Estudantes cotistas relatam apreensão referente a matrícula na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Fabiana Reinholz
Brasil de Fato | Porto Alegre |
“Eu sou uma jovem mulher negra, quilombola da zona rural de Triunfo (comunidade quilombola Morada da Paz). Eu tenho um sonho de cursar a faculdade, fazer minha graduação. me formar. Para realizar esse objetivo, no ano de 2022, estudei o ano inteiro em cursinho popular, o Emancipa. Vim para a Capital consegui trabalho porque tinha que me sustentar, morava de aluguel. Eu prestei vestibular para a Ufrgs e passei em Nutrição. A partir do momento que eu descobri que eu passei fiquei muito feliz. Mas eu mal tive tempo de comemorar as minhas conquistas porque eu me escrevi como cota L2 (candidatos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas, com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo, autodeclarados negros pretos, negros pardos ou indígenas) e ela foi indeferida.”
O relato é da aluna cotista de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Shanti Rocha Teixeira, uma entre os 160 alunos que tiveram problemas com sua matrícula na instituição.
Em junho deste ano, a Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS) se reuniu com um grupo de estudantes ingressantes por cotas na Ufrgs que tiveram suas matrículas desligadas no fim de maio. Os estudantes estavam com a matrícula provisória, quando permanecem com a documentação em análise. À comissão, os representantes dos 160 alunos afetados relataram prazos curtos, dificuldade na entrega de documentações exigidas, falta de instruções e impossibilidade de recorrer das decisões da universidade.
Essa não é a primeira vez que há relatos sobre a questão das cotas na universidade. Em 2021 aproximadamente 200 estudantes que haviam ingressado na instituição através da política de cotas foram desligados da instituição.
Shanti conta que ao descobrir que havia passado em uma das federais mais aclamadas do país, veio a “dor de cabeça” com a documentação a ser enviada. “Descubro que tenho pouco tempo para enviar a documentação de todas as contas bancárias dos meus familiares, e todas as documentações. Sendo assim, na segunda eu descubro que passei, na terça e na quarta eu tomo ciência de toda a quantidade de documentação que eu preciso enviar. E eu não estava sozinha nessa situação.”
Rede de Apoio
A estudante conta que o cursinho popular que a preparou o ano inteiro auxiliou na documentação, assim como a todos os estudantes que passaram. Também contou com o auxílio do seu núcleo familiar e da comunidade. “Não adianta só passar. Se tu não consegue efetivar a documentação a ser enviada, tu perde a tua vaga.”
Após o envio da documentação, a espera foi longa. “Saem as primeiras bancas, saem as segundas bancas, saem as terceiras e tu nunca acha o teu nome e dizem datas que é para as informações saírem e as informações se postergam. Se tu perde a banca de verificação, por mais que ela seja um procedimento simples, implicará a perda da tua vaga, sem talvez processo de recurso.”
Nessa espera, a estudante passou em quase todos os quesitos, tendo sido reprovada na questão socioeconômica. “Quando fui ver o que faltava, uma era contas da minha mãe que ela havia bloqueado em 2009. Outra, como eu faço parte de uma comunidade de quilombola, existe o CNPJ da instituição, e isso está vinculado ao nome do meu pai, que é o representante fiscal no estatuto da comunidade. Só que essas contas acabaram ficando vinculadas no CPF dele, e foi uma das coisas que a Universidade implicou”.
Ela e a família foram atrás da documentação e com o auxílio do cursinho entraram com recurso junto a Ufrgs. “Eu me encontro com uma das professoras do cursinho e ela me orienta como eu deveria montar as coisas. Muito burocrático, difícil. Eu tive crises de ansiedade, eu pensei em desistir. E mesmo assim eu tive apoio. E quem não tem? Quem não tem uma rede? Um cursinho que possa contar? Núcleo familiar que possa pedir auxílio? Como ficam essas pessoas, a cabeça dessas pessoas, os estudos dessas pessoas”, questiona.
“Tem portas que só se abrem pelo lado de dentro”
Shanti relata que o edital é extenso, gerando um processo muito burocrático e etilista. “O que adianta eu incluir tais grupos periféricos, se na hora de colocar tais documentações eu os excluo, porque a quantidade de detalhes mínimos não é para uma pessoa leiga entender”, desabafa.
Ainda não há retorno da Ufrgs sobre o processo. A perspectiva da estudante é de entrar como matricula provisória, apesar de que no início do semestre de 2023, houveram 160 desligamentos de cotistas que tinham matrícula provisória. E segundo Shanti, sem nenhum esclarecimento.
Os alunos desligados estiveram presentes em alguns movimentos na frente da Reitoria que aconteceram neste ano. “O que adianta ter uma política de cotas se ela não inclui, se não tem um processo de acolhimento a esses estudantes, um processo mais humano. Se essa burocracia é tanta que faz com que pessoas desistam de conseguir. Só nesse processo de documentação muitos caem. É um grito de indignação que parece que não chegou aos ouvidos da Ufrgs.”
Shanti tem sonho de ser professora universitária e conseguir movimentar as coisas de dentro para fora. “Tem portas que só se abrem pelo lado de dentro. Eu nem comecei a cursar um ensino superior, mas eu já me deparo com as travas, com as barreiras que querem me impedir de continuar. E o que eles mais querem é que eu desista, sabe, mas eu não vou desistir.”
No meio desse processo, Shanti se inscreveu no SISU para a Universidade Federal de Pelotas onde também passou. “Agora eu me encontro atrás de uma bolsa, para conseguir me manter.”
“Importante também pensar na nossa permanência nesses espaços”
Caso similar ao de Shanti, o estudante Akin Sueht Andrade Kremer, que ingressou no curso de Ciências Sociais em 2019, também sofreu com a ansiedade por conta da documentação. Conforme expôs o estudante, por ser uma uma vaga socioeconômica, ela demanda muitas documentações, muitas das quais ele nunca havia tido contato antes.
“Isso me despertou muita ansiedade, muito desespero por ver que era um período tão curto de tempo. Eu entreguei todas as documentações, já ciente de que eu ia ter que entrar com recurso, porque naquele momento a minha mãe estava fazendo uma transição de um trabalho para o outro e eu não tinha acesso à carteira de trabalho dela.”
O estudante entrou com o recurso em 2019 e só obteve resposta em 2021. No final daquele ano, segundo explica, a instituição pediu outras documentações que não tinham sido solicitadas na primeira vez. “Surgiu uma lista de documentos e eu enviei todos. Na sequência, vieram outros. E aí nessa época a gente ainda estava vivendo várias questões da covid. Minha família inteira pegou o vírus, eu também. Estava fazendo esses cuidados com a minha mãe, com a minha irmã, e eu acabei perdendo o prazo”, relatou.
Ele enviou por e-mail laudos médicos, pedindo que reabrissem o prazo, o que foi acatado, assim como uma entrevista. E de novo mais uma série de documentos, entre eles uma carta a punho escrita pela mãe, afirmando que a família nunca recebeu pensão do pai.
“Acabou que abriram o prazo novamente e me pediram outros documentos, como sobre o apartamento onde a minha mãe mora que foi cedido pela minha avó. Enviei novamente a documentação e depois abriram de novo para que eu enviasse a identidade da minha avó e aí nesse momento eu perdi o prazo. E fiquei indeferido até 2023. Meu processo de análise de documentação levou quatro anos para ser concluído e para ser indefinido. Agora eu estou com uma medida judicial para que o juiz reconheça que eu sou sujeito de direito dessa vaga e que a Ufrgs analise o restante das minhas documentações, porque nessa análise vai comprovar que eu, de fato, sou sujeito de direito.”
Apesar desse transtorno, Akin afirma que vê a política de cotas como um paliativo pra tentar reduzir as desigualdades que estão postas no nosso país. “Pensando que elas são estruturais e estruturantes também. Então quando se traz esse debate sobre cotas nos espaços de ensino, tomada de decisão, ou mercado de trabalho, se faz necessário debater o por que dessa necessidade, o que corpos racializados, periféricos, dissidentes de gênero, com deficiência, tem pra agregar. E os obstáculos que dificultam sua presença nos espaços. Acho importante também pensar na nossa permanência nesses espaços, pois esse debate não pode andar descolado do ingresso”, conclui.
Na espera de resposta
“Eu estava com a matrícula provisória e tive a minha documentação indeferida com alegação de que não tinha enviado uma declaração de inatividade bancária do meu irmão que na verdade eu enviei. Fizeram alguns cálculos contabilizando as horas extras e o auxílio estudantil da minha mãe. Eles chegaram a me pedir para explicar uma transferência de 5 reais na conta bancária do meu pai”, relata o bacharel em Teatro, Northon Lara.
Atualmente, Northon está indeferido, mas continua indo para aula enquanto está providenciando ação judicial. “Ainda não fui totalmente desligado do sistema, estou aguardando. Entrei com minha liminar e o mandado de segurança saiu semana retrasada, agora estou esperando a resposta da Ufrgs.”
“O que adianta eu incluir tais grupos periféricos, se na hora de colocar tais documentações eu os excluo” / Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
O que diz a Ufrgs
Em relação à questão sobre cancelamento de matrículas provisórias, a Ufrgs esclarece que a Pró-Reitoria de Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em atenção ao cancelamento de matrículas provisórias, apresenta os seguintes esclarecimentos, com base no Edital do Concurso Vestibular 2022, disponível em: https://www.ufrgs.br/coperse/concurso-vestibular-2022/.
De acordo com nota enviada pela entidade, em maio de 2023, a universidade encaminhou o cancelamento de matrícula provisória de 159 candidatos que não cumpriram os requisitos previstos no edital dos respectivos processos seletivos e/ou não comprovaram a sua condição exigida na modalidade a qual estavam inscritos, não comprovando assim fazer jus à vaga por eles pleiteada.
“Reiteramos, portanto, que o conhecimento das normas do processo seletivo aos quais os candidatos se inscreveram é fundamental para o cumprimento de todas as etapas do processo de forma adequada. E que, uma vez estabelecidas as regras para um determinado processo seletivo e esclarecidas estas em um Edital, estas devem ser estritamente seguidas por todos e para todos, a fim de preservar a isonomia do processo seletivo”, destaca.
Referente ao aproveitamento das vagas abertas em função do cancelamento da matrícula provisória, a Universidade informa que elas poderão ser ocupadas em outros processos seletivos de ingresso para ocupação de vagas ociosas nos cursos de graduação da Ufrgs, nos termos da Resolução 13/2016 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão – CEPE, desta Universidade.
Comissão de Direitos Humanos do Senado aprova PL que renova política de Cotas
A Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal aprovou nesta quarta-feira (30), o Projeto de Lei 5384/2020, que propõe a permanência e o aperfeiçoamento da Lei de Cotas no ensino federal. O Projeto foi relatado pelo presidente da comissão, senador Paulo Paim (PT-RS).
As principais alterações realizadas na Câmara pela relatora, deputada federal Dandara Tonantzin (PT-MG), foram mantidas pelo relator. Destacam-se a avaliação do programa a cada 10 anos, a redução da renda familiar per capita para 1 salário mínimo e a inclusão de quilombolas entre os beneficiários.
A lei original já reserva metade das vagas das universidades e instituições federais para alunos de escolas públicas. A partir dessa reserva inicial, subcotas são criadas para estudantes de baixa renda, pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência e, agora, quilombolas.
A autoria do Projeto de Lei é das deputadas federais Maria do Rosário (PT-RS) e Benedita da Silva (PT-RJ), e também do deputado Damião Feliciano (UNIÃO-PB). A parlamentar gaúcha esteve presente durante a aprovação e lembrou a importância da legislação como uma reparação histórica e, também, das perspectivas de futuro para o Brasil. “Com esta Lei, nós estamos tentando oferecer caminhos de esperança, para que todo mundo tenha oportunidades. Nós vamos fazer esse Brasil ser melhor pra todo mundo”, afirmou.
A Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz) obteve mais uma vitória em sua caminhada na busca pelo direito de Ser e Existir. Nessa 4ª feira (12/07), a 4ª Turma do TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), sediado em Porto Alegre (RS), negou provimento ao recurso da empresa VALEC interposto contra a liminar conquistada pela comunidade em janeiro deste ano, requerida no âmbito da Ação Civil Pública ajuizada em dezembro de 2022. A liminar suspendeu a obra de ampliação da BR 386 no trecho específico em que a Comunidade Kilombola Morada da Paz Território de Mãe Preta – CoMPaz está localizada, no município de Triunfo, no Rio Grande do Sul.
“Hoje, pra nós, é uma vitória muito importante porque a gente mantém a nossa Ação Civil Pública pelo direito de sermos consultados. Quando há um empreendimento a ser feito próximo a comunidades indígenas e quilombolas, esses povos, que são zeladores da vida, precisam ser consultados. E isso não foi feito conosco. Nesse processo todo da ampliação – sendo que a BR 386 já é uma estrada ampliada – nós fomos esquecidos, nem fomos citados no processo”, afirmou Mako’Yilè Ìyabasse CoMPaz na manhã de ontem, após o julgamento no TRF4.
O julgamento do recurso interposto pela empresa VALEC começou em 21 de Junho, quando a CoMPaz (representada por seus mais velhos Baogan Bábà Kínní, Egbomi Olupejé e sua Ìyalasé Yashodhan Abya Yala) compareceu ao Tribunal junto da advogada Clarissa Porto Alegre Schmidt, que compõe sua frente jurídica de defesa, e das professoras Pâmela Marconatto Marques e Marília Floor Kosby – As Amazonas de Luz de Mãe Preta, integrantes desta luta. Na ocasião, a advogada fez a sustentação oral em defesa da Comunidade, seguida pelo representante do MPF (Ministério Público Federal), que endossou os pontos levantados e ainda acrescentou o fato de a Comunidade ser majoritariamente feminina como elemento relevante. Naquele momento, que causou grande comoção na sala do Tribunal, a relatora do processo, desembargadora Vivian Pantaleão Caminha, optou por suspender o julgamento. Clarissa comenta que a magistrada decidiu por suspender a sessão naquele dia e reformular o seu voto – que, possivelmente, seria contrário à Comunidade – após essas manifestações e em consequência delas. Nesse meio tempo, a CoMPaz apresentou memorial aos desembargadores que integram a 4ª Turma do TRF, em que salientou pontos inafastáveis que sustentam o direito da Comunidade, e com a impugnação dos argumentos da empresa recorrente. O julgamento foi retomado nessa 4ª feira (12/07), com a declinação do voto no sentido de negar provimento ao recurso da VALEC e manter a decisão liminar que foi concedida à comunidade.
A advogada Clarissa comemorou a decisão do Tribunal Regional Federal e salientou que este pronunciamento abre portas no meio jurídico para facilitar às comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas a exigência do exercício de seus direitos, e da regular aplicação da Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé. “Já no primeiro momento em que a liminar foi deferida no 1°grau pela juíza Clarides Rahmeier foi considerada uma decisão histórica, até paradigmática, porque vai trazer para o mundo jurídico uma espécie de ferramenta pedagógica e instrutiva, que irá demonstrar como essas comunidades tradicionais indígenas, quilombolas e ribeirinhas têm que ser respeitadas e como devem ser consultadas diante de qualquer projeto que possa impactá-las. Como essa consulta, prevista na Convenção 169 da OIT será implementada e a forma com que irá ocorrer é importante, não apenas para a Morada da Paz, mas para as comunidades em geral, pois será uma referência e facilitará o processo de todos os agentes envolvidos na Consulta Prévia”, disse.
Ela também avalia que a decisão judicial fortalece ainda mais a Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz, já que no recurso a empresa VALEC argumentou que a aplicação do direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé, previsto na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), não se aplicava à CoMPaz.
“A importância para a comunidade é muito grande, tanto porque ela já sofre os impactos com essa obra dentro do território, como também porque enfrenta uma série de outras lutas. Essa decisão, agora confirmada pelo TRF4, é medida que dá sim força à Comunidade e é dotada de grande importância jurídica”, avalia a advogada.
A empresa VALEC ainda tem a possibilidade de interpor recursos cuja análise seria feita pelos Tribunais Superiores, em Brasília, mas a advogada Clarissa acredita que a liminar deva ser mantida.
“Quando começamos, sabíamos que seria um legado que a gente deixaria para todos os territórios indígenas e quilombolas, uma luta que não era só nossa”, reflete Mako’Yilè Ìyabasse CoMPaz.
Abaixo, algumas fotos que representam a luta da Comunidade Kilombola Morada da Paz Território de Mãe Preta – CoMPaz:
Vitória no julgamento no TRF4 nessa 4ª feira (12/07)
Professoras Pâmela Marconatto Marques e Aline Calvo Hernandez, e estudantes do PGDR (Pós-graduação de Desenvolvimento Rural) da UFRGS
“É que nós sabemos: tem portas que só se abrem pelo lado de dentro. Então fomos cavar as brechas, cavar os caminhos arduamente percorridos por pessoas como nós. E nós somos água, senhoras e senhores. E a água sempre encontra um caminho”, referiu-se Yashodhan Abya Yala, Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz. . Sua menção foi realizada ao contar a história viva da luta desta comunidade para ser ouvida e consultada durante o processo de ampliação de uma rodovia. Obra que ameaça o território, os corpos de matas, rios, animais e de gentes, assim como impõe uma lógica perversa que busca minar os modos de vida dessa diversidade que pulsa, tomando o seu direito de ser e existir. Frente a um processo colonizatório marcado por violência, existe outra possibilidade de estar no mundo, com a potência de nascentes que vão de encontro ao mar. Contada dos tempos de lá atrás que são também esse instante, ela narra a realidade da resistência dessa comunidade negra em permanecer em seu território, com seus costumes e práticas. De seguir existindo na sua terra fincada no município de Triunfo, às margens da BR 386. Uma importante estrada para escoamento da soja no Rio Grande do Sul que está sendo ampliada, rodeada ainda pela monocultura do eucalipto – duas atividades do agronegócio gaúcho.
Em 9 de março, mês conhecido por suas águas, a Comunidade Kilombola Morada da Paz (ComPaz) abriu caminhos na primeira sessão do ano do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH/RS), na Assembleia Legislativa (AL/RS). Som do berrante. A sua chegada em cantos para Ogum, anunciada por vozes que faziam coro ao batucar de tambores, já trazia como horizonte a força de uma história que tem uma demanda e uma proposição. A demanda é pelo comprometimento do Conselho de Direitos Humanos e Cidadania, para que se coloque como órgão atuante em defesa de que as comunidades sejam ouvidas, especialmente em casos de violações de direitos. Como proposição, para além de alianças possíveis e de compromissos firmados para garantir a justiça dos povos, a Comunidade apresentou o seu Protocolo de Consulta Livre Prévia Informada e de Boa Fé, contido no Dossiê Quilombo: Proteger, Defender e Vigiar, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A Comunidade Morada da Paz (CoMPaz) enfrenta, há pouco mais de dois anos, as ameaças de dois grandes empreendimentos na região: à frente do território, a obra de ampliação da BR 386 e, na parte dos fundos, a proposição de instalação de um aterro industrial às margens do rio Caí. Opressão, exploração e uma série de conflitos são desencadeados pelo avanço desses empreendimentos, que nem sequer realizaram consulta às comunidades afetadas por sua instalação, pautando uma lógica violenta de progresso que pela primazia do lucro se propõe a uma política de morte. Mas a resistência e a ancestralidade são raízes fortes, que fazem o caminho entre solos pavimentados e indicam outras trilhas, com outros valores éticos. Foi na boa fé da articulação coletiva, organização e luta, que recentemente a Comunidade conquistou mais uma vitória por seu direito de Ser e Existir. No início de janeiro, a Justiça Federal no RS concedeu tutela de urgência suspendendo a obra de ampliação da rodovia no trecho que compreende os Km 405 a 415, onde fica a Comunidade Kilombola Morada da Paz. A obra só poderá ser retomada após a realização de novo processo de licenciamento ambiental pelos órgãos competentes, em que a comunidade seja consultada previamente conforme dispõe a Convenção 169 da OIT. Os réus, entre eles o governo federal (Ibama e Incra) e as empresas concessionárias (CCR Via Sul e Empresa de Planejamento e Logística / VALEC), ainda podem recorrer da decisão.
A decisão judicial, um importante precedente para as lutas dos povos kilombolas em todo país, se deu em resposta à Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pela Comunidade Morada da Paz em dezembro de 2022, e que teve como um dos seus embasamentos a Recomendação nr. 43 aprovada por ação no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em Novembro de 2021. Na ação, a comunidade kilombola requereu liminar que suspendesse a obra de ampliação da BR 386 no determinado trecho. Também pediu a anulação do licenciamento, já que não foi chamada a participar dos termos de referência do estudo e nem foi citada no relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) realizado pela empresa consultora contratada pela concessionária e apresentado ao IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), apesar de seu território localizar-se a menos de 500 metros da margem da rodovia.
Comunidade Kilombola Morada da Paz, na primeira sessão do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul | Foto: Carolina Colorio – ATBr
Além de abordar a decisão mencionada, a participação da Comunidade na sessão de abertura do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) também representou um passo importantíssimo nas lutas por território e possibilidade de ser e de existir no mundo. Yashodhan Abya Yala proferiu em sua fala o que a comunidade exigia no momento: “Chegamos ao Conselho Estadual de Direitos Humanos com uma demanda: nós queremos que esse conselho tenha grupo de trabalho, um grupo de trabalho que seja mais que um observatório. Porque um observador, pode ser um traidor. Um grupo de trabalho nessa comissão que seja escutatório, um grupo de trabalho nessa comissão que demande, que dê conforto, que dê encorajamento, que vigie, que proteja, que seja um espaço de resiliência, resistência e potência de força. Um grupo de trabalho que seja feito com senhores e senhoras desta casa, mas também com senhores e senhoras das comunidades quilombolas do estado do Rio Grande do Sul, com comunidades indígenas do estado do Rio Grande do Sul, com o povo das ocupações do Rio Grande do Sul, com os refugiados e refugiadas do estado do Rio Grande do Sul.”
É preciso ir além do reconhecimento da existência das comunidades e de dar o direito em decreto, é preciso assegurar na prática esse direito e dar as condições para a sua defesa. “Nós estamos aqui hoje para demandar desse Conselho Estadual de Direitos Humanos que ele seja o que ela se propõe na sua missão: resistência, reexistência. Um espaço em que a gente possa ser mais do que corpos contados ao chão. O Conselho não pode servir para contar as nossas mortes, deve servir para impedir a morte moral, a morte espiritual, a morte cultural e a morte histórica e política de povos e pessoas comuns”, expôs Yashodhan.
A demanda levada ao CEDH-RS, reunido na Assembleia Legislativa, é para que o Estado Brasileiro e o Estado do Rio Grande do Sul de fato deem recursos e condições para a existência desse que é um dos bastiões de resistência da sociedade civil e também controle social das políticas no Brasil e no Estado do Rio Grande do Sul. “A gente traz a demanda ao Conselho Estadual de Direitos Humanos, que faça essa recomendação a todas as entidades do estado, do reconhecimento do Protocolo de Consulta Livre Prévia e Informada elaborada pela comunidade e faça conhecer também a sentença da ação civil pública. E que ela seja vista pela Fepam, pelo Ibama, pelo Ministério Público e pelos demais órgãos competentes como uma oportunidade dada para que possam ser estabelecidos protocolos que façam cumprir o que já é de direito na Constituição, dos povos indígenas, dos povos quilombolas”, mencionou Lúcia Ortiz, presidenta da organização social das pessoas Amigas da Terra, reconhecida nesse tempo e era como Luz das Águas, filha de Mãe Preta.
Momento de fala de Yashodhan Abya Yala, da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta CoMPaz. Yalasé da Nação Muzunguê, Sangoma da Casa da Sétima Ordem, zeladora e protetora da comunidade Kilombola Morada da Paz | Foto: Carolina Colorio – ATBr
“Que esse protocolo seja também utilizado, não apenas em processo de licenciamento de grandes empreendimentos, mas de consulta como deve ser, na garantia dos direitos democráticos, consulta aos povos na elaboração das políticas públicas, sejam elas de saúde, sejam elas de educação, porque elas só tem a melhorar com a sabedoria do povo, com a participação popular e com essa articulação que nos fortalece”, salientou Luz das Águas.
Desta vitória específica, sopram ventos de mobilização e possibilidade para outros cantos do país. A vitória da comunidade levou a um resultado que é um precedente da justiça, que implica órgãos estado, especialmente oInstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a construir um novo protocolo, um novo procedimento. Algo há muito tempo demandado do poder público. Ao final do encontro, o Conselho se comprometeu estabelecendo um Grupo de Trabalho para elaborar coletivamente sua recomendação e para os órgãos do estado do Rio Grande do Sul, como sugerido pela Comunidade. Passo que representa mais do que uma recomendação sobre um caso específico, mas que tem caráter de uma recomendação para as comunidades e povos tradicionais do estado, em benefício da diversidade de povos, seres, biomas e territórios.
Na sessão estiveram também o povo de Alvorada, da Restinga, das comunidades quilombolas de São Lourenço do Sul e de Santa Maria, ocupações urbanas de Porto Alegre como a Ocupação Jiboia, membros do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, do Conselho Indigenistas Missionário (CIMI Sul), presenças de quilombos, terreiras e das lutas antirracistas, por moradia e direito ao território, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), integrante do Igualdade Racial da OAB, o gabinete da deputada federal do Reginete Bispo (PT), Mestre Cica de Oyó e o novo Ouvidor eleito para a Defensoria Pública Estadual, Rodrigo de Medeiros, entre outros.
A atividade, além de demandar os próximos passos sólidos para uma luta que se amplia, com valores acolhidos em cuidado, coletividade e na vida, foi um momento de troca sobre realidades perpassadas por amor e guerra. Foi, também, um debate sobre o tempo e seu entendimento. Desde a entrada da Comunidade na Assembleia até sua saída, a linearidade do tempo de kronos, marcado pelo som do passar de ponteiros dos relógios apressados, se dissolveu. O tempo é memória, resgatou em uma de suas falas Yashodhan. E ali o tempo se fez memória. Vivo, coletivo, entrelaçado entre um ontem, agora e amanhã que rompem a linearidade e tem firmamento em uma cosmovisão e prática de mundo que nos evidenciam respostas que sempre estiveram aqui, afinal, somos natureza. Tempo de fluidez firme que percorre o tambor, o berrante e o peito de quem canta e dança enquanto faz luta, enquanto se regam e brotam sementes e sombras de figueiras, essas guardiãs antigas e de tanta sabedoria.
É preciso assegurar a consulta livre, prévia, informada e de boa fé às comunidades afetadas por empreendimentos que existem numa lógica colonizatoria de lucro acima da vida, de superexploração dos corpos e territórios para a extração de riquezas que se traduz no monopólio de poder de poucos, às custas de muitos num plano que leva ao colapso socioambiental. É preciso combater a genealogia do desastre que alarga as veias da América Latina. Um caminho possível no fazer em comunidade, na construção coletiva de outros valores, na compreensão que um rio que corre é um ser vivo. Nas vivências que têm como base que, como referiu-se Yashodhan, é preciso que o tempo do relógio se curve para o tempo da vida. Foi preciso parar a légua. E é crucial impedir que outras léguas avancem sob o tempo da vida.
A história de luta pelo direito de ser e existir da Comunidade Kilombola Morada da Paz
Comunidade Kilombola Morada da Paz demanda seus direitos e de seu território | Foto: Carolina Colorio – ATBr
Justamente trazendo o fio de kitembo, a divindade do tempo na cosmopercepção da Comunidade Kilombola Morada da Paz, que Baogan, Bàbá Kínní da Nação Muzunguê, guardião das choupanas e sapopembas de Mãe Preta e de todos povos de Mãe Preta espraiados nos sete cantos do Ayiê, deu abertura às exposições faladas do momento. Kitembo é senhor dos destinos, não das vontades, manifestou. No instante, compartilhou a partir de memórias a história de luta da Comunidade por seu direito de ser e existir.
“Inicialmente, em dezembro de 2020, começaram a aparecer algumas pistas de que haviam ameaças à nossa comunidade, ao nosso território”, expôs. Baogan contou como ocorreu a construção do processo de resistência, quando a comunidade se negou a fazer o Estudo de Componente Kilombola proposto por uma empresa de consultoria, e que orientados por suas divindades e com ajuda de parceiros tiveram conhecimento de seu direito de realizar o Protocolo de Consulta Prévia, conforme previsto na Convenção 169 da OIT. E foi o que fizeram, levando a palavra coletiva e a resistência adiante, assim como a possibilidade de manter acesa a vida em toda a sua sociobiodiversidade.
“Um dos filhos do território, Johny (Johny Fernandes Giffoni – Defensor Público do Estado do Pará), sabedor dessa situação após o nosso contato, nos alertou para a diferença entre Estudo de Componente Kilombola e Protocolo de Consulta Prévia, pois a nossa uma empresa de consultoria chegou propondo que fizéssemos um Estudo de Componente Kilombola, mas isso é uma etapa a posteriori. André Filho de Mãe Preta traz o que está acontecendo e apresenta elementos do Projeto de ampliação da BR 386, não se trata de duplicação, já é uma estrada-duplicada. O direito à consulta prévia, livre e informada de boa fé é algo que nos é assegurado, enquanto povo tradicional. E algo que estava sendo de nós retirado. Então propor a nós um Estudo de Componente Kilombola era uma tentativa de cooptar também o nosso direito de sermos consultados prévia, livre, informada e de boa fé”, explicou Baogan, expondo a violação de direito já no ato de vetar o acesso à informação.
De acordo com Baogan, esse foi o primeiro ato. “Perceber, entender e compreender que estávamos sendo vítimas de um racismo estrutural e de um projeto de destruição. Anciãs e anciãos e os jovens odomodês do nosso território oram de juncó ao pé do jacutá, nossos orixás respondem: dezembro de 2020. Terceiro Momento, nos ensina a nossa Mãe Preta, a nossa yagbá ancestral: mais do que ter fé, é preciso SER FÉ. Sapopembas, raízes de força, de luz, chamado do berrante, tambor, concha, organização como uma árvore. A nossa luta não é como um pé de funcho, mas como uma figueira negra”, ressaltou, abordando então os passos que seguiram dessa consciência e de uma prática engajada em ser fé.
Em março de 2022, foi publicado o Dossiê Kilombo Proteger Defendere Vigiar, com apresentação no México e no Peru. O dossiê também percorreu a Retomada Gah-Ré (RS), o Quilombo de Dandá (BA), a Jornada de Agroecologia (BA), a Ilha de Colares (PA), o Quilombo Vidal Martins (SC) e com uma série de intervenções em Porto Alegre (RS), que ocorreram em jornadas de Janeiro de 2021 à Março de 2023. Atualmente, o reconhecimento público da Legitimidade do Dossiê Kilombo Proteger Defender e Vigiar é onde a luta se trava,com incidências políticas, sociais, culturais em âmbito local, estadual, federal e latino-americano. Como trouxe Baogan à palavra, citando Mãe Preta: “Em terra firme se fazem grandes construções”.
Nos próximos passos, a Comunidade e os aprendizados coletivos serão partilhados, ressignificados e articulados na Corte Inter-Americana de Direitos Humanos, com o horizonte de alcançar outros Territórios Kilombolas, Indígenas e Ribeirinhos, assim como Populações Atingidas por empreendimentos que violam direitos humanos e aos territórios.
‘É preciso parar a velocidade da légua’
Como relatado pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), ao menos 650 quilombos sofrem com grandes empreendimentos no Brasil. Quanto à Comunidade Ancestral Morada da Paz – Território de Mãe Preta, Lúcia Ortiz conta que foi necessário barrar o avanço da ampliação da rodovia.
“A Mãe Preta dizia: ‘Tem que parar a légua, tem que parar a velocidade da légua’. E nós tivemos a missão de fazer uma marcha na BR 368 ao final de 2019. E eu me perguntava: mas como que nós vamos parar essa légua? Somos trinta, quarenta pessoas. Como que nós vamos fazer essa caminhada? E fomos nesse grupo com muita coragem, com muita valentia, e nós tivemos certeza que nós éramos muito mais que trezentos nessa caminhada. E isso foi antes de chegar a empresa de consultoria no território, pedindo licença para fazer um Estudo de Componente Kilombola. E foi só depois que nós ficamos sabendo que a Licença Prévia para a ampliação dessa BR já tinha sido concedida pelo Ibama. E esse mesmo ano começou a pandemia (Covid-19) em março, e também foi esse ano de isolamento e da necessidade da gente retomar o nosso fio de contas e essa força de protegimento, que nós fomos chamados também a compor o colegiado de organizações do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e suas comissões. Então foi em março, sabendo disso tudo, que nós recebemos a Convocatória para a Primeira Reunião da Comissão naquele ano, da comissão chamada assim: “Comissão Permanente dos Direitos dos Povos Indígenas, dos Quilombolas, dos Povos e Comunidades Tradicionais, de Populações Afetadas por Grandes Empreendimentos e dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Envolvidos em Conflitos Fundiários”. E isso chegou depois da parada da légua, depois das nossas ações, depois de nós tomarmos a consciência da ameaça acontecendo no território, então nós construímos esse caminho com a sabedoria, com a participação dos mais velhos, dos mais novos, de todos os seres dessa comunidade, traduzindo como que a comunidade percebia e sentia no sonho, na vida, no cotidiano, essas ameaças”, explicou.
Comunidade Kilombola Morada da Paz demanda seus direitos e de seu território | Foto: Carolina Colorio – ATBr
Lúcia também mencionou a relevância da construção coletiva e dos vínculos de afeto entre lutas que convergem, para garantir que a ComumUnidade, assim como tantas outras, possam seguir existindo. Em agradecimento, citou Leandro Scalabrin, do Movimento de Atingidas e Atingidos por Barragens (MAB), que orientou a Comunidade nos ritos do CNDH. Luiz Ojoyandi, filho de Mãe Preta, do OLMA, que assumiu junto a construção dessa relatoria a partir da denúncia encaminhada ao Conselho Nacional de Direitos Humanos. A Sandra Andrade, da Conaq, que foi quem, como coordenadora da comissão nomeada carinhosamente de Terra e Água, elevou até o pleno do Conselho e acolheu e encaminhou a denúncia-relatório para que fosse elaborada uma recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos ao Estado Brasileiro para que reconhecesse e respeitasse o direito que é dos povos na Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé. Ao Conselheiro Marcelo Chalréo da Ordem de Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, que participou da elaboração da redação da recomendação aprovada por aclamação no Pleno do CNDH. “Uma recomendação que subsidiou então as nossas amazonas de luz também, na representação junto ao Ministério Público, já que continha nessa recomendação que, dentro do contexto de desmonte das políticas públicas, das instituições do estado, e de instituições como a próprio Incra e a Fundação Palmares, que estavam com desvio da função, sendo extintas naquele momento, a responsabilidade era do Ministério Público, de alertar todas as comunidades, em processos de licenciamento de grandes empreendimentos acontecendo na região. Levamos então a representação das Amazonas de Luz ao Ministério Público”, destacou Lúcia. Agradeceu, ainda, a Cláudia Ávila, conselheira e advogada das ATBr e a Fernando Campos, que também estiveram presentes no momento de representação no Ministério Público. E aos presidentes do Conselho Nacional, ao Darci Frigo nosso companheiro da Terra de Direitos e também o Yuri Costa, da Defensoria Pública da União (DPU), que Lúcia destacou terem sido guerreiros muito valentes e importantes na sustentação da existência do Conselho Nacional nos quatro anos do (des)governo Bolsonaro.
Na sessão, Pâmela Marconatto Marques , Coordenadora do Grupo de Trabalho Kombit! Mutirão por Moradia, Território e Dignidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), compartilhou sobre como foi a Ação Civil Pública ingressada pela CoMPaz. “É um dos diversos instrumentos utilizados na defesa do território. A Comunidade contou com o empenho de muitas pessoas, organizações e com a articulação com outros povos quilombolas, que enfrentam os mesmos problemas em todo o país, para construir sua própria cartografia comunitária e elaborar o seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé, chamado de Dossiê Kilombo, pontuou. E como Baogan comunicou em sua fala, é preciso recontar a história para não esquecer o que ela é hoje e não o que ela foi: “O Dossiê Kilombo expressa a necessidade de que haja uma pedagogia que oriente o ritual de Consulta Prévia (como fazer, por onde fazer, quem deve fazer)”.
Apesar da dificuldade e descrença de atores estatais e operadores jurídicos, a comunidade se lançou em movimento. “Como Baba menciona, a BR 386 já é duplicada, então começamos a pensar que o que estava em jogo era uma triplicação, quadruplicação. E tudo que tava em jogo com relação a isso. Porque uma BR precisa ser tão expandida assim? E quem conhece a morada vê que ela é quase um enclave ecossustentável diante de plantação de soja, diante de monoculturas diversas ali naquela região. Então começa a entender que essa ampliação servia justamente a esses cultivos. Ao monocultivo. E a gente sabe tudo que vem junto com ele: Trabalho indecente, gente em más condições, bicho de qualquer jeito. E a gente vai aprendendo que a Comunidade Morada da Paz acabava sendo um lugar que dava conta de tudo isso. Que dava conta, inclusive, de melhorar um território, de melhorar uma terra que tava sendo consumida pela arenização. Quem conhece o território sabe disso também, o quanto essas comunidades fazem para manter viva essa terra. A comunidade Morada da Paz e os povos tradicionais brasileiros, o quanto eles regeneram a vida nesses territórios. Pois bem, vendo tudo isso, nós tínhamos a missão de incidir de maneira a enfrentar o que não nos era possível fazer, que era parar esse megaprojeto”, expôs Pâmela.
A empreitada foi uma Ação Civil Pública, conectada à noção de que a comunidade já vinha sendo impactada pelo simples fato de não ter sido ouvida sobre o megaprojeto. “Justamente porque a consulta não tinha sido prévia, livre e de boa fé informada do que aconteceria ali, a comunidade não dormia mais de noite. Os jovens e as crianças tinham pesadelos, achavam que a qualquer minuto podia bater à sua porta aquela ampliação. Se houvesse acontecido a consulta prévia, talvez isso não tivesse acontecido assim. A comunidade esperaria, ela saberia que trechos seriam impactados, ela conseguiria olhar para esse megaprojeto e pensar: não, eu sei, vai acontecer ali, depois vai acontecer aqui, mas no nosso trecho não, ou depois”, trouxe Pâmela. Ela contou que o encaminhamento foi o pedido para que a 9ª vara respondesse em face liminar, urgentemente, a demanda do kilombo: parar a légua.
No atual momento, a Ação teve uma grande vitória e está em fase de embargos. Realizar a consulta prévia é responsabilidade do Estado, que sabe que tem que aplicar a Convenção 169 e que podem haver os protocolos das comunidades. No intuito propositivo de apresentar ferramentas, conectar pontos e garantir a vida, que a CoMPaz está enraizando essa pedagogia da consulta. O que está em jogo é como as comunidades devem ser consultadas, quem deve consultar e como isso deve ser feito, respostas que podem ser encontradas no Dossiê e em tantos outros que podem surgir, a partir das comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas e tradicionais, para que sua existência seja não apenas reconhecida, mas possível em toda sua magnitude.
Ao elucidar que a morte pelo acesso a informação também é real, Yashodhan também contou comofoi o processo de resistência à ampliação da BR, destacando tentativas de silenciar a comunidade e o que está em jogo com a efetivação da obra. “Quando nós chegamos a denunciar todo o processo que está acontecendo conosco e com outros parentes e irmãos quilombolas e indígenas, foi-nos dito: Mas vocês estão fazendo uma tempestade num copo de água, o processo de ampliação da BR vai ser só para 2030. Eu vou repetir o que eu disse: em 2030 talvez nós estejamos mortos, precisamos garantir aqui no presente a continuidade da nossa história com o direito de ser e existir do jeito que nós somos. Nós precisamos garantir, aqui, no tempo presente, a luta e as estratégias de sobrevivência”. Salientou ainda que o ponto não é parar o progresso, mas impedir que o entendimento de progresso tenha como massa de sustentação a cultura, a fé, os sonhos e a possibilidade de continuar existindo das comunidades kilombolas.
A CoMPaz vai fazendo seus caminhos que contrapõe a violenta história hegemônica do Brasil, contada como se desenvolvimento fosse saque, domínio, escravidão e disparos de tantas violências contra os corpos negros, do campo à cidade, das águas às florestas. Ela expõe as feridas causadas por um entendimento dos kilombos a partir da dororidade, num imaginário racista que não reconhece as potências, sabedorias, pedagogias e a capacidade de organização coletiva e manutenção da vida dos territórios negros. E vai além, propondo saberes, práticas e ferramentas de luta, construindo alianças possíveis que florescem afeto e fé. “O que esperam de um kilombo? Criança ranhenta, com o pé no chão, cachorro e mendigando? Não. Nós somos mais do que isso. E se isso existe nas nossas comunidades, é produto de um estado estruturalmente pautado, basilado, na escravização, na morte, no peso da dor. Então nós somos mais do que isso, nós somos a antítese de uma história que teima por ter ouvidos para ouvir, porque voz nós sempre tivemos”, mencionou Yashodhan.
É no comprometimento, na construção do coabitar e de outros mundos possíveis, que segue a marcha para frear as léguas que soterram a vida. Que a vida segue, como ensina a água, abrindo brechas para correr ao mar. A luta avança, fazendo do chão que se pisa terra fértil para que o sonho de uma liberdade coletiva seja o amanhã possível. Como compartilhou Yashodhan: “É preciso que a gente continue e é preciso, como mulher preta, kilombola, como mulher da zona rural e como gaúcha que sou, que esse estado seja reconhecido e auto reconhecido não só como um estado hegemonicamente branco, simpático do fascismo, simpático do trabalho escravo. Porque o silêncio, senhoras e senhores, e essa frase não é minha, mas o silêncio daqueles que podem e devem fazer alguma coisa é a morte do futuro. É a morte do sonho. Não temos medo do nosso corpo tombado no chão. Não queremos que isso aconteça. Mas nós vamos lutar até o último minuto para que a morte moral não saia encostada em nós quando nos levantarmos dessa cadeira. Nós estamos aqui agora. Que o dia de hoje se transforme numa história que não deve ser esquecida”.
“Vida longa e próspera: nós continuamos e não estamos só”
📽️ Confira a cobertura em vídeos da participação da CoMPaz no CEDH/RS:
Em janeiro deste ano, a Justiça Federal reconheceu o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé da Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz), em Triunfo (RS). Anteriormente, a consulta, prevista na convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), havia sido violada. Processo narrado acima por Ìyalasè Yashodhan Abya Yala, a Sangoma (Guardiã da Memória e Guiança Espiritual) da CoMPaz na série de entrevistas do podcast “Prelúdio de uma pandemia”. Realizado em parceria com a Rádio Mundo Real, da Amigos da Terra Internacional, o podcast percorreu o contexto brasileiro, da Costa Rica, de El Salvador e do Haiti para denunciar e analisar as violações dos direitos dos povos e seus direitos humanos, antes, durante e depois da pandemia de Covid-19. Confira o podcast aqui
Como consequência da sessão do CEDHRS do dia 9 de março na AL-RS se formou um grupo de trabalho – GT sobre a Convenção 169 da OIT e sua aplicação no Estado do RS. Esse GT já se reuniu virtualmente e nessa 5a feira dia 18 de maio se reúne presencialmente a partir das 9hs no Território Yagbá Ancestral de Mãe Preta – CoMPaz em Triunfo/RS. O encontro também forma parte das Conferencias Livres prévias à VI Conferencia Estadual de Direitos Humanos (a ser realizada nos dias 26 e 27 de maio de 2023, no Auditório Dante Barone da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul).
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Indicações de leituras:
Racismo Ambiental. Artigo de Alan Alves Brito (NEAB/UFRGS) e Ìyamoro Omo Ayo Otunja, (Ìyiakekerê da Nação Muzunguê – CoMPaz) Janeiro 2021.
A Comunidade Kilombola¹ Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz), localizada às margens da BR 386 à altura do município de Triunfo, no Rio Grande do Sul, conquistou mais uma vitória na luta em busca por seu direito de Ser e Existir. No início de janeiro, a Justiça Federal no RS concedeu tutela de urgência suspendendo a obra de ampliação da rodovia no trecho que compreende os Km 405 a 415, onde fica a comunidade. A obra só poderá ser retomada após a realização de novo processo de licenciamento ambiental pelos órgãos competentes, em que a comunidade seja consultada previamente conforme dispõe a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os réus, entre eles o governo federal (Ibama e Incra) e as empresas concessionárias (CCR Via Sul e Empresa de Planejamento e Logística / VALEC), ainda podem recorrer da decisão.
A decisão judicial, um importante precedente para as lutas dos povos kilombolas em todo país, se deu em resposta à Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pela Comunidade Morada da Paz em dezembro passado e que teve como um dos seus embasamentos a Recomendação nr. 43 aprovada por ação no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).Na ação, a comunidade kilombola requereu liminar que suspendesse a obra de ampliação da BR 386 no determinado trecho. Também pediu a anulação do licenciamento, já que não foi chamada a participar dos termos de referência do estudo e nem foi citada no relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) realizado pela empresa consultora contratada pela concessionária e apresentado ao IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), apesar de seu território se localizar a menos de 500 metros da margem da rodovia.
No despacho, a juíza argumenta que “a consulta às comunidades tradicionais tem como finalidade assegurar a participação plena e efetiva destes grupos minoritários na tomada de decisões que possam afetar sua cultura e seu modo de viver. Devem ser realizadas antes de qualquer decisão administrativa, a fim de efetivamente possibilitar que os grupos tradicionais e minoritários exerçam influência na deliberação a ser tomada pelos órgãos oficiais”, o que não aconteceu, já que a Licença Prévia (LP), e posteriormente a Licença de Instalação (LI) para a obra, foram emitidas sem que a comunidade fosse consultada e acompanhasse o processo.
A magistrada lembrou que o Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT em junho de 2002, o que garante o direito à Consulta e ao Consentimento Prévio, Livre e Informado (CCPLI) das comunidades tradicionais, entre eles o povo kilombola. Para assegurar que a obra não ameace a subsistência da Morada da Paz, a juíza citou que, além do CCPLI, o Estado também deve cumprir com a repartição de benefícios e encaminhar estudo de impactos conduzidos por entidades independentes e tecnicamente capazes.
Conselho de Ìyás de Bàbás da Nação Muzunguê – Comunidade Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz) / Vania Pierozan
¹Porque Kilombola com K? Segundo a Comunidade Morada da Paz – Territórios de Mãe Preta – CoMPaz, a palavra Kilombo significa um grupamento de resistência e salvaguarda da memória do Povo Negro, na língua Kimbundu (parte da grande família de línguas de matriz africana que europeus convencionaram chamar Bantu, uma palavra que significa “pessoas”). Já nos dicionários de língua Portuguesa, quilombo com Qu se refere à povoação “remanescente” habitada por antigos escravos fugitivos ou pelos seus descendentes. “Não somos resto, remanescentes, somos resilientes e resistentes a todo esse sistema opressivo, somos Kilombo”, afirma Baogan Bàbá Kínní.
Comunidade Kilombola luta por seu direito de ser e de existir
A Comunidade Morada da Paz (CoMPaz) enfrenta, há pouco mais de dois anos, as ameaças de dois grandes empreendimentos na região: à frente do território, a obra de ampliação da BR 386 e, na parte dos fundos, a instalação de um aterro industrial. Por isso, a comunidade kilombola comemorou a suspensão das obras, mas seus integrantes sabem que é apenas uma das tantas batalhas que terão. “Sabemos que os desafios são grandes, mas confiamos na nossa estratégia, nas nossas divindades e em toda essa unidade de forças que foram articuladas e que se revelaram tão potentes nesses enfrentamentos todos que tivemos. Seguimos na fé e no esperançar!”, diz Baogan Bàbá Kínní, do Conselho de Ìyás de Bábàs da Nação Muzunguê. Ele relata que a Ação Civil Pública ingressada pela CoMPaz é um dos diversos instrumentos utilizados na defesa do território. A comunidade contou com o empenho de muitas pessoas, organizações e com a articulação com outros povos quilombolas, que enfrentam os mesmos problemas em todo o país, para construir sua própria cartografia comunitária e elaborar o seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé, chamado de “Dossiê Kilombo: proteger, defender e vigiar” – documento que orienta a consulta à CoMPaz por parte de órgãos governamentais, empresas ou qualquer outro ente em situações de empreendimentos, ou mesmo de políticas públicas, que possam impactá-la. Este dossiê e a luta da CoMPaz por seus direitos serão tema da primeira audiência do Conselho Estadual dos Direitos Humanos (CEDH/RS), que acontecerá no dia 9 de Março na Assembleia Legislativa do RS, em Porto Alegre.
“Uma consulta que chame a comunidade a dialogar antes do projeto ser elaborado, pois é preciso considerar tudo que impactará na realização dele, e que seja livre dos interesses econômicos, que não preparam o progresso para todos, apenas para alguns e com o nosso sangue, nossa história e nossa cultura”, salienta a Sangoma (Guardiã da Memória e GuiançaEspiritual) da CoMPaz, Ìyalasè Yashodhan Abya Yala. Bem diferente do que ocorreu no projeto de ampliação da BR 386, reclama Yashodhan, em que os kilombolas não foram consultados sobre a obra e nem sobre os efeitos dela no território, na água e no ar. “Simplesmente fomos ignorados. E ao sermos ignorados, matam a nossa cultura, invisibilizam nossa potência de força. Nós estamos aqui e existimos, defendemos a vida do planeta com dignidade, com fé e esperançar”, defende.
Yashodhan afirma que a luta travada pela CoMPaz é por um progresso inclusivo, que respeite o jeito de ser e de existir da comunidade kilombola e dos povos tradicionais em geral. “Nossa luta é contra esse sistema de exclusão e de eliminação do que nós somos. Não somos contra o progresso, mas sim contra as bases do desenvolvimento em que esse progresso se dá. Quando nós lutamos contra a poluição sonora, contra a poluição do ar que respiramos; quando lutamos pelo nosso jeito de ser e de existir no mato com os nossos irmãos pássaros e irmãs árvores, nós estamos lutando para que a água que nós e que vocês bebem continue pura, para que o ar que nós e que vocês respiram continue puro”, defende.
A ACP teve como um dos seus embasamentos a Recomendação nr. 43 aprovada por aclamação no Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) em 2021, motivada por denúncia apresentada ao Conselho pela CoMPaz por meio das Amigas da Terra Brasil em 2020 e consequente Relatório Direito de Existir e ser Kilombola e a violação do direito à consulta e ao consentimento livre prévio e informado no Caso do Licenciamento da BR 386 no Rio Grande do Sul, construído também em conjunto com o Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA). Para Lúcia Ortiz (Luz das Águas de Mãe Preta), presidenta da Amigas da Terra Brasil, “é importante, nessa vitória coletiva, reconhecer que o CNDH, durante todo o período do governo anterior que desmantelou os espaços de participação social, foi um espaço de resistência e de convergência das denúncias e ameaças, mas também das estratégias de luta e propostas de políticas de garantia de direitos, sobre as quais os povos kilombolas e as populações atingidas em geral devem também ser consultadas. Nesse período de retomada da democracia no país “essa vitória deve ser celebrada do Pampa à Amazônia”, salienta.
Os desafios do exercício do direito de consulta no Brasil
A decisão é histórica para a comunidade CoMPAz, mas também para todas as demais comunidades kilombolas no país. Desde a ratificação da Convenção 169, grupos sociais lutam pelo seu reconhecimento como sujeitos de direito da Convenção. Os povos kilombolas buscaram junto aos mecanismos da OIT este reconhecimento, que posteriormente veio a ser aceito pelo Brasil. No entanto, demais povos e comunidades tradicionais (PCT’s) ainda lutam para que o Estado brasileiro os reconheça como sujeitos da Convenção, apesar das semelhanças do Decreto 6040/2007, que reconhece os direitos dos PCT’s como vinculados aos artigos da Convenção.
Além da luta pela ampliação dos sujeitos da Convenção 169, diante das diversidades socioculturais do Brasil, a permanência do país na Convenção esteve em disputa. Nos últimos anos a Convenção 169 sofreu grandes questionamentos no poder executivo e legislativo. Uma série de projetos de lei tramitam para a retirada do país da Convenção, como o PDL nº. 177/2021, que visa autorizar o presidente a denunciar a Convenção, procedimento utilizado para a saída do país do acordo. Cabe recordar que o direito à consulta, previsto no art. 6 da da Convenção 169, inclui qualquer medida administrativa ou legislativa que possa afetar povos indígenas, kilombolas e comunidades tradicionais, portanto, o próprio processo legislativo deveria ser objeto de consulta.
Da parte do poder executivo, em governos anteriores do Partido dos Trabalhadores, a Secretaria Geral da Presidência tentou regulamentar o direito à consulta, como em outros países da região, contudo os povos indígenas inicialmente, e posteriormente também os povos kilombolas, criticaram a tentativa de redução dos direitos, por entender que o texto da Convenção seria autoaplicável. Ainda mais grave foi a gestão de Bolsonaro, quando a política externa brasileira atacou a Convenção 169 na OIT, bem como no amplo “revogaço” de direitos, de 5 de novembro de 2019, com o Decreto nº. 10.088, que também revogava o Decreto nº. 5051/2004 que promulgava a Convenção 169. Tal iniciativa visava reforçar o argumento dos conservadores da falta de aplicabilidade da Convenção 169, e em particular, o direito de consulta, por ausência de legislação. Uma clara manobra para não efetivar o direito e criar uma suposta confusão jurídica.
O poder judiciário também contribui para falta de efetividade da Convenção 169. São raras e escassas as decisões, como essa, que utilizam os direitos previstos na Convenção 169. Em geral, o judiciário brasileiro não utiliza em larga medida os direitos do sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Muitos magistrados desconhecem a Convenção 169, e aqueles que a mencionam não sabem modular os efeitos da decisão para impor sua aplicabilidade, limitando-se a reconhecer a existência do direito.
É precisamente por isso que a decisão do caso da comunidade CoMPaz é tão importante. Quando a magistrada reconhece e aplica o direito à consulta para suspender os efeitos de procedimentos adotados sem sua realização, ela efetiva a Convenção 169. Oferece ainda, a oportunidade ao Ibama, órgão do Ministério do Meio Ambiente, de construir um protocolo de licenciamento que abarque e aplique de fato, na perspectiva da transversalidade com demais ministérios, como é a perspectiva da Justiça Ambiental e como é o compromisso firmado pelo novo governo do Brasil, o Direitos à Consulta Livre, prévia e Informada e de Boa Fé. Igualmente inovadora é a comunidade, que diante dos argumentos da ausência de regulamentação do procedimento de consulta, usado como um impeditivo para efetivação, apresenta seu Protocolo Autônomo de Consulta construído de forma comunitária, contido também no Dossiê Kilombo. Diversas comunidades e povos no país têm adotado esta perspectiva inovadora de propor, por meio de sua auto-organização e autodeterminação, as formas e modos como querem e devem ser consultados, colocando a Convenção 169, e o art. 6, em pleno funcionamento.
Nesse momento de esperança renovada para o futuro do Brasil, a decisão sobre o licenciamento da ampliação da BR 386 e a auto-organização da Comunidade Kilombola Morada da Paz recolocam as prioridades da efetivação de direitos na mesa, servindo de exemplo para um repensar as práticas autoritárias sobre os territórios e suas gentes e fazer valer o empenho popular na retomada da democracia.
Capa do Dossiê Kilombo: proteger, defender e vigiar. Comunidade Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz). Ilustração: Vania Pierozan
Amanhã, 7 de setembro, é data historicamente marcada pelo Grito dos Excluídos e Excluídas, que movimenta atos em todo o Brasil e questiona: Independência para quem? Em Porto Alegre (RS), as ruas serão tomadas ao longo do dia, com roteiro concentrado na periferia do bairro Partenon, às 9h. A concentração começa em frente à Igreja Murialdo, na Rua Vidal de Negreiros, 550. Entre as pautas está a luta contra o racismo e pelos direitos à saúde, à educação, à alimentação, à terra e à água.
Em levante com o tema permanente “Vida em primeiro lugar”, a 28ª edição dos atos do Grito dos Excluídos e das Excluídas tem como objetivo entoar as vozes que foram excluídas neste projeto colonial de Brasil. Um projeto que se diz independente, mas segue aprofundado em imperialismo, racismo, machismo, dependência econômica, mercantilização da vida, projetos políticos que minam a soberania dos povos, desigualdade socioeconômica, e a superexploração da natureza e das pessoas para atender às demandas dos países centrais do capitalismo. Contra este conjunto de exclusões sociais históricas e propondo outro projeto de sociedade, a luta das frentes do Grito dos Excluídos e Excluídas é pela vida, pelas construções coletivas socioterritoriais e por água, terra e território como bem comum, não como mercadoria. Em meio a um contexto e conjuntura política que escancara governos ecocidas e genocidas, centrados na intensificação da retirada de direitos, aumento do custo de vida, fome, desemprego, venenos e precarizações tantas, outras propostas e caminhos precisam ser evidenciados.
Ao contrário de um discurso oficial que promove o capital e a colonização, celebrando uma (in)dependência expropriatória que não contempla os povos das florestas, das águas, dos campos, das cidades e suas periferias, o Grito dos Excluídos e das Excluídas está em levante mobilizando para a necessidade de defesa e construção de um projeto popular para o país, a favor da agroecologia e da produção de alimentos saudáveis em comunhão com a natureza.
Em Porto Alegre, o ato será evidenciado pelo “grito pela saúde”, em frente a Unidade Básica de Saúde (UBS) na Rua Santo Alfredo. Depois haverá o “grito antirracista” diante do Carrefour, na avenida Bento Gonçalves (local onde João Alberto Freitas foi assassinado por seguranças do supermercado, em novembro de 2020). Após passar pelo Carrefour, a marcha fará o “grito pela água”, em frente ao DMAE, na Avenida Bento Gonçalves, e depois o “grito pela educação”, diante da entrada da PUC, também na Avenida Bento Gonçalves. Por fim, o ato encerrará com o “grito contra fome” e um ato inter-religioso na Praça Francisco Alves (Rua Juarez Távor). Haverá ainda distribuição de arroz orgânico produzido pelo Movimento Sem Terra (MST).
O Grito dos Excluídos e Excluídas
Fazendo do 7 de setembro uma data de luta, o Grito dos Excluídos e Excluídas representa o oposto do orgulho nacionalista com falsos heróis que a versão militar e institucional busca emplacar.
Ele ocorre desde 1995, em contraponto ao “Grito do Ipiranga”. A ideia de surgiu durante a 2ª Semana Social Brasileira (1993/1994), a partir de uma reflexão sobre o Brasil, as alternativas possíveis e seus protagonistas. De acordo com os organizadores, mais do que uma articulação, o Grito é um processo, uma manifestação popular simbólica que integra pessoas, grupos, entidades, igrejas e movimentos sociais comprometidos com as causas dos excluídos e excluídas.
Durante muitos anos, a caminhada foi realizada na sequência do desfile militar do dia 7 de setembro. Desde 2019, o comitê de organização do Grito na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA) decidiu fazer o ato pelas cidades da região, sobretudo nas periferias, como uma forma de valorização das comunidades e suas lutas. Naquele ano, a marcha foi realizada em Canoas, junto às comemorações dos 40 anos de existência da Vila Santo Operário, que marcou a luta pelo direito à terra em território urbano.
Em 2020, no cenário de pandemia que assolou o país, o Grito foi virtual, e em 2021, quando voltou a ser realizado presencialmente, voltou para Porto Alegre, sendo realizado embaixo do viaduto Dona Leopoldina.
Confira a programação nacional do Grito dos Excluídos e Excluídas:
Porto Alegre e Região Metropolitana (RS): 7/9 – Santuário São José, n° 550 – Partenon (próximo a PUC RS pela Av. Bento Gonçalves).
Pelotas (RS): 7/9 – 9 horas, Largo da Bola, junto ao CCS/UFPEL.
Curitiba (PR): 7/9 – Vila União, no Tatuquara/Comunidade do Tatuquara.
Rio de Janeiro (RJ): 7/9 – Concentração 9h. Uruguaiana com Presidente Vargas.
São Paulo (SP): 7/9 – Ato “Por Terra, teto, trabalho e democracia! Pão e viver bem!” Às 09h00, na Praça da Sé.
4/9 – Santo Amaro – Praça do Jardim Miriam, avenida Cupecê, próximo ao Poupatempo, a partir das 9 horas.
7/9 – Alto Tietê – Diocese de Mogi das Cruzes, em Mogi das Cruzes: Concentração 8h30, na Catedral de Sant´Ana, com apresentação das pastorais sociais e movimentos populares. Missa às 09h, com o bispo D. Pedro Luís Stringhini, caminhada até o Largo do Rosário onde haverá manifestações populares das lideranças por Direitos, Liberdade dos Povos e Democracia.
Americana (SP): 07/09 – Celebração ecumênica e ato em bairro da periferia.
Aparecida (SP): 07/09 – Concentração às 06h00, na Praça Nossa Senhora Aparecida, em frente à Basílica história (velha).
Baixada Santista (SP): 07/08 – Grito na Baixada na Zona Noroeste em Santos, concentração no sambódromo.
Itupeva (SP): 7/9 – 10h, celebração do Grito na Igreja Santo Antônio.
Jundiaí (SP): 07/09 – Igreja Santo Antônio, em Itupeva, com início às 10h, presidida por Dom Arnaldo, e Fila do Povo, no final da celebração.
Mogi das Cruzes (SP): 7/9 – 8h30, concentração na Catedral de Sant’Ana; 9h – missa com Dom Luis Stringhini, após caminhada até o Largo Rosario.
Santo André (SP): 07/09 – Missa na Igreja Matriz de Santo André, às 9h30, seguida por uma caminhada até a Praça do Carmo, onde será realizado o Grito, com ato político e celebração inter-religiosa, com participação de indígenas, movimentos de matriz africana e representantes evangélicos, representantes de movimentos de moradia, povo de rua, refugiados, afrodescendentes, carroceiros e outros.
São José dos Campos (SP): 7/9 – Praça Afonso Pena.
Piracicaba (SP): 07/09 – Praça central da cidade.
Vitória (ES): 7/9 – Universidade Federal do Espírito Santo, Campus Goiabeiras, no Teatro da UFES, a partir das 8 horas.
Belo Horizonte (MG): 2/9 – Das 17 às 21 horas – Galpão Pátria Livre (Rua Pedro Lessa, 435 – Santo André).
7/9 – 9h – Praça Vaz de Melo (Av. Antônio Carlos com Rua Além Paraíba) – embaixo da passarela da Lagoinha.
Manaus (AM): 5/9 – Concentração no Centro de Convivência Magdalena Arce Daou, no início da Av Brasil – Bairro Santo Antonio, a partir das 15 horas.
Belém (PA): 7/9 – Caminhada pelo centro da cidade de Tucumã, às 07h30, saindo da praça da Catedral até à Praça Ronan Magalhães.
São Felix do Xingu (PA): 4/9 – Celebrações de domingo, às 08h00 e às 19h30.
7/9 – Ato público com caminhada, concentração local previsto a praça CEU.
Boa Vista (RR): 7/9 – Caminhada na periferia, à tarde; realização de oficinas de cartazes; Criação de um Rede Social específica para o Grito.
Rio Branco (AC): 7/9 – A concentração será às 07h da manhã, em frente à Catedral Nossa Senhora de Nazaré (Centro).
Morada Nova (CE): 07/09 – Concentração: Espaço Social Santa Terezinha, 06h00.
Parangaba (CE): 7/9 – Ao lado do terminal do Lagoa, no bairro Parangaba, a partir das 09hs.
Salvador (BA): 7/9 – 8h30, concentração do Grito no Campo Grande.
Recife (PE): 2/9 – Vigília Inter-Religiosa pela Democracia, às 18h30, Rua Gervásio Pires, 404/Santo Amaro. MTC – Movimento de Trabalhadores Cristãos.
7/9 – 9h, concentração no Parque Treze de Maio.
Cuiabá (MT): 1/9 – Chá com Pão, na Praça Ipiranga, às 6h00.
3/9 – Ampliada das CEBs, Comunidade N. S. Fátima, Jardim Vitória, às 9h00.
3/9 – Sarau do Grito, via online, às 17h00.
5/9 – Exibição do filme PUREZA, no auditório Batatão/UFMT, às 19h00.
7/9 – Praça do Rosário e caminhada até à Praça Ipiranga, às 7h30.
9/9 – Roda de Conversa, Paróquia Sagrada Família, Bairro Carumbé, às 19h00.
Goiânia (GO): 7/9 – Praça José Bonifácio, no bairro Independência Mansões (Aparecida de Goiânia), às 9h.
Após tentativa de invasão com homens armados no domingo (28), essa semana está sendo marcada por vigília e mobilização no Quilombo dos Alpes, de Porto Alegre (RS). Mais uma vez a violência atravessa a vida dos quilombolas e o território ancestral de resistência. É necessária a titulação imediata do Quilombo dos Alpes e a garantia da segurança e integridade do quilombo e das pessoas que ali vivem.
Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre (RS), resiste! | Foto: Alass DerivasHorta no Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre (RS) | Foto: Alass Derivas
No domingo, escoltadas por um carro com homens armados, pessoas tentaram invadir as casas em construção da comunidade, que fazem parte do projeto de moradia do Minha Casa Minha Vida, com a qual o quilombo foi contemplado. As obras, não finalizadas, mostram mais uma vez o descaso do estado com os quilombolas. Na ocasião, os invasores foram dispersados pela Polícia Militar. Mas ameaças seguiram em riste, evidenciando um histórico colonial e genocida que precisa ser interrompido. Desde então, a comunidade dos Alpes recebe o apoio em vigílias e cobra coletivamente medidas para garantir iluminação e segurança das pessoas e do território. A mobilização fez com que a Caixa Econômica Federal anunciasse que liberaria recurso para a obra de conclusão das casas recomeçarem na segunda-feira. Em resistência, mandinga e coletividade segue a luta do Quilombo dos Alpes, assim como as lutas para aquilombar o Brasil!
Casas invadidas em ataque ao Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre (RS) | Foto: Alass DerivasCasa com X, como alvo, marca invasão ao Quilombo dos Alpes que ocorreu no domingo | Foto: Alass Derivas
Nas margens que contornam o Quilombo dos Alpes se erguem prédios frutos de um projeto racista e elitista, que entende a cidade a partir de uma lógica excludente e colonizatória. Para dar espaço à iniciativa privada, os governos colocam em cheque populações, saberes e práticas ancestrais que pautam a vida em meio a políticas de morte. Da vista dos Alpes, torres na Orla do Guaíba, prédios do Barra Shopping e espaços que prevêm serem cedidos a construções que pouco falam sobre a realidade dos povos, e mais uma vez ameaçam territórios negros. Uma Porto Alegre que visa o lucro, a qualquer custo, e avança sobre os morros preservados.
A vista dos Alpes, que escancara os contrastes de um projeto excludente de cidade | Foto: Alass Derivas
Entidades, Coletivos, Quilombos e Movimentos Sociais se solidarizam com o Quilombo dos Alpes e exigem que as Autoridades e Instituições afins cumpram a sua missão Institucional ao que se refere a Regularização Fundiária e Efetivação da Titulação do Território Quilombola. Reivindicam o respeito e proteção do Quilombo e dos quilombolas como previsto na Constituição Federal de 1988. É dever do Estado a proteção dos quilombos, uma das expressões civilizatórias de matriz africana. Mitigar ou relativizar esse dever é fator para violência contra os Povos e Comunidades Tradicionais.
A Frente Quilombola RS divulgou o Manifesto em Defesa dos Quilombolas de Porto Alegre (RS) – Quem não pode com a formiga, não atiça o formigueiro. Leia o conteúdo na íntegra:
O Quilombo dos Alpes é uma comunidade tradicional centenária de Porto Alegre, localizada o bairro Glória/Cascata. Assim como os demais dez territórios quilombolas da cidade, o quilombo dos Alpes está sob franco ataque de disputas territoriais violentas dadas através de uma relação de forças perversas e desiguais. As lideranças quilombolas têm sido insistentemente acossadas pelo avançar da violência de milícias, grileiros e traficantes que tentam ocupar o território quilombola. A demora do Estado brasileiro em demarcar, proteger e qualificar o bem-viver das comunidades quilombolas contribui para esse cenário de extermínio da população quilombola. Na manhã de domingo, 28 de agosto de 2022, as casas do projeto Habitacional Quilombo dos Alpes – JV foram invadidas por cerca de 20 pessoas. No entanto, o grupo logo foi dispersado pela Brigada Militar. Porém, a tensão entre a comunidade quilombola e os invasores seguem atormentando as lideranças do Quilombo dos Alpes que movimentam, junto com a Frente Quilombola do RS a vigília dos sujeitos e o território quilombola. Em dezembro de 2008, duas das lideranças quilombolas foram assassinadas dentro do território em decorrência de disputas movidas pela especulação imobiliária. O assassino foi condenado a trinta anos de prisão, mas hoje responde em regime de prisão domiciliar. Na ocasião, a atual liderança quilombola também foi baleada, mas conseguiu sobreviver, e hoje segue na luta por melhorias para a comunidade quilombola. Tendo o medo como companhia as lideranças do Quilombo dos Alpes desafiam o Estado Brasileiro a cumprir a necessária reparação histórica e geógrafica ao explorado povo negro, indegena e quilombola que muita riqueza gerou na construção deste país.
O projeto Habitacional Quilombo dos Alpes – JV representa o acesso a uma política pública, o programa Minha Casa, Minha Vida-Entidade e é destinada a construção de 50 casas para 50 famílias quilombolas já cadastradas, e que acompanham o projeto desde 2016 quando do início de sua organização. A implementação só se efetivou com acesso ao financiamento em março de 2019 quando após exaustivo processo de judicialização o recurso do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), do atual Ministério do Desenvolvimento Regional, administrado pela Caixa Econômica Federal, foi então liberado. O projeto tem o destacado protagonismo da Associação do Quilombo dos Alpes D. Edwirges enquanto Entidade Organizadora a acessar esse tipo de edital majoritariamente acessado por empreiteiras e agentes do capital imobiliário. O ineditismo da organização do projeto por parte da associação quilombola em âmbito urbano é assessorado pelo Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente, do curso de Geografia da UFRGS e atualmente conta com a parceria da Cooperativa de Trabalho Habitação e Consumo Construindo Cidadania COOTRAHAB de São Leopoldo.
Com a pandemia e a paralisia completa das obras, a Associação Quilombola dos Alpes tem feito denúncias ao poder público sobre o abandono e a violência a qual estão submetidos. Desde o início da pandemia a comunidade vem exigindo respeito, reconhecimento, sinalização do território e iluminação pública enquanto medidas diretas de segurança, no entanto a lentidão dos serviços públicos, uma das expressões do racismo institucional que organiza a sociedade brasileira até os dias de hoje reforçam a desigualdades enfrentadas pelos sujeitos quilombolas. O esgotamento das comunidades frente às violências sistemáticas a que estão sujeitas apesar de dificultar, não tem impedido a continuidade da luta quilombola pela liberdade e libertação da monocultura do pensamento capitalista.
Contudo é muito alto o preço pago na luta por liberdade. As vidas quilombolas estão em risco permanente, seja no Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre, no Maranhão e em todo o Brasil. Responsabilizamos estas violências e as múltiplas escalas de negligência/violência de Estado e sua Colonialidade Permanente. O Estado nos acusa de estressar as suas instituições e institutos , sem reconhecer o quanto as instituições nos massacram.Nossa luta e nossos apelos não se resolvem a cada eleição, demandam ações diretas, efetivas e continuadas. Nossa luta não é hashtag, é por liberdade, reconhecimento, segurança, titulação e bem viver. Frente a crise civilizatória que enfrentamos, lutamos por outros projetos de sociedade, mais plurais, diversos e menos desiguais. O Quilombo dos Alpes e os Quilombos de Porto Alegre, assim como os amigos e apoiadores convidamos a compartilhar conosco a prática efetiva do UBUNTU se integrando a vigília no Quilombo dos Alpes que acontece desde o dia 28/08/2022 até 05/09/2022 no território do Quilombo, Estrada dos Alpes, 1300. Toda contribuição financeira ou presencial é bem vinda.
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A Amigos da Terra Brasil rechaça a violência contra o quilombo e os quilombolas, que em suas sabedorias, práticas e ancestralidade preservam cotidianamente os territórios brasileiros e pautam a construção de uma sociedade de bem viver, em que o respeito à diversidade de expressões civilizatórias é verbo! Que o Estado assuma a sua responsabilidade e a justiça seja feita, com titulação já para Quilombo dos Alpes. Toda solidariedade é necessária. Divulgue a respeito, some nessa luta, se articule com o Quilombo dos Alpes. Toda contribuição financeira ou presencial é mais que bem vinda! Contate a Frente Quilombola do RS e se articule nessa luta.
Quilombo dos Alpes | Foto: Alass Derivas
Salve a resistência nos Alpes e toda a resistência ancestral!
Reconhecido em muitos países como o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, o 25 de julho é um momento de organização, de reflexão sobre a vida das mulheres negras, e também um marco no calendário político antirrasista. É Dia Nacional de Tereza de Benguela, símbolo da luta das mulheres negras. Tereza, mulher negra responsável por comandar a maior comunidade de libertação de pessoas negras e indígenas da capitania de Mato Grosso. Líder do Quilombo do Quariterê que desafiou o sistema escravocrata português e a coroa por mais de vinte anos.
No Brasil, a data foi instituída como Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, em 2014, durante o governo de Dilma Rousseff (PT). Data que também reverbera um momento anterior, de contexto mais amplo geopoliticamente. Anos antes, em 1992, mais de 400 mulheres negras se reuniram em Santo Domingo, na República Dominicana, para pautar suas demandas políticas. Construindo pontes entre as suas necessidades, lutas, realidades e vitórias, elas se organizaram no 1º Encontro de Mulheres Afrolatinoamericanas e Afro Caribenhas, onde foi criada a Rede de Mulheres Afrolatinamericanas e Afro Caribenhas. Momento em que foi definido o 25 de julho como Dia da Mulher Afrolatinamericana e Caribenha.
Vitória do Quilombo Vidal Martins é marcada pela presença de mulheres
E nessa data tão importante, é preciso exaltar as vitórias dos territórios, que são fruto dos sonhos, da articulação e das lutas das mulheres negras e quilombolas. Aqui no Sul do país, a data de hoje é marcada por mais uma realização concreta. A Comunidade Quilombola Vidal Martins e Associação dos Remanescentes do Quilombo Vidal Martins (ARQViMa) deu mais um passo na luta pelo reconhecimento dos seus direitos frente à dívida histórica com o seu povo: no dia 21 deste mês, foi publicado no Diário Oficial da União (DOU), a decisão assinada pelo presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em reconhecimento do seu território ancestral, rumo a titulação do primeiro território quilombola na ilha de Florianópolis, em Santa Catarina.
Mais uma vez, frente a esse processo, celebramos a luta de mulheres como Dona Jucélia e as irmãs Helena e Shirlen. Com forte participação nesse triunfo, elas inspiram com sua trajetória de compromisso na luta por equidade racial, moradia digna, educação, preservação ambiental, uso sustentável do território e pelo bem viver da comunidade e de seus descendentes quilombolas.
O significado dessa vitória reverbera para as demais comunidades quilombolas do estado de Santa Catarina e do Brasil. Que este seja apenas mais um dos dias na construção de um futuro em que se exaltem cada vez mais as vitórias para as comunidades negras. Vitórias essas que são reflexo e fazem eco na luta das mulheres de toda América Latina.
Luta traz reconhecimento para Quilombo Vidal, com uma vitória importante rumo à titulação do primeiro território quilombola na ilha de Florianópolis, em Santa Catarina
A realidade brasileira evidencia a importância da luta protagonizada por mulheres negras e a necessidade de políticas públicas pensadas a partir das margens
Segundo a Rede Penssan, 10,7% dos lares chefiados por mulheres negras se encaixam no quadro da fome / Créditos da foto: Midia NINJA
Com menor rendimento e menor proteção social, a população negra é a mais exposta ao desemprego no país. A ausência de políticas públicas, somada à instabilidade econômica, amplia a vulnerabilidade social dessas mulheres, as colocando em risco de maior violência doméstica. E os índices nos últimos anos tornam ainda mais alarmante a situação do feminicídio.
Sem proteção social e sendo maioria nos trabalhos informais, as mulheres negras brasileiras lidam ainda com o aumento das tarifas de gás, energia e água, que deveriam ser bens comuns. Neste cenário, e com o preço elevado dos alimentos e a restrição de seu acesso, que volta a apresentar o Brasil no quadro da fome, as condições de vida vão se enrijecendo.
Os impactos negativos da pandemia na vida das mulheres negras seguem em curso. Nesse contexto pandêmico, ficou escancarada a crise do cuidado, que traz à tona as desigualdades de gênero, mas recai de forma mais incisiva sobre as peles negras. Também ficou evidente a necessidade de uma economia centrada na vida. A linha de frente no combate à pandemia foi composta por mulheres na saúde, professoras exaustas com a realidade do ensino a distância e mães com dificuldades profundas em trabalhar e cuidar dos filhos quando as escolas estavam fechadas. Além de enfrentar feridas de uma lógica colonial como a falta de existência ou de acesso às políticas públicas, o desemprego e a precarização, as mulheres negras continuam sobrecarregadas pelo trabalho invisibilizado da reprodução social e do cuidado. O que remonta tempos da escravidão: desde lá grande parte do trabalho de cuidado é realizado por mulheres negras, historicamente vinculadas aos trabalhos domésticos. E aqui, vale ainda destacar que a afirmação de direitos trabalhistas para essa categoria é muito recente, assim como o reconhecimento da precariedade do trabalho doméstico.
Sobretudo, é preciso defender a vida. Foto: Divulgação/EBC
Casos como o da “Mulher da casa abandonada”, reportagem em destaque nas notícias do último mês, alarmam ainda quanto a realidade da escravidão contemporânea. Mais uma situação aprofundada pela pandemia e por decisões políticas como as reformas trabalhistas implementadas pós golpe de 2016, que tirou do poder a presidenta Dilma Rousseff.
É imprescindível eleger mulheres negras articuladas com as lutas, com as comunidades, periferias e movimentos sociais
Enquanto as mulheres são 52,5% do eleitorado, apenas 15% das vagas do parlamento brasileiro são ocupadas por mulheres, sendo 2,36% dessas vagas ocupadas por mulheres autodeclaradas negras. Esta realidade denuncia a lógica patriarcal e colonial ainda presente no nosso país, assim como a falta de representatividade das mulheres negras nas instituições brasileiras. Falta essa que repercute na ausência de políticas públicas e de medidas de reparação histórica.
Neste ano a Colômbia elegeu a sua primeira vice presidenta negra, Francia Márquez, com uma campanha antirracista centrada na defesa do meio ambiente. E nós, da Amigos da Terra Brasil (ATBr), acreditamos que é possível viver o sonho de um Brasil com protagonismo de mulheres negras e indígenas, que constroem a política de forma realmente democrática, com participação popular.
Nesse momento chave da política institucional, marcado por mais um ano de eleições, destacamos a relevância de ampliar a representatividade, elegendo candidaturas comprometidas com a causa antirracista, anticolonialista, antimperalista, anticapitalista, contra o patriarcado e que pautem um horizonte comum. É imprescindível eleger mulheres negras articuladas com as lutas, com as comunidades, periferias e movimentos sociais. Fortalecer essas candidaturas e mandatas coletivas, com mulheres negras e indígenas liderando debates a partir da conexão com as lutas por soberania alimentar, agroecologia, ampliação de espaços comunitários, contra agrotóxicos e mercantilização das vidas, pela preservação dos biomas, contra a megamineração e os projetos de avanço do capital, contra a financeirização dos territórios, contra a militarização, pela democratização dos processos e construções populares, por uma economia com a vida no centro, com soberania territorial. Candidaturas que repensam a produção e o consumo e, de fato, protagonizam as histórias contadas pelas margens.
Sabendo da dívida histórica com os povos originários, quilombolas, ribeirinhos e com as mulheres negras e indígenas dos territórios, que fazem frente aos projetos de destruição, é preciso revogar medidas como a PEC 95 e tantos outros retrocessos, como as reformas previdenciária e do trabalho, que afetam diretamente essas populações. É necessário fomentar as iniciativas populares, que pautam outras formas organizacionais. Ir além, defendendo e ampliando políticas públicas antirracistas, de reparação histórica e fim da desigualdade. De acesso ao cuidado coletivo, como creches e escolas públicas. Por acesso universal e gratuito a saúde, educação e cuidado de qualidade. Por demarcação de terras indígenas. Pela preservação dos quilombos e suas formas de vida. Por redução na jornada de trabalho, fim da precarização do trabalho e do desemprego.
Sobretudo, é preciso defender a vida. A vida das mulheres negras e de seus filhos e filhas, contra as guerras travadas nas periferias das cidades, como ocorre no Rio de Janeiro. Contra as guerras no campo e nas florestas. Não podemos mais escolher ignorar o racismo que sustenta a nossa sociedade.
Uma transformação radical emerge com a defesa da vida e dos direitos das mulheres negras, latino-americanas e caribenhas. Que não tenham mais que ser fortes. Que seu destino possa ser o que se sonhar ser.
Ato do dia 5 de Fevereiro marca a luta contra o racismo e pelo fim dos assassinatos a pessoas negras
No dia 24 de janeiro de 2022, o congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi brutalmente espancado até a morte por três homens no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Os assassinos respondem por homicídio doloso duplamente qualificado, pois houve intenção de matar e a vítima foi impossibilitada de se defender. O jovem sofreu pauladas, golpes de taco de beisebol, foi amarrado e sufocado. Após grande repercussão do caso, no dia 5 de fevereiro, as cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e mais 30 outras pelo país se somaram em atos contra o racismo e por justiça à Moïse e a Durval.
A Orla Rio, concessionária responsável pela operação e manutenção de mais de 300 quiosques localizados nas praias do Rio de Janeiro, decidiu conceder à família de Moïse , o quiosque no qual ele trabalhava, para que pudessem tocar seu próprio negócio. Contudo, hoje, dia 8 de fevereiro, o atual dono do empreendimento, Celso Carnaval, de 81 anos, diz que pretende continuar como operador do local: “Vou devolver o que?”. O referido quiosque é alvo de processo judicial desde Junho de 2021 que envolve a concessionária e Carnaval, no qual a concessionária pede reintegração de posse por diversas irregularidades, incluindo a entrega da operação do estabelecimento a um estranho sem consentimento da Orla Rio.
Registro do Ato realizado em Porto Alegre. Foto: Heitor Jardim
Os crimes de racismo neste breve início de 2022 não param por aí. Na última quarta-feira, dia 2 de fevereiro, o trabalhador brasileiro Durval Teófilo Filho, de 38 anos, foi morto ao ser baleado pelo Sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra, quando tentava entrar em seu edifício, em São Gonçalo, região Metropolitana do Rio. O assassinato se deu, segundo Bezerra – indiciado inicialmente doloso (sem inteção de matar) e apenas depois de o povo muito reclamar, por homicídio então culposo (quando há inteção de matar) – porque ele teria “confundido” Durval com um bandido. Tanto Durval quanto Moïse foram acometidos pelo mesmo mal: RACISMO. “Nossa origem é essa. Somos descendentes de africanos que foram sequestrados e a impunidade, a normalidade em uma sociedade que já tem quase 400 anos de violência colonial, racista e mais o período pós abolição, com o aumento da violência e do racismo é o caldo de cultura que banaliza os corpos e territórios negros”, declara o membro da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul (FQRS), Onir de Araújo.
Os atos de sábado (5/02), realizados em diversas capitais, foram de extrema importância para denunciar e informar a população. “Houve grande participação da comunidade de imigrantes, que expôs todas dificuldades que eles sofrem ao ingressarem no Brasil: a falta de emprego, dificuldade de conseguir documentação, precarização do trabalho, violência, xenofobia, racismo”, explica a nutricionista e Pastoral Afro da Paróquia Mãe do Perpétuo Socorro, Conceição Vidal. O evento contou com a participação da comunidade congolesa, da associação de senegaleses, haitianos e angolanos, junto a entidades e organizações do movimento negro e dos quilombolas, como relatou De Araújo. “É a barbárie de volta, as pessoas perderam a noção de humanidade e veem um ser humano como uma barata, onde se possa eliminar! É ultrajante!”, diz a engenheira civil e co-fundadora do Catálogo Afro (grupo de pretas e pretas com graduação do Ensino Superior), Eliane dos Santos. Este início de ano marcado pelo sangue de pessoas negras inocentes é apenas a ponta de um iceberg que já vem se formando há muito tempo. “Os recentes acontecimentos nos fazem pensar como o processo de escravização no Brasil, que durou 300 anos, ainda está presente na sociedade brasileira”, destaca Vidal. Eliane dos Santos conta que, há 30 anos atrás, seu irmão estava indo para o colégio, num bairro de classe média alta onde eles moravam, com a pasta embaixo do braço, e a polícia o parou para revistá-lo, o agrediu e bateu nele. “Meu irmão foi preso, por desacato, pq tentou se defender das agressões! Uma tristeza na nossa família! Uma dor profunda que ficou em nós…”.
Registro do Ato realizado em Porto Alegre. Foto: Heitor Jardim
O racismo estrutural é aquele que é considerado subliminar, o qual reside nas mentes das pessoas “elas olham pessoas pretas e veem perigo, ódio, desprezo!”, sublinha a co-fundadora do Catálogo Afro. É ele que sustenta crimes como os que acometeram Durval e Moïse. De acordo com o censo do IBGE, a população negra equivale a 56% do contingente brasileiro, mas, mesmo sendo maioria , a discriminação que mata está presente no cotidiano dessas pessoas que até hoje “recebem o menor salário, tem dificuldade em acessar o sistema de saúde e de educação”, segundo Conceição Vidal. Onir Araújo, da FQRS, explica que são feitas hoje várias denúncias envolvendo relações de trabalho completamente fora de qualquer padrão humano aceitável. Ele também destaca que existe uma perseguição permanente a imigrantes que trabalham como ambulantes. “Há ausência de uma política pública de acolhimento desses povos, em especial de imigrantes de origem africana, do Haiti e de países dessa esfera de objetos da exploração econômica, social e imperialista”. Ele conta ainda que a FQRS solicitou uma audiência pública em Porto Alegre para falar sobre as várias violações de direitos que os imigrantes estão sofrendo, sobre como os entes de justiça estão monitorando, acompanhando e garantindo a efetivação desses direitos, e também sobre a violência e letalidade das forças de segurança em relação à população negra em geral. O objetivo de ações como estas são em prol de um futuro mais justo e igualitário: “temos que pensar nas nossas crianças que estão vindo, elas têm que ter um futuro melhor que o nosso, muito melhor!”, diz Dos Santos.
Registro do Ato realizado em Porto Alegre. Foto: Heitor Jardim
Entre tanta violência e racismo escancarado, o medo faz parte do cotidiano das pessoas negras: “É inconcebível que as coisas mais banais como ir ao supermercado, levar um filho ao colégio, se divertir no final de semana na frente de casa e ir ao trabalho sejam um risco de vida cotidiano”, diz Onir de Araújo. É por esse motivo que a educação é um importante elemento na luta por um futuro melhor, no combate ao racismo e na valorização das vidas negras: “Penso que temos que começar na educação, nas escolas. Desde pequenas, as crianças têm que ver o outro como igual. Precisamos continuar com a cotas nas universidades para termos uma margem maior de equiparação formando pessoas pretas instruídas, pois assim teremos mais mentes que pensem formas de combater esse racismo tão cruel que assola nossa sociedade!”, opina Eliane dos Santos.
Já basta de tanto racismo e violência. A Amigos da Terra Brasil repudia veementemente os atentados racistas cometidos contra Durval, Moïse e contra tantos outros que já precisaram morrer para que alguém os ouvisse. CHEGA!
Pouco mais de um mês após o assassinato de João Alberto pelos seguranças contratados pela rede Carrefour em Porto Alegre, Brasil, Patrícia Gonçalves, integrante do Conselho Diretor do Amigos da Terra Brasil e militante da Frente em Defesa dos Territórios Quilombolas no Rio Grande do Sul, analisa as medidas tomadas pela empresa e pela Justiça. Ela defende uma mudança de paradigma no tecido social no que diz respeito às comunidades pretas no Brasil.
No último 19 de dezembro de 2020, completou um mês do terrível crime cometido contra João Alberto. Esse episódio é reflexo do racismo estrutural e institucional vivenciado no Brasil. Beto, como era conhecido, foi brutalmente espancado até a morte pela segurança privada da rede de supermercados Carrefour e pela polícia militar. Para analisar este caso cruel e racista, conversamos com Patrícia Gonçalves, integrante do Conselho Diretor do Amigos da Terra Brasil e militante da Frente em Defesa dos Territórios Quilombolas no Rio Grande do Sul.
O crime ocorreu um dia antes do dia da consciência negra, em Porto Alegre, uma das cidades brasileiras mais segregadas. Na mesma semana, se celebrava a eleição de uma banca negra na Câmara Municipal de Porto Alegre, fato até então nunca ocorrido. Patrícia relata que: “As pessoas estavam felizes com a eleição da bancada negra, e também com a questão de gênero elegendo muitas mulheres, tanto em Porto Alegre como em diversas cidades do Brasil. Estamos caminhando para uma transformação destes espaços que é muito necessário. E ao mesmo tempo que comemorávamos e celebrávamos, o racismo vem para colocar qual é a condição das pessoas negras, das pessoas não brancas aqui no Brasil.”
“Esse é o nosso cotidiano. Nós vivemos em um país que não nos reconhece enquanto humanidade, que não nos reconhece enquanto força potente de transformação social. Nós sobrevivemos ao imenso projeto de extermínio, genocídio e epistemicídio. Aqui no Brasil, além da escravidão, a colonização, por exemplo, financiou políticas eugenistas que projetaram em 100 anos a população iria embranquecer com a vinda da imigração européia, e daí sim se tornaria uma população civilizada. Se investiu dinheiro público para isso, se defendeu essa ideia e, como consequência, ações de desterritorialização ainda maiores dos nossos povos originários e os povos negros que aqui estavam em função desta lógica que acredita em apenas um modelo de pensar através dos corpos brancos do ocidente, é um modelo correto e civilizado. E a gente sobreviveu a isso! De forma habilidosa e estratégica, sobrevivemos a isso.”, descreve Patrícia.
Este não é um episódio isolado. A rede Carrefour tem um histórico muito problemático, com casos de agressão física, violação de direitos, em todo o território brasileiro. Patricia nos descreve alguns exemplos: “temos o caso de uma funcionária que após receber tratamento racista dos colegas de trabalho, fez uma denúncia e o tratamento que a empresa deu foi a demissão. Também, temos o caso de um funcionário que faleceu em um estabelecimento de trabalho e a ação da empresa foi seguir as atividades normalmente, camuflando o corpo exposto, sem dignidade. O corpo negro não recebe nenhuma dignidade da empresa que usufruiu do seu trabalho por muito tempo. Temos casos de clientes que são perseguidos, violentados, que não podem transitar de forma digna nos estabelecimentos destas redes de supermercados porque sempre são vistos como suspeitos e violentados. E, agora, o caso do João Alberto que foi cruelmente assassinado.”
Além do caso Carrefour, outras redes do setor alimentício são violadoras de direitos aqui no Brasil. Em Porto Alegre, há outros casos envolvendo a disputa territorial com as comunidades quilombolas. Por exemplo, a rede Walmart, que é uma corporação que explora a mão de obra de trabalhadores, tenta desterritorializar a comunidade Quilombo dos Machados. Patrícia conta a história dessa comunidade e descreve como a comunidade sente os impactos do racismo institucional: “A comunidade tem uma história de vida muito anterior à chegada da rede Walmart e mesmo assim nosso sistema jurídico não consegue e não quer compreender isso. Atualmente, a comunidade precisa investir muito tempo e energia numa disputa homérica para garantir que a justiça seja feita. E para nós, é muito difícil passar por esse crivo jurídico, conseguir se fazer desenvolver em um processo que dê retorno a nossa luta, nossa construção e nosso ideal de mundo. É extremamente complexo e difícil para uma comunidade quilombola ser avaliada e analisada por esse sistema. Mas, a regra que temos é que a propriedade da terra vale mais do que as pessoas e por isso se faz necessário enfrentar este cenário e espaço. E conseguir de diferentes formas e narrativas diversas disputar o que é um território quilombola, o que é a constituição de um mundo possível nestes territórios, onde o próprio sistema renegou outras espacialidades e colocou essas pessoas nesses espaços onde se construiu e constituiu toda sua lógica de territorialidade”.
Ela complementa: Por isso, é preciso enfrentar essas empresas e esse sistema jurídico racista com as nossas lógicas. Esse é um sistema que nos enxerga como invasores, como ocupantes de um espaço. Ele não consegue compreender que nós estamos operando em um projeto de retomada de território e retomada do que é nosso por direito em função das consequências de uma série de crimes que exerce desde a formação do Brasil contra os corpos negros e as formas de territorialização dos espaços negros. Um sistema que tem dificuldade em compreender o que é a lógica da retomada, da reconquista do que é nosso por direito. E essa é a experiência que estamos vivenciando em Porto Alegre, onde existem 8 comunidades quilombolas reconhecidas e uma em processo de reconhecimento, no qual essas comunidades estão recontando a história, retomando o espaço e se afirmando diante de um sistema que é cego para reconhecer essa diversidade e que é racista em operar contra essa diversidade.
A luta em defesa pela regularização dos territórios quilombolas e indígenas é urgente. Patrícia explica ainda o que compreendem por retomada e as intersecções entre a luta quilombola e indígena:“A lógica das retomadas é um aprendizado que nasce a partir da relação com os povos originários, que seguem essa orientação de reconquistar seu espaço e de retomar o que é seu por direito por estarem habitando todo o território brasileiro. E quando chega a colonização européia, expropriando essas comunidades, afastando-as e desmembrando-as e por isso elas vem cobrar essa dívida do Estado brasileiro, que nunca reparou na sua total integridade. Diante da inação do estado, comunidades indígenas e quilombolas se unem e retomam seus territórios.”
A disputa é pela moralidade vigente
Assim como o racismo institucional, o racismo estrutural também é responsável por moldar as formas de violência contra os corpos negros: “Esse sistema jurídico racista, ele enxerga os nossos territórios como o lugar do bandido, o lugar do tráfico, o lugar das pessoas vulgares, das pessoas que podem ser violentadas. Também, enxerga nossos territórios como o corpo da mulher que está aberta à violação, a mulher que pode ser violentada pelo sistema. É uma composição do sistema racista e patriarcal que opera muito bem unificando lógicas de opressão – opressão contra nossos territórios. Além da agressão física que geram desterritorializações, também há uma desconfiguração destes territórios, ao qual buscam reforçar como espaços sem qualidades e despotencializados, e isso qualifica o modelo violador na disputa territorial, pois aqui no Brasil a disputa territorial não é apenas uma questão legal, ela também é uma questão moral.
Então, se justifica expulsar e violentar o que é desqualificado. Há uma lógica de que os corpos negros, corpos indígenas, as mulheres recebem entonações de características que não são as características do que se considera pessoas de inteligência, com potencial, pessoas protagonistas de suas histórias, pessoas que precisam ser tuteladas para seguir sua vida em plenitude. E portanto, nós também precisamos combater isso, pois assim estamos combatendo uma questão moral, que tem essa parceria com questões de justificar atitudes violadoras.”
Por isso, Patrícia pondera que é preciso enxergar nestes territórios as suas diversidades, as potencialidades e as formas diversificadas e sofisticadas que esses territórios operam e organizam a sua luta. “A partir do chão dos territórios, que a gente percebe o que está acontecendo, uma forma que atue considerando essa diversidade e essa complexidade que o jogo do viver nos exige. Sabemos que viver exige coragem, e viver uma luta antirracista exige muito mais coragem, muito mais atrevimento, muito mais posicionamento”.
Ela faz ainda um chamado à escuta: “Pensamos que qualquer grupo ou organização política que está disposto, se colocando para somar neste enfrentamento, precisa, antes de qualquer coisa, precisa praticar uma escuta sensível para o que está sendo dito a partir do chão do território. Escutar o que as pessoas estão experienciando as opressões e as violências, o que essas pessoas julgam que é necessário enfrentar e ser feito, quais são as técnicas seculares que elas estão utilizando para dar conta da vida. Não é mais possível, nós enquanto esquerda, não realizemos essa escuta. Não é mais possível acreditar que é preciso formar, colocando as lógicas ocidentais para dentro dos territórios como se as pessoas que vivem as lutas diárias não entendessem o que está acontecendo. As pessoas entendem. Cotidianamente, fazem escolhas complexas e difíceis. Portanto, enquanto esquerda precisamos praticar a escuta, a sensibilidade, a solidariedade com esses grupos, com essas articulações, para daí sim potencializar a luta”, completa..
Para pensar caminhos possíveis para transformar o atual modelo de sociedade em uma sociedade antirracista, Patrícia afirma que “é preciso realizar medidas concretas e reais de acordo com reparações históricas e humanitárias porque são crimes sistematicamente realizados contra as nossas humanidades. Então, a postura [do Carrefour] de apenas pedir desculpas e pagar milhões para fazer propaganda em horário nobre na televisão para tentar limpar o nome da empresa, não repara estes crimes. Pedir desculpas e dizer que não concorda com essas práticas, não promovem as ações transformadoras necessárias a uma postura antirracista. A gente tem pressa por ações concretas e reais, porque são os nossos que estão sendo sistematicamente assassinados, são nossos sonhos que são despedaçados, as nossas famílias desmembradas, vitimadas por este projeto racista, que opera a mais de 5 séculos aqui no Brasil.
Amigos da Terra Brasil, repudia a violência e o ato de assassinato do João Alberto, assim como de Marielle Franco, da Claudia Ferreira, do menino Miguel, de pessoas negras que são encarceradas aos montes dentro da lógica que vem operando há séculos neste país e que criminaliza corpos racializados. “Nós acreditamos que são muitos os responsáveis pelo exterminío dos sonhos negros no Brasil. Foram muitas mãos que espancaram João Alberto e executaram-o além da segurança privada do Carrefour e da polícia militar. Foram todas as mãos que pactuam com esse sistema racista. E essas mãos seguem violando a memória deste corpos, porque essas pessoas são violentadas e tem um tratamento que as julga na sua morte e as condena como criminosas. Então, é muito cruel o tratamento que o Brasil vem dando e colocando para as pessoas negras e as pessoas indígenas. E a cada dia que passa é mais perigoso ser negra e ser negro no Brasil. E por isso é preciso solidariedade, é preciso ações antirracistas, para que estes crimes parem de acontecer. E Amigos da Terra Brasil se colocam ao lado desses territórios nas suas lutas, se dispõem como companheiro e companheira de resistência. Aqui a gente faz uma aposta que tem por objetivo a vitória da vida, com tudo que ela capaz de trazer de potencialidade, de diversidade, de força, e acreditamos que estamos dando passos em uma caminhada bonita que materializa uma construção de confiança, com suporte técnico, com parceria política para a transformação antirracista.”
A entrevista de Patrícia Gonçalves foi publicada pela Rádio Mundo Real e é possível ouvir abaixo:
Na noite de ontem (19), em Porto Alegre, Beto foi morto espancado e asfixiado nas mãos de um policial militar temporário e um segurança do Carrefour. Vamos às ruas por justiça e responsabilização da empresa transnacional!
Nesse 20 de novembro, dia da Consciência Negra, gostaríamos de somente exaltar a ancestralidade africana, valores de solidariedade e afeto presentes em cada Quilombo desse país, mas somos atravessados e atravessadas por um assassinato brutal e cruel. Na noite de ontem, em Porto Alegre, mais um corpo preto tomba nas mãos da polícia que mata em nome da proteção de uma empresa transnacional. Mais um, infelizmente, precisamos escrever: MAIS um. As cenas se repetem e também se repete nossa indignação diante de uma sociedade racista que engatinha no aprendizado que comunidades de negros e negras ensinam há séculos.
Uma sociedade que naturalizou a morte de negros e negras a ponto de saber que, a cada 23 minutos, um jovem negro é morto nesse país e, sabendo disso, nada ou pouco faz para reduzir os índices de violência racial. Índices que nunca serão somente números, são vidas, com suas complexidades, sonhos, desejos, afetos. Vidas interrompidas por um projeto político de sociedade – defendido por #ForaBolsonaro – que opera de forma genocida, justamente, ao não colocar no centro das necessidades a preservação da vida e a dignidade da pessoa humana.
Beto, como era conhecido no IAPI, morreu asfixiado depois de ser espancado por um policial militar temporário e um segurança do supermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre. Vídeos que mostram a violência e o pedido de Beto por ajuda circularam ontem à noite nas redes sociais e seguem circulando hoje. Um homem negro, um policial militar, asfixia, pedido de socorro. Não são coincidências. Assim também mataram George Floyd nos Estados Unidos, levando a população estadunidense às ruas na onda de protestos que internacionalizou a luta antirracista sob o grito: “VIDAS NEGRAS IMPORTAM”.
A pauta internacionalista chegou às ruas e às urnas também – em Porto Alegre, elegemos, pela primeira vez na história, uma bancada preta: quatro vereadoras negras e um vereador negro. E sempre dissemos que nossas lutas não cabem nas urnas, como as mortes e violências não constam nas urnas. Hoje prestamos solidariedade à família e amigos do Beto, e escutamos o desejo manifestado por seu pai: JUSTIÇA. Sairemos às ruas com toda nossa indignação – gritando em alto e bom som que RACISTAS NÃO PASSARÃO.
Amigos da Terra Brasil
📢 Nos vemos nas ruas!
💪🏿 Porto Alegre – 18h – SEM JUSTIÇA NÃO HÁ PAZ – em frente ao Carrefour Passo D’Areia
💪🏿 Rio de Janeiro – 16h – Av. das Américas, 5150, Barra da Tijuca
💪🏿 São Paulo – 16h – no vão do MASP até o Carrefour