“Tiraram uma cidade do mapa” – A destruição de um bairro em Porto Alegre com mais de 5 mil pessoas e mais de 50 anos de história

Cinco mil pessoas que compõem 1300 famílias forçadas a deixarem suas casas em um bairro com mais de cinco décadas de existência. Esse é o resultado de uma obra propagandeada como de importância econômica para todo o estado do Rio Grande do Sul.

As obras da ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho em Porto Alegre, comandadas pela empresa alemã Fraport, mudaram completamente a vida dessas milhares de pessoas não só pelo penoso processo de despejo e remoção, como pelas condições dos lugares para onde foram removidas as famílias: muito abaixo do que a comunidade desejava, e inclusive do que foi prometido pela prefeitura.

Precariedade na infraestrutura das moradias, falta de serviços básicos em saúde e educação, ausência de espaços adequados de trabalho, e segurança estão entre os novos problemas que as famílias removidas vêm enfrentando. Enquanto isso, as cerca de 70 famílias que decidiram ficar na Vila Nazaré até obter condições minimamente dignas de saída, também vêm sofrendo as consequências do avanço de projetos que colocam o lucro acima da vida: em meio a toda uma vila destruída e esvaziada dos vizinhos, as famílias que resistem enfrentam problemas de acesso à energia elétrica e água, além da pressão da empresa alemã para acelerar e impor condições no processo de remoção.

Tudo isso em meio à pior crise sanitária mundial da história recente, na qual Porto Alegre chegou a ser considerada o coração do colapso no sistema de saúde diante da expansão do coronavírus; sem dúvidas pela mesma priorização da prefeitura do lucro ante a vida. O próprio prefeito Sebastião Melo (MDB), deixou as prioridades do governo da cidade explícitas em um ato falho dias antes de a cidade atingir seu pior momento na pandemia: “Contribua com sua família, sua cidade, sua vida para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre”, disse Melo em uma transmissão ao vivo pela internet em 26 de fevereiro. Duas semanas depois, a cidade atingiu seu pico na pandemia.

Já em relação às famílias que continuam na Vila Nazaré, a Fraport resolveu entrar com ação de reintegração de posse, um tipo de medida que foi proibida de ser executada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em alguns estados como Rio de Janeiro e Paraíba, enquanto durar a pandemia. Durante todo o período da pandemia, segundo pedido apresentado pelo Psol ao STF para proibir despejos e remoções até o fim de 2021, 9.156 famílias sofreram despejos e mais 64.546 estão sob ameaça. No último 19 de maio, também foi aprovado na Câmara o Projeto de Lei (PL) 827/20 que proíbe a execução de despejos na pandemia. O projeto espera pela aprovação no Senado.   

O Ministério Público Federal (MPF) também tem denunciado recentemente a estratégia da empresa de pulverizar a negociação, e inclusive entrou com uma ação civil pública exigindo que ela seja realizada com “mediação e conciliação no plano coletivo, de critérios uniformes e isonômicos de alternativa habitacional às famílias”.

O MPF ainda se manifestou contra os containers que a Fraport dispôs para a realização das audiências: “o local disponibilizado à parte ré consiste em local mantido pela parte autora da ação reintegratória, com o que se mostra em local absolutamente inadequado para garantir à parte ré tranquilidade e condições inclusive de eventual contato e conversa com seu advogado”.

Frente a isso, e em resposta à denúncia apresentada pela Amigos da Terra Brasil, o Conselho Nacional de Direitos Humanos recomendou “a suspensão provisória da realização das audiências conciliatórias em centro de apoio até o término da crise sanitária de covid-19”,  em ofício enviado à juíza Thais Helena Gonçalves Della Giustina, da 3ª Vara Federal de Porto Alegre.

Nas últimas semanas a juíza suspendeu as audiências e passou a expedir liminares de reintegração de posse para imediata demolição das casas. Para a família que a juíza entende justificada a recusa, ela volta a apresentar a opção de aceitar o apartamento ou determina o depósito pela Fraport do valor de R$78.889,65, valor que equivale ao bônus moradia de Porto Alegre. Esse valor é recebido após a casa da família ser demolida. E a opção de recorrer existe, mas o processo de reintegração de posse não será detido. O que quer dizer que as pessoas terão as casas demolidas e o julgamento virá depois!

“Tiraram uma cidade do mapa”, diz uma moradora que preferiu não se identificar. “O pessoal que só tem comércio [sem casa] tá sendo obrigado a ir embora sem direito a nada, e os que têm casa recebem uns 78 mil reais, e são obrigados a ir embora, não interessa o tamanho da casa, nem há quantos anos a família mora aqui, nada. Tá indo goela abaixo”, diz a moradora sobre a situação atual.     

“Esse dinheiro que eles estão ‘dando’ não dá pra comprar uma casa aqui na região; acho que não dá pra comprar uma casa em lugar nenhum”, lamenta. Os moradores também estão reclamando que não conseguem ser atendidos pela Defensoria Pública da União. O abandono é total. 

Conheça melhor este caso na publicação Do campo à cidade: histórias de luta pelo direito dos povos à terra e à vida. Acesse aqui.

Leia mais nas atualizações capítulo a capítulo:

“Tiraram uma cidade do mapa” – A destruição de um bairro em Porto Alegre com mais de 5 mil pessoas e mais de 50 anos de história

O avanço da megamineração e a concentração de riqueza contra a vida e os bens comuns

Governo Bolsonaro como instrumento de avanço do poder corporativo sobre os bens comuns dos povos



From the countryside to the city: stories of struggle for the right of people to land and life

Today (5th), World Environment Day, we launched the publication “From the countryside to the city: stories of struggle for the right of people to land and life“. The material, edited in Portuguese, Spanish, and English, tells the stories of the struggles of communities from different parts of Brazil that have as a connection the resistance to the advance of capital over their territories and the threat to their ways of life, building an exchange of struggles in the popular defense of territories. Documenting and retelling the stories brought in this publication is a way to eternalize this resistance and strengthen the communities and peoples who fight for collective rights and, through the sharing of experiences, inspire for the resistance.

The report follows the last 3 years of struggle against transnational companies and the resistance of Vila Nazaré residents to the false promises of the company Fraport, such as the removals caused by the expansion of Salgado Filho international airport in Porto Alegre (southernmost state capital of Brazil), which violated basic rights of the community. We understand, in a little more detail, the advance of mega-mining in the state of Rio Grande do Sul and the consequences of extending this frontier that has already killed part of Brazil.

We recount the history of the siege of the Amazon and the articulation of the transnationals to exploit more and more the common goods and the people of the region. We also talk about how companies used the marketing of false solidarity during the pandemic of COVID-19 to exploit the most vulnerable territories, while solidarity connections were created and strengthened in the heart of social movements.

We tell the stories so as not to forget the struggle, we share experiences to remember unity. From violations of rights to land and life, to the conquests that are made. Each movement to build a popular solidarity network is a step on the path of just recovery post COVID.

The launching of the publication “From the countryside to the city: stories of struggle for peoples’ right to land and life” also marks the 50th anniversary of Friends of the Earth International. Five decades of struggle and resistance in defense of the Environment, of peoples and territories for Environmental Justice.

Check out the publication in english.

Read the update chapter by chapter:

“A city has been removed from the map” – The destruction of a neighbourhood in Porto Alegre with more than 5 thousand people and over 50 years of history

The advance of mega mining companies and the concentration of wealth against life and the common goods

Bolsonaro administration as an instrument for advancing the corporative power over the common goods of the peoples

Popular solidarity against the ethical makeup of companies

Del campo a la ciudad: historias de lucha por el derecho de los pueblos a la tierra y a la vida

Hoy (5), Día Mundial del Medio Ambiente, lanzamos la publicación “Del campo a la ciudad: historias de lucha por el derecho de los pueblos a la tierra y a la vida“. El material editado en portugués, español e inglés da cuenta de las luchas de comunidades de diferentes lugares de Brasil que tienen como nexo la resistencia al avance del capital sobre sus territorios y la amenaza a sus formas de vida, construyendo un intercambio de luchas en defensa popular de los territorios. Documentar y contar las historias que se traen en esta publicación es una forma de eternizar esta resistencia y fortalecer a las comunidades y pueblos que luchan por los derechos colectivos y, a través del intercambio de experiencias, inspirar para la lucha.

El informe sigue los últimos 3 años de lucha contra las empresas transnacionales y la resistencia de los habitantes de Vila Nazaré a las falsas promesas de la empresa Fraport, como las mudanzas provocadas por la ampliación de la pista del aeropuerto internacional Salgado Filho de Porto Alegre (RS), que violó derechos básicos de la comunidad. Entendemos, con un poco más de detalle, el avance de la megaminería en el estado de Rio Grande do Sul y las consecuencias de la ampliación de esta frontera que ya ha matado a parte de Brasil.

Contamos la historia del asedio al Amazonas y la articulación de las empresas transnacionales para explotar cada vez más los bienes comunes y los pueblos de la región. También abordamos cómo las empresas utilizaron el marketing de la falsa solidaridad durante la pandemia del COVID-19 para explotar los territorios más vulnerables, mientras se creaban y reforzaban las conexiones solidarias en el seno de los movimientos sociales.

Contamos las historias para no olvidar la lucha, compartimos experiencias para recordar la unidad. Desde las violaciones de los derechos a la tierra y a la vida, hasta las conquistas que se realizan. Cada movimiento para construir una red popular de solidaridad es un paso en el camino de la recuperación justa post COVID.

El lanzamiento de la publicación “Del campo a la ciudad: historias de lucha por el derecho de los pueblos a la tierra y a la vida” marca también el 50º aniversario de Amigos de la Tierra Internacional. Cinco décadas de lucha y resistencia en defensa del Medio Ambiente, los pueblos y los territorios por la Justicia Ambiental.

Lea la publicación en español.

Lea la actualización capítulo a capítulo :
“Han borrado una ciudad del mapa” – La destrucción de un barrio en Porto Alegre con más de 5 mil personas y más de 50 años de historia

El avance de la megaminería y la concentración de riqueza contra la vida y los bienes comunes

El gobierno Bolsonaro como instrumento de avance del poder corporativo sobre los bienes comunes de los pueblos

Solidaridad popular contra el maquillaje ético de las empresas

Do campo à cidade: histórias de luta pelo direito dos povos à terra e à vida

Hoje (5), Dia Mundial do Meio Ambiente, lançamos a publicação “Do campo à cidade: histórias de luta pelo direito dos povos à terra e à vida“. O material editado em português, espanhol e inglês relata as lutas de comunidades de diferentes lugares do Brasil que têm como conexão a resistência ao avanço do capital sobre seus territórios e a ameaça aos seus modos de vida, construindo um intercâmbio de lutas na defesa popular dos territórios. Documentar e recontar as histórias trazidas nesta publicação é uma forma de eternizar essas resistências e de fortalecer as comunidades e povos que lutam por direitos coletivos e, por meio do compartilhamento de experiências, inspirar para a luta.

O relatório acompanha os últimos 3 anos de luta contra empresas transnacionais e a resistência dos moradores da Vila Nazaré às falsas promessas da empresa Fraport, como as remoções provocadas pela ampliação da pista do aeroporto internacional Salgado Filho em Porto Alegre (RS), que violou direitos básicos da comunidade. Entendemos, com um pouco mais de detalhe, o avanço da megamineração no estado do Rio Grande do Sul e as consequências de estender essa fronteira que já matou uma parte do Brasil.

Recontamos a história do cerco à Amazônia e a articulação das transnacionais para explorar cada vez mais os bens comuns e povos da região. Também tratamos sobre como as empresas utilizaram do marketing da falsa solidariedade durante a pandemia da COVID-19 para explorar os territórios mais vulneráveis, enquanto conexões solidárias foram criadas e fortalecidas no coração dos movimentos sociais.

Contamos as histórias para não esquecer da luta, partilhamos experiências para lembrar da união. Das violações de direitos à terra e à vida, às conquistas que são feitas. Cada movimento para construir uma rede popular de solidariedade é um passo no caminho da recuperação justa pós COVID.

O lançamento da publicação “Do campo à cidade: histórias de luta pelo direito dos povos à terra e à vida” também marca os 50 anos da Amigos da Terra Internacional. Cinco décadas de luta e resistência em defesa do Meio Ambiente, dos povos e territórios por Justiça Ambiental.

Confira a publicação completa em português.

Leia mais nas atualizações capítulo a capítulo:

“Tiraram uma cidade do mapa” – A destruição de um bairro em Porto Alegre com mais de 5 mil pessoas e mais de 50 anos de história

O avanço da megamineração e a concentração de riqueza contra a vida e os bens comuns

Governo Bolsonaro como instrumento de avanço do poder corporativo sobre os bens comuns dos povos

Todo apoio à Aldeia Pindo Poty, no Lami, em Porto Alegre

A Aldeia Pindo Poty conquistou, na 5ª feira (6/05), uma liminar judicial que dá reintegração de posse da área, mas no mesmo dia sofreu uma nova invasão. Estamos mobilizados para lutar junto aos Guarani na retomada de seus territórios, uma luta pela terra e pela vida!

A Amigos da Terra Brasil (ATBr) vem manifestar seu apoio à Aldeia Pindo Poty, ao CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e à Comissão Guarani contra os ataques e as ameaças de grileiros, que querem tomar a área no Lami para destiná-la à exploração econômica. Nos somamos nesta frente de luta e de apoio às reivindicações dos Guarani, que batalham pela retomada de seus territórios no Extremo-Sul de Porto Alegre (RS). Nesta região, além da Pindo Poty, outras duas aldeias, localizadas no Cantagalo (divisa entre a Capital gaúcha e a cidade de Viamão) e na Ponta do Arado Velho (bairro Belém Novo), correm risco constante de perderem suas terras para interesses econômicos e sofrem com a falta de equipamentos públicos básicos*.

Famílias Guarani reunidas na Tekoha Pindó-Poty / Foto: Conselho Indigenista Missionário.

Dezenas de famílias Guarani se concentram na Terra Índigena onde está situada a aldeia Pindo-Poty, localizada no Lami, na cidade de Porto Alegre. A terra está em processo demarcatório aberto na Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e com estudos antropológicos já realizados, com a última movimentação do processo datada de 2018. Os estudos realizados abrangem uma área de 100 hectares, sendo a área verde dentro desse perímetro o local de residência das famílias Guarani. A área foi alvo de novas invasões na última semana e nessa 5ª feira (6/05), além de já contar com outras áreas indevidamente ocupadas.

Os órgãos públicos apresentam um descaso grande com as aldeias Guarani do Rio Grande do Sul, e nessa situação não foi diferente. Com o cenário da retenção dos estudos antropológicos das Terras Indígenas pela FUNAI, há pouca ou nenhuma capacidade de ação por outros órgãos públicos, o que compromete a situação como um todo, visto que a maioria das terras Guarani não estão homologadas. 

“Me senti discriminada pelos órgãos públicos, a fim de me fazer perguntar ‘quem sou eu perante uma autoridade?’. Fico imaginando pra quem está há anos morando aqui e não tem essa resposta [em relação à terra].”, diz Kerexu Yxapyry, Liderança Indígena Mbya Guarani. Kerexu também é Coordenadora da Comissão Guarani Yvyryupa e Coordenadora Executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a APIB. 

Na noite do dia 28 de Abril, quarta-feira, houve uma nova invasão, na qual os ocupantes ilegais do território construíram barracos da noite para o dia, limparam todo o espaço e colocaram cercas para simular uma ocupação de longa data. 

Barracos foram erguidos da noite para o dia com a intenção de simular uma ocupação no local. | Foto: Heitor Jardim/Amigos da Terra Brasil.

Diante  do cenário de incertezas, a invasão causou uma grande união de forças das aldeias Guarani. Várias famílias dos mais diversos territórios mobilizaram-se para o local para  apoiar diretamente a defesa da área. A aldeia também recebeu uma doação de alimentos das feiras agroecológicas de Porto Alegre organizada por uma rede de apoiadores.

A demarcação dos territórios é de extrema importância na garantia dos direitos originários dos povos indígenas, e é dever da FUNAI estabelecer um diálogo mais próximo com as aldeias que estão em processo de homologação, além de aproximar e possibilitar o acesso das aldeias aos estudos antropológicos já realizados. “A gente precisa que a sociedade entenda qual é o papel da FUNAI e ajude a cobrar esse papel. Esse modo contrário do governo de deslegitimar nossa luta e criminalizar liderança precisa acabar. A vida de quem é liderança é caminhar no fio da espada, a gente não tem certeza de nada, lutamos pela causa porque é uma missão.” diz Kerexu.

Após visita realizada pelo Ministério Público Federal foram ajuizadas duas ações em favor dos Mbya Guarani do Pindo-Poty, e no dia 6 de Maio, quinta-feira, a juíza federal Clarides Rahmeier deferiu uma liminar de reintegração de posse para a retirada dos invasores da área. Neste mesmo dia, por ação de pessoas ainda não identificadas, ocorreu a destruição de uma área de terra onde a comunidade indígena realizou o plantio de mudas de árvores frutíferas e nativas. Os invasores destruíram tudo com um trator. A partir de mais uma violação dos direitos que ameaça a segurança das famílias Guarani presentes no território indígena, a Comissão Guarani Yvyrupa exige que sejam adotadas medidas administrativas e jurídicas para concluir a demarcação da terra, promover a retirada dos invasores e iniciar as ações de proteção e fiscalização da área.

Vígilia noturna na aldeia. | Foto: Alass Derivas.

Este ataque cometido logo após os Guarani da Pindo Poty terem conquistado a liminar judicial simboliza bem este momento de intolerância e de crimes cometidos contra os povos indígenas e o meio ambiente por setores econômicos apoiadores do Governo Bolsonaro. É a lógica do “passar a boiada”, pela qual o governo altera as leis e enfraquece os órgãos públicos para proteger e, até mesmo, como forma de incentivar as ações destes criminosos, grileiros e milicianos.

 Estamos em alerta e prontos para seguir apoiando e mobilizando nossos esforços para prestar apoio e solidariedade aos Mbya Guarani na retomada de seus territórios, uma luta pela terra e pela vida.

Todo apoio à aldeia Pindo Poty do Lami, em Porto Alegre!

*No Cantagalo, Viamão, a comunidade local e os Mbya Guarani resistem ao projeto de instalação de um lixão (aterro sanitário) com alto potencial poluidor. Desde 2018, a aldeia Mbya Guarani da Ponta do Arado, Porto Alegre, com ajuda do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), da Amigos da Terra Brasil, universidade e demais organizações sociais, luta para retomar seu território, que é almejado pela Arado – Empreendimentos Imobiliários S.A para a construção de um condomínio de luxo na beira do Lago Guaíba. A situação na aldeia é tão precária que, nos dois últimos anos, os Guarani e apoiadores se organizaram para levar energia elétrica à área e garantir acesso à água.  

Todo apoio à Sônia Guajajara e à luta dos povos indígenas! Não à criminalização!

Amigos da Terra Brasil (ATBr) se solidariza à Sônia Guajajara, coordenadora da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), pela perseguição e tentativa de criminalização que vem sofrendo pelo Governo Bolsonaro. Sônia foi intimada pela Polícia Federal (PF) a prestar depoimento em um inquérito aberto em razão da websérie Maracá, que aponta diversas violações dos direitos indígenas durante a pandemia do Coronavírus.

O pedido de investigação à PF partiu da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que alegou que o documentário propaga “mentiras” contra o governo. Afirmação que soa como ironia, já que o Governo Bolsonaro e seus apoiadores são uma fonte infindável de desinformação, negando constantemente dados científicos comprovados, distorcendo dados e pesquisas em benefício de seus interesses e de sua visão ideológica, combatendo veículos de comunicação convencionais e alternativos de credibilidade, produzindo e divulgando as “fake news”.

Há anos os territórios indígenas sofrem com o abandono do Estado nas questões mais básicas de atendimento à saúde. Em muitas situações, o próprio Estado intermedia e incentiva o avanço do agronegócio e das empresas do capital para cima dos territórios, destruindo a vida e a cultura dos povos e dando fim às nossas florestas. A pandemia do Coronavírus veio agravar esta realidade já tão sofrida: atualmente, mais da metade dos povos indígenas foi diretamente atingida pela COVID-19, com mais de 53 mil casos confirmados e 1.059 mortos segundo dados veiculados pela APIB.

O ataque à Sônia Guajajara e à APIB revela a face autoritária de um governo que faz de tudo para defender os interesses econômicos do agronegócio e dos grandes conglomerados financeiros e empresas, nacionais e transacionais, que o apoia. Bolsonaro quer calar quem se organiza contra as injustiças sociais e resiste ao extermínio dos povos indígenas e das nossas florestas.

Todo apoio à Sonia Guajajara, à APIB e aos que lutam em defesa da vida! 

Pelos direitos dos povos indígenas e sua livre expressão!

#ForaBolsonaro

Basta de despejos! Solidariedade com todas as famílias sem-teto e sem-terra do Brasil!

Sem conseguir tirar o país do pior momento da pandemia, o Estado brasileiro continua promovendo ações de despejo de comunidades em diversas partes do país, contrariando a Resolução n° 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos e a mais recente recomendação do Conselho Nacional de Justiça (Ato Normativo nº 0010578-51.2020.2.00.0000), segundo a qual juízes e juízas devem evitar autorizar despejos enquanto durar a pandemia do coronavírus. 

Na semana passada, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), determinou, pela terceira vez durante a pandemia, o despejo da Ocupação CCBB. Ao todo, 38 famílias tiveram derrubadas suas casas e uma escola recém construída para as crianças da ocupação. A ação foi levada a cabo com violência por parte da Polícia Militar do Distrito Federal, que ainda prendeu quatro militantes que acompanham e defendem a ocupação: Thiago Ávila, Caio Sad Barbosa, Pedro Filipe Menezes Piedade e Érika Oliveira Cardozo. 

Já no Rio de Janeiro (RJ), o prefeito Eduardo Paes (DEM) determinou a destruição de 14 moradias na favela do Metrô Mangueira, na zona norte da capital fluminense, nesta segunda-feira (12). A favela Metrô-Mangueira está sob ameaça desde o megaevento da Copa do Mundo de 2014. Segundo a Coordenadoria Técnica de Operações Especiais (COOPE), ainda serão realizadas mais demolições de casas e locais de comércio. 

Os despejos e ameaças também continuam no campo. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), denunciou decisão da juíza Kelma Vilela de Oliveira do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO), determinando uma reintegração de posse que pode deixar 70 famílias sem casa e sem terra em Vilhena (RO). Ainda em Rondônia, a Associação Brasileira dos Advogados do Povo (ABRAPO), denunciou no início de abril, uma “guerra orquestrada pelo governo de Rondônia” contra os camponeses do acampamento Manoel Ribeiro em Corumbiara (RO). As cerca de 200 famílias que vivem no acampamento vêm denunciando pressões, intimidações e abusos por parte da Polícia Militar (PM). 

A CPT, junto a outras organizações e movimentos populares no Pará, como a Sociedade Paraense de Direitos Humanos (SDDH), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento Sem Terra (MST), denunciaram, nesta segunda-feira (12), uma série de “despejos e prisões de trabalhadores rurais sem ordem judicial”, realizadas pela Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) de Marabá.

Segundo nota das organizações, o delegado do Deca Ivan Pinto da Silva “se desloca para os locais com sua equipe, acompanhado de vans, micro-ônibus, caminhonetes, tratores e, no local, ameaça as famílias, prende alguns e transporta grande número de homens, mulheres e crianças até uma delegacia. Logo que são retirados do local, os fazendeiros ordenam a queima dos barracos e colocam pistoleiros armados para impedir o retorno das famílias”. 

Continuamos denunciando a ação de reintegração de posse movida pela Fraport, empresa alemã que administra o Aeroporto Salgado Filho contra as 60 famílias que continuam resistindo às remoções promovidas pela empresa e a prefeitura de Porto Alegre na Vila Nazaré, na zona norte da cidade. Em resposta à denúncia apresentada pela Amigos da Terra, o CNDH solicitou o respeito aos termos da Resolução nº 10, de 17 de outubro de 2018 e a “suspensão provisória da a realização das audiências conciliatórias em centro de apoio até o término da crise sanitária de covid-19”.


Nós, da Amigos da Terra Brasil nos somamos às vozes de repúdio às ações desumanas de despejos que vem sendo realizadas no campo e na cidade, exigimos despejo zero e o fim da perseguição aos e às militantes que lutam em defesa do direito à terra e a moradia em todo o país!

Contribua com as campanhas de solidariedade em todo o país: 
Campanha dos sem-teto de combate à pandemia

Campanhas de solidariedade dos povos originários

Na foto:  Despejo de comunidade de 54 famílias acampadas em Laranjal, no Paraná, em 2019. Foto: Leandro Taques.

5 anos do assassinato de Berta Cáceres: somamos força ao pedido de justiça!

Berta Cáceres estava na linha de frente de oposição ao projeto hidrelétrico Agua Zarca e foi assassinada em 2 de março de 2016

Há cinco anos Berta Cáceres foi assassinada a tiros em sua casa, em Honduras. Berta era cofundadora e coordenadora do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH). A ativista de 44 anos, era mãe de quatro filhos e reconhecida internacionalmente com o Prêmio Goldman de Meio Ambiente, de 2015, por liderar uma campanha de resistência contra a construção de uma barragem hidrelétrica em território indígena por uma empresa privada de energia, a Desarrollos Energéticos Sociedad Anónima (DESA), a empresa pertencia e era administrada por uma das famílias mais poderosas de Honduras, os Atala Zablahs. Após o golpe de Estado sofrido no país em 2009, Berta alcançou projeção também por sua liderança na articulação do movimento de refundação hondurenho.

Berta Cáceres nas margens do Rio Gualcarque, região oeste de Honduras. Foto: Goldman Environmental Prize

Em julho de 2013, O Conselho Civil Popular de Organizações Indígenas de Honduras (COPINH), liderado por Berta Cáceres Flores, protestou contra a construção de uma barragem hidroelétrica no Rio Gualcarque, considerado sagrado pela comunidade indígena Lenca. A pedido da DESA, o exército hondurenho protegia o local. Os soldados abriram fogo contra os manifestantes, e mataram Tomás Garcia. 

Três anos depois, no dia 2 de março, atiradores invadiram a casa de Berta Cáceres e a assassinaram.  Provas, incluindo conversas de whatsapp identificam diálogos entre os executivos de alto escalão da empresa, membros da família Atala Zablah, com o ex-diretor de segurança da DESA, que coordenava o chefe dos assassinos. 

David Roberto Castillo Mejía, presidente de Desa, foi preso no segundo ano após o assassinato, indiciado como o “autor intelectual”. Ele segue alegando sua inocência. Em uma das passagens do julgamento, o tribunal identificou que os executivos da DESA planejaram a morte de Berta por conta de sua luta, contudo, os apontamentos do tribunal ocorreram sem nomear quem era esses executivos, sem intimá-los a depor. Até agora nenhum dos gestores foi responsabilizado pelo envolvimento no assassinato de Berta. Já um grupo de sete assassinos, que incluía dois ex-empregados da DESA, foi condenado em novembro de 2018, e, em 2 de dezembro de 2019, os sete assassinos receberam penas que variavam entre 30 e 50 anos de prisão. 

As condenações e sentenças posteriores foram recebidas como uma vitória parcial. A busca por justiça passa por levar a julgamento os autores intelectuais do assassinato de Berta. E quanto a isso, a Justiça hondurenha está em dívida, apenas David Castillo foi anunciado como autor do crime e seu julgamento deve iniciar em 6 de abril.

Sem um sistema de justiça que puna aos poderosos com a mesma sanha que impõe aos de baixo, a lei do mais forte perseverará entre as corporações rasgando constituições e esmagando direitos. Enquanto a impunidade corporativa é perpetuada, ativistas de direitos humanos e ambientais seguem sendo mortos por proteger a natureza e os direitos dos povos e seus territórios. A ausência de regulamentação que defina os deveres das empresas e de instituições financeiras e que garanta o acesso à justiça para as comunidades afetadas por violações de direitos humanos causadas por crimes  corporativos  tem produzido graves lacunas de responsabilidade, permitindo que as empresas operem e lucrem em países onde as leis que garantem os direitos humanos ou as normas ambientais não existem ou não são devidamente cumpridas. Enquanto não houver regras vinculantes a nível internacional, as empresas podem continuar a perpetuar as violações de  direitos humanos em um ciclo de impunidade.

Membros da COPINH e de organizações ao redor do mundo se solidarizam com a luta por justiça para Berta. (Photo by Orlando SIERRA / AFP)

Nesse sentido, defendemos mais uma vez a necessidade de um tratado juridicamente  vinculante na ONU sobre empresas transnacionais em matéria de direitos humanos para, enfim, pôr fim ao sistema de impunidade perante as violações  internacionais de direitos humanos. (Leia mais na publicação em inglês “Death by impunity: Berta Cáceres and Agua Zarca”). 

No contexto atual, em que as os ataques aos direitos dos povos se aprofundam e que as populações originárias das Américas estão entre os mais afetados pela negligência dos governos em relação à pandemia de COVID-19, é um acalanto ver a força popular articulada em solidariedade internacionalista pedindo por JUSTIÇA PARA BERTA! Relembrar a trajetória de luta de uma mulher indígena, do povo Lenca, em Honduras, revigora nossa resistência e nossa luta por um modelo de sociedade solidário e anticapitalista. 

Mesmo não estando mais conosco, Berta Cáceres nos ensina a não calar diante dos desmandos e seguirmos firmes lutando pelos direitos dos povos em Honduras e ao redor do mundo. Berta ousou desafiar o machismo das corporações, das polícias e do Estado. Deixou um legado da multiplicação de sua voz e a potência daqueles que não aceitam injustiças. Em Honduras, ou no Brasil, seguiremos lutando por Justiça para Berta, para Nicinha, para Marielle Franco!

Sem Justiça não há caso encerrado!

Berta, presente!

Reintegração de posse dos Xokleng: Retomada do território ancestral vai contra os interesses de Ricardo Salles

Os indígenas buscam o reconhecimento da área como território tradicional junto à Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 2011.

Artigo originalmente publicado no site do Coletivo Catarse em parceria com Alass Derivas.

As famílias Xoklengs que retomam desde o 12 de dezembro suas terras ancestrais na Região de São Francisco de Paula saíram, na noite do dia 1 de janeiro de 2020, voluntariamente da área da Floresta Nacional (Flona). No entanto, seguem resistindo às margens da RS-484, do lado de fora da cerca da Flona. A estratégia se deu após mais uma ameaça de reintegração de posse, que tinha como prazo o dia 2 de janeiro. 

Após ver todos os interesses privados nas concessões das florestas nacionais do país, incentivados pelo Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, é possível entender melhor a pressa em tirar os indígenas da Flona e a impossibilidade de diálogo.

Leia mais:
“Somos sementes prontas para germinar”


Novo acampamento fica no lado de fora da cerca da Flona, às margens da RS-484 | Foto Alass Derivas



Agentes públicos saindo da Flona e se dirigindo ao acampamento dos indígenas Xokleng. | Foto Alass Derivas

No meio da manhã do sábado (2), chegaram os agentes públicos para cumprir a ordem da Justiça Federal de Caxias do Sul, solicitada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), que administra a Flona. No mandado, consta: “determinação para que a polícia federal proceda à desintrusão dos invasores fazendo uso das medidas necessárias”. Com a saída voluntária por parte dos indígenas, não havia mais o que os agentes públicos fazerem ali além de intimar as partes responsáveis no processo. 

As quatro famílias Xokleng, descendentes de Veitcha Teiê e Voia Camlem, tiveram a solidariedade de cerca de 10 apoiadores na noite da véspera da reintegração. No entanto, foi uma manhã de tensão, devido ao aparato armado da Polícia Federal, o certo isolamento da retomada em relação a distância e comunicação e também devido às intransigências da coordenação do ICMBio, na figura da chefe da Flona, Edenice Brandão Ávila de Souza. Apesar disso, nenhum incidente de violência direta aconteceu, e os Xokleng seguem firmes e fortes no lado de fora da cerca da Floresta Nacional. Mantém-se em resistência com os seus corpos enquanto traçam estratégias para quando o judiciário voltar do recesso.

No dia 2 de janeiro, as lideranças da Retomada Xokleng publicaram uma nota explicando o movimento de saída voluntária e anunciando que a luta segue. “Não vão nos amedrontar com ameaças de remoção forçada e muito menos nos intimidar através de medidas judiciais protelatórias ao nosso direito. Nossa retomada é sopro de vida, sinal de esperança e símbolo de luta e resistência. Seguiremos unidos aos demais Povos do Brasil contra as injustiças, pela demarcação de todas as terras, defendendo-as e combatendo a tese do marco temporal e as demais manobras políticas e jurídicas criadas para nos roubar a terra e inviabilizar a Constituição Federal de 1988”.

As retomadas encabeçadas pelos povos indígenas podem ser consideradas como ações diretas de caráter decolonial. Ao adentrarem novamente no seu território ancestral, os Xokleng da retomada Konglui restauram a história do nosso país. Dão visibilidade a fatos, acontecimentos e pessoas que foram apagadas da história oficial. Ao mesmo tempo, os horizontes de futuro que projetam nos territórios recuperados se espelham nos conhecimentos dos seus antepassados. O retorno, que nasce no interstício do esbulho e da indignação, conta com a presença dos espíritos que guiam os Xokleng nas suas decisões e nos seus caminhos. Algo incompreensível pelo oficial de justiça, pelos agentes da FLONA, do ICMBio e da Polícia Federal – que se deslocaram no segundo dia deste novo ano, ainda em plena pandemia de Covid-19, para despejar os indígenas, e isso, “em nome da lei”.

Relato da manhã de reintegração


Agente do GPI, Edenice, Oficial de Justiça, Delegado da Polícia Federal e Isaac conversam reservadamente na estrada logo após a entrada da Flona. | Foto Alass Derivas

Assim que chegaram, os agentes públicos – a Polícia Federal, com o Grupo de Pronta Intervenção da PF (GPI); o funcionário da Funai, Francisco Aureliano Dorneles Wit; uma ambulância e o oficial de Justiça – pediram para conversar em reservado com a coordenação do ICMBio. Ingressaram na Flona, vistoriaram a área onde estava a retomada, observaram o novo acampamento por trás da cerca e só depois, aproximadamente uma hora depois, vieram conversar com a comunidade. O oficial de justiça foi recebido por Yoko Camlem e Kullung Veitcha Teiê, as duas mulheres à frente da retomada. A primeira intervenção feita por Kullung foi solicitar para o oficial afastar os policiais, pois as armas estavam assustando as crianças.   


Foto Alass Derivas



    No diálogo, Kullung reiterou a história da sua família naquelas terras e o passado de violência que seu povo sofreu, sendo o episódio que acontecia naquele momento mais uma delas. “Aqui é nosso território, daqui saiu nosso bisavós, tataravós. Eles morreram aqui, aqui está o sangue dos nossos antepassados, aqui é a terra deles. Aqui eles foram massacrados, foram matados e uma parte foi para Santa Catarina. Esse território é nosso. Nós não estamos roubando de ninguém”. Por sua vez, o Oficial de Justiça intimou Kullung com o despacho da reintegração de posse e alertou que, se houver uma nova entrada, a comunidade pode ser prejudicada judicialmente por isso. Também informou sobre a disponibilidade do Sindicato Rural de São Francisco de Paula em conceder transporte para levar os indígenas para Santa Catarina. Quais os interesses do sindicato neste oferecimento?


Kullung, o oficial de Justiça e os agentes do GPI da Polícia Federal. | Foto Alass Derivas

O primeiro a chegar foi o funcionário da Funai, vindo de Osório, Francisco Aureliano Dorneles Wit. Assim que chegou, buscou contato com a comunidade e foi enxotado por Kullung, que sugeriu que fosse falar com “a sua amiga” Edenice. A indignação de Kullung se deu devido a ausência da Funai durante os dias de retomada. A instituição aparecia no momento da reintegração como participação obrigatória devido o réu ser a comunidade indígena. Ou seja, em vez de garantir os direitos territoriais dos povos, a instituição veio até a FLONA apenas para possibilitar a retirada dos Xokleng do seu território, legitimando assim a reintegração de posse solicitada pelo ICMBio.


Kullung diz para o funcionário da Funai aguardar com seus amigos do ICMBio. | Foto Alass Derivas

O ato derradeiro da ação de reintegração de posse, já no final da manhã, ficou por conta de Edenice. Depois de delegado, oficial de justiça, representante da Funai já terem se afastado do novo local do acampamento da retomada, às margens da RS-484, Edenice voltou, escoltada pela Polícia Federal, e ordenou que um funcionário do ICMBio cortasse colunas de madeiras, estruturas de um barraco que estava sendo construído naquela manhã. Foi questionada por que estavam fazendo aquilo. “Esta madeira é propriedade da Unidade de Conservação”. Então vocês vão levar de volta? “Não, eles podem usar como lenha”. Era apenas um ato de autoritarismo, mesquinharia e provocação. Recebeu como resposta dos indígenas que poderia levar sua madeira embora.


Escoltada pela Polícia Federal, Edenice, chefe da Flona, manda cortar vigas de madeira uadas pelos Xoklengs. | Foto Alass Derivas

Foto Alass Derivas

Instantes antes da Polícia Federal e o Oficial de Justiça chegarem, visitamos a região onde estava a retomada, junto com Edenice, chefe da Flona de São Francisco de Paula, com Isaac Simão Neto, biólogo e gerente regional do ICMBio, e com um funcionário do ICMBio, que fazia as vezes de segurança. Tivemos a oportunidade de, por alguns minutos conversar sobre o futuro da floresta, que está em vias de ter seus serviços concedidos à iniciativa privada, e entender como a coordenação estava vendo a ação de reintegração.  


Edenice, Isaac e Brigadista do ICMBio | Foto Alass Derivas


    Ao invés de reintegração, não seria possível um diálogo? “O diálogo deveria ser anterior à invasão”, defende Isaac. “Se eu invadir a tua casa, como seria? Invadir uma área que não há um documento que mostre que esta área é deles, então você abre precedente e começa o diálogo de uma forma equivocada”. Se assim como Isaac você somente acredita em papéis, sugiro a leitura do texto “Mãe não se vende, Mãe não se troca, Mãe não se privatiza!”: Nota técnica preliminar envolvendo aspectos etnohistóricos e socioambientais da Retomada Indígena Xokleng Konglui na Floresta Nacional São Francisco de Paula/RS”, do etnohistoriador Rafael Frizzo. Um documento que cita diversos outros documentos sobre a presença Xokleng na região e sobre os interesses por trás da Flona.


Local onde era o acampamento, ao lado direito da entrada da Flona, aos pés de centenas de Pinus | Foto Alass Derivas

Após Edenice reclamar do mal cheiro da área (não sentido por nós, diga-se), em um tom depreciativo, Isaac apontou para roupas, embalagens que tinham ficado pelo chão, resquícios da saída voluntária às pressas dos Xokleng e perguntou: “vocês acham que isso é um cuidado da natureza por parte dos indígenas, respondam sinceramente?” Como biólogo e representante de um Instituto que tem em seu nome a “Conservação da Biodiversidade”, é um disparate (para não dizer mau caratismo) Isaac apontar calcinhas de crianças – que vão se decompor em alguns anos e que estão ali devido à violência de todo o processo que os Xoklengs passaram naquela manhã – como prejudiciais ao meio ambiente e desconsiderar, na sua fala, na sua visão, todos os monocultivos (de eucalipto, pinus, soja, milho) que existem na região. Esta cena é a consagração de uma visão de mundo que vê a retomada dos indígenas como invasão. Que vê o monocultivo de árvores como reflorestamento, ignorando ou combatendo quem aponta todo o dano à biodiversidade que este sistema comercial de exploração do solo, água e impactos na biodiversidade que esse modelo produz.

Por que Isaac não se preocupa em questionar os danos ao meio ambiente de propriedades como da foto abaixo, produtora de gado e monocultivo de Pinus? Você vê algum animal mais que gado, alguma planta mais que Pinus? Ao cortar o Pinus, não fica nada. Foto tirada perto da Barragem do Blang, em São Francisco de Paula.

Foto Alass Derivas


Dos povos indígenas do Sul, os Xokleng foram os mais afetados pelos bugreiros e caçadores, recorte da história que relatamos no texto “Somos sementes prontas para germinar”. Reportagem publicada no dia 30 de dezembro, contando a história da retomada, da Flona e das perseguições ao povo Xokleng. Em nota sobre a reintegração de posse, o Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul destaca este processo, trazendo elementos sobre os caminhos dos Xokleng:

“A violência foi tanta que os poucos grupos que sobreviveram se refugiaram em Santa Catarina para não serem também exterminados. Durante esse processo violento, pequenos grupos de Xokleng se refugiaram nas matas da encosta da Serra, que sempre foi parte de seu território ancestral. Estiveram constantemente em movimento até se refugiarem na Serra de Santa Catarina, onde em 1914 os Xokleng entraram em contato com agentes do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (posteriormente SPI e em 1967, FUNAI). Desde então, tem se difundido o mito de que os Xokleng seriam “índios de Santa Catarina”, o que é uma invenção colonialista, pois para os povos indígenas as fronteiras entre os Estados nada mais são do que linhas artificiais desenhadas sobre seus territórios, além de esconder uma estratégia de apagamento e negação dos direitos desses povos”.

O coordenador do ICMBio pede documentos, desconsiderando que o próprio documento é uma arma de coerção, de desapropriação, de roubo de terras. Desconsiderando que na história deste país os documentos que promoviam a expulsão e extermínio dos povos eram o calibre das armas e a lâmina do facão. Hoje, a Polícia Federal apresenta armas semelhantes, aliados à caneta (e aos documentos) da Justiça.

Agentes do Grupo de Pronta Intervenção da Polícia Federal. Todos brancos, bem equipados. | Foto: Alass Derivas
Comunidade e apoiadores, com seus corpos e suas proteções. | Foto Alass Derivas

Na véspera de ano novo, dia 31 de dezembro de 2020, o presidente do STF, Luiz Fux, ministro plantonista, indeferiu o pedido de liminar, proposto pela Defensoria Pública da União, em nome da comunidade Xokleng. Fux desconsiderou a medida do colega Edson Fachin que impedia reintegrações de posse durante o período da pandemia. A ação de reintegração foi mantida, determinada pelos juízes plantonistas (primeiro Fernanda Cusin Pertile, no dia 23, e depois Patrick Lucca da Ros, no dia 29) da Justiça Federal de Caxias do Sul, a pedido do ICMbio. A assessoria jurídica da retomada ainda não teve acesso à decisão integral de Luis Fux, portanto a motivação é desconhecida.

Já no final da ação de intimação, um agente da Polícia Federal se aproximou e pediu um favor: se poderia ter as fotos daquela manhã enviadas por Whatsapp, pois nesta semana enviaria um relatório que ia direto para o Presidente da República Jair Bolsonaro. Destacamos o pedido do policial para lembrar que os serviços da área da Flona estão em vias de ser concedidos à iniciativa privada após Bolsonaro e o Ministro da Economia Paulo Guedes a terem incluído no Programa Nacional de Desestatização. No entanto, a chefe da Flona e o coordenador do ICMBio insistem em ressaltar no discurso que a Floresta não vai ser privatizada. Inclusive esta informação é destacada na nota do perfil do Facebook da Floresta Nacional de São Francisco de Paula que divulga a visita do Ministro Ricardo Salles, em 12 de abril de 2019.  Na comitiva do Ministro, estavam os deputados inimigos dos povos indígenas, Luis Carlos Heinze, Alceu Moreira e Marcel Van Hattem.

Foto divulgada no Facebook da Floresta Nacional de São Francisco de Paula.


440% da área da Flona tem árvores plantadas, que vão ser leiloadas pelo Estado, segundo Edenice e Isaac. O que será feito com esse dinheiro? O que será feito com a área liberada? Como o Governo Federal pretende “passar a boiada” nas Unidades de Conservação?

Se há um processo de reivindicação da área correndo na Funai desde 2011, os Xokleng deveriam ser considerados interessados prioritários na área e, portanto, seguindo recomendação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, deveriam ser consultados sobre a concessão. Ao ser questionado sobre isso, Isaac afirma que os indígenas foram convidados para a audiência pública que aconteceu em setembro. A comunidade que, hoje, retoma a Flona não recebeu nenhum contato. O Conselho Indigenista Missionário comentou o caso em nota do dia 14 de outubro de 2020, quando o Ricardo Salles lançou edital para concessão dos Parques Nacionais:

“Esta medida poderá afetar diretamente a comunidade Kaingang de Canela, já que reivindica a demarcação da Flona como sendo área de ocupação originária. Também afetará o povo Xokleng que reivindica a demarcação  de sua terra, sobreposta pela Floresta Nacional em São Francisco de Paula. Aguarda-se por uma intervenção do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União,  já que as privatizações dos parques atentam contra o meio ambiente, contra o patrimônio da União e contra os direitos constitucionais dos indígenas, dado que estes devem ser  consultados para atender as determinações da Convenção 169 da OIT- Organização Internacional do Trabalho, que determina haver a necessidade de consulta livre, prévia e informada quando medidas adotadas pelo Poder Público ou qualquer outro ente, afetem povos e comunidades indígenas e tradicionais”.

Depois de ver o envolvimento do ICMBio em diversas negociações de concessão para iniciativa privada de Unidades de Conservação,  alinhado às políticas do Ministro Ricardo Salles, é possível entender melhor a motivação das intransigências da coordenação da Flona e pressa na reintegração de posse dos Xokleng.

Enquanto isso, Kullung Vetcha Teiê, senhora de 63 anos, resiste com o próprio corpo, com sua família e seus parentes. Resiste a todo um esquema internacional de privatização de florestas nacionais. Amparados nos sopros que vem do grande espírito.

Kullug Vetcha Teiê e Woie Patté cantam após agentes púbnlicos se retirarem. | Foto Alass Derivas



A luta segue

Neste momento, é necessário fortalecermos a solidariedade e as estruturas do acampamento Xokleng em frente à Flona. Uma campanha de arrecadação está sendo organizada para viabilizar uma placa solar (assim como já existe na Retomada Guarani da Ponta do Arado) para trazer mais segurança e possibilidade de comunicação das famílias que está sem acesso a energia.

O frio das madrugadas na região serana do Rio Grande do Sul também traz a necessidade de moradias que deem proteção ao Xoklengs. Por isso, tábuas e telhas são fundamentais.

As doações podem ser encaminhadas para:

Conta: Banco do Brasil
ag: 5437-2
Cc: 5440-2
CPF: 06124632900
Nome: Woie Kriri Sobrinho Patté

Veja o vídeo “Retomada Xokleng Konglui Resiste”:

Mais fotos da Retomada:

Foto Alass Derivas


Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas

“Somos sementes prontas para germinar”

A luta do povo Xokleng ao retomar seu território ancestral, em que agiram bugreiros no passado e onde hoje o Estado ameaça com reintegração de posse 

Há dois anos, Vetchá Teiê Xokleng Konglui morreu com aproximadamente 100 anos. Quando era um bebê de colo, foi expulso com a família do território indígena Xokleng, onde hoje é a Floresta Nacional (Flona), Unidade de Conservação Federal em São Francisco de Paula. O umbigo de Vetchá está enterrado neste solo. 

Kullung Vecthá Teiê | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Meu pai me trouxe aqui quando ainda era mata nativa e mostrou para mim e para os seus netos onde seu umbigo está enterrado” conta Kullung Vetchá Teiê, hoje com 63 anos. “No caminho ele vinha mostrando nossos antepassados. Vinha contando que lá dentro da Flona tem a oca dos nossos parentes, ferramentas, trilhas”.



Vetchá Teiê foi um dos inúmeros Xoklengs que nasceram nesta localidade e tiveram que sair para sobreviver à ação dos bugreiros, bandidos contratados pelo governo e por empresas colonizadoras para caçar os indígenas nas matas e liberar o território para alemães e italianos que chegavam no sul do Brasil. 

No dia 12 de dezembro deste ano, Kullung e Yoko, filhas do seu Vetchá, com suas famílias e parentes apoiadores ingressaram na Floresta Nacional para ficar. “No passado, mataram meus parentes, atropelaram, cortaram as mulheres grávidas, mataram as crianças, cortaram a orelha delas, acabaram com minha nação, aqui neste lugar. Mas graças a Deus sobrou um grupo, que antigamente era botocudo, hoje é Xokleng. Estamos vivos, estamos aqui!”, afirma Kullung. São cerca de 30 pessoas, sendo 14 crianças; as duas filhas de Vetchá e suas famílias; a família de Yoco Camlem, prima de Kullung, filha de Voia Camlem, que é irmão de Vetchá Teiê; a família de Woie Kriri Sobrinho Patte; e Merong Kamakã, guerreiro Patoxá Hã-hã-hãe que é solidário à luta dos parentes. Entre as crianças, está o tataraneto de Vetchá. Começava ali a retomada histórica do território ancestral do povo Xokleng, no Rio Grande do Sul. Uma ação direta, puxada por mulheres, de reparação histórica por parte dos Xoklengs contra as violências do Estado e seus ramos opressores: a justiça, a polícia, as milícias (como os bugreiros).  

Os anciãos Xonkleng Vetchá Teiê e Voia Camlem, nascidos na região da Flona e pais das mulheres que hoje promovem a retomada | Fotos: Arquivo Pessoal Kullung Vetchá Teiê
Entre as crianças, está o tataraneto de Vetchá | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

REINTEGRAÇÃO DE POSSE

Nos últimos dias, os descendentes do seu Vetchá ocuparam com barracos de lona uma pequena parte da Floresta Nacional de São Francisco de Paula, criada em 1968 e desde 2004 administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A área ocupada está na lateral direita da entrada do parque, perto da RS-484, solo coberto por plantação de Pinus.

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Após alguns dias de convívio pacífico com os funcionários da Flona e de tentativas de diálogo, em conjunto com o Ministério Público Federal, os indígenas Xoklengs foram surpreendidos pelas ações da coordenação da Unidade de Conservação, hoje chefiada por Edenice Brandão Ávila de Souza. Segundo os indígenas, a luz usada para carregar os celulares, na guarita de entrada da Flona, foi cortada. Nesta terça (29), a coordenação fez uma postagem com o título “combatendo Fake News”, em que informa sobre a distribuição de água, de luz e de internet. Na postagem, diz que a luz estaria disponível das 7h às 19h, enquanto houvesse vigilante na guarita. Na segunda-feira, enquanto estávamos lá, das 7h da manhã às 14h, foram poucos os momentos em que avistamos algum funcionário presente na entrada. 

Registro dos ancestrais de Vetchá Teiê e de Voia Camlem, indígenas nascidos na terra onde hoje é a Retomada Xokleng | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Em outro movimento não esperado pelos indígenas e até pelo Ministério Público, a coordenação da Flona solicitou à Justiça Federal de Caxias do Sul a reintegração de posse da área. No dia 23 de dezembro, véspera do Natal, a juíza federal plantonista, Fernanda Cusin Pertile, emitiu mandado favorável à retirada dos indígenas. Foi um final de semana de tensão.

“Nós queremos ser ouvidos, ter uma audiência com ICMBio, com Ministério Público, com a juíza”, reivindica Woie Kriri Sobrinho Patté, uma das lideranças da retomada Xokleng. “Nos ouçam porque estamos aqui! É fácil estar no escritório, atrás do computador e mandar uma reintegração de posse. Existem leis internacionais que o governo brasileiro aderiu [Conveção 169]. A Organização Internacional do Trabalho (OIT)  diz claramente que precisamos ser ouvidos”. 

Woie Kriri Sobrinho Patté fala sobre a situação na retomada | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

A ação de reintegração tinha como prazo a última segunda, dia 28, no entanto até o momento não ocorreu. Nos dias anteriores, a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) tentaram reverter a ação. O MPF entrou com agravo de instrumento, mas este foi indeferido pelo plantão do Tribunal Regional Federal da 4a Região. A DPU entrou com reclamação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) aludindo à decisão do Ministro Edson Fachin de não realização de reintegração de posse em terras indígenas durante a pandemia de Coronavírus para evitar que a doença se alastre. No dia 26, a Polícia Federal de Caxias do Sul se manifestou recomendando o adiamento da ação justamente devido à pandemia. 

A reintegração de posse não ocorreu até o momento, embora o STF não tenha dado nenhum retorno à reclamação da DPU até a publicação desta matéria.

“Eu não vou sair daqui. Vou ficar aqui. Hoje, se a Polícia Federal vir, eu deito no chão e podem me matar. Só saio daqui dentro do caixão”, bateu o pé a senhora Kollung.  

No dia 24 de dezembro, o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) se manifestou em nota recomendando a suspensão da reintegração de posse e o encaminhamento de uma solução negociada.  Desde o dia 23, os Xoklengs Konglui já receberam a visita da Polícia Federal, da Polícia Militar e do Oficial de Justiça Federal.  “Gostaria que o governo nos ouvisse, cara a cara, mas por enquanto só vejo ameaças contra nós. O que o governo está pensando? Nós somos raiz, nós somos donos desta terra”, insiste Kollung.     

No entanto, para além das intervenções do governo, também chegaram visitas de solidariedade. Nós da Amigos da Terra Brasil, articulado com o Conselho Indigenista Missionário, estivemos na segunda-feira no território retomado. Prontos para cobrir qualquer violação e produzir este conteúdo. Também subimos a serra com a solidariedade da Frente Quilombola RS. O Quilombo dos Machado, localizado na zona norte de Porto Alegre, enviaram alimentos e produtos de limpeza equivalentes há cerca de 5 cestas básicas. Produtos arrecadados através de doações para o Quilombo dos Machados. A retomada, também, tem recebido doações diretamente, através de articulação pelas redes sociais e pontos de coleta em Porto Alegre, Lajeado e São Francisco de Paula.

Os Xokleng Konglui enfrentam hoje esta possibilidade de reintegração de posse, que por trás, além do preconceito e violência histórica contra os povos indígenas, traz também os interesses da iniciativa privada. 

HISTÓRIA E FUTURO DOS XOKLENG NA FLONA

Neste registro, enviado por Kullung, Voia Camlem, Vetcha Teiê e Compacam, todos nascidos nesta região, voltam ao local e conversam sobre suas famílias. Kullung não soube informar a data exata desta conversa | Foto: Arquivo pessoal de Kullung Vectha Teie

A saída por sobrevivência da família de Vetchá Teiê, da família de Voia Camlem e de Compacam do território onde, hoje, é a Floresta Nacional de São Francisco de Paula não é exceção, tanto na região da serra gaúcha, como em todos os interiores deste Brasil. Em nota de solidariedade divulgada no dia 18 de dezembro pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o processo violento de colonização é destacado: “Por séculos os Xokleng foram vítimas de um brutal processo de colonização que quase levou ao completo desaparecimento do povo, que tradicionalmente ocupavam os territórios que estavam localizados no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná”. Desde a chegada dos portugueses em 1500, os povos originários sofrem com a violência, seja a direta, através das armas, seja através das doenças. No Rio Grande do Sul, muitas terras em que viviam indígenas (Kaigangs, Xoklengs, Minuanos, Charruas, Guaranis) foram doadas pelo Estado para os colonos italianos e alemães que recém chegavam. Os europeus que chegavam no nosso país,  mesmo que pobres, ganharam terras, enquanto negros alforriados foram jogados nas ruas sem nada, enquanto indígenas eram caçados e desterritorializados. Esta diferença histórica na territorialização do nosso país não pode ser perdida de vista nunca na interpretação da propriedade de imóveis hoje e na formação da sociedade como um todo.

 

No Rio Grande do Sul, os bandidos responsáveis por expulsar ou caçar os indígenas, especialmente os Xoklengs, ficaram conhecidos como bugreiros. Eram milícias financiadas pelo governo ou por empresas estrangeiras que preparavam o terreno para os colonos que chegavam.
Woie relembra, com indignação: “a saída do povo Xokleng deste território foi forçada brutalmente. Estes homens pegavam as mulheres grávidas, abriam a barriga da mãe, tiravam a criança e jogavam para cima, riam, diziam que parecia um macaquinho. Quando a criança caia, paravam ela com a ponta do facão, da foice. Matavam estas crianças. Foi muito triste todas estas violações. Então nós não saímos daqui porque a terra não prestava, não. Sair do território era questão de sobrevivência. Fomos para o alto vale de Santa Catarina, onde também fomos massacrados pelo Dr. Blumenau. Hoje muitos conhecem a cidade pela Oktoberfest, mal sabem que fazem festa em cima do cemitério dos nossos parentes, em cima de sangue indígena Xokleng”. Blumenau é a terra onde atuou um dos mais famosos assassinos, o Martinho Bugreiro, que dizia que não matou 100 indígenas, mas sim matou mais de mil. Junto com o seu bando, atuava como um “Esquadrão da morte” de indígenas. O povo Xokleng foi um dos principais alvos dos bugreiros, chegando quase à extinção. Hoje poucas famílias restam ou se identificam com este povo. Os que sobreviveram, sofrem com a falta de território ou vivem em territórios de outros povos, como dos Kaingangs.

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Já ouvi que ‘tivemos a pacificação do povo Xokleng’. Nada disso! Nós estávamos em paz.  Quem estava nos matando, nos aniquilando era o branco. Então eles que foram os pacificados”, corrige Woie. Para ele, o Estado concedeu aos alemães e aos italianos terras que já tinham donos. “Doaram território para ter progresso. Mas que progresso? Exterminar um povo para dar o sustento a outros? Progresso plantando soja? Toda plantação, soja, milho, é vendido para fora hoje. Progresso para 4, 5 famílias? Este tal de progresso matou muitos índios do Brasil. Então, não foi progresso não, foi extermínio!”

As retomadas de terras, que acontecem no sul do país desde a década de 1970, são uma forma de tentar reparar o extermínio não só da vida, mas do conhecimento indígena. “A terra é nossa mãe, toda medicina é da Natureza. Então nós queremos elas de volta”, explica Woie. Kollung conta como se deu a decisão de voltarem a São Francisco de Paula: “Eu disse para mim mesmo: antes do meu tio falecer, irmão do meu pai, eu vou me levantar e vou buscar aquelas terras para minha nação. Mostrei este território para eles como meu pai mostrou para mim. Daqui a pouco eu vou falecer, minha irmã também vai embora desta terra. Mas minha nação agora já conhece seu território. Hoje, estou aqui com o tataraneto do seu Vetchá”. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“A história é viva”, diz Woie. “Cada Xokleng que está aqui é uma história viva que voltou”.
 

Segundo Woie, os indígenas entraram com com pedido na FUNAI em 2011 para reconhecimento da área da Flona de São Francisco de Paula como território Xokleng, mas o processo está parado na instituição desde 2015. Com a iminência da entrega da Unidade de Conservação à Iniciativa Privada, os Xoklengs decidiram entrar na área no último 12 de dezembro. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

PRIVATIZAÇÃO 

Floresta Nacional de São Francisco de Paula (Flona) faz parte do município de São Francisco de Paula (RS) a 2h 30 min de Porto Alegre. A área é gerida pelo ICMBio e está em vias de ser concedida à iniciativa privada.

A Floresta Nacional de São Francisco de Paula se chama assim desde 1968. A área foi delimitada em 1945, quando o Instituto Nacional do Pinho (INP) criou um parque para experimento de plantação de árvores para extração de madeira. Segundo Vanesa Arduin, historiadora que pesquisou o tema no seu trabalho de conclusão na UFRGS, chamado “Floresta ‘Melhorada’: Uma análise sobre as políticas de Reflorestamento no Rio Grande do Sul (1934-1965), a primeira ação na região por parte do Instituto foi o corte de araucárias nativas e o estudo do plantio desta árvore. “Depois de vinte anos estudando o monocultivo da Araucária, viram que as condições não favoreciam seu principal interesse que era a produção da madeira em larga escala”, explica Arduin. Em 1968, durante a Ditadura Militar, o governo extingue o INP e funda o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (INDF), que renomeia o parque administrado pelo INP para Floresta Nacional de São Francisco de Paula. O INDF é criado com a missão de desenvolver intensos programas de incentivo fiscal para os produtores que quisessem investir no reflorestamento. “Hoje São Francisco de Paula é o município com segunda maior área dedicada ao plantio de árvores e o maior produtor de Pinus do estado, árvore escolhida nas serras de São Paulo ao Rio Grande do Sul, pelas condições de plantio e por sua celulose ser de fibra longa, a mesma da Araucária, utilizada para fabricação de papéis mais resistentes”, comenta a historiadora Vanesa Arduin.   

Diversos caminhões como este, carregados de madeira para venda, passaram em frente à retomada na manhã de segunda | Foto: Alass Derivas

A Flona possui 1617 hectares, sendo que, segundo o site do ICMBio, 600 deles são de árvores plantadas para comercialização de madeira (araucária, eucalipto e pinus) em cima de campos nativos, o que representa 40% da área total. Os 900 restantes são de mata nativa. Desde 2004, a Flona é gerida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 

A Floresta Nacional está em vias de ser concedida à iniciativa privada. Em 28 de maio de 2020, o Diário Oficial da União publicou o decreto 10.381, que qualifica a Floresta Nacional de Canela e a de São Francisco de Paula, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República – PPI e incluídos no Programa Nacional de Desestatização – PND, “para fins de concessão da prestação dos serviços públicos de apoio à visitação, à conservação, à proteção e à gestão das unidades.” 

No dia 11 de setembro de 2020, foi realizada uma audiência pública na Câmara de Vereadores de São Francisco de Paula para tratar da licitação da concessão dos serviços da Flona. A audiência está disponível na íntegra no canal do ICMBio no Youtube

Na divulgação da audiência pública, o site do ICMBio traz diversos argumentos defendendo a concessão à iniciativa privada, entre eles: “as concessões atraem mais visitação e contribuem para o desenvolvimento socioeconômico em todo o entorno, além de gerar emprego e renda”. A inspiração é o modelo de concessões de parques dos Estados Unidos da América

Até o momento, nenhuma empresa ganhou a licitação. Ou seja, a negociação está aberta. 

E os indígenas Xoklengs entraram na disputa:
“Estamos prontos para lutar e morrer pelo nosso território. Esta terra é uma herança nossa e herança não se vende, não se troca, não se dá”, defende Woie Patté. “O grande espírito nos chamou e nós estamos atendendo. Tem várias coisas que o branco não entende, como isso, o que é esse chamado. Ninguém é obrigado a entender, mas é preciso respeitar”. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Os indígenas Xoklengs estão acampados na região de entrada do Floresta, onde hoje é uma plantação de Pinus. Estas árvores são consideradas pelo governo e por muitas empresas como reflorestamento. Nem nós, da Amigos da Terra Brasil, nem os indígenas consideramos que monocultura de árvores seja floresta. A historiadora Vanesa Arduin lembra que o que muitos chamam de reflorestamento era plantio para a explorar madeira. “Hoje se chama Unidade de Conservação, mas não se fundou pra conservação da biodiversidade e sim para conservar a exploração a longo prazo”, destaca. São 40% de território com árvores plantadas, que inclusive precisam de manejo. O que será feito com esta área se a Floresta Nacional for realmente concedida à iniciativa privada?       

Apesar de estarem há poucos dias na área, as mulheres Xoklengs já buscam recuperar a flora nativa da região e cultivar sua medicina tradicional: “Nós cuidamos das matas, nós somos as matas. Da mata vem raízes, alimento, a taquara. Aqui não tem taquara, não tem mel de abelha, não tem fruta nem raiz nativa, a nossa medicina tradicional, que tinha aqui, não tem mais, só tem pinus de reflorestamento. Não se vê nem um pé de uma nativa para alegrar a gente, só tem esse pinus aí, plantado, para dar riqueza para o governo. Mas nós precisamos da mata, de onde vem nosso alimento. Acabou a mata, mas nós somos a nativa desta terra. Os nativos Xokleng estão aqui”

Kullung resguarda suas mudas de guiné | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Yoko Camlem é filha de Voia Camlem, prima de Kollung, sobrinha do Vetchá Teiê. Veio, com seu núcleo familiar, de Santa Catarina para se somar na luta. Trouxe consigo, mudas de bananeira e de guiné. “Eu trouxe para que possa servir a toda comunidade que venha morar neste lugar, pensando no futuro, pensando nos meus netos, bisnetos, para que eles possam em breve utilizar destas plantas”. 

Yoko Camlem veio, com seu núcleo familiar, de Santa Catarina para se somar na luta | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Woie conta que os indígenas chegaram na retomada no dia 12, de corpo presente, mas sempre estiveram espiritualmente. “Então precisamos fazer a ocupação, a autodemarcação, com nosso corpo, para que sejamos ouvidos. A lei possui uma balança, mas porque quando é para o nosso lado o peso nunca vale?

Um exemplo de que a balança não é igual é a possibilidade do Supremo Tribunal Federal adotar, nos julgamentos, a tese do Marco Temporal. O parecer 001/2017 da Advocacia geral da União dita que povos indígenas só têm direito a reivindicar terras que já estavam ocupadas em 5 de outubro de 1988, dia em que a Constituição foi promulgada. Ou seja, todas retomadas que aconteceram depois de 1988 seriam despejadas. Até parece que indígenas não seguiram sendo expulsos de suas terras a partir de 1988, como é o caso dos Guaranis Kaiowás vítimas dos latifundiários no Centro-oeste; dos Yanomamis, atingidos pelo garimpo ilegal na Amazônia; dos Krenaks, com seus rios poluídos pela lama da mineradora multinacional Vale do Rio Doce. A votação do Marco Temporal foi adiada duas vezes este ano e ainda não tem nova data. Ela inviabilizou a demarcação de pelo menos 27 terras indígenas, que tiveram seus processos devolvidos do Ministério da Justiça e Segurança Pública para a Fundação Nacional do Índio (Funai). Além disso, outras 310 terras indígenas estão com processos de demarcação estagnados, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O tema chegou ao STF com o julgamento envolvendo justamente o território Ibirama Laklanõ, do povo Xokleng, que é alvo de uma ação de reintegração de posse – com base no “marco temporal” – movida pelo Estado de Santa Catarina. Há dois anos que indígenas e apoiadores estão mobilizados lutando pela não aprovação do Marco Temporal.

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Colocamos nosso corpo para tentar fazer com que esta balança da Justiça seja de igual para igual”, insiste Woie. Fizemos esta retomada neste momento porque não tivemos resposta da Funai e agora vem essa notícia da privatização. Não queremos desculpas, queremos a homologação, a demarcação”. Woie alega que não quer que seu povo seja apenas artigo de museu, história contada pelos brancos.“É fácil colocar turistas na sede e falar que era um território indígena, mostrar no museu. Mas aí quando chegamos aqui no parque fecham a porta na nossa cara, pedem reintegração de posse. Nossas próximas gerações precisam desta terra”.

Jovem liderança, estudante universitário, Woie Kriri Sobrinho Patté é consciente que a luta que seu povo está travando é arriscada. Sabe notícias de outros povos, sabe o país que vive, sabe a violência incrustada no nosso território. Por isso, faz um apelo. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Quero dizer a sociedade que ouçam nosso chamado, ouçam nosso clamor de sobrevivência. Que façam este governo nos ouvir e devolver para nós o que é nosso. Os governos internacionais precisam pressionar a respeitarem o que é nosso. Existem tratados internacionais que precisam ser válidos. A Constituição Federal precisa ser respeitada, precisam demarcar a nossas terras. Estes países europeus que ocuparam o Brasil precisam reparar nossas terras roubadas. A ONU precisa se posicionar. Porque nós não sabemos mais para onde correr. Porque quando uma liderança se levanta para defender seu povo, ele é criminalizado, processado. Processado é pouco, quando não é esperado em uma esquina, numa beira de estrada e morto, assassinado, e nunca acontece nada com quem mata. Foi acidente, atropelamento. Só lideranças são atropeladas? Hoje, sou eu que estou falando. Não tenho medo de morrer, tenho medo de perder nosso território. Pode me caçar, pode me mandar ameaças. Eu tenho dó dessas pessoas que não respeitam o seu próximo. Sou uma liderança Xokleng e vou lutar pelo povo Xokleng. Vou lutar para que a futura geração do povo Xokleng continue viva. O que eles não sabem é que quando matam uma liderança, tem várias outras para assumir o lugar. Podem derrubar um homem, mas há mil homens de pé para ocupar este espaço. Somos a natureza. Assim como uma árvore dá sua semente, nós damos a nossa, que já estão prontas para germinar”. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Ao lado de guerreiros como Woie e Merong, as filhas de Vetchá Teiê e Voio Camlem, as duas Yoko e Kullung, colocam seus corpos por uma real conservação da mata nativa, o que, como disse Kulung, é o que ela se considera, uma mata nativa. Colocando seus corpos, reparam a história, reconfigurando o território injusto deste país e também semeando para todos um mundo em que seja possível respirar e ser livre. 

Veja mais fotos da retomada: 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
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