarem para casas de risco”, sinalizou.

“Meio Ambiente não é só cuidar do desmatamento da Amazônia”, defende Maneco / Foto: Fabiana Reinholz

O perigo das barragens

A integrante do MAB, Maria Aparecida Castilho Luge reforçou a realidade dos atingidos pelas barragens na região. Ela salientou a necessidade de estudos em relação à questão. “É preciso transparência. De quem são essas barragens?”, questionou. Durante a visita da Missão às cidades, que antecedeu a audiência pública, foram inúmeros os relatos, em especial em Roca Sales, conectando as barragens aos impactos das últimas enchentes e alterações no fluxo das águas.

“Verificamos a falta de um sistema de alerta das enchentes, pois não existe um monitoramento dos rios na região. Isso poderia ser executado em parceria com as universidades”, sugeriu o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do RS (CEDH RS), Júlio Alt. Segundo ele, é imprescindível que haja mecanismos efetivos para reconhecer uma calamidade e alertá-la à população, o que passa por um esforço coletivo com estudos, envolvimento de universidades, municípios, poder estadual, coletivos e movimentos, para pensar alternativas desde a questão das barragens, seus impactos e a prevenção de seu uso.

Ainda no enfoque ambiental, Júlio reforçou que é necessária uma atuação drástica frente à catástrofe climática. “Que a gente possa pensar também em parcerias para recompor matas ciliares, a Mata Atlântica, pensar um regime ambiental. Sugerimos implementar um código ambiental nacional, para que a médio e longo prazo a gente possa arrefecer os impactos de calamidade pública”, disse.

Outros pontos destacados por ele foram a criação de grupos e comitês para fiscalizar onde está o recurso repassado pelo governo federal e a criação de um plano de trabalho. “Precisamos pensar alternativas desde a questão das barragens, dos impactos nos territórios.”

Na reunião moradores relataram as dificuldades enfrentadas / Foto: Fabiana Reinholz

Falta de sintonia entre governos prejudica população

Para o coordenador jurídico do CDES, Cristiano Muller, há uma dessintonia que faz com que os investimentos do governo federal não cheguem a quem realmente precisa. Ele propôs que o escritório do governo federal na região não seja fechado e que seja criado um canal de informação e participação dos atingidos, no sentido de que sejam feitas reuniões ampliadas de prestação de contas dos municípios para o governo.

“Foram R$ 29 milhões em recursos em educação e ontem ouvimos denúncia de creche fechada e crianças amontoadas em um salão. O que ficou claro na audiência pública é que no CRAS as pessoas são humilhadas, que pedem muitos documentos. Temos que entender as pessoas atingidas como todas que estão em situação de calamidade, não só as de baixa renda. Quem define quem foi atingido não é política pública, é a água. Não podemos excluir essas pessoas”, acrescentou.

Segundo observou Júlio Alt, muitas pessoas não sabem como acessar essas políticas, ou, quando tentam, é muito burocrático. Claudete Sillas, da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, reforçou a questão da saúde mental e da mobilidade, propondo CRAS móveis, tendo em vista que, para quem perdeu tudo na enchente, deslocar-se inúmeras vezes em busca de atendimento é mais uma violação de direito.

A saúde mental da população é outro tema que precisa de atenção, tendo em vista uma série de traumas causados pelas enchentes e da consequente falta de amparo. “As pessoas estão depressivas, precisam ser ouvidas, precisam ser aconchegadas. Há urgência de um atendimento de saúde mental e mudar um pouco desse esquema de saúde”, acrescentou.

A moradora do bairro Conservas, em Lajeado, Michele Siqueira, sente falta de comunicação com relação às enchentes. Ela também chamou a atenção para a situação das estradas que estão desbarrancando. “Na primeira enchente com imensa quantidade de água já desceu a parede de terra e colocaram pedras ali. A estrada está diminuindo. Não temos proteção naquela lateral, já começou a dar acidente pela quantidade de chuva, asfalto liso. É perigoso”, disse.

Michele mora a 500m do rio Taquari e contou que nunca tinha visto a água subir tanto. Com a enchente de setembro ela perdeu tudo. “Nosso bairro, Conservas, está uma bomba relógio. Não é só quantidade de chuva, é de água. A Defesa Civil encaminhou caminhões e eles se negaram a atender as pessoas porque a ponte estava trancada com o excesso de água”, relatou.

Bairro Centro, em Roca Sales. / Foto: Carolina Colorio

Orçamento 2024

Há muito tempo cientistas do clima e boa parte da militância socioambientalista alertam sobre a gravidade da emergência climática, denunciando o racismo ambiental e uma série de riscos. Sobretudo para as populações empobrecidas, periféricas, indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Mesmo assim, tanto as esferas municipais, quanto estaduais e federal, não apresentam soluções estruturais para o tema.

A aprovação do orçamento previsto para a adaptação climática no RS, em 2024, é um exemplo. Do total de R$ 80,348 bilhões, somente 157,933 milhões são para o tema: menos de 0,02% do orçamento total aprovado. Além disso, no eixo Sustentabilidade Ambiental no Plano Plurianual (2024-2027), consta a proposta de aplicar pouco mais de R$ 260 milhões, enquanto há um investimento previsto de mais de R$ 1,6 bilhão para o setor da agropecuária – atividade que, conforme dados de 2021 do Sistema de Estimativa de Emissão de Gases, é responsável por quase metade das emissões de gases de efeito estufa no estado.

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Levando em conta as enchentes e catástrofes climáticas, o investimento em Defesa Civil também deixa a desejar. Para o próximo ano, o governo gaúcho pretende realocar R$ 50 mil na Defesa Civil, que é a primeira a agir durante emergências e a responsável pelo resgate da população atingida. O montante total para um ano inteiro de atuação da Defesa Civil, que precisa urgentemente de melhorias na infraestrutura, compra de equipamentos e na contratação de profissionais, especialmente tendo em vista os inúmeros episódios catastróficos no estado, equivale a menos do que o preço de um carro popular.

Conforme dados de boletim do governo do estado, atualizado em 27 de outubro, chuvas intensas e enchentes impactaram 107 cidades, afetando até aquele momento 402.297 pessoas. Destas, 22.283 pessoas ficaram desalojadas,  5.216 ficaram desabrigadas, 943 feridas, seis desaparecidas e 52 morreram. Em novembro quase 700 mil pessoas foram afetadas, direta ou indiretamente.

Manifestação durante audiência / Foto: Carolina Colorio

Rede de solidariedade 

O representante MPA de Arroio do Meio, Lari João Hoftomer, destacou a importância da solidariedade. Desde a enchente de 2010, o movimento desenvolve ações neste sentido, levando sementes crioulas, mudas e ramas para famílias de agricultores que são atingidas.

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Sobre a última enchente, lembrou da visita de solidariedade. “Arrecadamos dinheiro onde era possível. Entregamos mudas, sementes e ramas de mandioca.” Ele alientou a importância de olhar para a agricultura familiar e para as sementes crioulas, que dentro do princípio da agroecologia são práticas de produção que causam menor impacto socioambiental, numa lógica oposta à do agronegócio – um dos maiores expoentes para a emissão de gases de efeito estufa no Brasil, devido a alteração do uso do solo.

Atuando desde setembro na região, o MAB tem feito o atendimento emergencial e de articulação junto às comunidades para acessarem as políticas públicas necessárias. Juntamente com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul (Consea-RS), o movimento montou uma cozinha solidária em Arroio do Meio, após a primeira enchente. Mais de 1,2 mil refeições chegaram a ser feitas por dia, além disso, o MAB tem apoiado mais de 600 famílias que já receberam 2.100 cestas básicas, milhares de litros de água e 500 kits com produtos de limpeza. O movimento segue com as doações.

:: Cozinha solidária em Arroio do Meio recebe apoio de atingidos por Mariana e Brumadinho ::

A coordenadora do MAB, Alexania Rossato, reitera relatos feitos na audiência, quando foi exposto que, em algumas situações, a entrega de cestas básicas distribuídas pelo movimento foi o único apoio que as famílias receberam. Ela também reforçou o desinteresse das autoridades locais em participar da missão. “Prefeitos convidados não compareceram e se negaram  a ouvir as demandas do povo, assim como se negam a caminhar onde o povo mora. O que ouvimos no mutirão que fizemos, durante todo o dia, é que essa  realidade se repete em todas as prefeituras.”

Alexania relembrou do documento com reinvindicações dos atingidos, entregue ao governo em setembro, após a primeira enchente. Durante a reunião de 28 de setembro, ela questionou se seria possível dar sequência ao que foi proposto, e exigiu respostas em relação à questão de moradia e segurança alimentar. Trazendo um pouco de esperança, a liderança destacou a aprovação do Projeto de Lei (PL) 2788/2019, que cria a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) e aguarda sanção presidencial.

“A sensação é que há uma naturalização da enchente, virou comum. Só que não é assim, quem vive, quem sofre a enchente, que tem que limpar suas casas de novo. Recomeçar. Não dá pra nós naturalizar a enchente na vida das pessoas e tratar como uma coisa comum”, pontou Alexania.

Sobre a Missão

Na Missão de Monitoramento de Direitos Humanos do Vale do Taquari foram checadas violações de direitos e como as ações de reparação às famílias atingidas são feitas, bem como as medidas tomadas para reconstruir os locais e as condições de vida e de trabalho das pessoas afetadas. Ela foi organizada em três momentos: o primeiro de visita a cidades afetadas e conversa com moradores em seus bairros, o segundo com audiência pública e o terceiro com reunião com autoridades.

A Missão foi organizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos, pelo CDES Direitos Humanos e pela Acesso Cidadania e Direitos Humanos.

Como encaminhamento da Missão, a Comissão de Direitos Humanos irá realizar um relatório das denúncias recebidas durante os dois dias. O documento será entregue ao Ministério Público do RS (MP RS) e ao Tribunal de Contas do RS (TCE RS). Também será solicitada uma audiência com o governo do estado.

Conteúdo também publicado no Jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2023/12/03/rs-missao-de-monitoramento-no-vale-do-taquari-expoe-violacoes-a-familias-atingidas-por-enchentes 

Vitória! STF invalidou a tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas

Vitória! Este 21 de setembro é um dia histórico aos indígenas e não indígenas do Brasil. O STF (Supremo Tribunal Federal) invalidou a tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas.

A Corte do STF começou a analisar o tema em 2021, tendo sido suspenso naquele ano e retomado agora em 2023. Esta decisão é muito importante, pois repercutirá para todos os casos de demarcação de terras indígenas que estão sendo discutidos ou que poderiam ser questionados na Justiça.

Marco Temporal é uma tese jurídica que restringia o direito dos povos indígenas apenas às terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Atualmente, existem cerca de 300 processos de demarcação, os quais serão influenciados por essa decisão do STF.

A Amigas da Terra Brasil saúda a todos os povos indígenas do Brasil e às suas organizações que, após muita mobilização e pressão, vencem uma grande batalha nesta guerra que perdura desde 1.500. Afinal, o que está em jogo são os territórios de vida e não do capital.

É preciso seguir em alerta para as novas propostas trazidas durante o julgamento no STF e a outras tentativas judiciais, assim como no parlamento, que tentem flexibilizar o Marco Temporal e atacar os direitos dos povos originários e seus territórios. A luta segue pela demarcação das terras indígenas, por reparação histórica, pela manutenção da biodiversidade e em defesa da vida de todos e de todas nós.

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Leia também nosso artigo contra o Marco Temporal

Vitória dos povos contra a tese do Marco Temporal | Crédito: Cimi

Vídeo: André Benites/ Guarani de Maquiné (RS)

Enchente no RS: audiência pública debate emergência climática no estado. Participe!

Atividade acontece em 18 de setembro (2ª feira), das 14h às 18h, no Teatro Dante Barone, na Assembleia Legislativa, em Porto Alegre (RS). A Amigas da Terra Brasil estará presente. Entrada franca. Participe!

Os recorrentes eventos climáticos extremos que tem atingindo, nos anos recentes, várias partes do mundo e do Brasil, incluindo o estado do Rio Grande do Sul, alertam que a situação não está normal e que não vai nada bem. As tragédias têm causas naturais, mas estudos e projeções científicas e meteorológicas indicam que a incidência rotineira e cada vez com maior intensidade desses fenômenos estão sendo influenciadas pela ação destruidora de setores (empresariais, corporativos ou agronegócio, mineração, energia e imobiliário) da nossa sociedade.

Para além de lamentarmos as mortes e perdas sociais, econômicas e ambientais e nos esforçarmos à reconstrução das cidades e das vidas, precisamos debater urgentemente, e de forma séria, o desastre recente que assolou o Rio Grande do Sul. No mesmo período, tempestades e enchentes afetaram, além do Sul do Brasil, Hong Kong (na Ásia); a Espanha e a Grécia, na Europa; e, atualmente, a Líbia, na África. Habitamos o mesmo planeta e estamos interligados, portanto, todos e todas somos vulneráveis aos impactos gerados pela nossa civilização.

Na 2ª feira, dia 18 de Setembro, a partir das 14h, acontece a AUDIÊNCIA PÚBLICA EMERGÊNCIA CLIMÁTICA NO RIO GRANDE DO SUL, em que debateremos o que estado gaúcho, assim como muitas partes do mundo, vem enfrentando. Será no Teatro Dante Barone, da Assembleia Legislativa, em Porto Alegre (RS). A atividade é promovida pelo gabinete do deputado estadual Matheus Gomes (PSOL), membro titular da Comissão de Saúde e Meio Ambiente, em parceria com o coletivo Eco pelo Clima.

A Audiência Pública visa debater um RS que coloque as pessoas mais impactadas pelos avanços da crise climática no centro da criação das políticas públicas de mitigação e adaptação e promova uma transição energética para além dos combustíveis fósseis de forma justa.

Nós, da Amigas da Terra Brasil, estaremos presente destacando a necessidade urgente de ações para encarar a situação como emergência climática. A preservação do ambiente e a mitigação das mudanças climáticas são essenciais para reduzir a frequência e a gravidade desses eventos, como as cheias no Rio Grande do Sul. Além disso, medidas de adaptação, mitigação e prevenção também são necessárias para proteger as comunidades vulneráveis. Governos federal, estaduais e municipais precisam dialogar com as populações nos territórios, que são quem conhece e vivenciam a força da natureza. Devemos parar com as alterações e flexibilizações na legislação, licenciamento e monitoramento ambiental, que governos vêm promovendo para atender apenas a interesses econômicos de corporações, imobiliárias, do agronegócio, energia e da mineração, sem proteger o ambiente natural e nem promover políticas sociais às populações mais empobrecidas.

Estão convidados para a composição da mesa:
Dra. Rafaela Santos Martins da Rosa – Juíza Federal Substituta da JFRS
Patrícia Morales – Passo dos Negros de Pelotas
Xaina Pitaguary – Liga Acadêmica de Assuntos indígenas – Yandê
Ilan Zugman – 350.org
Pedro, protagonismo infantil
Representação do Eco pelo Clima
Representação da AGAPAN
Representação das Amigas da Terra Brasil

Diante da emergência climática, todos somos responsáveis por tomar medidas para proteger nosso planeta e as pessoas que nele habitam. Participe!

AUDIÊNCIA PÚBLICA EMERGÊNCIA CLIMÁTICA NO RIO GRANDE DO SUL
18 de setembro (2ª feira) – das 14h às 18h
Teatro Dante Barone, na Assembleia Legislativa – em Porto Alegre (RS)

Amigas da Terra Brasil

Nota de solidariedade às comunidades atingidas pela tragédia climática no RS

Diante das tragédias provocadas por eventos climáticos extremos no Rio Grande do Sul desde a última quinta-feira (15/06), resultantes em destruição ambiental, perda de vidas humanas, empobrecimento e precarização de territórios de luta e resistência, sobretudo nas regiões do Litoral Norte do estado e nas periferias da capital Porto Alegre e da região metropolitana, expressamos nosso pesar e solidariedade às famílias das vítimas de enchentes e de deslizamentos nos diversos municípios atingidos, como Caraá e Maquiné, nominalmente à família da professora Agnes Schmeling, do Conselho de Cultura de Maquiné, sua mãe e seu esposo, que perderam suas vidas nesse momento tão trágico e doloroso.

Demandamos ao Estado do Rio Grande do Sul que, para além das buscas emergenciais, garanta o urgente restabelecimento às condições de energia elétrica ou por meio de geradoras e, assim, a comunicação e mapeamento da situação de famílias e comunidades com crianças e idosos ainda isoladas pela destruição de estradas e infraestruturas no vale do Rio Maquiné.

Ao Governo Federal, demandamos que libere urgentemente as forças do Exército para a reconstrução e atendimento às condições de alimentação, abrigo, saúde e infraestrutura nos municípios e populações atingidas.

Chamamos a atenção ao poder público e à sociedade em geral para as injustiças ambientais da crise climática causada pelo modelo econômico hegemônico, em que as comunidades e territórios mais atingidos e devastados, apesar de não se beneficiarem nem contribuírem atual ou historicamente com o sistema intensivo em poluição, emissões de gases de efeito estufa e degradação ambiental, são aqueles mais atingidos, desproporcionalmente, por suas consequências.

Reiteramos nosso apoio e solidariedade incondicional aos territórios e retomadas que, com seus modos de vida, suas práticas e formas de organização, nas florestas, campos, nas cidades no urbano ou no rural, preservam a biodiversidade, as águas, a produção de alimentos saudáveis, os saberes ancestrais, a luta secular pelo direitos dos povos Indígenas e Quilombolas. A luta deles garante também o despertar de uma consciência e compromisso com a centralidade da sustentabilidade da vida como base de uma ação política, coletiva, solidária e cotidiana, capaz de dar respostas às urgências da fome, das catástrofes e das violências, assim como transformar a realidade e combater as injustiças e emergências climáticas dos nossos tempos.

Convocamos, por fim, todas as pessoas a se organizarem na entrega de doações de materiais e apoiarem também, dentro de suas possibilidades, com contribuição financeira, por meio dos seguintes endereços ou conta bancária:

 

 

Amigos da Terra Brasil

Dia Mundial da Água 2023: não à privatização das empresas públicas! Agrotóxico não!

 

✊🏽💧 Hoje, 22 de Março, é o #diamundialdaagua . É a água que torna a vida possível; é o que nos garante higiene, saúde, alimento. Durante a pandemia, vimos e sentimos a importância de poder lavar as mãos, de tomar água de qualidade, de consumir alimento saudável, e o impacto disso na imunidade e na saúde das pessoas.

Atualmente, nem todos os brasileiros e as brasileiras, e muito menos em âmbito mundial, têm o acesso à água garantido. A Amigos da Terra Brasil e parceiros vêm realizando estudos nos territórios e têm constatado que essa água é assegurada de forma precária. Em boa parte das cidades já se detecta o problema na captação, onde a água chega contaminada, seja por agrotóxicos, devido à mineração e à siderurgia, entre tantos outros vários fatores e irregularidades.

A água é um dos direitos fundamentais, o direito à vida, como consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Portanto, o acesso à água potável deve ser garantido a todos os assentamentos humanos, mas não é a realidade de muitas ocupações irregulares, aldeias indígenas não demarcadas, quilombos não titulados, nas periferias, especialmente das grandes cidades.

A água é um direito ainda a ser conquistado! E nesse sentido, a privatização das empresas públicas de água e saneamento vêm na contramão do acesso à água potável. Este bem essencial deve ser garantido pelo Estado e não ser entregue à iniciativa privada, com a falsa promessa de que vai garantir esse direito para todos e todas. Temos exemplos no Brasil e no mundo de que a privatização não resolveu a questão do acesso, pelo contrário: a partir do poder econômico, as pessoas ficaram excluídas, sem ter água potável para beber, alimentar-se, para viver! Os custos dessa água privatizada aumentaram, e os investimentos feitos pelas empresas privadas não ampliaram, de forma necessária, os sistemas e nem as estruturas.

Neste #diamundialdaagua é que se torna cada vez mais urgente a ação do Estado e governos que garanta o acesso às águas e que responsabilize os agentes que contaminam.

Neste dia de reflexão e de luta, a Amigos da Terra Brasil destaca a voz de agricultores agroecológicos e contra a privatização. Veja os vídeos abaixo: 

Animações explicam o que é economia feminista e princípios da sua construção na agenda de movimentos sociais

Está chegando o dia #8M, data que marca globalmente as jornadas de luta do feminismo popular,  construído diariamente nos territórios. De forma propositiva, a @capiremov, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e a Amigos da Terra Internacional produziram duas animações que abordam a economia feminista, expondo também os princípios para a construção desta na agenda dos movimentos sociais e na construção de uma mudança de sistema. De forma criativa e lúdica, os vídeos se propõe a explicar o conceito e introduzir alguns princípios feministas, sendo recomendados para o uso de movimentos sociais em suas atividades de formação.

O que é a economia feminista?

 A Economia feminista é uma estratégia política para transformar a sociedade e as relações entre pessoas e pessoas e a natureza. Passa por reconhecer e reorganizar o trabalho doméstico e do cuidado, que dentro do patriarcado recaem com força sobre as mulheres. É, ainda, uma resposta à atual crise econômica, ambiental e social. 

As mulheres são sujeitos econômicos e protagonistas na luta contra o modelo econômico dominante. A economia feminista aponta o trabalho que sustenta a vida e a produção econômica, evidenciando todas as pessoas que o fazem – sendo a maioria delas mulheres, pessoas negras e imigrantes.

 É uma economia que se propõe ainda a reorganizar as relações de trabalho, de gênero e raciais na nossa sociedade, fazendo com que o trabalho de cuidado se torne uma responsabilidade compartilhada entre todas as pessoas e o Estado. Ponto que passa tanto por discussões de políticas públicas, retomada de espaços comuns, frear as privatizações e a atransformação de bens comuns como a água e a energia em mercadorias, revogações de medidas de retirada de direitos de pessoas trabalhadoras, mais direitos, qualidade de vida, educação e saúde públicos gratuitos e de qualidade para todas as pessoas. 

Na economia feminista, a sustentabilidade da vida está no centro. Isto significa priorizar as necessidades dos povos e dos territórios ao invés do lucro. Os cuidados são uma necessidade humana fundamental. Todas as pessoas são vulneráveis e interdependentes. Todo mundo precisa de cuidados ao longo da vida, independente da idade ou do estado de saúde.  E para além disso, os trabalhos conectados a essa esfera são de baixa intensidade ecológica, não exigindo extração de recursos da natureza em larga escala e podendo se aliar a uma transição energética, climática e ecológica realmente justa. 

Economia feminista, sociedade sustentável e sociedade do cuidado 

Para transformar nosso atual modelo econômico, precisamos fazer da solidariedade e da reciprocidade uma prática nas nossas vidas, nos nossos movimentos e nos nossos esforços políticos cotidianos. A economia feminista nos lembra que a biodiversidade é fruto da relação com as povos tradicionais e seus modos de vida. Devemos respeitar o ciclo de regeneração da natureza e repensar nossa relação com a alimentação, valorizando práticas agrícolas e culinárias locais e garantindo que as comunidades tenham meios de cultivar alimentos em seus próprios territórios. A economia feminista propõe uma alternativa de sociedade construída a partir da centralidade da sustentabilidade da vida, da interdependência e ecodependência.

Uma sociedade sustentável precisa ser uma sociedade do cuidado, mas um cuidado fora das amarras do capital. Assinalar a importância do trabalho de cuidado, que sustenta a vida de todas, todes e todos é um passo para a valorização deste e para a construção de outras formas de se relacionar.

A economia feminista apresenta ainda atividades compatíveis com a redução da exploração de recursos, o que aponta uma saída para um crescimento econômico clássico, pautado pelo acúmulo infinito de capital em um planeta finito. Processo que se dá por meio da superexploração do trabalho e da natureza, do ecocídio, da criação de zonas de sacrifício, do racismo ambiental e da extinção.

O modelo capitalista divide a nossa sociedade entre as esferas de produção e reprodução da vida, isso faz com que pareça que pareçam coisas independentes. O trabalho que tem relação com o dinheiro é considerado produtivo e a sociedade o valoriza. Já o trabalho doméstico e de cuidados é considerado reprodutivo. E apesar de ser fundamental para sustentar a vida, é invisível para a sociedade e não é considerado parte da economia. A economia tradicional se constrói dentro desse modelo, privilegiando as experiências dos homens e negando as das mulheres. A Economia feminista torna visíveis todos os trabalhos que sustentam a vida, sendo o trabalho reprodutivo fundamental para que o próprio trabalho produtivo aconteça. Não há separação.

A economia dentro da economia feminista, portanto, é o modo como garantimos a vida. Sem cuidados e sem alimentos, por exemplo, não há economia  e nem  vida possível. Por isso a economia feminista reconhece e valoriza os trabalhos de cuidado como parte da economia. E vai mais além: reorganizando esse trabalho pra que seja de todas pessoas, coletivo, e para que hajam políticas públicas a respeito.

O capitalismo se desenvolveu às custas da exploração da natureza e do tempo das pessoas. Tudo em função do mercado. Na África, Ásia e na América Latina as pessoas foram expulsas de suas terras para dar lugar a monocultivos de alimentos e agrocombustíveis para a exportação. Empresas minerárias contaminam as águas, seguem destruindo a diversidade da natureza e colocam em risco a vida de quem vive em territórios próximos. Não é casualidade que nessas áreas de disputa apareçam conflitos armados e as mulheres enfrentem muita violência.

Nas cidades, grandes empresas construtoras se beneficiam com a especulação imobiliária. Para isso, desalojam pessoas de seus lares e comunidades para construir grandes projetos que afetam sobretudo as populações periféricas, migrantes, negras e indígenas. E quem segura as pontas nas comunidades, garantindo que todo mundo tenha habitação, comida e cuidado, são as mulheres.

Para manter as taxas de lucro das grandes empresas, a exigência é de mais trabalho, com menos direitos e mais vigilância. Na lógica da ganancia transformam os bens comuns em mercadorias e superexploram o trabalho das pessoas. Quando menos esperamos, o que era público vira propriedade privada, o que era de acesso comum passa a ser só para quem pode pagar.

Mulheres estão cada vez mais sobrecarregadas com o trabalho em casa e fora de casa, da reprodução e produção da vida. E com um olhar para a ecomomia feminista, a partir do cotidiano de quem cuida da vida, é evidente que os tempos e as lógicas de vida, da natureza, são incompatíveis com os ritmos do capital.

Além de ser muito  invisibilizado, muitas vezes o trabalho de cuidado é não renumerado ou mal renumerado, trazendo ainda mais violências para o cotidiano de quem historicamente assume essa responsabilidade. Situações como a da pandemia de covid-19 escancaram o quão imprescindível é uma economia que tenha o cuidado em primeiro plano, pautando um modo de vida solidário, com o fortalecimento dos espaços comuns, de escolas, creches, lavanderias, hortas e cozinhas comunitárias.

📽️ Confira aqui o vídeo “O que é Economia Feminista 01”:

📽️ Confira aqui o vídeo “O que é Economia Feminista 02”:

Fonte: Capire 

 Leia também a nossa última coluna no Jornal Brasil de Fato, que também aborda o tema.

 

Pulverização de agrotóxicos é debatida no Fórum Social Mundial de Porto Alegre

Famílias assentadas, organizações e movimentos sociais debatem problemáticas da pulverização de agrotóxicos no Fórum Social Mundial de Porto Alegre e constroem aliança para garantir a produção de alimentos sem veneno

Importância da solidariedade internacionalista e da articulação entre países da América Latina para combater o avanço dos agrotóxicos é enfatizada nos debates. Foto: Maiara Rauber

Nos dias 23 e 24 de janeiro, as famílias Sem Terra participaram do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e debateram sobre as problemáticas da pulverização aérea de agrotóxicos na mesa ‘Povos contra agrotóxicos na República Sojeira’.

Também estiveram presentes representantes do Movimento Ciência Cidadã, em colaboração com Multisectorial Paren de Fumigarnos (AR), Red Nacional de Accion Ecologista (Renace – AR), Instituto de Salud Socioambiental da Universidad de Rosario (AR), Famílias do PA Santa Rita de Cássia II e Integração Gaúcha, Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST RS), Rede Irerê de Proteção à Ciência, Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Terra de Direitos, Amigos da Terra Brasil, Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), Comissões de Produção Orgânica (CPORG), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Cooperativa Central dos Assentamentos do RS (COCEARGS), Instituto Preservar, Jornal Brasil de Fato RS, Rede Soberania e GT-Saúde/Abrasco.

A mesa, dividida entre dois encontros, contou com troca de relatos e experiências entre companheiros de luta do Brasil e da Argentina. A partilha foi de vivências forjadas pelas desigualdades do capitalismo, que avança com um modelo de produção de alimentos primário exportador (o agronegócio) de alto impacto negativo nos biomas, responsável por danos irreversíveis nos territórios além de inúmeras violações de direitos destes e dos povos. Modelo assinalado ainda por uma relação de dependência econômica do Sul Global em relação ao Norte, que incide no cotidiano de pequenos produtores rurais por meio da violência, destruição da sociobiodiversidade, poluição, envenenamento, falta de incentivo via políticas públicas, desestruturação de suas formas de produção e de vida e perseguição política.

Mas para além do descaso do estado e do desamparo presente nos relatos, o otimismo da vontade foi o horizonte das pautas discutidas. De forma propositiva, também foram elencadas estratégias para barrar a deriva de agrotóxicos, a pulverização aérea de veneno e as violências contra pequenos produtores rurais, propondo o direito à terra, trabalho, comida e à produção de alimentos saudáveis. Na confluência de saberes e realidades, os movimentos e coletivos presentes se fortaleceram, dando início a uma aliança latinoamericana para dar um basta às violações dos corpos, territórios e da natureza imposta por uma minoria muito rica que comanda o agronegócio.

Visita a assentamentos conta com troca de experiências entre Argentina e Brasil e proposição de reivindicações coletivas para barrar as violências dos agrotóxicos nos países

No primeiro dia da atividade ‘Povos contra agrotóxicos na República Sojeira’’, foi realizado um roteiro de reconhecimento dos espaços atingidos pela pulverização aérea nos últimos anos. Inicialmente os participantes reuniram-se no Viveiro Bourscheid, no Assentamento Santa Rita de Cássia II, em Nova Santa Rita, na região Metropolitana de Porto Alegre (RS). O viveiro é o único com certificado orgânico no Rio Grande do Sul. Espaço que resiste às derivas e as ameaças latentes advindas dos agrotóxicos pulverizados nas proximidades, apontando que outros caminhos para a produção de ervas, temperos, hortaliças e medicinas da natureza, assim como o sonho de uma alimentação saudável, são uma realidade não apenas possível, mas que já vem sendo construído na prática. Realidade que também se traduz na segunda visita do dia, realizada em outra propriedade de assentados da região, muito reconhecida pela produção de morangos orgânicos.

Nos locais os visitantes tiveram uma contextualização histórica sobre o processo de produção de alimentos orgânicos e agroecológicos, assim como das lutas cotidianas travadas pelos assentados. Houve a identificação dos problemas enfrentados, das estratégias adotadas e das implicações das pulverizações de agrotóxicos na vida das famílias afetadas. Também foram apresentadas as articulações com comunidades urbanas e laços estabelecidos com a sociedade local e regional.

O assentado e produtor de mudas Adir Bourscheid, um dos primeiros a relatar a deriva da pulverização de agrotóxicos na região de Santa Rita. Foto: Maiara Rauber

As famílias dos assentamentos de Reforma Agrária Itapuí, Santa Rita de Cássia II e Integração Gaúcha relembram os momentos que enfrentaram em 2020 e 2021, nas quais foram atingidos pela deriva de agrotóxicos pulverizados por aviões agrícolas utilizados por grandes produtores de arroz convencional do município de Nova Santa Rita. Os herbicidas afetaram a saúde de agricultores, moradores, culturas orgânicas, animais e agroecossistemas locais, como consequência de voos rasantes de aviões com agrotóxicos sobre e nas proximidades das áreas dos assentamentos, onde se concentram também algumas das áreas de maior produção de arroz agroecológico da América Latina.

Entre os diversos sentimentos presentes, esteve a tristeza pelas violações nos territórios, com impactos traduzidos em estiagens prolongadas, como a de 2020, no envenenamento das águas, e nas ameaças constantes das pulverizações. Foram evidenciados casos de câncer devido ao contato com o veneno, doenças de pele, alergias, bolhas na pele, adoecimento e enfermidades tantas.

A partilha de relatos sobre a realidade da vida no campo, com enfoque na produção agroecológica, contou com falas como a da companheira argentina Flavia Zenotigh, da organização Mujeres Rurales Campo Hardy y Zona. Ela abordou os impactos do modelo do agronegócio e dos agrotóxicos na vida das mulheres argentinas do campo, que muitas vezes passam por situações como abortos espontâneos pelo contato com o veneno, ou nascimento de crianças com doenças e deformações. Além de um cotidiano evidenciado pela perda de suas crianças, revelou ainda que o câncer alcança índices elevados em seu território, afetando drasticamente as companheiras. Contexto situado dentro da conivência do estado Argentino, que como expôs sua fala, adota políticas que dão as costas aos pequenos agricultores. “E a justiça não nos escuta”, acrescentou. Caso semelhante ao do Brasil, e até mesmo de Santa Rita, com fiscalização que em uma das denúncias feitas demorou 15 dias para ser realizada.

Flavia Zenotigh, da organização Mujeres Rurales Campo Hardy y Zona, abordou os impactos do modelo do agronegócio e dos agrotóxicos na vida das mulheres argentinas do campo na Argentina. Foto: Maiara Rauber

O assentado e produtor de mudas Adir Bourscheid, um dos primeiros a relatar a deriva da pulverização de agrotóxicos na região de Santa Rita, comentou: “Em 2015 fomos atingidos pela primeira vez e ninguém dizia que era veneno, era falado que era falta de água. Tinha veneno por cima de tudo, eu denunciei. Chegamos aqui e construímos o que construímos para persistir na terra, persistir em ir contra o veneno. É difícil fazer uma muda orgânica, mas não vamos parar, porque primeiro de tudo vem a saúde”.

Os impactos das derivas também se dão na vida econômica dos produtores, com perdas que podem comprometer a subsistência das famílias, a ida a feiras e o abastecimento com alimentos em regiões inteiras. Adir resgatou ainda a conexão política com a pauta, mencionando a importância do Movimento Sem Terra e das políticas do governo de Lula para que pudessem tocar o projeto do viveiro.

A questão, que como o próprio assentado e produtor orgânico de morangos, Olímpio Vodzik, ressaltou, vai para além da terra. Olympio, além de contar a história de sua propriedade e a importância da produção agroecológica, que garante inclusive a potabilidade das águas e o equilíbrio ecológico dos locais, destacou a importância dessa forma de produção na fertilidade do solo, na diversidade da vida. E o quanto desde que se assentou no local, numa relação afetuosa com o espaço e sem uso de venenos, foi possível perceber melhorias neste.

A questão, que como o próprio assentado e produtor orgânico de morangos, Olímpio Vodzik, ressaltou, vai para além da terra. Foto: Maiara Rauber

A violência permeia os relatos da resistência contra a pulverização de agrotóxicos no Brasil e na Argentina. Mas para além dela, a indignação, na coletividade e construção das lutas, se torna mobilização para seguir. O assentado do MST, João Vitor de Almeida,  insistiu na cooperação, articulação das lutas, e pressão dos de baixo ao poder público e à justiça para garantir o direito à terra, produção, trabalho e vida digna. “A última vez que nós ficamos muito sufocados era cinco horas da manhã e o avião estava passando. E às cinco da manhã é hora que ninguém fiscaliza. E se as famílias não reclamam, elas não se movimentam. O agronegócio vai corrompendo e vai criando mecanismos que tornam tudo possível novamente. Então a lei é importante, mas mais importante é a consciência e a mobilização das famílias, de que não é possível conviver com agroecologia e agronegócio”, relatou. Evidenciando a importância das alianças de luta, João complementou: “ Temos que juntar todas nossas forças possíveis para que a gente possa produzir alimentos saudáveis, cuidar do ambiente, da terra e do nosso trabalho. E é isso que temos feito nos últimos anos, enfrentando todas as dificuldades possíveis. E o que estamos propondo, diante de todas as dificuldades que enfrentamos é que nós precisamos ampliar essa relação para um processo de luta maior a partir das comunidades locais. Porque uma árvore não se planta de cima para baixo, e nós temos que produzir a luta de baixo para cima”.

Encontro na Assembleia Legislativa apresenta reinvindicações das lutas e proposições para frear o agronegócio

No segundo dia (24) do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, o debate da temática, desta vez aberto ao público, teve sequência na Assembleia Legislativa do RS. Lá, trouxe reflexões a nível de América Latina, de Brasil, mas também abordou informações mais específicas dos casos ocorridos em Nova Santa Rita e Eldorado do Sul, assim como em Santa Fé (AR).

Carlos Manessi, da Multisectorial Paren de Fumigarnos (AR), explanou sobre a realidade Argentina. “As condições são as mesmas, temos agora na Argentina  o presidente Alberto Ángel Fernández ,respaldado pelo CEO da Syngenta, principal promotora desse modelo que temos agora em presidência. Falo para que tenham ampla ideia. Manessi acrescentou ainda que em Santa Fé há 20 milhões de hectares cultivados com soja: “Na nossa província, local da qual venho, temos três milhões e meio de hectares, 70% do nosso território está coberto com soja. Isso corresponde a 70% das terras cultivadas. É muitíssimo. É monocultura, monocultivo demais. Demais”, situou.

Em sua fala, abordou os casos de inundações, secas, contaminação de rios e desmontes decorrentes do modelo do agronegócio, diretamente relacionado ao uso de agrotóxicos e transgênicos. “Santa Fé perdeu 50% da colheita. Uma lagoa com 20km de peixes mortos pela seca em grande lagoa que temos. São impactos tremendos que estamos sofrendo”, contou, estabelecendo um paralelo com os impactos na saúde coletiva.  “Os impactos na saúde são muito grandes e não podemos seguir permitindo que nossos vizinhos sofram o que sofrem agora. Então a nossa ideia na Pare de Fumigarnos e esse coletivos de organizações é, para começar, garantir mil metros livres de fumigação… Não podemos permitir mais isso tudo. Vocês no Brasil, nós na Argentina, e paraguaios, uruguaios e bolivianos”.

Manessi também refletiu sobre a importância desse intercâmbio de informações entre organizações e movimentos de luta, inclusive como ação estratégica para frear a emergência climática: “Somos parte do ambiente, a cadeia do sistema agroindustrial é responsável por quase de metade dos gases de efeito estufa de efeito global. A mudança climática que presenciamos e sofremos está fortemente influenciada por esse modelo de produção agroindustrial. Esse sistema de produção agrária com toda cadeia de valor produz mais de 50% por cento dos gases de efeito estufa que nos leva à mudança climática”.

Somando nessa fala, Gabriel Adrian, do Instituto de Saúde Socioambiental da Universidade Nacional de Rosário (AR), elucidou que as articulações de luta reconhecem a necessidade de transformar o modelo do agronegócio, que gera doenças, mortes e consequências socioambientais nefastas. “Nesse século enfrentamos alguns desafios na saúde coletiva que tem a ver com aquecimento global, com surgimento de futuras pandemias. O modelo agroindustrial gera condições para que possam emergir novos microrganismos com potencial pandêmico, com a forma que são criados industrialmente os animais”, explicou, contextualizando que hoje vivemos em ambientes repletos de substâncias tóxicas como nunca ocorreu em outro momento da história. “Frente a todas essas ameaças, o que os companheiros querem reivindicar não se trata de nada mais que uma forma de produzir, um modo de vida.  Entendemos que os modos de vida agroecológicos são reivindicados porque são os modos de vida que nos permitem enfrentar todas essas ameaças e desafios”, sintetizou.

Adrian defendeu ainda que os sistemas agroecológicos são resilientes,  capazes de captar a sociobiodiversidade: “Frente a possibilidade de sofrimento de pandemias, os sistemas agroecológicos são os sistemas que defendem a imunidade coletiva, de toda sociedade. Contra a carga tóxica que há no ambiente, na água, no solo, no ar, os sistema agroecológicos são os que nos permitem recuperar os territórios para vivermos de modo saudável”, demarcou. Em sua exposição, reconheceu a importância da trajetória construída nas lutas, mas questionou quais compromissos  devem ser assumidos desde o setor da saúde para estar à altura histórica do momento em que estamos vivendo. “Por mais que tenhamos ideias e linhas de trabalho, é necessário recuperar desde as vivências que têm as comunidades e povos. É preciso transformar o sistema de saúde atual em um sistema capaz de produzir saúde”, comentou.

Adalberto Martins, da direção nacional do MST, apresentou em dados a problemática do agronegócio em nosso país, relacionando ao caso argentino. Evidenciou que o Brasil é o maior consumidor de veneno,  assinalando  que grande proporção dos agrotóxicos consumidos aqui são proibidos em seus países de origem.  “No Brasil, nas nossas lavouras temporárias que deveriam ser produção de alimentos, estão destinados em três cultivos: soja, milho e cana. Falamos de cerca de 40 milhões de hectares de soja, outros 22 milhões de milho, nove milhões de cana..  Isso implica para nós uma imensa concentração de riqueza, uma imensa concentração de terra, uma imensa concentração de insumos, e nesse caso os agrotóxicos saltam aos olhos no caso brasileiro. Nós somos o maior consumidor de veneno do mundo”, anunciou.

Adalberto Martins, da direção nacional do MST, apresentou em dados a problemática do agronegócio em nosso país, relacionando ao caso argentino. Foto: Maiara Rauber

A advogada e ouvidora da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Marina Dermmam destacou em sua fala o descaso do poder público em relação a fiscalização de crimes vinculados à agrotóxicos, mencionando a relevância do trabalho jurídico realizado para ajudar as famílias atingidas por pulverização aérea de agrotóxicos em Nova Santa Rita. “Os agrotóxicos podem violar uma série de direitos humanos, em especial os direitos que chamamos de DHESCAs (Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais). A gente tem uma série de legislações muito protetivas aqui no Brasil, especialmente que surgiram na década de 80 e 90: o nosso plano nacional de meio ambiente, a política nacional de meio ambiente, leis de crimes ambientais, de fato são muito protetivas, mesmo no que teve em desregulamentação no último momento que vivemos. Mas é um grande desafio quando vamos no sistema de justiça procurar responsabilidade”, mencionou. Marina manifestou ainda a importância dos polígonos de exclusão, locais em que a pulverização de agrotóxicos deve ser proibida.

Acordo Mercosul-União Europeia: acordo comercial sem participação dos afetados intensifica projeto neocolonial de superexploração dos povos e territórios no Sul Global

Para além das lutas cotidianas nas bases dos territórios, abordadas nos encontros do “Povos contra agrotóxicos na República Sojeira”, foi dimensionada como estas se travam dentro da geopolítica global. Na correlação de forças entre centro e periferia do sistema capitalista, países embobrecidos por esta economia hegemônica, como os da América Latina, são grifados pela violenta situação de dependência escancarada no modelo primário agroexportador do agronegócio. Modelo que privilegia o desenvolvimento dos países colonizadores, como os membros da União Europeia, a partir do subdesenvolvimento e superexploração do Sul Global.

Na prática, um acordo que intensifica o racismo ambiental, o ecocídio, a mercantilização da natureza e o genocídio dos povos indígenas, quilombolas,  ribeirinhos, tradicionais, campesinos e das periferias, que são os mais afetados pela emergência climática. Emergência essa causada pelo capitalismo e diretamente fomentada pelo agronegócio, ainda mais tendo em vista que o maior motivo de emissões de gases poluentes da atmosfera no Brasil é a alteração de uso de solos, via desmatamento para a ampliação da fronteira agrícola.

Exemplos que escancaram essa realidade são acordos como a Alca, barrado pelas lutas anos atrás. Caso que a assentada do MST e atingida pela pulverização de agrotóxicos, Graciela Almeida, trouxe a memória evidenciando a necessidade de uma rearticulação para também vetar o Acordo Mercosul- União Europeia, agora em abertura de diálogo no governo Lula.

Graciela Almeida, trouxe a memória evidenciando a necessidade de uma rearticulação para também vetar o Acordo Mercosul- União Europeia, agora em abertura de diálogo no governo Lula. Foto: Maiara Rauber

Logo, na luta contra a exploração dos corpos, territórios e da natureza na América Latina, este acordo é mais um ponto a ser considerado. Ele se relaciona diretamente com o avanço do agronegócio, que traz o uso de agrotóxicos que poluem águas, solos, afetam a saúde e integram um modelo de produção desigual. Graciela abordou essa situação de dependência econômica prolongada pelo Acordo, assim como o uso de agrotóxicos como armas químicas a qual estão submetidas as comunidades. O Acordo Mercosul-União Europeia a maioria das pessoas  desconhece. Quem conhece um pouco, e um pouco porque nem sequer foi traduzido nas línguas dos países que supostamente estão envolvidos, sabe muito bem que é uma nova exploração dos nossos territórios.  É um aprofundamento da exploração do sistema capitalista nos nossos territórios e nos nossos corpos. E isso significa que a fronteira da soja, a república unida da soja como falava a Syngenta, vai querer se expandir muito além. E isso vai acontecer com todas as monoculturas se nós não paramos, não conversamos e dizemos para esse novo governo que não queremos mais exploração nos nossos territórios”, situou Graciela quanto a necessidade de incidência das lutas neste Acordo.

Encontros fortalecem as alianças entre movimentos e organizações que assumem o compromisso no processo de conscientização da sociedade da América Latina

Leonardo Melgarejo, do Movimento Ciência Cidadã, explicou a importância dessa atividade multi-institucional que envolveu ativistas que lutam contra o agrotóxicos na América Latina, e contou com uma comitiva de quatro instituições da Argentina. “Nós discutimos um fato básico, temos doenças que são as mesmas, que afetam as famílias de todos os países da América Latina, que são causadas por agrotóxicos que são os mesmos comercializados com instituições que são as mesmas. Precisamos estabelecer uma forma de defesa conjunta para atuarmos de uma mesma maneira e não isoladamente, para atuarmos conjuntamente contra este problema que se associa aos avanços das lavouras transgênicas, das lavouras geneticamente modificadas tolerantes agrotóxicos que estão inundando os nossos territórios”, declarou.

Foi concluído no final do debate a importância de superar processos de alienação da sociedade de todos os países da América Latina, pois segundo Melgarejo a água que habita, que dá vida aos territórios da América Latina está sendo contaminada de maneira irreversível sendo que essa água faz parte dos organismos, das crianças, idosos, e também nos rios, lagos e aquíferos. “Uma maneira de tirar esse veneno dos espaços é evitando que ele chegue lá. Para isso temos que estabelecer mecanismos de comunicação que ajudem a sociedade a tomar consciência do problema que está em andamento e esses mecanismos exigem que nós pautamos ações em comum em conjunto nos vários espaços ao mesmo tempo”, reforçou o integrante do MCC.

Um dos exemplos citados por Melgarejo é o documento produzido pelas famílias assentadas de Nova Santa Rita, o qual conta a sua história e as estratégias que vem desenvolvendo para estabelecer essas alianças com as populações urbanas. Para fortalecer o documento estão captando assinaturas de adesão para levar adiante a sociedade do que acontece aqui no Rio Grande do Sul e que por extensão é o que acontece em todo o conjunto da América Latina.

Por fim, Melgarejo encarou o encontro positivamente, ao destacar a relação estabelecida com companheiros de lugares diferentes da América Latina. E novas etapas dessa luta conjunta já estão previstas. Segundo Leonardo, em junho deste ano haverá um momento na Universidade de Rosário, na Argentina, durante o Congresso de Saúde Coletiva e Saúde Ambiental. Outro encontro será realizado em novembro na cidade do Rio de Janeiro, no Congresso Brasileiro de Agroecologia (ABA).

“Nesse meio tempo nós temos um compromisso de apoiar as instituições que trabalham nessa linha e ajudar a proteger esses ativistas que estão envolvidos com essas ações de proteção, pois eles são perseguidos, discriminados e ameaçados. Devemos construir gradativamente esse processo de conscientização da sociedade da América Latina, e tomar medidas em conjunto para superar essa crise”, finalizou Leonardo Melgarejo.

Acesse o documento na integra.

Texto por Maiara Rauber e Carolina Colorio Reck

Confira alguns dos registros das atividades na nossa galeria de fotos: 

 

Créditos: Carolina C.

Não foi possível estar presente? Confira a transmissão ao vivo  da atividade na Assembleia Legislativa, que conta com apresentação da Carta dos atingidos pela deriva de agrotóxicos e debate internacionalista, da sociedade civil, movimentos e organizações sobre a pauta

Transmissão ao vivo

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Saiba mais sobre a luta contra o Acordo Mercosul- União Europeia na matéria “Delegação brasileira faz Jornada na Europa para denunciar os impactos do Acordo Mercosul-União Europeia”

E aqui você confere  o posicionamento da Frente Brasileira Contra o Acordo Mercosul-UE, que foi apresentada ano passado no Parlamento Europeu 

Justiça Ambiental: diálogos necessários na agenda da transição

Lula na COP 27, no Egito, com lideranças de movimentos populares do Brasil – Foto: Ricardo Stuckert

Durante os últimos quatros anos de governo, os criminosos ambientais tiveram um verdadeiro regime de “passada da boiada”. O orçamento da preservação ambiental foi reduzido drasticamente, os órgãos fiscalizatórios foram completamente desestruturados, o país praticamente parou de produzir dados sobre desmatamento e, no Congresso, projetos de lei escandalosos avançaram para o Senado.

Tais projetos de lei estão paralisados na Casa, que é presidida por Rodrigo Pacheco (PSD). Dentre eles, constam a mudança no licenciamento ambiental para praticamente extingui-lo (PL nº. 3729/2004) e a tão defendida, pelo bolsonarismo, regularização da grilagem de terras públicas (PL nº. 2633/2020 e PL nº. 510/2021). Ainda, a liberação da mineração em terras indígenas, além de outras formas de intervenção nos territórios originários previstas no PL nº. 191/2020. E também, as alterações no regime de liberação dos agrotóxicos (PL nº. 1459/2022), conhecido como o Pacote do Veneno.

Senadores e deputadas e deputados progressistas, que compõem a Frente Parlamentar Ambientalista, têm buscado empreender esforços para segurar o “avanço da boiada”. Mas é preciso atenção e mobilização social para garantir que este pacote de maldades não seja aprovado nos dias que ainda restam do Governo Bolsonaro. A pressão dos derrotados por aprovar mais retrocessos frente ao desespero da perda do poder e o oportunismo político criado no desvio de atenção para trancamento de estradas e acampamentos em quartéis são um caldeirão ainda em ebulição. Portanto, em meio às comemorações da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, que nos traz de volta o direito de sonhar e fazer a luta real pela reconstrução do país, é preciso seguirmos atentas e fortes.

O problema e as soluções na mão da equipe de transição

Talvez como nunca antes, as questões ambientais pautam as agendas governamentais. As mudanças climáticas já são permanentes e sentidas pela população em seu cotidiano. Os desastres ambientais mais que triplicaram nos últimos anos. A destruição da Amazônia e do Cerrado foi vista em todo o mundo. Não será mais possível aos governos progressistas investir num modelo de desenvolvimento cunhado no avanço da exportação de commodities. É precisamente o avanço do extrativismo e da fronteira agrícola que destrói os ecossistemas e os povos que os habitam e cuidam. A ferida aberta e pulsante colonial, precisará ser enfrentada.

É diante deste cenário que a equipe de transição terá o desafio de construir a passagem do Governo Bolsonaro para a efetivação das ousadas propostas de campanha de Lula. Em seu plano de governo, construído com aliança programática com Marina Silva, encontra-se o combate ao desmatamento e a conservação de todos os biomas. Apresenta-se ainda o compromisso de cumprir as metas do Acordo de Paris, com políticas para redução das emissões de gases de efeito estufa, com investimento em sustentabilidade produtiva. Em diálogo com tais propostas, estão a retomada do Ministério da Pesca, a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a promessa de titulação dos territórios quilombolas.

Diferentemente de outros governos, o tema da política ambiental aparece como transversal a toda a política de governo, além de indissociável dos esforços de combate à fome e às desigualdades, com centralidade também na política econômica. Reflete, portanto, uma consciência histórica e um entendimento inédito para um governante, ainda que no plano das ideias, de que a Justiça Ambiental e Climática não o é sem justiça social, econômica e de gênero. Bem como não se dissocia do enfrentamento a todas as formas de opressão, de classe, raça, identidade ou orientação sexual.

Geraldo Alckmin ainda não anunciou os integrantes da equipe de transição ambiental. No entanto, já solicitou dados do desmatamento na Amazônia e no Cerrado. A despeito da demora, algumas movimentações apontam para a conformação de uma equipe promissora. Durante a COP 27 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), que aconteceu recentemente no Egito, a deputada Joênia Wapixana; as recém eleitas Sônia Guajajara e Célia Xakriabá; as ex-ministras Marina Silva e Izabella Teixeira e o Senador Randolfe Rodrigues estiveram representando interesses do futuro governo.

Espera-se agora que o diálogo entre as políticas de combate à fome e as questões ambientais avance também em direção a uma convergência com as políticas de reparação histórica racial e territorial. Essas são questões ainda em aberto a serem respondidas pela equipe de transição com propostas concretas. No entanto, é importante destacar que, ao lado dos desafios, existem construções históricas dos movimentos populares no Brasil que podem facilitar nessa elaboração.

Neste sentido, no debate sobre os impactos à saúde e ao meio ambiente decorrentes do uso de agrotóxicos, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida  possui uma sistematização de dados, estudos e zonas de afetação que precisam de atenção e ação protetiva imediata. No campo da transição agroecológica, os movimentos da Via Campesina no Brasil são exemplo para o mundo em investimento na construção do paradigma da soberania alimentar e de políticas de incentivo à produção e comercialização saudável, justa, sustentável, solidária e feminista de alimentos, que precisa se expandir. O estabelecimento de políticas contra as queimadas e desmatamento, especialmente na responsabilização do agronegócio, já encontra inúmeras propostas feitas pela Campanha em Defesa do Cerrado e, do mesmo modo, a liderança dos povos originários, na denúncia da cumplicidade das corporações no desmatamento, e de um modo geral, nos efeitos das mudanças climáticas na Amazônia brasileira. Há ainda propostas de revisão de toda a regulamentação do setor minerário no país, paralisando especialmente projetos de lei que flexibilizam o licenciamento e autorizam o garimpo de larga escala, retomando políticas de estruturação para órgãos ambientais e agências reguladoras.

E finalmente, falta colocar no topo da lista das prioridades o combate ao racismo ambiental, marcado na pele do povo preto, pobre e periférico que se compreende também na cartografia das desigualdades e das injustiças climáticas nas cidades do Brasil. Pensar a organização das cidades, na democratização do acesso à moradia, trabalho e, também, de uma transição ecológica, dentro da retomada do Ministério das Cidades e da Plataforma de Lutas pelo Direito à Cidade.

“Não existem dois planetas Terra”

O Brasil definitivamente voltou à cena ambiental internacional quando o presidente Lula foi convidado a fazer parte da COP 27 sem ainda ter tomado posse. Em seu discurso, destacou o momento de alerta que o planeta vive: “São tempos difíceis. Mas foi nos tempos difíceis e de crise que a humanidade sempre encontrou forças para enfrentar e superar desafios. Precisamos de mais confiança e determinação. Precisamos de mais liderança para reverter a escalada do aquecimento. Os acordos já finalizados têm que sair do papel”.

A COP 27 estava sendo esperada como a “COP da implementação”. Após firmar todo o documento de regras do Acordo de Paris em Glasgow, na Escócia, em 2021, esperava-se que os Estados viessem para negociar o financiamento climático e mecanismos de compensação por perdas e danos. No entanto, pouco se avançou na criação do Fundo Verde para o Clima e, portanto, não há qualquer reconhecimento consequente das responsabilidades históricas dos países desenvolvidos quanto ao seu papel como poluidores, nem tampouco solidariedade real frente ao reconhecimento dos impactos diferenciados da crise climática ao Sul global.

As apostas continuam sendo no papel do setor privado para a transição verde, sem importar quais corporações ganham com isso e onde estão os povos atingidos pela indústria extrativa, que sustentam as chamadas energias limpas, como o Hidrogênio “Verde”. Também, no campo da redução das emissões por desmatamento, o grupo Carta de Belém lançou a Carta se perguntando “juntos com quem e para que?” se vai a COP. As entidades criticam os investimentos nas soluções baseadas na natureza (NBS), que na prática são “falsas soluções” por criarem “mercados verdes” e se construírem em mais uma ferramenta da especulação financeira, ou mesmo pelas soluções apresentadas envolverem a mercantilização das florestas, do ar, da biodiversidade e dos saberes populares, onerando ainda mais povos indígenas, povos quilombolas e comunidades tradicionais, bem como ignorando completamente o passivo histórico de destruição ambiental e a violação de direitos nas áreas já degradadas. Se não avançarmos para pensar soluções na construção de políticas públicas, dentro de um sistema de governança de Estados, transparente e democrático, iremos continuar reproduzindo injustiças ambientais, racismo e a dívida climática.

Na mesma semana da COP27, uma delegação de ambientalistas e lutadores/as sociais esteve no parlamento europeu alertando para os riscos do avanço do Acordo Mercosul- UE (União Europeia). Argumentaram que há o risco do aumento da fronteira agrícola para atender ao mercado de commodities, com destaque para a expansão da exportação da soja, do etanol e da carne e para a intensificação da mineração. De igual modo, projeta-se uma maior importação brasileira de agrotóxicos, a maioria deles proibidos nos seus países de origem. O novo governo eleito já declarou intenção de reabrir as negociações do Acordo em condições de maior respeito, com preocupações destacadas quanto à restrição para  a reindustrialização do país e das compras públicas, área chave para as políticas sociais e de geração de emprego. A UE, mesmo tendo aparentemente ouvido a sociedade civil, anunciou que espera apresentar “diretamente ao governo do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, suas demandas de compromissos adicionais do Mercosul na área ambiental”. Apesar do impecável e impactante discurso de Lula na COP, parece que o outro lado do Atlântico ainda não captou a mensagem de que o Brasil voltou e vai lutar contra as desigualdades e assimetrias coloniais.

Para buscar o envolvimento com todos os setores de modo transversal, a ex-ministra Marina Silva defende a criação de um mecanismo de autoridade nacional para fiscalizar os compromissos climáticos assumidos e reduzir os riscos climáticos. O novo governo tem realizado diálogos para retomada do Fundo Amazônia e a reestruturação do Programa de Desmatamento (Prodes) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Resta saber até onde chega a influência do campo popular da justiça ambiental na discussão de pontos da agenda da política externa. Apesar de parecerem temas aparentemente distantes, como a primazia dos direitos humanos e dos povos sobre os interesses das empresas transnacionais e do comércio internacional, a retomada das relações de integração econômica e solidária entre os povos da América Latina e do Caribe não devem estar apartados das ações afirmativas de descolonialidade e de combate ao racismo, dívidas sociais que são reconhecidas e caras para o nosso novamente eleito presidente operário.

As vozes dos povos na transição e no futuro governo

Dia 20 de Novembro foi o Dia da Consciência Negra no país, e não podemos deixar de destacar o papel das comunidades quilombolas, indígenas e populações racializadas no Brasil para a luta da “floresta em pé”. Assim como reconhecer a sobrecarga dos danos ambientais sobre seus corpos e territórios. Quando ouvimos o presidente Lula, em sua passagem pelo Egito, abordando as questões ambientais atreladas ao combate às desigualdades sociais, cercado pela mística e presença dos povos indígenas, presenciamos o semear de um novo caminho rumo à Justiça Ambiental em sua integralidade neste país.

* Coluna publicada no site do jornal Brasil de Fato RS em https://www.brasildefators.com.br/2022/11/23/justica-ambiental-dialogos-necessarios-na-agenda-da-transicao 

COP 27 encerra com acordo sobre fundo de ‘perdas e danos’, mas sem uma definição formal para reduzir o uso de combustível fóssil

Apoio financeiro para países em desenvolvimento impactados pelas mudanças climáticas é considerado acordo histórico, mas contém cascas de banana.

As divergências entre países para completar o texto final das negociações impediram que a 27ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas, em Sharm El-Sheikh, no Egito, acabasse na sexta-feira (18), data prevista para o encerramento do encontro. A plenária final ficou para a manhã de domingo, dia 20. A dificuldade para definir acordos tem feito com que as discussões sobre o regime climático avancem para além dos dias programados para o evento, e já se tornou uma “tradição” das Conferências. Em 2022, estiveram no centro dos debates agendas há muito reivindicadas pelos países do Sul global, os que menos contribuíram historicamente para as mudanças climáticas e os que mais são afetados por elas: Financiamento, Adaptação, Perdas e Danos. A divergência está em quem paga a conta pelas mudanças climáticas, isto é, os países ricos maiores causadores do problema, ou aqueles que já estão sofrendo com os impactos das mudanças climáticas.

O texto final da COP 27 foi divulgado com progresso sobre perdas e danos. Além de a pauta ter sido incorporada à agenda do evento (uma luta até o último minuto), as nações com altas emissões concordaram com a criação de um fundo de financiamento para perdas e danos. A decisão, considerada histórica, foi recebida sob aplausos na sala de conferências. No entanto, o evento foi encerrado sem informar qual será o valor destinado ao fundo, nem as metodologias que serão usadas para captar recursos e operacionalizar o fundo, o que deve acontecer no próximo ano, quando deve ser apresentada a regulamentação do Fundo. O que, sim, já sabemos é que o documento final prevê um papel especial para a iniciativa privada e para a filantropia climática, em uma articulação com os bancos multilaterais de desenvolvimento e grandes investidores institucionais.

A cooperação oficial internacional para o desenvolvimento, já há muitos anos cambaleante, torna-se definitivamente fora de moda. No horizonte, já não mais estão os empréstimos entre países a juros baixíssimos, muito aquém dos praticados no mercado de capitais, ou mesmo a fundo perdido. Estamos diante de uma transformação da macrofinança global, por meio da qual o desenvolvimento deve se tornar lucrativo para quem o financia. O esforço de reconstrução de países vitimados por eventos climáticos extremos fica refém do sistema financeiro, uma vez que essa agenda histórica (e tão demandada pelos países em desenvolvimento) vai sendo descaracterizada pela entrada de empresas seguradoras e dos grandes investidores cujo interesse está no lucro e não na vida das pessoas. Por isso, fica ambígua a designação de quais países irão realizar repasses para este fundo, se farão esses aportes ou se vão transferir para a iniciativa privada essa responsabilidade, e qual o montante, sinalizando que a definição pode ficar apenas para a COP 28, que ocorrerá em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

Outro resultado importante das negociações foi a entrega do arcabouço geral para a implementação dos mercados de carbono, estabelecidos no art. 6 do Acordo de Paris. O grupo negociador conseguiu entregar resultados para os três parágrafos cruciais desse item da agenda: o 6.2, que estabelece os parâmetros para compensação de poluição entre os países por meio de “abordagens cooperativas”; 6.4, que trata dos antigos projetos de desenvolvimento limpo ou sustentável; e o 6.8, que aborda mecanismos de não-mercado. No primeiro item, causa estranheza a possibilidade de que os países definam como sigilosas as informações de compensação de poluição, ferindo o princípio de transparência e abrindo para possibilidades de dupla contagem; no segundo, permanece ambígua a relação entre os mecanismos 6.2 e 6.4, tal qual instituída pela figura da “autorização” necessária, outorgada pela autoridade pública, para o uso do crédito de carbono pelo mercado voluntário, favorecendo, assim, a maquiagem verde de governos e empresas; e, no terceiro item (6.8), a disputa entre a criação de uma plataforma para facilitar a correspondência entre demanda e oferta de meios de implementação (ou seja, financiamento, capacitação e transferência de tecnologia) ou de uma abordagem holística para o instrumento de não-mercado foi decidida em favor da primeira.

É importante ressaltar que tudo isso acontece em um contexto em que os governos aceleram a aprovação de regulações nacionais para os mercados de carbono, muitas vezes, sem escutar os sujeitos políticos mais vulneráveis a esse tipo de falsa solução climática. No Brasil, as florestas entraram para esse mercado, por meio do modelo de concessões, o que significa a contratação por parte do Estado brasileiro de empresas para realizar a gestão florestal. Vale lembrar dos programas já em andamento, como o Adote um Parque e o programa de estruturação de concessões de parques via BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Já encontra-se em discussão no Congresso Nacional a aprovação de um projeto de lei que visa “desburocratizar” a concessão florestal no país, com isso, acelerando a transferência de terras da União para a administração privada, que poderá explorá-la economicamente, em particular, por meio de projetos de captura de carbono e serviços ambientais.

Durante a COP 27, o Grupo Carta de Belém, em conjunto com outras redes e movimentos sociais, lançou um posicionamento contrário à inclusão de florestas nos mercados de carbono, por entendermos que esse modelo de comercialização de créditos de poluição abre espaço para graves violações de direitos de povos indígenas, comunidades tradicionais e rurais, em uma conjuntura em que as instâncias de monitoramento e controle contra crimes ambientais foi desmontada pela gestão Bolsonaro-Salles-Leite.

Enquanto as florestas tropicais do mundo vão consolidando a sua posição como instrumentos da política de mitigação climática global por meio da lógica de compensações e net-zero, a posição contrária da comunidade internacional contra os combustíveis fósseis sofre retrocede a olhos vistos. A realização de uma COP no terceiro maior produtor de petróleo da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), é símbolo da conjuntura em que vivemos. O documento final peca pela falta de ambição nas ações de mitigação e por não abordar a causa do aquecimento global de maneira significativa: eliminar gradualmente a indústria de combustíveis fósseis. Com a pressão de China e Índia para que os países ricos assumissem um maior compromisso com financiamento para os países em desenvolvimento, em troca, manteve-se a decisão fraca de Glasgow (COP 26).

Em vez de mudar a linguagem adotada naquele momento para uma mais ambiciosa em relação a transição para energias renováveis, o altamente poluente carvão seguiu ocupando a posição de “energia de transição” para diminuir (não eliminar) o uso de combustíveis fósseis. A questão é séria e, como viemos afirmando, o problema não será sanado enquanto seus causadores sentam à mesa para negociar quanto tempo ainda tem para estender seus lucros com uma “compensação” nos países do Sul global. Mais uma vez o distanciamento entre as reivindicações da sociedade civil organizada e as negociações torna a COP um espaço de convergência climática hermética para países e empresas poluidoras.

Já batemos a marca de trinta anos de regime climático e 27 COPs. Até hoje não houve um acordo formal para reduzir o uso de combustível fóssil no mundo. Enquanto isso, as emissões continuam a subir e a meta de limitar as temperaturas a 1,5°C segue distante.  A verdade é que o acordo final ficou aquém do que a emergência exige. A sociedade civil global ainda terá muito trabalho pela frente. Além de continuar pressionando pela eliminação do uso de combustíveis fósseis e a adoção de fontes renováveis de energia, com atenção aos princípios de uma transição justa, será necessário criar capacidades para disputar o novo vocabulário das finanças verdes que entra com tudo na disputa pelo direcionamento do regime climático global.

Uma transição justa precisa contar com a participação de trabalhadores e trabalhadoras e comunidades atingidas

Frente às dificuldades de avançar com uma transição de matriz energética, para enfim eliminar o uso de combustíveis fósseis, é essencial que seja elaborada como se dará a transição no mundo do trabalho, de modo a garantir uma transição justa para todos. O Acordo de Paris, de 2015, menciona o termo “transição justa” como um reconhecimento de que os governos precisam levar em consideração a força de trabalho durante o processo de transição para uma economia verde.

Entre outros pontos que merecem destaque no Plano de Implementação de Sharm el-Sheikh, se encontra o reconhecimento da necessidade do diálogo social significativo e eficaz para uma transição justa real através da participação das partes impactadas no processo de transição global, entre elas a força de trabalho. É preciso levar em conta que por trás dos números, há pessoas, que hoje desenvolvem trabalhos que poderão entrar em defasagem, mas que precisam ser incorporadas a este novo mundo do trabalho.

A transição justa tem sido a bandeira principal do movimento sindical nas negociações. O texto final ter incorporado a garantia da proteção social para mitigar os impactos do processo é um ganho importante para o mundo do trabalho, que já está sendo atingido pelas mudanças. Um desafio que se aponta agora é o de incorporar a transição justa nos planos nacionais, de forma cada vez mais explícita e com participação de trabalhadores e trabalhadoras e comunidades atingidas.

Artigo publicado originalmente no site do Grupo Carta de Belém, no dia 23 de novembro de 2022.  

Sentença histórica suspende licenciamento de Usina Termelétrica Nova Seival em Ação Climática

Em sentença proferida no dia 12 de agosto, a 9ª Vara Federal de Porto Alegre julgou procedente a Ação Civil Pública proposta pelo Instituto Preservar, pela Cooperativa Agroecológica Nacional Terra e Vida (Coonaterra/ BIONATUR), pelo Centro de Educação Popular e Pesquisa em Agroecologia (CEPPA), pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN) e pelo Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (INGÁ). A vitória é resultado de uma larga articulação protagonizada por produtores rurais assentados, pesquisadoras e da participação direta de mais de vinte entidades organizadas a partir do Comitê de Combate à Megamineração (CCM/RS).

A sentença reconheceu os diversos vícios que permeiam o processo de licenciamento ambiental da Usina Termelétrica Nova Seival, nos municípios de Candiota e Hulha Negra, no Rio Grande do Sul e determinou a suspensão do processo de licenciamento ambiental desta UTE, até que sejam sanados os vícios do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) apontados pelo IBAMA e pelos diversos pareceres técnico-científicos apresentados no processo.

Ainda, anulou a audiência pública virtual realizada no dia 20 de maio de 2021, e determinou a realização de, ao menos, três audiências públicas em substituição da anulada, na modalidade presencial ou híbrida, em Porto Alegre, Hulha Negra ou Candiota e Bagé. No entanto, para poder agendar uma nova audiência, é necessário que haja análise técnica e merital do IBAMA sobre o EIA/RIMA, o Estudo de Análise de Risco e as conclusões técnicas apresentadas pelos autores.

Também determinou a inclusão nos Termos de Referência que tratam dos processos de licenciamento de Usinas Termelétricas no Rio Grande do Sul das diretrizes legais previstas na Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), Lei n. 12.187/09 e das diretrizes da Lei Estadual n. 13.594/10, que criou a Política Gaúcha sobre Mudanças Climáticas (PGMC), sobretudo quanto à necessidade de realização de Avaliação Ambiental Estratégica, nos termos do art. 9 da referida Lei Estadual, e a necessidade de inclusão de análise de riscos à saúde humana.

“Esta exigência torna a decisão da 9ª Vara Federal de Porto Alegre um importante marco na litigância climática no país, consolidando a necessidade de incorporação, nos Termos de Referência do IBAMA para licenciamentos de termelétricas, do componente climático, da avaliação ambiental estratégica e dos riscos desta atividade à saúde humana”, afirma a advogada popular Alice Hertzog Resadori (RENAP), que assessora as entidades autoras da ação.

A Copelmi e a Energia de Campanha são as empresas responsáveis pelo projeto da Usina Termelétrica (UTE) Nova Seival, que previa a construção de uma usina termelétrica, com geração de 726 megawatts de energia a partir do carvão da Mina do Seival. Para viabilizar o processo termelétrico a UTE Nova Seival necessita consumir 1.595 m³/h de água para realizar suas atividades, ou seja, a termelétrica consumiria 38.280m³ por dia, em uma região em que a escassez de água é um problema recorrente e que pode inviabilizar a continuidade da produção agrícola da região.

Esse aspecto é crucial e demonstra a gravidade dos impactos gerados pela UTE, visto que essa média de consumo hídrico (38.280m³ por dia) equivale ao consumo diário de um município de cerca de 230 mil habitantes; quase 8 vezes o consumo diária de água de todo o município de Candiota ou o equivalente ao dobro do consumo diário de água de uma cidade como Bagé, conforme dados disponibilizados no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).

O EIA/RIMA não se encontrava apto à disponibilização para consulta e manifestação da sociedade em audiência pública, uma vez que “diversos impactos e informações ambientais haviam sido omitidos, como demonstrado pela análise do processo de licenciamento ambiental e corroborado por pareceres técnico-científicos juntados pelos autores, evidenciando a violação do direito à participação da sociedade e de normas básicas que regem o licenciamento ambiental”, destaca o advogado Marcelo Mosmann.

Essa é uma decisão que favorece também a proteção de centena de famílias assentadas entre a região de Candiota/Hulha Negra, além do Centro de Educação Popular e Pesquisa em Agroecologia (CEPPA) e a Cooperativa  Bionatur, principal referência em pioneirismo na produção de sementes agroecológicas aqui no Brasil, todos ligados ao MST. Eles seriam diretamente afetados pela barragem que seria construída para viabilizar o empreendimento da Copelmi e sequer eram mencionados nos estudos apresentados pelas empresas.

Diante disso, a sentença proferida pela justiça federal “consagra uma importante vitória da sociedade civil organizada pelo Comitê de Combate à Megamineração (CCM/RS), pois obriga a análise do componente climático para efetivamente proteger a natureza, os agricultores/as e os territórios que produzem sementes agroecológicas naquela região do RS e reconhece que a tentativa de aprovação do licenciamento ambiental estava sendo feita de maneira irregular”, ressalta o advogado Emiliano Maldonado.

 

Veja também:
Entrevista com Eduardo Raguse, que integra o Comitê de Combate à Megamineração e representa a Ama Guaíba e a Amigos da Terra Brasil, para entender o que essa vitória sobre as empresas mineradoras significa para a saúde da população gaúcha e para o clima.

 

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