Entra em cena o mercado da preservação ambiental: a privatização dos parques no Brasil

Há alguns anos, no Brasil, tem-se a intenção de transferir a proteção e gestão de unidades de conservação para a iniciativa privada. No final de 2020, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou uma linha de financiamento de crédito específico para isso. Em fevereiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro editou decreto autorizando a concessão de cinco parques nacionais, que vão a leilão ainda em 2022. Estes foram incluídos na lista de Bolsonaro e Guedes do Programa Nacional de Desestatização e no Programa de Parcerias de Investimento Público-Privada da Presidência da República.

No Brasil, existem 334 regiões de preservação sob responsabilidade do governo federal; um terço delas estão na Amazônia. Além dessas, ainda temos os parques estaduais e municipais. Essas áreas são de rica biodiversidade e recursos hídricos e, em geral, são habitadas por povos e comunidades tradicionais que, com seus modos de vida integrados à natureza, contribuem para a conservação.

Desde 2019, há um desmonte da política ambiental, do qual podemos destacar o corte orçamentário do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Ao lado da destruição, o governo vem propondo a criação do mercado da gestão dos parques, por meio da concessão à iniciativa privada. Desde a direção de Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente se anuncia a abertura da concessão dos parques. Em fevereiro de 2021, o governo lançou o Programa Adote um Parque, com a proposta de transferir para a iniciativa privada a proteção das unidades de conservação.

Na lista, figuram 132 unidades de conservação, para as quais se apresentaram grandes corporações como Carrefour, Coca Cola, Heineken e MRV Engenharia. O grupo URBIA, por exemplo, já detém a concessão de 10 parques no país (6 municipais, 2 estaduais e 2 federais), dentre eles, ainda em processo, o Parque Nacional do Iguaçu (PR). Não podemos esquecer que essas áreas são de rica biodiversidade e disponibilidade de águas. Por isso são importantes para a preservação, bens comuns do povo brasileiro que estarão sob territórios controlados pelo capital privado, com as concessões.

Segundo Pedro Martins, da organização de direitos humanos Terra de Direitos e do grupo Carta de Belém, que acompanha o tema, “o programa de estruturação de concessões de parques via BNDES foi justificado no argumento de que o potencial de lucro com turismo ecológico é grande, tendo como exemplo o que ocorre com os parques naturais nos Estados Unidos. Esse modelo é danoso para o Brasil, pois reforça a ideia de natureza como santuário intocável, ideia essa que subsidia processos de expulsão de famílias que mantêm práticas sustentáveis nos locais e transforma a sociobiodiversidade em mercadoria sob controle de uma empresa concessionária”.

Quanto a isso cabe recordar que, conforme a Constituição Federal, toda a política ambiental é permeada por um amplo processo participativo, o que não vem ocorrendo com a concessão dos parques. Não há um amplo processo de consulta às comunidades, nem aos funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) e do ICMBio. As audiências públicas realizadas não dimensionam adequadamente os impactos. Ao invés de o governo investir em estruturar órgãos fiscalizatórios como os citados, os desestrutura e transfere suas obrigações à iniciativa privada.

Tanto o Programa Adote um Parque como a concessão via Programa de Desestatização reforçam o paradigma da mercantilização e financeirização da Natureza. A crença política de que a iniciativa privada tem melhores condições de gerir a coisa pública parece desconsiderar os efeitos da prestação de serviços públicos hoje privatizados, como distribuição de energia, telefonia e aeroportos. Sem contar que favorece a retirada de poder decisório do povo brasileiro sobre os bens comuns, intensificando a concentração de poder corporativo e a dependência dessas companhias para a reprodução da vida.

A concessão do Parque Estadual do Turvo (RS)

Criada em 1947, pelo Decreto Estadual nº 2.312, a Reserva Florestal Estadual do Turvo, no Noroeste do Rio Grande do Sul, foi posteriormente convertida em Parque Estadual pela Lei nº. 2440/1954. O parque é composto por 17.491 ha de mata atlântica com florestas estacionais. Sua extensa área abriga dezenas de espécies ameaçadas de extinção, tanto vegetais como animais, muitas delas são exclusivas deste parque. É nele onde também fica o Salto do Yucumã, quedas d’água com até 12 metros de altura seguindo o curso do Rio Uruguai na divisa entre o Brasil e a Argentina. O salto é uma das maiores quedas longitudinais do mundo.

A concessão do parque foi anunciada pelo Estado do RS e encontra-se bastante avançada, com previsão de nas próximas semanas já estarem abertas as inscrições para as propostas do leilão. Segundo os pesquisadores e professores do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá), a proposta de concessão foi elaborada pela Secretaria de Planejamento e Gestão, não tendo parecer técnico da Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Para a entidade, a falta de embasamentos técnicos, como a ausência de parecer elaborado, estudos superficiais e a falta de um corpo técnico profissional levanta dúvidas sobre a avaliação de riscos do projeto.

Lucia Ortiz e Letícia Paranhos, da Amigos da Terra Brasil, e Soniamara Maranhão, do MAB, na campanha contra a privatização do Parque Estadual do Turvo (RS) / Divulgação/ATBr

De acordo com os pesquisadores, não há respostas à presença de sítios arqueológicos na região, nem tampouco estão claros como o incremento econômico do turismo poderá contribuir para a conservação da biodiversidade, à educação ambiental e a pesquisas. Algumas das atividades permitidas na concessão parecem ser incompatíveis com a proteção integral. Restando dúvidas ainda sobre o monitoramento e controle dos impactos, como serão geridos pelos técnicos da Secretaria de Meio Ambiente do Estado.

Um aspecto central da concessão envolve os interesses na exploração da água e da biodiversidade presente no parque. Seja para avançar em projetos hidrelétricos, como Garabi e Panambi, paralisados pela ação coordenada de atingidos e ambientalistas perante o Poder Judiciário, seja para os intentos de compensação de créditos de carbono que grandes corporações têm demandado. Não à toa a concessão interessa para o capital internacional, como bem destaca Fernando Campos, da Amigos da Terra Brasil, em entrevista concedida ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB/RS).

Outro problema é o aumento dos conflitos com os povos e comunidades tradicionais que habitam o entorno do parque, como as populações ribeirinhas, que muito embora não estejam dentro da área dele podem ser afetadas pela alteração de gestão, sofrendo com impactos no curso das águas. Uma das organizações que têm organizado as famílias, desde a resistência a Garabi e Panambi, é o MAB, que conjuntamente com outras entidades tem construído uma campanha contra a privatização do parque, cujo mote é: o parque não é mercadoria, o parque é bem comum de todos e todas! Muito embora não estejam dentro da área do mesmo, podem vir a ser afetados pelas alterações na gestão do território. Além disso, coloca-se a relação com os povos indígenas, presentes no território argentino que se situa do outro lado do parque.

A contradição fundamental capital x vida

Desde 2021, entidades da sociedade civil têm articulado a denúncia aos intentos de privatização como o Programa Adote um Parque, lançado pelo governo. Para elas, a privatização representa a transferência da responsabilidade pública para empresas privadas, que podem ser tanto nacionais como estrangeiras, e assim promovem a governança privada de territórios estratégicos para o futuro do país e que, portanto, são de interesse coletivo e social.

A privatização e suas novas roupagens só têm promovido o aprofundamento do distanciamento entre a humanidade e a natureza. Nos distanciamos porque seguimos tratando a Natureza como um recurso inesgotável, e não como um bem comum. Ainda que o ideal da concessão do parque seja a conservação, sabemos que há muitas vertentes de sentidos para se interpretar a mesma. Na construção de saídas sistêmicas à crise ecológica e social que vivemos, certamente investir em projetos que aprofundam a mercantilização e financeirização é seguir nos afastando da centralidade da vida.

Os parques são nossos! Não à privatização!

* Artigo publicado quinzenalmente no jornal Brasil de Fato em 30/08/2022 neste link.

Aquilombar: território titulado, liberdade conquistada

A realidade de injustiças que vivem os quilombolas no Brasil foi muito bem retratada no romance Torto Arado, de Itamar Assunção. Assim diz ele: “O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois chega galopando, como se andasse a cavalo”. Entre o século XVI e XVIII, o Brasil foi o território da América Latina que mais recebeu pessoas africanas escravizadas, estima-se que por volta de 4 milhões de homens e mulheres tenham sido forçados a vir para nossas terras em condições sub-humanas. Ao chegarem aqui eram obrigados a trabalhar nos engenhos de cana no Nordeste, na extração de minerais em Minas Gerais, submetidos a todo tipo de violência.

Muitos conseguiram fugir das rédeas dos capitães do mato e formaram comunidades rurais isoladas, nas quais passaram a cultivar um modo de produção da vida voltado à sua sobrevivência. Era nos quilombos que reconstituíam suas teias sociais destruídas pela brutalidade colonial, assim passavam a reinventar suas culturais trazidas da África com o cenário local. Resistir é a origem do quilombo, sua essência é totalmente disruptiva.

As comunidades quilombolas não são um passado ligado ao tempo da escravidão no país. Como bem menciona a socióloga e ativista boliviana Silvia Cusicanqui, a história da América Latina é melhor representada por uma espiral, na qual passado e presente convivem, vão e voltam. Em 1988, após anos de luta, reconheceu-se a presença e existência das comunidades quilombolas no Brasil, que tiveram seu direito ao território reconhecido no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), art. 215 e 216 da Constituição Federal, bem como, ao longo de governo progressistas, conquistaram o acesso a várias políticas públicas específicas. Segundo dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais (CONAQ), existem 5.972 quilombos no país, situados em 1.674 municípios, de 24 estados, sendo que menos de 200 deles possuem título da terra.

A regularização fundiária dos territórios quilombolas é de responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), contudo o órgão sofre há anos com a precarização, muitos procedimentos de titulação estão paralisados pela falta de funcionários e estrutura. Além do que, em paralelo ao processo administrativo, várias ações judiciais são movidas pelos proprietários das terras para inviabilizar a conclusão do direito ao território, trazendo ainda mais morosidade ao processo. Esse cenário deveria ter mudado com a publicação da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2019, declarando a constitucionalidade do Decreto Federal nº. 4887/2003, que regulamenta o procedimento de titulação de territórios quilombolas no Brasil.

Contudo, segundo dados do INCRA, a titulação de terras caiu entre 2019-2022 em 62% se comparada aos 4 anos anteriores e, em 78% se comparada ao período entre 2011-2014. Em levantamento realizado pela CONAQ, existem 1.748 pedidos de comunidades paralisados no INCRA, sendo que 55 aguardam a fase de conclusão da titulação.

No ano de 2022, o governo federal vetou recursos para as políticas voltadas a comunidades quilombolas, indígenas e para a reforma agrária, destinando apenas R$ 85 mil para o reconhecimento e titulação quilombola no país. Tais cortes reforçam os conflitos nos territórios, expondo as comunidades a ainda mais vulnerabilidade social, como se posiciona o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).


Comunidades quilombolas exigiram a retomada das titulações em protesto recente em Brasília / Tiago Rodrigues/ ATBr

No último dia 10 de agosto, as comunidades quilombolas estiveram em Brasília para denunciar o desmonte da política e a violação aos direitos dos quilombolas no país. Entre as reivindicações estavam a retomada das titulações dos territórios, que aparece conectada à garantia de direitos à liberdade, educação, trabalho e saúde. Para Nilce, liderança quilombola do Vale do Ribeira, em São Paulo, há o “desafio de avançar na regularização fundiária e a titulação dos territórios, pensando em como titular os territórios em nome das associações dos quilombolas, e por isso debateram o marco regulatório”.

Também foram feitas várias críticas ao governo Bolsonaro e ao andamento de projetos no Congresso, como a PEC 215 (Proposta de Emenda Constitucional), que delega ao Congresso os processos de regularização dos territórios, ou o PDL 177/2021 (Projeto de Decreto Legislativo), que propõe a retirada do Brasil da Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nilce destaca que, ao final do encontro, “reforçou-se a importância da democracia e de como nós estamos atuando politicamente como quilombos. Queremos fazer parte das discussões sobre políticas públicas aos quilombos no Brasil e das comunidades tradicionais”, inclusive da defesa das candidaturas próprias.

Cabe destacar que as comunidades quilombolas, numa parceria com sindicatos, tomando o caso das violações aos direitos da comunidade de Alcântara (no Maranhão) conseguiram o reconhecimento da OIT de que são sujeitos da Convenção nº.169, na qual sequer eram incluídos. Desde então, as comunidades têm se utilizado do instrumento para reforçar os direitos territoriais e o acesso às políticas públicas, sendo o direito à consulta prévia, livre e informada o calcanhar de Aquiles do avanço predatório sobre os territórios.

A vitória do quilombo Vidal Martins em Florianópolis (SC)


Após anos de muita luta, Vidal Martins é o primeiro quilombo urbano de Santa Catarina / Conta de Instagram do Quilombo Vidal Martins (@arqvima)

Em 2012, as irmãs Helena e Shirlen começam a resgatar a história de sua família, os Vidal Martins, que ocupam o território do quilombo de mesmo nome, no Norte da Ilha de Florianópolis (SC), no bairro Rio Vermelho. Elas juntaram informações no livro de escravos no Rio Vermelho, que permitiu encontrar os nomes de seus bisavôs e montar a árvore da família. A comunidade vive ali há mais de 190 anos, são 31 famílias que trabalham como rendeiras, artesãs, tranceiras, músicos, artistas plásticos, diaristas, operários e estudantes. A ação dessas mulheres criou um movimento interno na comunidade que buscou a Fundação Cultural Palmares (FCP) para um processo de certificação.

Como conta Helena Vidal, em entrevista à Amigos da Terra Brasil, a FCP veio à comunidade e reconheceu a ancestralidade e as relações com o território, concedendo a certificação em 2013. Com isso, inicia o processo de titulação no INCRA, que demorou muitos anos, sendo finalizado neste 2022 com a publicação da Portaria nº. 1511, que reconhece e declara como terras da Comunidade Quilombola Vidal Martins uma área de 961,28 hectares, determinando o primeiro quilombo urbano de Santa Catarina. Essa luta foi árdua, tendo sido necessária uma judicialização do caso pelo Ministério Público Federal (MPF) para se estabelecer um cronograma para a realização do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Enquanto isso, a comunidade sofreu diversas ameaças.

Contando sobre os desafios atuais do caso junto ao governo estadual, Helena Vidal menciona: “Agora, o quilombo luta para que o governo do estado cumpra o que diz a Convenção nº. 169 que o Brasil é signatário (…). O governador tem o dever de assinar o processo de titulação encaminhado para ele, porém a comunidade, há 4 anos, não consegue falar com o governador, não recebe a comunidade, não é sensível a ela. (…) O governador não quer dar visibilidade à comunidade, descumprindo o decreto e a Convenção”. Como o território incide em terras do Estado, o processo de titulação é encaminhado à instância competente estadual para que proceda a titulação. No caso de Santa Catarina, o estado não tem, em sua constituição, a propriedade quilombola, nem reconhece o direito em legislação infraconstitucional, o que agilizaria o processo, que está em atraso em relação a outros estados do país.

Estar com seu território titulado, carregando a documentação em suas mãos, é um direito da comunidade desde 1988. A comunidade descende de pessoas escravizadas; também foi violentada por uma expulsão de seu território durante a Ditadura Militar; estamos falando, portanto, de uma justiça de reparação histórica que precisa ser concluída. Ao refletir sobre a conclusão da garantia dos direitos territoriais, Helena explica: “A titulação é importante para a comunidade. Uma, porque é um território histórico que traz a luta dos nossos ancestrais, traz a convivência dos nossos ancestrais que foram ignorantemente escravizados. Outra é que tem todo um vínculo histórico, minha mãe, meu tio, meu avô, meu tataravô, todos descendentes de escravos, alguns escravos, nasceram dentro do território e se criaram. Depois do golpe militar minha família foi expulsa. E, para trazer também uma estabilidade para a comunidade, tradição cultural, plantio, é por meio do território; a comunidade só passa a recuperar integralmente sua identidade quando ela tem o território porque é, através dela, que consegue manter algumas práticas culturais já que nosso território é urbano. Uma cidade urbana que vive do turismo ecológico. É muito importante, fundamental, recuperar o ponto histórico, viver tradições e culturas”.

Território titulado, direitos efetivados, esperança para o futuro!

Do Aquilombar que encheu Brasília na semana passada, da resistência histórica do quilombo Vidal Martins, encontramos uma parte do povo brasileiro que constrói modos de produção da vida às margens do capitalismo, os quais se demonstram mais efetivos por resistirem a séculos de barbárie colonial. Essas lutas colocam também a importância da garantia dos direitos territoriais como caminho para a concretização de diversos outros direitos. Estar na terra, ter a garantia dela, resistir nessas formas outras de relacionar-se com o território, é construir uma alternativa sistêmica à crise social e ambiental.

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato/ RS em 18/08/2022 neste link https://bit.ly/aquilombar_RS  . Na versão nacional do jornal em https://bit.ly/aquilombar_colunaATBr

As vozes da floresta se insurgem por um outro Brasil

O “esperançar da Amazônia” foi o mote do 10º Fórum Pan-Amazônico (FOSPA) realizado em Belém (PA) na semana passada. Estiveram presentes por volta de 10 mil pessoas, sendo elas representantes quilombolas, indígenas, ribeirinhos, movimentos populares e organizações da sociedade civil de vários países: Brasil, Peru, Equador, Bolívia, Colômbia e Venezuela. A urgência de repensar o modelo de desenvolvimento que vem se sobrepondo aos territórios e direitos dos povos na Amazônia, a partir das próprias gentes que habitam esses lugares, foi o que deu centralidade ao encontro. Já na marcha de abertura esse grito de ousadia se fazia presente; em pleno cenário eleitoral conturbado, as bandeiras da mobilização eram marcadas por resistência, afirmação de projeto popular e construção de unidade.

A Amazônia sempre foi tomada como uma zona de interesse nacional. Desde a Ditadura Militar brasileira, projetos de desenvolvimento são transplantados ao território sem qualquer diálogo ou participação com os povos originários, quilombolas, as comunidades locais e as populações atingidas, como se esses espaços fossem vazios e sem história. Afirma a carta final do II Encontro dos Atingidos e das Atingidas da Amazônia: “Historicamente, somos alvo de projetos pensados de cima, de fora e para fora, que nunca trouxeram verdadeiro desenvolvimento para a região, pelo contrário. Da enorme riqueza extraída, tudo é exportado – não fica nada para os povos amazônidas. Ainda assim, nunca na história da Amazônia se extraiu tanta riqueza, num ritmo tão intenso quanto hoje. Estamos vivenciando um processo sem precedentes de destruição da floresta, que converte seus povos em pobres. A região Norte concentra o maior índice de fome do país, a cada quatro famílias, uma passa fome”.

O avanço brutal da mercantilização e financeirização da natureza na região é marcado pelo uso intenso de violência. Diversos estados da Amazônia brasileira amargam a liderança nos assassinatos e ameaças a defensores de direitos humanos, seus povos e meio ambiente, como o recente assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira no Vale do Javari (AM). A impetuosidade com que o agronegócio, a mineração, o garimpo ilegal e a “bio”economia se apropriam dos territórios e corpos amazônicos produz o desmoronamento dos modos de vida local, tornando essas terras cada vez mais integradas a uma economia globalizada e dependente da velocidade extrativa dos fluxos financeiros, descolada dos tempos da produção e reprodução da vida.

Insurgindo-se a isso, os povos da floresta, das águas, do campo e da cidade demonstraram, em Belém (PA), sua capacidade na construção da organização popular para um outro projeto para a Amazônia, trazendo inúmeros exemplos de alternativas sistêmicas para a crise social, ambiental e política que os afetam. Dentre essas frentes, destacamos a resistência ao Acordo Comercial entre a União Europeia e o Mercosul, a necessidade de responsabilização das empresas transnacionais pelas violações aos direitos humanos e as estratégias populares para barrar a financeirização da natureza, travestida outra vez em novo nome: bioeconomia.

Impactos dos acordos internacionais de livre comércio sobre a Amazônia e América Latina 

Num dos espaços autogestionados, as organizações discutiram a luta contra o Acordo de Livre Comércio UE-Mercosul, cujas negociações se arrastaram por cerca de 20 anos, após a derrota popular do projeto da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), sem transparência ou participação popular, tendo sido o pacto finalizado justamente no primeiro ano do governo Bolsonaro. Segundo as entidades presentes, o acordo reproduz tanto a lógica neocolonial quanto neoliberal, feito à medida dos interesses das transnacionais da União Europeia, reforçando um papel de exportação de produtos primários do Brasil e demais países do bloco na América Latina, em troca de mais liberalização para a entrada dessas empresas no Mercosul com produtos industrializados e nos setores de serviços e compras públicas. Não preciso no acordo está a conta dos danos ambientais e sociais da expansão desse comércio sobre os territórios, biomas e populações, estando a Amazônia na mira de muitos projetos de mineração, agronegócio e infraestrutura de exportação.


Grupo Carta de Belém (GCB) e Frente Brasileira contra os Acordos UE-Mercosul e EFTA-Mercosul presentes nos debates no Pará / Carol Ferraz/ ATBr

Na lista dos produtos do Acordo a serem exportados do Brasil sem impostos estão soja, carne bovina, minério de ferro e etanol para agrocombustíveis e indústria “bio”química. Nas importações da Europa, mais agrotóxicos proibidos nos países de origem e mais carros com motores à combustão já produzidos no Brasil. Com o avanço do acordo, os territórios amazônicos se constituem como “zonas de sacrifício”, tendendo a intensificar processos destrutivos já em curso como as queimadas e desmatamento para expansão da fronteira agrícola e da mineração. Ademais, esses processos nunca atuam isoladamente, sempre necessitam de uma rede logística de amplo porte para se sustentarem. Em razão disso, propagam-se projetos de ampliação de portos, instalação de silos de armazenamento e intensificação do fluxo de hidrovias. Os quais são efetivados sobre territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais, pesqueiras e ribeirinhas, que ou são deslocados, ou veem suas formas de produzir a vida sendo paulatinamente extintas.

Embora sejam difundidas notícias sobre as preocupações com a crise climática e as violações aos direitos humanos ao redor das negociações do acordo, e ainda que haja um capítulo sobre comércio e desenvolvimento sustentável, não há qualquer previsão de mecanismo de solução de controvérsias, sanções e multas, ou ainda previsão de fundos que possam sustentar esses impactos. Além disso, fica claro o quanto falta justiça quando a suposta Transição Energética prevista do Pacto Verde Europeu pode significar mais extração de minérios e água dos países da América Latina para subsidiar energias “limpas”, carros elétricos ou hidrogênio “verde” para o velho continente.

A luta pela responsabilização das empresas transnacionais

Os projetos que são implantados na região Amazônica refletem as disputas na geopolítica mundial pelo acesso às matérias-primas baratas e controle de territórios, conduzidos pelas grandes corporações. Com isso, estamos afirmando que não somente o acesso ao recurso está em questão, mas também a capacidade de controlar a territorialidade e a capacidade e soberania dos estados em definir e aplicar políticas públicas, por isso a captura corporativa é um mecanismo de ação bastante profundo. As empresas transnacionais não dominam apenas bens, elas controlam formas de ser e produzir, e cada vez mais precisam destruir os modos de produção da vida diversos para criar a falsa ideia de que não há saídas.

Por isso, o enfrentamento ao poder das corporações é uma luta estrutural na construção de uma outra sociedade. Destruir o poder econômico, político, cultural e social que essas empresas possuem permite abrir caminhos para que possamos continuar existindo em nossa diversidade, ao passo que construímos janelas históricas de projetos mais justos e igualitários.

Nessa esteira se insere a campanha pela aprovação do PL nº.572/2022, que se constitui como um marco para a responsabilização das empresas pelas violações aos direitos humanos. O projeto reflete os mais de 10 anos de construção da Campanha Internacional pelo Desmantelamento do Poder Corporativo e pela Soberania dos Povos, nos quais se diagnosticou a constituição de uma arquitetura da impunidade que beneficia os negócios das corporações em detrimento dos direitos dos povos. Assim, constituir uma lei que possa assegurar esses direitos é uma forma de diminuir a assimetria de poderes e constituir instrumentos concretos de responsabilização. Como diria João Dutra, militante do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens): “Uma loucura a gente ter que fazer uma lei para dizer que o Estado e as empresas precisam seguir a lei”. E ainda completou: “A necessidade da lei mostra que as empresas fazem as próprias leis”. Avançar no marco é um primeiro passo para asfixiar o poder corporativo em sua tentativa de destruir os territórios e a democracia.

Um programa para sair da “bio”economia

Diante das crises econômica, alimentar, sanitária e ambiental, tem-se acirrado as disputas ao redor da constituição de novos projetos econômicos. Frente a isso, alguns atores políticos têm difundido saídas para a crise na promoção da transição verde da economia. Em tal contexto, o Brasil é colocado como um líder em potencial em virtude da concentração de florestas, água e biodiversidade em sua extensão, por isso tem sido alvo de propostas experimentais de bioeconomia e financeirização da natureza em distintos setores. Destaca-se que muitas das iniciativas de bioeconomia são financiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), transferindo dinheiro público para empresas privadas que atuam na especulação com créditos de carbono ou mesmo para o agronegócio, com impacto direto sobre a soberania popular em territórios da Amazônia. No entanto, as consequências da implementação desses projetos, assim como de políticas estaduais já com mais de uma década de implementação, como a Lei nº 2.308/2010 do Acre, ainda são pouco debatidas.

Essas iniciativas estão cada vez mais fortalecidas com as propostas de transição verde elaborados no Norte Global, como o “Pacto Verde” europeu ou o “Green Deal” dos Estados Unidos (EUA), que determinam ao Brasil um papel, além de laboratório, de fornecedor de matérias-primas, como minerais. Novamente, as empresas transnacionais são colocadas como chave para a concretização desse processo. Desse modo, as propostas de solução das crises reforçam redes de produção global, endossam a lógica financeira, distanciando-se de uma transição energética justa, feminista e popular já sendo construída em aliança com movimento sociais no Brasil e na América Latina.

Ressaltando a urgência da construção de um programa de país que represente uma real transformação das estruturas e possa dar respostas satisfatórias à crise ambiental e social, o Grupo Carta de Belém apresentou 10 propostas para a reconstrução de uma política socioambiental brasileira no contexto das eleições, dentre elas: garantia dos modos de vida; garantia da terra e do território; reafirmação do meio ambiente como bem comum e garantia da participação social.

Nas rodas de diálogo no FOSPA sobre o tema evidenciam-se que as soluções para a crise ecológica possuem respostas muito mais simples e acessíveis, como a valorização dos modos de vida tradicionais e o repensar do modelo de desenvolvimento, tirando das mãos dos bancos, das corporações e de países do Norte Global a definição do que são as soluções para a crise climática. Os representantes das comunidades presentes mostraram como suas formas históricas de organização social e de relações de produção têm assegurado condições de vida mais dignas e sustentáveis ao longo de séculos de processos emancipatórios de resistência.

Por um projeto de país feito por nós a partir de nossos lugares 

Contra a tendência hegemônica de projetar cenários para a Amazônia a partir de escritórios corporativos de Washington (EUA) à Bruxelas (Bélgica), ou mesmo pela capital Brasília, os povos reunidos no FOSPA demonstraram a sua força ao afirmar que a Amazônia deverá ser pensada com os pés, e pelos pés, corações, mentes e memórias que nela habitam. Evidenciaram que essa terra é povoada, provedora de alimentos, de dignidade, resistência, organização e luta, já que eles são a Amazônia que vive e resiste!

Tal como disseram os atingidos e as atingidas por barragem: “Acreditamos que os 20 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem aqui devem ser protagonistas da construção do projeto que queremos para a Amazônia, com outra economia, outro desenvolvimento, que respeite seus povos e priorize a vida. Mas não atuamos na região de forma isolada e sim nos somamos à construção de um projeto de país. Nada esperamos da classe dominante: a burguesia, pelo seu caráter dependente, já se mostrou incapaz de pensar em um projeto soberano e próspero. Portanto, ele tem que ser construído pelos trabalhadores e trabalhadoras, pelos explorados e exploradas. Somos todos atingidos por esse sistema e devemos, juntos, combatê-lo e construir o novo”.

Coluna da ATBr publicada no jornal Brasil de Fato em 2/08/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/08/02/as-vozes-da-floresta-se-insurgem-por-um-outro-brasil

 

Por uma economia centrada na vida: agendas feministas para o debate eleitoral

Mulheres participam do ato Fora Bolsonaro em Dezembro passado, em Porto Alegre (RS) – Isabelle Rieger/ATBr

A crise de cuidado é um tema cadente em muitos países nos últimos anos. A realidade da América Latina, no entanto, revela raízes mais profundas e antigas da crise, que coincide com o avanço das políticas neoliberais em toda a região. O envelhecimento populacional, o aumento do número de famílias que são monoparentais, os desafios para inserção das mulheres no mercado de trabalho formal e a efetivação de políticas de austeridade que reduzem os investimento públicos em políticas de cuidado têm sobrecarregado a vida das mulheres.

Uma realidade invisível, que é acompanhada da completa incapacidade de reorganização social e estatal frente a essas mudanças de cenário, que terminam por fortalecer a estrutura desigual que torna as mulheres as únicas responsáveis pelas tarefas relacionadas aos cuidados. Assim, se transfere tudo relativo ao cuidado, ou seja, à sobrevivência e renovação da vida dos trabalhadores e das trabalhadoras, para as mulheres. São elas que têm a tarefa de cuidar das crianças, idosos, enfermos, preparar alimentos, organizar e limpar casas.

Em verdade, estamos falando de uma série de trabalhos que não possuem relações contratuais, mas são essenciais para a reprodução do capital. Cada vez mais, com o avanço da retirada de direitos sociais, cortes orçamentários como a PEC 95, a diminuição do poder aquisitivo das famílias, a desvalorização do salário mínimo, o cuidado se concentra ainda mais nas mulheres. Assim, essa transferência, quase obrigatória, da tarefa de cuidado para as mulheres tem servido como um amortecedor dos efeitos mais destruidores da crise do bem estar das pessoas.

As mulheres ingressaram no mercado de trabalho sem superar a concentração do trabalho doméstico. Para tanto, algumas passaram a contratar outras mulheres para realizar o trabalho, as quais precisam contratar ainda outras mulheres ou contar com uma rede de solidariedade para exercer o direito ao trabalho, criando uma nova organização da reprodução social que se divide entre mulheres que podem pagar pelo cuidado de outras mulheres, que não podem. É importante destacar que desde a escravidão, grande parte do trabalho de cuidado é realizado por mulheres negras, historicamente vinculadas aos trabalhos domésticos. Cabe ainda recordar que é muito recente o reconhecimento da precariedade do trabalho doméstico e a afirmação de direitos trabalhistas a essa categoria.

Sem a economia do cuidado não paga, não há capitalismo, constituindo-se, portanto, num eixo estruturante da manutenção da dominação e exploração do trabalho no sistema. O aumento das horas de trabalho, da informalidade, da redução da renda das famílias aumenta a demanda de trabalho doméstico. Todas as alterações desde a inserção das mulheres no mercado de trabalho não foram acompanhadas de uma revisão dos papéis sociais na sociedade patriarcal. Tantas políticas de impacto na vida social, radicalizadas na pandemia, não foram acompanhadas do aumento da vaga de creches, da adequada remuneração do trabalho doméstico e do aumento da oferta de serviços públicos de cuidado.

Essa crise se agrava quando tomamos em conta a realidade de desterritorialização e desenraizamento, que vem ocorrendo com o avanço do capital, da mercantilização sobre comunidades e territórios. A destruição dos modos de vida tradicionais e os impactos no meio ambiente afetam diretamente as redes de solidariedade, que são fundamentais para os cuidados. A quebra dos laços comunitários afeta muito as mulheres do campo, das águas e das florestas. Além do que a destruição dessas coletividades aprofunda a dependência nesse sistema de cuidados hegemônico, tornando a falta de exemplos concretos de alternativas um problema para a construção de outras utopias.

É diante desse cenário desfavorável que somos obrigadas a pensar e construir alternativas.

Politização do cuidado e lutas

Recentrar a economia para a vida, repensando o papel histórico relegado às mulheres de serem responsáveis por todo o cuidado, é uma luta urgente e necessária. A pandemia exacerbou a necessidade de pensar a dimensão dos cuidados em nossas vidas, quando observamos que a linha de frente da pandemia era composta por mulheres na saúde, as professoras sobrecarregadas com a realidade do ensino à distância, mães impossibilitadas de trabalhar com crianças em casa. Entender a necessidade de valorização do trabalho de cuidados, desprivatizá-los e fornecer condições concretas de políticas públicas para as mulheres se libertarem da sobrecarga é o caminho.

Movimentos feministas urbanos têm enfatizado a economia feminista como uma alternativa a essa crise, recentrando a organização da sociedade não pela lógica do lucro, mas para a do cuidado, da manutenção das condições de vida. A Marcha Mundial das Mulheres tem investido no desafio de “desmercantilizar” o cuidado, apostando que este, fora da família, seja acessível a todos, não apenas aos que podem pagar por ele. Ao lado disso, a valorização do trabalho doméstico e de cuidado deve estar atrelada à distribuição de responsabilidades e à expansão e ampliação das infraestruturas públicas para o cuidado: a) aumento de creches e centros de educação infantil; b) espaços para cuidado dos idosos; c) formação e organização do trabalho de cuidadores/as em casa; d) garantias de direitos trabalhistas a domésticas e cuidadoras.

É preciso inserir na agenda da esquerda algo além do debate da produção, seu controle, e também pensar a dinâmica de reprodução, repensando o trabalho doméstico e de cuidados. Não apenas reconhecer sua existência diante da invisibilidade que paira é uma tarefa, mas também perceber como sua realização é feita de forma injusta e desigual, isso porque as mulheres são as que arcam com a maior parte desse trabalho. Por isso, precisamos pensar urgentemente em uma forma de reorganização e de redistribuição do trabalho doméstico e de cuidados.

As mulheres dos campos, das florestas e das águas também têm, por meio de uma ecologia feminista, integrado os debates de cuidado com os movimentos socioambientais, construindo alternativas desde a resistência e (re) existência de saberes de cuidado que existem, entre outras formas de organização social ainda presentes entre nós, como as das comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais e povos indígenas. As práticas de socialização do cuidado das crianças, exercida por homens e mulheres, nas cirandas dos movimentos populares, e as novas distribuições da tarefa de preparo de alimentos são alguns exemplos de alternativas.

Letícia Paranhos, da Amigos da Terra Brasil, afirma que “o movimento feminista tem nos ensinado que a economia feminista é mais do que um conceito, é uma ferramenta de luta. Aprendemos, por meio de discussões sobre a sustentabilidade da vida, a noção de interdependência, em que necessitamos de cuidados ao longo de toda a vida. Também compartilhamos muito sobre a ecodependência; para a sustentabilidade da vida, a natureza é a base de tudo, rechaçando a falsa ideia de separação entre seres humanos e a natureza. Somos natureza. Esses entendimentos questionam e confrontam o atual modelo de (re) produção e cuidado. É urgente pensar políticas públicas com base no respeito dos tempos, tempos estes que devem repensar as jornadas de trabalho e combater a mercantilização da vida”.

É preciso valorizar os avanços em nossa região, conquistados pelas mulheres na Argentina, Chile e Uruguai, com as lutas pelo reconhecimento dos trabalhos de cuidado não pagos nos cálculos previdenciários. Ou, ainda, destacar as discussões na Argentina para se firmar uma política de cuidados no país, a exemplo da criada no Uruguai.

O cuidado no Brasil e a necessidade de superação

Na contramão da discussão mundial e dos avanços regionais, o atual governo brasileiro, sobretudo por meio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tem contribuído para a brutalidade da agenda neoliberal do cuidado. Isso porque defende o papel da família em assegurar o cuidado ao invés de investir em políticas públicas para sua superação. Acreditar que a família vai absorver o impacto das políticas de austeridade é mercantilizar e privatizar a vida.

O fechamento da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, ainda no Governo Temer, representou o desmantelamento de toda uma estrutura que vinha avançando em repensar a organização do cuidado no Brasil. A política de acolhida na Casa da Mulher Brasileira e a produção de dados sobre a reorganização familiar estavam entre as atividades paralisadas. Ao passo que o investimento na família nuclear brasileira, em valores conservadores, durante o Governo Bolsonaro, tem feito explodir a violência contra as pautas políticas de mulheres, construindo um cenário no qual sequer há espaço para o debate.

O cuidado é uma responsabilidade coletiva, social, que deve ser  compartilhada entre homens e mulheres, com um papel bastante ativo do Estado. É necessário avançar para uma participação ainda maior das mulheres no mercado de trabalho formal com igualdade salarial, na redistribuição das tarefas de cuidado na sociedade, no avanço da proteção social para cuidadoras e empregadas domésticas. E na garantia dos direitos das mulheres à autonomia sobre seus corpos, assim como ao aborto com cuidados médicos legais, estes são alguns dos passos para se avançar numa economia centrada na sustentabilidade da vida.

“Queremos e precisamos de mudanças reais e radicais na nossa sociedade, estamos em momento eleitoral e os partidos do campo progressista precisam incorporar perspectivas que coloquem a sustentabilidade da vida no centro da economia e da política”, defende Letícia Paranhos.

* Coluna publicada no jornal Brasil de Fato em 18/07/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/07/18/por-uma-economia-centrada-na-vida-agendas-feministas-para-o-debate-eleitoral

La Amazonia va a derribar a Bolsonaro

En la gestión de Bolsonaro, iniciada en 2019, la Amazonia estuvo en llamas como nunca, una clara relación entre la destrucción de la floresta y la expansión del agronegocio y de la minería, así como el avance del plan liberal de destrucción socioambiental. 

Miles de indígenas protestaron contra el marco temporal y la tentativa de retirada de sus derechos en el Campamento Tierra Libre (ATL) en 2021 en Brasilia – Alass Derivas | @derivajornalismo 

¡Bruno Pereira y Dom Phillips presentes!

El antropólogo Viveiros de Castro dijo que la muerte es un acontecimiento corporal que uno solo experiencia en el otro. Así, todo lo que sabemos consiste en observar la muerte del otro y darle nuestros significados. Es precisamente sobre ese cualificar del hecho de que movimientos populares recuerden la memoria de Bruno y Dom, no como aquellos que fueron víctimas de un crimen aislado por algún pescador ilegal, pero como grandes luchadores de los derechos indígenas y de la preservación de la Amazonia, cuyo legado deberá seguir resonando.

Por detrás de sus muertes se desvela el violento proceso implementado por el Gobierno Bolsonaro de genocidio de los pueblos indígenas en Brasil. A principios del gobierno, en 2019, la Amazonia se incendió como nunca y, según entidades indígenas, hay una clara relación entre la destrucción del bosque y la expansión del agronegocio y de la minería. Apuntan incluso la conexión con empresas transnacionales e inversores del Norte Global y su complicidad en la destrucción de la floresta y sus pueblos.

Es necesario recordar que, en su discurso como candidato a la presidencia, Bolsonaro siempre defendió la completa paralización del reconocimiento y titulación de los territorios indígenas y quilombolas. Decía él: “ni un solo centímetro de tierra indígena será demarcada”. Cuanto al desmantelamiento de la Fundación Nacional del Indio (FUNAI) – principal órgano del Estado brasileño para la protección de los derechos de los pueblos indígenas – se manifestó: “vamos a pasar la hoz”. En la dirección contraria de la ola progresista latino-americana de respeto a la pluralidad, diversidad e identidad cultural de los pueblos, el gobierno camina, en las palabras del presidente, para “proporcionar los medios para que el indio sea igual que nosotros”. 

El Instituto de Estudios Socioeconómicos (INESC) y la Asociación de Servidores e Indigenistas de la FUNAI (INA) presentaron, en junio de 2022, un estudio detallado sobre la “Nueva FUNAI” (término utilizado por el actual presidente Marcelo Xavier), en lo cual concluyen que el órgano se volvió anti indígena. Justo al principio de la gestión de Bolsonaro, el gobierno editó la Medida Provisoria 870, transfiriendo la FUNAI del Ministerio de la Justicia (donde estuvo desde 1991) para el (ultraconservador) Ministerio de la Mujer, de la Familia y de los Derechos Humanos (MMFDH). En la misma normativa, desplazó la identificación y la demarcación de Tierras Indígenas para el Ministerio de la Agricultura, Ganadería y Abastecimiento (MAPA), el clásico Ministerio del agronegocio. Ésas, entre otras medidas, como la separación de la atención a la salud indígena, fragmentaron la política indigenista, creando un escenario de caos de gestión que inviabiliza la ejecución de las políticas y hacen aún más vulnerables los pueblos originarios de Brasil, en flagrante violación de sus derechos por el Estado, que tiene obligación constitucional de garantizarlos.  

El cambio de competencia para la demarcación de tierras indígenas permaneció hasta la decisión del Supremo Tribunal Federal (STF), que determinó, en agosto de 2019, que el Ejecutivo no podría legislar sobre el tema. A pesar de la decisión, la demarcación sigue paralizada y esperando el juzgamiento del STF contra la tesis anti indígena del Marco temporal. El resultado es la explosión de conflictos, ataques y violencia brutal en Tierras Indígenas que asistimos diariamente: las invasiones al territorio Yanomami por mineros, el abuso y la violencia sexual como arma en esa guerra; el mismo caso de los pueblos aislados en el Valle del Javari (AM), amenazados por mineros, narcotráfico y pesca ilegal, desnudando la gravedad de la falta de respeto a los pueblos en aislamiento voluntario. Difícil también es la situación de los Guaraní y Kaiowá, que conviven con verdaderas milicias privadas del agronegocio en Mato Grosso do Sul, las que atacan retomadas con apoyo de los poderes públicos locales. 

De acuerdo con el Consejo Indígena Misionario (CIMI), hay un aumento en las invasiones y explotación ilegal en Tierras Indígenas durante el Gobierno Bolsonaro: solo en 2020, fueron registrados 263 casos, que atingen 201 Tierras Indígenas, 145 pueblos en 19 estados, evidenciando que la política de desmonte es estructural. La Articulación de los Pueblos Indígenas de Brasil (APIB) denomina esa acción del gobierno contra los pueblos indígenas como genocidio, llegando a denunciar Jair Bolsonaro en el Tribunal Penal Internacional.

La FUNAI convive aún con un corte gigantesco en su presupuesto, alrededor de 40%, que afecta directamente la actuación de los servidores para la continuidad de los trabajos de promoción y protección de los derechos indígenas. Una de las políticas adoptadas en la actual gestión es el no atendimiento de indígenas en áreas de retomada de sus territorios ancestrales, lo que implica dejar docenas de ellos completamente al margen del Estado, no existiendo ninguna actuación ni siquiera para pacificación de conflictos. Entre las 39 Coordinaciones Regionales de FUNAI, solo dos cuentan con servidores de carrera de la institución. Han sido indicados por la gestión actual: 17 militares, 3 policiales militares, 2 servidores de la Policía Federal y 6 profesionales sin vínculo anterior. Éstos últimos han sido objeto de polémicas, ya que muchos son indicaciones religiosas hechas por el MMFDH. En el caso del Vale del Javari, la coordinación de Bruno Pereira fue substituida por un ex pastor evangélico, siendo uno de los sectores más sensibles de la FUNAI, el de pueblos aislados, que exige el máximo de experiencia para el respeto a su autodeterminación.  

El freak show ocurre diariamente. Tal como Bruno, que fue exonerado del cargo de Coordinación en 2020 por su actuación, hay una persecución sistemática de funcionarios con la retirada de sus atribuciones, el desplazamiento compulsorio de localidades, la explosión de procesos administrativos contra funcionarios, una serie de denuncias criminales encaminadas por el propio presidente de la FUNAI. Algunos funcionarios son acusados de actuar por “cuestiones ideológicas”, de ser vinculados al “PT”. Otro hecho escandaloso fue cuando el urucú pintado en las paredes de algunas de las sedes del predio de la FUNAI fue censurado, siendo pintado de verde y amarillo. O también cuando el art. 231 de la Constitución Federal se vuelve “tema controvertido”.  Podemos decir que hay una verdadera dictadura interna para “dejar pasar” el agronegocio y la minería. Nuevamente, los discursos asimilacionistas para con los pueblos indígenas tienen lugar, volviéndolos blancos cotidianos del discurso de “escollos al desarrollo”.

Todavía hay mucho que revelar de ese período de terror de nuestra historia. Algunas noticias recientes han apuntado para un esquema de empresas de fachada que prestan servicios a la FUNAI por medio de contratos millonarios. La gravedad de las acciones que involucran la presidencia del órgano ha llevado el Consejo Nacional de Derechos Humanos a solicitar el alejamiento del presidente. No quedan dudas de que los años de ese gobierno deberán ser objeto de pesquisa, en un camino arduo todavía por recorrer en la reconstrucción de una memoria y verdad de ese período.

¡Vidas y tierras indígenas importan! 

En 2022, Brasil vive el bicentenario de la supuesta independencia, una invitación a toda la izquierda que se enraíza en las luchas emancipatorias de los pueblos contra todas las formas de opresión y se compromete con la construcción de un Proyecto Popular de país para repensar la formación del Estado Nación brasileño, marcado por la barbarie colonial y racista, especialmente contra los pueblos indígenas. En ese escenario, los indígenas han resignificado las conmemoraciones del 19 de abril, el “día del indio”, no como una fecha vaciada de luchas históricas, pero como marco de la resistencia y movilización, enunciada en la construcción del Abril Rojo Indígena. 

Ya son 17 años de construcción del Campamento Tierra Libre (ATL), que en sus dos últimas ediciones emergió como un fuerte grito de los pueblos indígenas contra las atrocidades del Gobierno Bolsonaro. Las movilizaciones indígenas también han sido fuertes alrededor del juzgamiento en STF sobre el Marco Temporal que, a pesar de la presión popular, sigue sin fecha definida. Vale recordar la centralidad del Pueblo Xokleng, cazado, violentado, que resistió a la masacre en 1904 en Santa Catarina, y dio origen a la acción judicial bajo la cual se debate la infame tesis del marco temporal, enfrentando las oligarquías locales que los echaron de sus tierras y afirmando los derechos territoriales indígenas. La presión alrededor del juzgamiento es tan grande que todavía no hubo coyuntura para que el STF decida sobre el tema.  

Daniel Munduruku solía decir que los pueblos indígenas son una frontera sobre la cual el capitalismo brasileño todavía no ha conseguido avanzar. De hecho, los más de 500 años de colonización no fueron capaces de borrar esa identidad colectiva, y más que nunca, avanza organizada contra el bolsonarismo, enseñando, llevando un penacho y rezando, recordando a todos los muertos y que podemos enfrentar esa política de muerte y erguir las estructuras de una sociedad centrada en la producción y reproducción de la vida. 

* Columna publicada en el periódico Brasil de Fato en 5/07/2022 en este link: https://www.brasildefato.com.br/2022/07/05/a-amazonia-e-que-vai-derrubar-bolsonaro

The Amazon will bring Bolsonaro down

In the Bolsonaro administration, started in 2019, the Amazon was on fire as never before, in a clear relation between the destruction of the forest and the expansion of agribusiness and mining, as well as the advance in the liberal plan of socioenvironmental destruction. 

Thousands of indigenous people protested against the time frame and the attempt to deny them their rights during the Free Land Camp in 2021 in Brasilia – Alass Derivas | @derivajornalismo 

Bruno Pereira and Dom Phillips present!

The anthropologist Viveiros de Castro once said that death is a body event which we can only experience with someone else. Therefore, all we know consists of observing someone else’s death and attribute our meanings to it. It is precisely about that qualification of the fact the popular movements bring back the memory of Bruno and Dom, not as those who were victims of an isolated crime by an illegal fisherman, but as great fighters for indigenous rights and the preservation of the Amazon, whose legacy will live on. 

Behind their deaths lies the violent genocide process implemented by the Bolsonaro administration of indigenous peoples in Brazil. At the beginning of his administration in 2019, the Amazon was on fire as never before  and, according to  indigenous organisations, there is a clear relation between the destruction of the forest and the expansion of agribusiness and mining. They even point out the connection with transnational companies and investors from the Global North and their complicity in the destruction of the forest and its peoples. 

We must remember that in his speeches while running for president, Bolsonaro always defended a complete halt in the acknowledgement and granting of territory to indigenous and quilombola people. He said “Not a centimetre of indigenous land will be demarcated”. About the dismantling of the National Indigenous Foundation (FUNAI) – main body of the Brazilian state for protecting the rights of indigenous people – he added: “We will scythe it”. Going against the Latin American progressist wave of respect to plurality, diversity and cultural identity of the peoples, the government aims, in the words of the president, to “provide the means for the indigenous people to be like us”. 

The institute of Socioeconomic Studies (INESC) and the Association of Workers and Indigenists of FUNAI (INA) presented, in June 2022, a study with details about the “New FUNAI” (expression used by the present president Marcelo Xavier), in which they conclude that that body has become anti-indigenist. Right at the beginning of the Bolsonaro administration, the government issued the Provisional Measure 870, transferring FUNAI from the Ministry of Justice (where it had been since 1991) to the (ultra conservative) Ministry of Woman, Family and Human Rights (MMFDH). In the same normative deliberation, he moved the identification and demarcation of Indigenous Lands to the Ministry of Agriculture, Ranching and Supplying (MAPA), the classical Ministry of agribusiness. Those, among other measures like the separation of indigenous health care, fragmented the indigenist policies, creating a scenario of management chaos which makes the execution of public policies unfeasible. It also brings more vulnerability to the original peoples of Brazil, in a blatant violation of their rights by the State, which has the constitutional obligation to grant them.  

The change in competence for the demarcation of indigenous land remained until the decision of the  Federal Supreme Court (STF), which determined in August 2019 that the Executive Power could not legislate over that matter. In spite of that decision, demarcation is still halted and waiting for the judgement of STF against the anti-indigenist thesis of the Time Frame. The result is the outburst of conflicts, attacks and brutal violence in Indigenous Lands which we see every day: invasions to the Yanomami land by miners; abuse and sexual violence as a weapon in this war; the case of the isolated peoples in Javari Valley (AM), threatened by miners, drug dealers and illegal fishing, unravelling the seriousness of the disrespect to peoples in voluntary isolation, as well as the situation of the Guarani and Kaiowá, who must deal with the real private militias of the agribusiness in Mato Grosso do Sul,  which attack with the support of the local public powers.   

According to the Missionary Indigenist Council (CIMI), there is an increase in the invasions and illegal exploitation in Indigenous Lands during the Bolsonaro administration: only in 2020, 263 cases were registered, which affects 201 Indigenous Lands, 145 peoples in 19 states, making it evident that the dismantling policy is structural. The Articulation of Indigenous Peoples of Brazil (APIB) calls that government action against the indigenous peoples a genocide, and they have gone as far as to denounce Jair Bolsonaro in the  International Criminal Court.

FUNAI still has to deal with a huge budget cut of around 40%, which directly affects the actions of its servants for the continuity in the works of promotion and protection of indigenous rights. One of the policies adopted in the present administration is not offering service to indigenous people in areas where their ancestral land is being retaken, which implies leaving dozens of them completely at the margin of the State, without any action whatsoever to pacify the conflicts. Out of 39 Regional Coordinations of FUNAI, only two have servants who developed a career in the institution, having been nominated by the present administration: 17 military personnel, 3 military policemen, 2 servants of the Federal Police and 6 professionals without previous connection. These last ones have been a source of controversy, as many of them are religious indications made by the MMFDH. In the case of Javari Valley, the coordination of Bruno Pereira was substituted by a former evangelic pastor, in one of the most sensitive sectors of FUNAI, the one of isolated peoples, which demands a lot of experience to respect their self-determination. 

The horror show happens every day. Like Bruno, who was exonerated from the position of coordination in 2020 due to his actions, there is a systematic persecution of servants by removing their attributions, changing places compulsorily; and an explosion of administrative lawsuits against servants, a series of criminal denounces made by FUNAI’s president himself. Some servants are accused of acting with “ideological issues”, of being connected to PT. The scandal is such that the urucum (achiote) paint on the walls of some FUNAI buildings was censored and covered with green and yellow paint. Or even when article 231 of the Federal Constitution becomes a “controversial topic”. One can say there is a real internal dictatorship to “let pass” agribusiness and mining. Once again, assimilationist discourses towards the indigenous peoples takes place, and they are regular targets of the discourse of “hindrance to development”. 

There is a lot to be revealed in this period of terror in our history. Some recent news have pointed to a scheme of façade companies providing services to FUNAI through millionaire contracts. The seriousness of the actions which involve the institution’s presidency have led the National Council of Human Rights to request the president’s removal. There are no doubts left that this administration’s years will be an object of investigation, in a hard path still to be taken towards the reconstruction of memory and truth in this period. 

Indigenous lives and land matter! 

In 2022, Brazil celebrates two hundred years of its supposed independence, an invitation for all the left wing which is rooted in emancipation struggles against all forms of oppression, and engaged in building a Popular Project of country, to rethink the formation of the Brazilian Nation State. It has been marred by colonial and racist barbarism, especially against the indigenous peoples. In this scenario, the indigenous people have been resignifying the celebrations of April 19, the so-called “Day of the Indian”, not as a date which is devoid of historical struggles, but as a mark of resistance and mobilisation, which is expressed in the construction of Red Indigenous April. 

Protest in Porto Alegre (RS) in June this year against the time frame/ Carol Ferraz/ ATBr

It’s been 17 years since the construction of the Free Land Camp (ATL), which in its two last editions emerged as a strong scream of the indigenous peoples against the atrocities of the Bolsonaro Administration. Indigenous mobilisations have also been strong around the trial at STF about the Time Frame which, despite popular pressure, still does not have a set date. It is worth remembering the central role of the Xokleng people, who have been hunted and abused, and who resisted the massacre in 1904 in Santa Catarina, starting the lawsuit over which the infamous thesis of the time frame has been debated. They confronted the local oligarchs, who expelled them from their lands, insisting on the indigenous land rights. The pressure around that trial is so great that so far there has not been a context for the STF to decide on the issue. 

Daniel Munduruku said that the indigenous peoples are a frontier which Brazilian capitalism has not been able to cross. Indeed, more than 500 years of colonisation have not been able to erase that collective identity, and now more than ever, that identity advances organisedly against bolsonarism, teaching, donning a war bonnet and praying, remembering al the dead, so we can fight that death policy and build the structures of a society centred around the production and reproduction of life. 

* Column published on the newspaper Brasil de Fato on 5/07/2022 on this link: https://www.brasildefato.com.br/2022/07/05/a-amazonia-e-que-vai-derrubar-bolsonaro

A Amazônia é que vai derrubar Bolsonaro

Milhares de indígenas protestaram contra o marco temporal e a tentativa de retirada de seus direitos no Acampamento Terra Livre (ATL), em 2021, em Brasília – Alass Derivas | @derivajornalismo 

Bruno Pereira e Dom Phillips presentes!

O antropólogo Viveiros de Castro disse que a morte é um acontecimento corporal que só se experiencia no outro. Assim, tudo que sabemos consiste em observar a morte do outro e dar nossos significados. É precisamente sobre esse qualificar do fato que movimentos populares relembram a memória de Bruno e Dom, não como aqueles que foram vítimas de um crime isolado por algum pescador ilegal, mas como grandes lutadores dos direitos indígenas e da preservação da Amazônia, cujo legado deverá seguir ecoando.

Por detrás da morte deles se desvela o violento processo implementado pelo Governo Bolsonaro de genocídio dos povos indígenas no Brasil. No começo do governo, em 2019, a Amazônia pegou fogo como nunca e, segundo entidades indígenas, há uma clara relação entre a destruição da floresta e a expansão do agronegócio e do garimpo. Inclusive, apontam a conexão com empresas transnacionais e investidores do Norte Global e sua  cumplicidade na destruição da floresta e seus povos.

É preciso recordar que, já em seu discurso como candidato à Presidência, Bolsonaro sempre defendeu a completa paralisação do reconhecimento e titulação dos territórios indígenas e quilombolas. Dizia ele: “nem um centímetro de terra indígena será demarcada”. Quanto ao desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) – principal órgão do Estado brasileiro para a proteção dos direitos dos povos indígenas – manifestou-se: “vamos passar a foice”. Na contramão da onda progressista latino-americana de respeito à pluralidade,  diversidade e identidade cultural dos povos, o governo caminha, nas palavras do presidente, para “proporcionar os meios para que o índio seja igual a nós”. 

O Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e a Associação de Servidores e Indigenistas da FUNAI (INA) apresentaram, em junho de 2022, um estudo detalhando sobre a “Nova FUNAI” (termo utilizado pelo atual presidente Marcelo Xavier), no qual concluem que o órgão se tornou anti-indígena. Logo no início da gestão de Bolsonaro, o governo editou a Medida Provisória 870, transferindo a FUNAI do Ministério da Justiça (onde esteve desde 1991) para o (ultraconservador) Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Na mesma normativa, deslocou a identificação e a demarcação de Terras Indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o clássico Ministério do agronegócio. Essas entre outras medidas, como a separação da atenção à saúde indígena, fragmentaram a política indigenista, criando um cenário de caos de gestão que inviabiliza a execução das políticas e vulnerabiliza ainda mais os povos originários do Brasil, em flagrante violação dos seus direitos pelo Estado, que tem obrigação constitucional de garanti-los.  

A mudança de competência para a demarcação de terras indígenas permaneceu até a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou, em agosto de 2019, que o Executivo não poderia legislar sobre o tema. Apesar da decisão, a demarcação segue paralisada e aguardando o julgamento pelo STF contra a tese anti-indígena do Marco temporal. O resultado é a explosão de conflitos, ataques e violência brutal em Terras Indígenas que assistimos diariamente: as invasões ao território Yanomami por garimpeiros, o abuso e a violência sexual como arma nessa guerra; o próprio caso dos povos isolados no Vale do Javari (AM), ameaçados por garimpeiros, narcotráfico e pesca ilegal, desnudando a gravidade do desrespeito aos povos em isolamento voluntário; a situação dos Guarani e Kaiowá, que convivem com verdadeiras milícias privadas do agronegócio no Mato Grosso do Sul, as quais atacam retomadas com apoio dos poderes públicos locais. 

De acordo com o Conselho Indígena Missionário (CIMI), há um aumento das invasões e exploração ilegal em Terras Indígenas durante o Governo Bolsonaro: só em 2020, registrou-se 263 casos, que atingem 201 Terras Indígenas, 145 povos em 19 estados, evidenciando que a política de desmonte é estrutural. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) denomina essa ação do governo contra os povos indígenas como genocídio, chegando a denunciar Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional.

A FUNAI convive ainda com um corte orçamentário gigantesco, por volta de 40%, que afeta diretamente na atuação dos servidores para a continuidade dos trabalhos de promoção e proteção dos direitos indígenas. Uma das políticas adotadas na atual gestão é o não atendimento de indígenas em áreas de retomada de seus territórios ancestrais, o que implica deixar dezenas deles completamente à margem do Estado, não havendo qualquer atuação, até para pacificação de conflitos. Das 39 Coordenações Regionais da FUNAI, apenas duas contam com servidores de carreira da instituição, tendo sido nomeados pela gestão atual: 17 militares, 3 policiais militares, 2 servidores da Polícia Federal e 6 profissionais sem vínculo anterior. Estes últimos, têm sido alvo de polêmicas, já que muitos são indicações religiosas feitas pelo MMFDH. No caso do Vale do Javari, a coordenação de Bruno Pereira foi substituída por um ex-pastor evangélico, sendo um dos setores mais sensíveis da FUNAI, de povos isolados que exigem o máximo de experiência para o respeito à sua autodeterminação.  

O show de horrores acontece diariamente. Tal como Bruno, que foi exonerado do cargo de Coordenação em 2020 por sua atuação, há uma perseguição sistemática de servidores com a retirada de suas atribuições, o deslocamento compulsório de localidades, a explosão de processos administrativos contra funcionários, uma série de denúncias criminais encaminhadas pelo próprio presidente da FUNAI. Alguns funcionários são acusados de atuar por “questões ideológicas”, de serem ligados ao “PT”. Torna-se tão escandaloso quando o urucum pintado nas paredes de algumas das sedes do prédio da FUNAI é censurado, sendo pintado de verde e amarelo. Ou ainda quando o art. 231 da Constituição Federal se torna “tema controverso”.  Pode-se dizer que há uma verdadeira ditadura interna para “deixar passar” o agronegócio e o garimpo. Novamente, os discursos assimilacionistas para com os povos indígenas toma lugar, sendo estes alvos cotidianos do discurso de “entraves ao desenvolvimento”.

Muito ainda está por ser revelado desse período de terror da nossa história. Algumas notícias recentes têm apontado para um esquema de empresas de fachada que prestam serviços à FUNAI por meio de contratos milionários. A gravidade das ações que envolvem a presidência do órgão levaram o Conselho Nacional de Direitos Humanos a solicitar o afastamento do presidente. Não restam dúvidas de que os anos desse governo deverão ser objeto de investigação, num caminho árduo ainda a traçar na reconstrução de uma memória e verdade desse período.

Vidas e terras indígenas importam! 

Em 2022, o Brasil marca o bicentenário da suposta independência, um convite a toda a esquerda que se enraíza nas lutas emancipatórias dos povos contra todas as formas de opressão e se engaja na construção de um Projeto Popular de país para repensar a formação do Estado Nação brasileiro, marcado pela barbárie colonial e racista, especialmente contra os povos indígenas. Nesse cenário, os indígenas têm ressignificado as comemorações do 19 de abril, o “dia do índio”, não como uma data esvaziada de lutas históricas, mas como marco da resistência e mobilização, enunciada na construção do Abril Vermelho Indígena. 

Protesto em Porto Alegre (RS) em Junho deste ano contra o marco temporal / Carol Ferraz/ ATBr

Já são 17 anos de construção do Acampamento Terra Livre (ATL), que em suas duas últimas edições emergiu como um forte grito dos povos indígenas contra as atrocidades do Governo Bolsonaro. As mobilizações indígenas também têm sido fortes ao redor do julgamento no STF sobre o Marco Temporal que, apesar da pressão popular, segue com data indefinida. Cabe lembrar a centralidade do Povo Xokleng, caçado, violentado, que resistiu ao massacre em 1904 em Santa Catarina, e deu ensejo à ação judicial sob a qual se debate a infame tese do marco temporal, enfrentando as oligarquias locais que os expulsaram de suas terras e afirmando os direitos territoriais indígenas. A pressão ao redor do julgamento é tão grande, que ainda não houve conjuntura para que o STF decida sobre o tema.  

Daniel Munduruku dizia que os povos indígenas são uma fronteira sobre a qual o capitalismo brasileiro ainda não conseguiu avançar. De fato, os mais de 500 anos de colonização não foram capazes de apagar essa identidade coletiva, e mais que nunca, avança organizada contra o bolsonarismo, ensinando, de cocar em punho e reza, relembrando todos os mortos, que podemos enfrentar essa política de morte e erguer as estruturas de uma sociedade centrada na produção e reprodução de vida. 

* Coluna publicada no jornal Brasil de Fato em 5/07/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/07/05/a-amazonia-e-que-vai-derrubar-bolsonaro

The Salgado Filho aeroporto that has turned into “Porto Alegre airport”: Fraport’s expulsion of Vila Nazaré

Many families were driven out Vila Nazaré; those  who stayed, live in the middle of rubble and without access to adequate public services. Credit: Friends of the Earth Brazil archive

It’s sad that we are still the exiled from our own land

As Brazilians, we are used to having to question the narratives of development. On or next to our territories, a series of unfulfilled promises are imposed, reproducing the sad reality of social marginalization. Land occupied by people that depend upon it to live, work and reproduce is considered uninhabited, relegating entire communities to invisibility.

This criticism reflects what has happened to the Vila Nazaré community, in the northern zone of Porto Alegre in the state of Rio Grande do Sul. Initially expelled due to the encroachment by agribusiness in the countryside during the 1960’s, the families that occupied the Vila form part of the rural exodus phenomenon to the outskirts of the state’s capital. An uninhabited area, without any public services, upon which dozens of workers started organizing their lives, weaving their social and cultural fabric throughout the territory. Through the strength of popular organizing, together they conquered access to water, electricity, health center, schools.

One day however, supposed development arrived. In March of 2017, city hall started to expand its interest in the northern Porto Alegre. A swamp area that is being filled in for the advancement of the “production sector”, which also includes the Salgado Filho Airport’s expansion, and not the people.

Around this time, the airport concession was granted to the German company, Fraport. Maybe the word concession presents a consensus imagery; however in reality, it has actually established the brutal privatization of a public service for 25 years. What does this mean for people’s daily lives – an increase in costs for the services provided, the establishment of additional tariffs, or the gates that are currently being raised. The logic of profit maximization prevails over the public interest. 

Art released in the publication of Friends of Earth Brazil “From Porto Alegre to Acre, by land and air” 

For this project, Fraport invested R$ 382 million, aimed at attending planes with a capacity for heavier loads. The government narrative was to establish the promotion of regional development while facilitating widening transport logistics, which included the airport’s expansion. There was complete disregard by state authorities with respect to the destiny of the 2 thousand families that lived there. The only state agency to manifest concern regarding responsibility resulting from the impacts, relocation and eviction was FEPAM (the State Environmental Protection Foundation). It is important to also note that, in the signed concession contract, Fraport agreed to its responsibility for the costs of relocating the community,  as is affirmed in the lawsuit filed by the federal and state prosecutors and public defenders against Fraport.

Submerged in a scenery of uncertainties and with Fraport’s utter refusal to dialog with the community, the families started experiencing a violent process of expulsion. All the evils of megaproject infrastructure are reproduced in this region: total denial of collective negotiation by prioritizing the individualization of conflict; criminalization of leaders and promotion of a negative image of the community, lack of access to information and non-payment of indemnity.

Disregarding Fraport’s contractual obligations, the municipality assigned to the families new public housing complexes, namely Nosso Senhor do Bom Fim and  Irmãos  Maristas, faraway from the region of the Vila. The option was offered in a precarious manner at the end of the eviction process, after the families had resisted lack of water, garbage collection, public lighting and had had their schools and health center razed. What’s more – during the eviction, Fraport did not even recognize the legally established residents’ Association and sub-contracted the engineering company ITAZI, infamous for evictions, to carry out the process, outsourcing its responsibilities, consequently highlighting its negligence. The administration of the illegal evictions counts with the complicity of the State through the Brigada Militar (name given to the military police in Rio Grande do Sul).

Various errors have been pointed out in relation to the municipality’s position: the failure to utilize available areas near the Vila, namely to diminish the impact of the lost territory; the fact that the public housing complexes were constructed with resources from the Federal program “My House, My Life”, which should have been designated to the city’s existing housing deficit and not to act like a compensatory policy at the behest of a foreign corporation. Furthermore, the complexes lack the array of public services like schools, hospitals and public transport, and present construction defects.

As is true not only of capitalism, history repeats itself tragically, the families of Vila Nazaré were evicted to give space to the runway expansion.  Each person that left the Vila had their house destroyed, a sign to those remaining that this territory had a new owner. The owner listed on the deed, without actual occupancy, was duly indemnified; where as the majority of the community, with an occupancy of more than 50 years, was forced to relocate. And as part of the sad saga of the displaced, MTST (Houseless Workers Movement) has made efforts to bring together those evicted in the Porto Alegre’s northern region, in the Ocupacao Povo Sem Medo (People without Fear Okupation), demonstrating the availability of other territories in the region, and creating a space of resistance against the eviction.

From “aeroporto” to “airport”

The privatization of public service removes the orientation of its social and collective destination, loosing even more its character through relief and tax exemptions. Once there is no social or financial return to the collective, there is the loss of control and common administration. Meanwhile the logic of profit prevails, everything becomes an object of merchandising. Therefore, after the privatization, the Salgado Filho Airport started to be called ‘Porto Alegre Airport”, being managed by a transnational company that has no commitment to the local reality. 

Data found by City Councilor Mateus Gomes’ mandate (PSOL) have demonstrated that Fraport has been granted R$ 71 million in 2022 through an exemption of property taxes and amnesty of fines and fees. Meanwhile, the families relocated to the housing complexes are barely surviving with a complete lack of services. If we consider the company’s compensation of R$ 4 million for the construction of an elementary school in the Irmãos Maristas complex,  tax concessions and amnesties are actually financing the corporation’s contribution.   

It is important to highlight that air transport contributes to the increase of carbon dioxide in the atmosphere and is one of the most climate damaging forms of transportation, not constituting an ecological axis of logistics. It represents the best practicability for corporations to integrate their production chains. However, environmental alternatives have shown the importance of questioning long distance logistics and instead have promoted local commerce and consumption with the objective of reducing greenhouse effect gas emissions, resulting in an effective contribution to the reduction of climate change.

Contrastingly, Fraport looks to promote itself with a green image, announcing that it will have a “zero carbon footprint” by 2045, something very hard to believe considering that its business is based on plane traffic. This may a possibility for the German company because it uses the carbon offset and reduction scheme (Carbon Offsetting and Reduction Scheme-CORSIA), where it holds on to forest lands to compensate and neutralize the emissions. In reality, extending its damage to other areas, committing various violations: namely that of the Vila Nazaré community through its mandatory removal, the population of Porto Alegre through the appropriation of its public service and for the people of Acre and other parts that suffer from these carbon sequester schemes.

The global network Stay Grounded (SG) has denounced the impacts of the aviation industry around the world. As well as advocating against climate injustice, SG has decried the fact that access to aviation is concentrated in the rich minority. According to data, the majority of people in Latin America and the Caribbean have never stepped foot on an airplane, like the residents of Vila Nazaré. In its map of injustices – EJAtlas – Global Atlas of Environmental Justice, it is shown how the construction of airports and infrastructure does not promote local development.  On the contrary, they expel the people from their territories, they destroy livelihoods, loot water and fertile land and devastate ecosystems.

In the wake of a critical proposition from a global network, the case of Vila Nazaré had repercussions in Germany, with the help of Bund – Friends of Earth Germany and KOBRA (Brasil-Germany cooperation), which brought German media to see with their own eyes and ears the reprehensible actions of Fraport on Brazilian land. This initiative was articulated in conjunction with the process of denouncement before Fraport shareholders, an initiative started by an investigation on human rights violations carried out by German companies during the Brazilian dictatorship.

Mobilized families in 2018 against the forced removal and to demand their rights/ Douglas Freitas/ ATBr 

The work to continue denouncing the brutality with which the German company conducted itself during the eviction of families in Vila Nazaré, in which they failed to assume any responsibilities, not even with the proper due diligence that it purports to follow.  On the contrary, benefiting from the structure of the architecture of impunity, which highlights the slowness of the judicial process where the right of the families were being defended, Fraport consolidated the removal of the majority of the community, outsourcing the problem to other regions of the city, faraway from the airport.

Conclusion

The expansion of the aviation enterprise is closely connected to land disputes, exemplified in the case of Vila Nazaré. With the violent silence of the authorities and the corporate lobby, airport runways and immense industrial complexes expel the poor populations always further away from the cities and their centres. To stop the expropriation, pollution, destruction, private appropriation of public services and the ecocide caused by the aviation industry and connected activities, the rights of the people should be fully recognized, guaranteed and respected, especially for local communities and farmers with regard to governance and possession of land and territories. This will also help to guarantee food sovereignty and protect the means of livelihood, work, culture and traditions of the Peoples.

The sentiment of social-environmental injustice that hovers over the case casts light upon the urgency to reflect upon a proposed change to the Brazilian impunity paradigm protecting companies in Brazil. As proposed by the recently presented bill PL 572/2022and when managing the conflict, the suffering of the victims should be prioritized while also ensuring their right to participate in the debate regarding the project, reassuring their full right to total reparation. Likewise, the judicial power should act to preserve their rights, preventing them exposure to marginalization and equalizing the asymmetric powers between Fraport and the community.

We also want to clamor around the alert regarding the advancement of the privatization of public services. Various ongoing bills, approved privatizations, where the companies have been granted the sewerage and water distribution services, the control of gas and petroleum, all of which can implicate an increase in fees for people’s lives. The risks are not only limited to national regulatory frameworks but also to the advancement of European Union and Mercosul Agreement, which will further open the possibilities of privatization of essential public services, as a countermeasure.

The saga of the excluded in a capitalist society has always been to be pushed to the border, to the point that the only place left is a “non-place”.  In this world of inequalities, we are an ocean of those who do not exist for the State, that are situated on the extremity of any rights project. We serve to carry on our backs the weight of all the damage.  Its sad, but we are still exiled from our own lands.

Friends of Earth Brasil (ATBr) is an organization that acts to construct the fight for environmental justice. Fortnightly, we publish articles about economic and climate justice, food sovereignty, biodiversity, international solidarity and against the oppression.  

*Article originally published in the Brasil de Fato newspaper at this link: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/23/desenvolvimento-para-quem-transnacional-fraport-expulsa-familias-em-porto-alegre

Quando morar é um privilégio, a insurgência é a ordem

Em 1948, o direito à moradia ingressou no rol de direitos fundamentais, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, alçando o lugar de direito humano universal. Tal direito só foi reconhecido no Brasil com a Emenda Constitucional nº 26 de 2000, sendo inserido no rol de direitos sociais do artigo 6º, ao lado do trabalho, saúde, educação, alimentação e outros. Passados quase 75 anos do reconhecimento desse direito, ao invés de caminharmos para sua efetivação, as políticas neoliberais nos levam a sua destruição.

O núcleo central do problema reside em deixar de considerar a utilidade (necessidade) da moradia para reprodução da vida e transformá-la numa mercadoria, promovido por meio da especulação imobiliária. A supervalorização de imóveis permite que vários fiquem desocupados na cidade. Em muitas localidades, o déficit habitacional poderia ser suprido pelo número de imóveis vazios, no entanto, não há interesse público em fazer cumprir a função social da propriedade urbana.

Outro aspecto ligado à especulação é que a valorização dos imóveis tem crescido exponencialmente, não sendo acompanhada pelo aumento da renda da população. Isso tem gerado um cenário em que famílias, mesmo com renda, estão longe de ter condições de adquirir um imóvel próprio, ou mesmo arcar com o preço dos aluguéis. Alguns estudos apontam que as famílias comprometem mais de 30% de sua renda em moradia, inviabilizando a realização de outros direitos.

Na prática, a especulação leva cada vez mais as famílias de classe média para longe das regiões centrais e impõe, às classes mais populares, a constituição de ocupações urbanas, e até mesmo, a marginalidade da situação de rua. Dessa forma, há uma precarização das populações socialmente vulneráveis para privilegiar os interesses de agentes financeiros. A ausência da atuação do Estado para proteger o direito à moradia adequada, constituindo políticas habitacionais, é promotor da exclusão das cidades. Assim, o Estado ausente transfere suas obrigações aos indivíduos, expondo a população a administrar sozinha os riscos sociais e econômicos.

O primeiro programa habitacional mais elaborado no país foi constituído em 2009, “Minha Casa, Minha Vida”, pelo qual 4 milhões de brasileiros e de brasileiras acessaram a casa própria. Ainda que tenha sido um importante avanço, o programa não enfrentou o desafio da financeirização da terra no país, à medida que promovia o acesso à moradia por meio do crédito bancário. Também, é importante destacar que o programa acabou por permitir uma captura corporativa das construtoras que controlavam a execução, constituindo-se como grandes corporações na região.

A situação está ainda pior com o fim do programa e a criação do Casa Verde e Amarela pelo Governo Bolsonaro, que excluiu completamente a faixa de baixa renda. Segundo dados da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional do Brasil chega a 6 milhões (2019). São pessoas que não têm ou que vivem em condições precárias de moradia, como ausência de sanitários, superlotação. Durante a pandemia, essa realidade se tornou ainda mais grave. O aumento do custo de vida no país, com altos índices de inflação, a deterioração do salário mínimo, o crescimento do desemprego e informalidade afetaram diretamente o acesso à moradia; conforme estudos da Campanha Despejo Zero, o risco de moradia cresceu 655% na pandemia. Também alçamos o recorde histórico de população em situação de rua nas capitais.

Outro elemento que contribui para o agravamento da crise de moradia no país é o avanço do poder corporativo sobre os bens públicos essenciais. Cada vez mais as políticas da cidade estão sendo capturadas por corporações. Seja pela privatização de serviços públicos essenciais como transporte público, aeroportos, serviço de abastecimento de água e saneamento, fornecimento de energia elétrica. Até a transferência da administração das políticas públicas em si, como a subcontratação de consultorias para elaboração de planos diretores.

Ou mesmo, os custos sociais das políticas de isenção fiscal para as empresas. Um caso emblemático é o da companhia alemã Fraport, que controla o aeroporto de Porto Alegre (RS). A empresa recebeu isenção de IPTU mesmo se beneficiando de um negócio lucrativo. A situação se agrava quando a prefeitura disponibiliza 1.500 moradias, que estavam destinadas ao atendimento do déficit habitacional da cidade, para que a empresa faça o reassentamento das famílias deslocadas pela ampliação do aeroporto. Por essa intervenção, a Fraport não arcou com os custos e a responsabilidade pelo orçamento advinda do acordo de concessão.

O alerta dos despejos e remoções

O poder judiciário no Brasil é extremamente conservador, nunca enfrentou as questões estruturais dos conflitos possessórios coletivos no país, sempre optando pela garantia dos direitos de propriedade, tornando os despejos a regra – e não exceção. Dessa forma, configura-se um imenso passivo de violência contra populações despejadas. Ocupações inteiras são desfeitas sem qualquer projeto de reassentamento, apesar do que estipulam órgãos de direitos humanos como a Relatoria de Cidades da Organização das Nações Unidas (ONU), os Comentários Gerais do Comitê Dhesca e a  Resolução nº10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos.

A luta contra os despejos e remoções faz parte da história de resistência de muitos movimentos no país. Durante a pandemia essas organizações se articularam ao redor da Campanha Despejo Zero para reivindicar o direito a permanecer em sua moradia em razão de toda a crise sanitária. Uma das medidas adotadas foi a proposição da Ação Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 828, na qual se pedia a suspensão dos despejos até a finalização da pandemia. O Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão histórica, concedeu a suspensão reconhecendo a urgência do direito à moradia e a preservação da dignidade das famílias.

Essa ação resultou em que 14.600 famílias não fossem despejadas. Muito embora os efeitos da decisão do STF sejam vinculantes, 27.600 famílias foram removidas, tanto em despejos legais (determinados por juízes) como ilegais. Estima-se que 133 mil famílias estejam ameaçadas de despejo caso o STF não atenda ao novo pedido de prorrogação da medida, realizado pela Campanha, no qual se solicita que seja estendida até o final do ano ou quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar o fim da pandemia. Tais dados demonstram a gravidade do aprofundamento da crise da moradia que está por vir.

Não há formas de pensar a retirada das famílias de um teto que seja humanizado, os únicos caminhos possíveis são a não remoção ou reassentamento. O Poder Judiciário precisa assumir sua responsabilidade ao determinar a reintegração de posse, fazendo com que seja assegurado a mediação desses conflitos, o acesso à justiça dos afetados, já que em geral esses não dispõem de possibilidades de se manifestar. A questão do despejo é coletiva, não podemos individualizá-la por núcleo familiar.

Nesse sentido, cadente a proposição de Resolução elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para criação de um Protocolo de Reintegração de Posse Digna. A medida parece ser uma resposta à gravidade do déficit habitacional, uma vez que com a possibilidade de retomada dos despejos se cria a urgência em se pensar uma transição para evitar o aprofundamento da crise social da moradia. Novamente, no texto encontramos a individualização do problema, bem como a determinação da discricionariedade do juiz da causa para buscar uma mediação no tribunal do conflito. Talvez, a questão mais grave da Resolução seja a precariedade do processo de Consulta Pública proposto, foram dados apenas 4 dias para que a sociedade civil submeta via formulário online seus apontamentos. Em se tratando de um tema tão denso deveria se promover um amplo debate público, com a realização de audiências públicas e seminários, e um prazo mais adequado para constituição de uma posição coletiva.

Os despejos também ganharam a atenção do parlamento com a proposição do Projeto de Lei 1501/2022, que traz o cenário mais garantista para se pensar a realidade pós-Covid no direito de moradia. Na justificativa do projeto, os despejos são conectados à realidade da precariedade da vida urbana no acesso aos alimentos, trabalho, água, sobre o aumento das tarifas de serviços públicos essenciais, demonstrando que morar também significa ter condições e acessibilidade.

A nova fronteira de avanço do capital na cidade

Na contramão da defesa da moradia, algumas semanas atrás a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº. 4188/2021, que flexibiliza o entendimento do “bem de família”, desta forma autorizando que as pessoas possam perder suas casas em razão de dívidas. No Brasil, visando proteger a única moradia da família está proibida a tomada de bem imóvel habitado em razão de dívidas, é o que chamamos de “impenhorabilidade de bem de família”. O que o projeto viabiliza é justamente flexibilizar esse direito.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), principal expoente da luta por políticas de moradia no país, destaca a gravidade do PL. Segundo a organização, cria-se a possibilidade de as famílias penhorarem seu bem em empréstimos realizados a instituições financeiras, podendo fornecer o mesmo bem para mais de uma transação. Partindo da realidade de endividamento das famílias brasileiras, estamos diante da criação de um precedente tão grave como a crise imobiliária de 2008 nos Estados Unidos (EUA).

Recordamos que em razão do cenário de desemprego e inflação nos EUA, muitas famílias contraíram diversas dívidas em suas casas fornecendo o mesmo imóvel para mais de um empréstimo. O resultado foi o colapso da bolha imobiliária dos bancos, levando centenas de pessoas a morarem na rua, em trailers, em total precariedade de moradia. Mesmo que essa crise seja amplamente conhecida, à medida que afetou todo o mercado financeiro internacional, estamos justamente criando a mesma possibilidade de colapso no Brasil. Se o PL avançar no Senado, teremos centenas de brasileiros perdendo suas casas para bancos. Serão mais imóveis vazios, mais especulação, mais caro será o direito de morar.

Por teto, pão e trabalho, marchamos!

No próximo dia 21 de junho a Campanha Despejo Zero, em suas diversas organizações locais, estaduais e regionais, vai às ruas para exigir a suspensão de despejos durante a pandemia e a prorrogação da decisão do STF no âmbito da ADPF 828. A garantia do direito à moradia é a porta de entrada para consecução de todos os outros direitos sociais no país. Sem moradia adequada não há saúde, educação, condições de soberania.

Se o direito a morar continuar a ser decidido pelos interesses de instituições financeiras, se o acesso à cidade for cada vez mais privatizado, constituirá um privilégio, e portanto, um favor concedido pela burguesia a algumas pessoas. Contra a mercantilização da moradia e a efetivação de sua garantia como direito universal, a insurgência a esse projeto é a ordem. Seguiremos em luta para que o teto, o pão e o trabalho sejam direitos, e não favores!

Crédito da imagem de destaque: Campanha Despejo Zero

Artigo publicado no jornal Brasil de Fato neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/06/20/quando-morar-e-um-privilegio-a-insurgencia-e-a-ordem

Um programa de Justiça Ambiental que supere os tempos de guerra

“É um tempo de guerra, é um tempo sem sol”, como diria Maria Bethânia. Neste tempo sombrio, temos que ter a ousadia de levantar a nossa voz contra os donos do poder. Depois do golpe de 2016, implementou-se uma agenda autoritária de retirada de direitos da classe trabalhadora, consolidada por um governo fascista e genocida eleito em 2018. A crise de saúde pública, o retorno ao mapa da fome, o número de desempregados e desempregadas sem teto, a resistência aos despejos, o avanço brutal do capital sobre os territórios e a entrega do meio ambiente ao mercado, tudo tem tornado dramática a vida do povo.

Neste ano, temos a oportunidade de resgatar minimamente as condições democráticas pré-golpe para poder voltar a discutir os rumos que queremos para o país. Longe da ilusão de que unicamente por meio de uma eleição e da formalidade do voto podemos transformar a realidade, acreditamos que a construção coletiva de um programa de país, realizada no debate baseado na ação concreta, na ruas e no cotidiano dos territórios, unindo campo e cidade, pode contribuir para o fortalecimento de um projeto político comum e popular, no caminho de uma transição que abale as estruturas injustas da sociedade e aponte para uma mudança de sistema.

As eleições de 2022 já começaram. A escalada da violência, desinformação, notícias falsas, disseminação do medo e ódio percorrem as ruas das cidades. O plano econômico é seguir a cartilha neoliberal: retalhar todo o Estado Social e entregar o controle político e econômico inteiramente à iniciativa privada. O discurso da segurança pública ganha popularidade com a militarização, o punitivismo e a repressão, fortalecendo o conservadorismo de uma sociedade racista-patriarcal. 

Esse processo eleitoral deve ser travado com crítica, em concreto com o povo, não apenas pelas redes sociais. Temos a urgência de estar nas ruas, de construir mobilizações e celebrar alianças. Uma ação transformadora é aquela que caminha para a construção do poder popular, que defende a sustentabilidade da vida, o meio ambiente, e os direitos dos povos, e que só é possível a partir de uma recuperação democrática das condições para justiça social, ambiental, econômica, de gênero e contra todas as formas de opressão. 

Por isso, nesta semana do Dia Mundial do Meio Ambiente, há 50 anos da primeira conferência da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre Desenvolvimento Sustentável em Estocolmo, como uma organização do movimento por Justiça Ambiental que tem persistido por mais de meio século e para além do período compreendido entre os golpes (1964 e 2016) na politização da ecologia e na ecologização da política, apresentamos nossa contribuição coletiva para a construção programática de um processo histórico de retomada da democracia, organizada em três eixos:

Organizar e mobilizar para construir o poder e a soberania dos povos

É tempo de ousadia, de assumir nosso papel como povo brasileiro construtor da nossa própria história. Precisamos nos esforçar em cada organização territorial para resgatar a capacidade de construção e trabalho a muitas mãos, articular nossos projetos comuns e iniciativas emancipatórias. Afirmar a importância dos sujeitos políticos históricos do campo popular, reconhecer a nossa história de lutas contra a escravidão, o racismo, o patriarcado, as desigualdades de classe, pela moradia, pela terra, pela soberania alimentar, pelo direito de ser, existir e, assim, aumentar nossas capacidades e possibilidades de organização.

Devemos atuar em direção à valorização dos sujeitos coletivos e das coletividades, acabando com a deslegitimação e criminalização da organização política, especialmente dos movimentos sociais. Construir processos de formação política continuada que se retroalimentam na mobilização popular, a tecer lutas unitárias por meio de ações significantes para um processo de transformação social, visando a construção de sociedades sustentáveis dentro de uma visão internacionalista e popular pela justiça ambiental.

Recuperar a história comum negada à nossa América Latina e construir um trabalho de solidariedade e de alianças em toda nossa região, fortalecendo atuações regionais e transregionais em prol da libertação dos povos, em processos como a Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo. 

Concretamente, exigiremos ao próximo governo aprofundar a democracia no Brasil como condição básica de sustentação de sua própria legitimidade, a qual se dará no cumprimento da Constituição e na realização dos direitos humanos e dos povos assegurados e conquistados historicamente pelas lutas populares, e propomos avançar:

1) No fortalecimento dos conselhos de participação social, em especial os intersetoriais como o CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos) e o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), e na  reativação dos conselhos setoriais como o CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), desmantelados nos últimos anos, estabelecendo condições para o controle social das políticas setoriais e transversais e do orçamento público, e na ampliação das esferas de controle popular para o Poder Judiciário e para a Política Externa;

2) Na proteção dos defensores e das defensoras de direitos humanos e dos povos, dos territórios, do meio ambiente e dos bens comuns;

3) Na promoção da organização política e social, valorizando as iniciativas que já temos com riqueza como movimentos sociais – cooperativas, redes, sindicatos, organizações não-governamentais, institutos e associações de povos e comunidades – atuando contra a criminalização da política e promovendo a organização e o diálogo social;

4) Na construção de políticas estruturantes de incentivo e instrumentos de parcerias público-comunitárias para fortalecer a agroecologia, o manejo comunitário dos territórios, da água e da biodiversidade, as práticas e princípios da economia feminista, a diversidade nas candidaturas e mandatos, a organização comunal e a autodeterminação dos povos indígenas e tradicionais e, assim, a soberania dos povos e a contribuição da diversidade das culturas e modos de ser e existir para a redução das desigualdades e para um projeto popular de sociedade mais justa, sustentável e democrática.

Contribuir para o desmantelamento de todas as formas de opressão e do poder empresarial

Grandes empresas de tecnologia e comunicação têm investido pesado e apoiado processos eleitorais. Querem nos fazer crer que têm as soluções para o mundo, e que cada vez menos precisamos de Estados para efetivar conquistas sociais. A política tem sido assim subordinada ao mercado financeiro e ao lucro do capital transnacional, ao qual pode ser funcional tanto à democracia neoliberal como à ditadura militar, ao conservadorismo e ao fascismo.

As grandes corporações, durante a pandemia, concentraram ainda mais poder e riquezas. Empresas transnacionais, capitalismo, racismo e patriarcado se entrelaçam de maneiras inseparáveis para acumular mais riqueza em detrimento dos direitos das maiorias sociais, dos povos e da natureza, por isso denominamos esse poder empresarial como um mal do nosso tempo. Trabalhadores e trabalhadoras, a Natureza são bens a serem consumidos em prol de lucros extraordinários cada vez mais concentrados. Daí advém o colapso social e ecológico que vivemos.

Esse modelo se sustenta com a manutenção da divisão sexual do trabalho, as cadeias globais de valor e cuidado, o trabalho reprodutivo não pago e invisibilizado, a precariedade da vida das mulheres, a apropriação de seus corpos. As disparidades raciais sustentam o mercado informal de trabalho e se expressam no racismo institucional. Assim, é no capitalismo que as opressões de classe, raça e gênero se entrelaçam. Desnudá-las e romper com essas estruturas é tarefa de uma política de Estado em prol de uma nova sociedade. 

Nossas propostas concretas para um novo governo democrático e para as candidaturas legislativas, que têm como base o compromisso com o desmantelamento do poder corporativo e a eliminação de todas as formas de discriminação e opressão, têm como medidas concretas:

1) Avançar em marcos regulatórios vinculantes para as empresas, a exemplo do PL 572/2022. Mas também, no plano internacional, o apoio do Brasil à efetivação do Tratado Vinculante de Direitos Humanos e Empresas, atuando em proximidade com as posições da sociedade civil;

2) A não aceitação do Acordo União Europeia (UE) – MERCOSUL, o qual impõe o avanço da privatização de serviços públicos, a expansão da fronteira do agronegócio e da mineração, o aumento da importação de agrotóxicos e a abertura das compras públicas à concorrência com empresas transnacionais. Reabrir um debate público, assegurar a participação popular e a primazia dos direitos humanos na negociação de quaisquer acordos comerciais para que, ao invés de reproduzirem relações coloniais, atendam às necessidades da população, reduzam desigualdades e respeitem o meio ambiente. 

3) Apoio a iniciativas como a Aliança Feminismo Popular e outros exemplos de ações solidárias das mulheres na periferia que, ao atuarem na linha de frente no combate à fome, promovam autonomia econômica das mulheres, localizem circuitos comerciais de alimentos saudáveis sem veneno desde o campo até as hortas urbanas e cozinhas solidárias e promovam o diálogo e acolhimento feminista no combate à violência de gênero no campo e cidade. Mais do que a retomada de uma Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, com status de ministério dotado de orçamento e capacidade de transversalizar a realização dos direitos das mulheres em todas as pastas, demandamos ao próximo governo que assuma uma visão desmercantilizada de uma Política Nacional de Cuidados, de modo que o cuidado fora da família não seja acessível só para quem pode pagar e o Estado assuma responsabilidade ampliando infraestruturas públicas.

Combate às falsas soluções e articulação das iniciativas emancipatórias populares como alternativa às crises sistêmicas

Vivemos um período de crise. Nesses momentos, o capital se articula para dar respostas que não enfrentam as causas estruturais, apenas suavizam efeitos, como as campanhas do empresariado em prol de doações durante a pandemia. Destacamos sobretudo o avanço das propostas de financeirização da natureza, que movimentam novos mercados bilionários duvidosos, com lastro em medidas antidemocráticas –  como a recente regularização do mercado nacional  de carbono por decreto presidencial. São medidas governamentais no âmbito doméstico e internacional que permitem compensar o desmatamento e a poluição ambiental, justificando o seu avanço com a compra e venda do que chamamos “créditos de poluição”, inclusive com recursos públicos do BNDES para projetos de empresas privadas ligadas ao agronegócio, aumentando ainda mais o assédio e a perda de soberania popular sobre os territórios que as comunidades tradicionais ainda mantêm verde. Enquanto isso, empresas como a Uber precarizam a vida dos trabalhadores, mas anunciam sua “ajuda para combater o desmatamento” em uma área de conservação de mais de 39 hectares no município de Feijó, Acre.

Um programa que se assuma popular precisa combater a financeirização da natureza e desmascarar seus diversos mecanismos de mercado, que vem se metamorfoseando em nomes cada vez mais complexos de traduzir e mais usados pelo setor empresarial (como REDD, CCB, ESG, Soluções Baseadas na Natureza, NET Zero, Agricultura Climaticamente Inteligente…). Nesse sentido, construímos coletivamente as contribuições do Grupo Carta de Belém ao debate eleitoral e à reconstrução da política socioambiental brasileira. Por outro lado, fazer com  que os serviços públicos essenciais como energia elétrica, água, a educação, bem como recursos estratégicos como petróleo, gás, minerais e a biodiversidade sejam desprivatizados e retornem  ao controle público e popular.  Por isso, propomos:

1) A construção de uma Transição Energética Justa e Feminista – com controle social das políticas energéticas, universalização do acesso à energia, descentralização da geração, defesa dos serviços públicos e das parcerias público-comunitárias, redução das emissões de GEE (gases de efeito estufa) da extração de combustíveis fósseis com respeito aos direitos da classe trabalhadora (emprego digno, qualificação/recolocação, diálogo social, direitos sindicais…) e colocando as necessidades da sustentabilidade da vida no centro, e não o lucro e o assédio das empresas transnacionais do setor; 

2) O combate à fome: com promoção de ações de solidariedade e de unidade entre campo e cidade; propostas de recuperação econômica justa e feminista; retomada de programas de aquisição de alimentos (PAA) e do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar); aprovação da Política Nacional de Redução dos Agrotóxicos (PNRA);

3) Uma política de Moradia para todes e de atenção às necessidades da crescente População em Situação de Rua, numa perspectiva de Direito à Cidade com Justiça Ambiental, o que significa a garantia de políticas e equipamentos públicos que realizem o direito humano à água, à alimentação, à educação e a saúde, públicas e de qualidade nos centros e nas periferias urbanas, a segurança para a mobilidade e circulação das mulheres e população LGBTQIA+ nos espaço públicos, e o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, com saneamento, qualidade do ar, da água do solo para viver, respirar, plantar, se alimentar, trabalhar, desfrutar e fazer cultura;

4) A defesa e cuidado popular dos territórios, com políticas que protejam e promovam o manejo comunitário dos ecossistemas, as retomadas indígenas e a resistência comunitária contra mineração, barragens, estradas, agronegócio, especulação imobiliária; metas reais de reforma agrária e titulação de terras indígenas e quilombolas em todo o país, fim da tese do Marco Temporal e efetiva aplicação institucional da Convenção 169 e do direito à Consulta Livre Prévia Informada e de Boa Fé às populações atingidas por grandes empreendimentos.

“Se você chegar a ver essa terra da amizade, onde o homem ajuda ao homem. Pense em nós, só com vontade”, assim vamos superar os tempos de guerra. Na nossa terra, Brasil, são abundantes as experiências e construções de iniciativas que se contrapõem às falsas soluções e se colocam como reais alternativas à crise sistêmica. Durante a pandemia, a criatividade deu lugar à organização popular, e mesmo com o isolamento físico, fomos capazes de construir as Marmitas da Terra, as Cozinhas Solidárias do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), a Campanha pelo Despejo Zero. O povo organizado se manteve em suas casas, conseguiu acesso a alimentos, água, saúde, lutando contra um Estado genocida. 

É por isso que somos a força e a esperança. A alternativa para mudar o sistema somos nós, povo organizado. Um programa de governo popular precisa reconhecer a história de luta do nosso povo e trabalhar para construir nossa soberania como nação nas mais diversas frentes: alimentar, energética, política. Pensemos nas políticas de incentivo à agricultura familiar e camponesa, o Programa Fome Zero, como foram a chave para superar a fome em anos anteriores e como podemos avançar para que esses programas sejam acompanhados por movimentos populares num processo autônomo, educativo e pedagógico, que enraíze essas conquistas no imaginário popular e nas estruturas de Estado e melhore a vida cotidiana das pessoas. 

Como Amigos da Terra Brasil, em Aliança Feminismo Popular com o MTST e a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), estamos comprometidas/os na organização popular para construir um Brasil que seja bom para o povo brasileiro com base no princípio da justiça ambiental, que só se realiza com justiça social, econômica e de gênero e no combate emancipatório frente a todas as formas de opressão. Queremos superar esses tempos sombrios de nossa história e construir juntes um futuro de esperança em nossas terras.

Crédito da imagem de destaque: Isabelle Rieger/ ATBr

Artigo publicado no jornal Brasil de Fato neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/06/08/um-programa-de-justica-ambiental-que-supere-os-tempos-de-guerra

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