Reintegração de posse dos Xokleng: Retomada do território ancestral vai contra os interesses de Ricardo Salles

Os indígenas buscam o reconhecimento da área como território tradicional junto à Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 2011.

Artigo originalmente publicado no site do Coletivo Catarse em parceria com Alass Derivas.

As famílias Xoklengs que retomam desde o 12 de dezembro suas terras ancestrais na Região de São Francisco de Paula saíram, na noite do dia 1 de janeiro de 2020, voluntariamente da área da Floresta Nacional (Flona). No entanto, seguem resistindo às margens da RS-484, do lado de fora da cerca da Flona. A estratégia se deu após mais uma ameaça de reintegração de posse, que tinha como prazo o dia 2 de janeiro. 

Após ver todos os interesses privados nas concessões das florestas nacionais do país, incentivados pelo Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, é possível entender melhor a pressa em tirar os indígenas da Flona e a impossibilidade de diálogo.

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Novo acampamento fica no lado de fora da cerca da Flona, às margens da RS-484 | Foto Alass Derivas



Agentes públicos saindo da Flona e se dirigindo ao acampamento dos indígenas Xokleng. | Foto Alass Derivas

No meio da manhã do sábado (2), chegaram os agentes públicos para cumprir a ordem da Justiça Federal de Caxias do Sul, solicitada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), que administra a Flona. No mandado, consta: “determinação para que a polícia federal proceda à desintrusão dos invasores fazendo uso das medidas necessárias”. Com a saída voluntária por parte dos indígenas, não havia mais o que os agentes públicos fazerem ali além de intimar as partes responsáveis no processo. 

As quatro famílias Xokleng, descendentes de Veitcha Teiê e Voia Camlem, tiveram a solidariedade de cerca de 10 apoiadores na noite da véspera da reintegração. No entanto, foi uma manhã de tensão, devido ao aparato armado da Polícia Federal, o certo isolamento da retomada em relação a distância e comunicação e também devido às intransigências da coordenação do ICMBio, na figura da chefe da Flona, Edenice Brandão Ávila de Souza. Apesar disso, nenhum incidente de violência direta aconteceu, e os Xokleng seguem firmes e fortes no lado de fora da cerca da Floresta Nacional. Mantém-se em resistência com os seus corpos enquanto traçam estratégias para quando o judiciário voltar do recesso.

No dia 2 de janeiro, as lideranças da Retomada Xokleng publicaram uma nota explicando o movimento de saída voluntária e anunciando que a luta segue. “Não vão nos amedrontar com ameaças de remoção forçada e muito menos nos intimidar através de medidas judiciais protelatórias ao nosso direito. Nossa retomada é sopro de vida, sinal de esperança e símbolo de luta e resistência. Seguiremos unidos aos demais Povos do Brasil contra as injustiças, pela demarcação de todas as terras, defendendo-as e combatendo a tese do marco temporal e as demais manobras políticas e jurídicas criadas para nos roubar a terra e inviabilizar a Constituição Federal de 1988”.

As retomadas encabeçadas pelos povos indígenas podem ser consideradas como ações diretas de caráter decolonial. Ao adentrarem novamente no seu território ancestral, os Xokleng da retomada Konglui restauram a história do nosso país. Dão visibilidade a fatos, acontecimentos e pessoas que foram apagadas da história oficial. Ao mesmo tempo, os horizontes de futuro que projetam nos territórios recuperados se espelham nos conhecimentos dos seus antepassados. O retorno, que nasce no interstício do esbulho e da indignação, conta com a presença dos espíritos que guiam os Xokleng nas suas decisões e nos seus caminhos. Algo incompreensível pelo oficial de justiça, pelos agentes da FLONA, do ICMBio e da Polícia Federal – que se deslocaram no segundo dia deste novo ano, ainda em plena pandemia de Covid-19, para despejar os indígenas, e isso, “em nome da lei”.

Relato da manhã de reintegração


Agente do GPI, Edenice, Oficial de Justiça, Delegado da Polícia Federal e Isaac conversam reservadamente na estrada logo após a entrada da Flona. | Foto Alass Derivas

Assim que chegaram, os agentes públicos – a Polícia Federal, com o Grupo de Pronta Intervenção da PF (GPI); o funcionário da Funai, Francisco Aureliano Dorneles Wit; uma ambulância e o oficial de Justiça – pediram para conversar em reservado com a coordenação do ICMBio. Ingressaram na Flona, vistoriaram a área onde estava a retomada, observaram o novo acampamento por trás da cerca e só depois, aproximadamente uma hora depois, vieram conversar com a comunidade. O oficial de justiça foi recebido por Yoko Camlem e Kullung Veitcha Teiê, as duas mulheres à frente da retomada. A primeira intervenção feita por Kullung foi solicitar para o oficial afastar os policiais, pois as armas estavam assustando as crianças.   


Foto Alass Derivas



    No diálogo, Kullung reiterou a história da sua família naquelas terras e o passado de violência que seu povo sofreu, sendo o episódio que acontecia naquele momento mais uma delas. “Aqui é nosso território, daqui saiu nosso bisavós, tataravós. Eles morreram aqui, aqui está o sangue dos nossos antepassados, aqui é a terra deles. Aqui eles foram massacrados, foram matados e uma parte foi para Santa Catarina. Esse território é nosso. Nós não estamos roubando de ninguém”. Por sua vez, o Oficial de Justiça intimou Kullung com o despacho da reintegração de posse e alertou que, se houver uma nova entrada, a comunidade pode ser prejudicada judicialmente por isso. Também informou sobre a disponibilidade do Sindicato Rural de São Francisco de Paula em conceder transporte para levar os indígenas para Santa Catarina. Quais os interesses do sindicato neste oferecimento?


Kullung, o oficial de Justiça e os agentes do GPI da Polícia Federal. | Foto Alass Derivas

O primeiro a chegar foi o funcionário da Funai, vindo de Osório, Francisco Aureliano Dorneles Wit. Assim que chegou, buscou contato com a comunidade e foi enxotado por Kullung, que sugeriu que fosse falar com “a sua amiga” Edenice. A indignação de Kullung se deu devido a ausência da Funai durante os dias de retomada. A instituição aparecia no momento da reintegração como participação obrigatória devido o réu ser a comunidade indígena. Ou seja, em vez de garantir os direitos territoriais dos povos, a instituição veio até a FLONA apenas para possibilitar a retirada dos Xokleng do seu território, legitimando assim a reintegração de posse solicitada pelo ICMBio.


Kullung diz para o funcionário da Funai aguardar com seus amigos do ICMBio. | Foto Alass Derivas

O ato derradeiro da ação de reintegração de posse, já no final da manhã, ficou por conta de Edenice. Depois de delegado, oficial de justiça, representante da Funai já terem se afastado do novo local do acampamento da retomada, às margens da RS-484, Edenice voltou, escoltada pela Polícia Federal, e ordenou que um funcionário do ICMBio cortasse colunas de madeiras, estruturas de um barraco que estava sendo construído naquela manhã. Foi questionada por que estavam fazendo aquilo. “Esta madeira é propriedade da Unidade de Conservação”. Então vocês vão levar de volta? “Não, eles podem usar como lenha”. Era apenas um ato de autoritarismo, mesquinharia e provocação. Recebeu como resposta dos indígenas que poderia levar sua madeira embora.


Escoltada pela Polícia Federal, Edenice, chefe da Flona, manda cortar vigas de madeira uadas pelos Xoklengs. | Foto Alass Derivas

Foto Alass Derivas

Instantes antes da Polícia Federal e o Oficial de Justiça chegarem, visitamos a região onde estava a retomada, junto com Edenice, chefe da Flona de São Francisco de Paula, com Isaac Simão Neto, biólogo e gerente regional do ICMBio, e com um funcionário do ICMBio, que fazia as vezes de segurança. Tivemos a oportunidade de, por alguns minutos conversar sobre o futuro da floresta, que está em vias de ter seus serviços concedidos à iniciativa privada, e entender como a coordenação estava vendo a ação de reintegração.  


Edenice, Isaac e Brigadista do ICMBio | Foto Alass Derivas


    Ao invés de reintegração, não seria possível um diálogo? “O diálogo deveria ser anterior à invasão”, defende Isaac. “Se eu invadir a tua casa, como seria? Invadir uma área que não há um documento que mostre que esta área é deles, então você abre precedente e começa o diálogo de uma forma equivocada”. Se assim como Isaac você somente acredita em papéis, sugiro a leitura do texto “Mãe não se vende, Mãe não se troca, Mãe não se privatiza!”: Nota técnica preliminar envolvendo aspectos etnohistóricos e socioambientais da Retomada Indígena Xokleng Konglui na Floresta Nacional São Francisco de Paula/RS”, do etnohistoriador Rafael Frizzo. Um documento que cita diversos outros documentos sobre a presença Xokleng na região e sobre os interesses por trás da Flona.


Local onde era o acampamento, ao lado direito da entrada da Flona, aos pés de centenas de Pinus | Foto Alass Derivas

Após Edenice reclamar do mal cheiro da área (não sentido por nós, diga-se), em um tom depreciativo, Isaac apontou para roupas, embalagens que tinham ficado pelo chão, resquícios da saída voluntária às pressas dos Xokleng e perguntou: “vocês acham que isso é um cuidado da natureza por parte dos indígenas, respondam sinceramente?” Como biólogo e representante de um Instituto que tem em seu nome a “Conservação da Biodiversidade”, é um disparate (para não dizer mau caratismo) Isaac apontar calcinhas de crianças – que vão se decompor em alguns anos e que estão ali devido à violência de todo o processo que os Xoklengs passaram naquela manhã – como prejudiciais ao meio ambiente e desconsiderar, na sua fala, na sua visão, todos os monocultivos (de eucalipto, pinus, soja, milho) que existem na região. Esta cena é a consagração de uma visão de mundo que vê a retomada dos indígenas como invasão. Que vê o monocultivo de árvores como reflorestamento, ignorando ou combatendo quem aponta todo o dano à biodiversidade que este sistema comercial de exploração do solo, água e impactos na biodiversidade que esse modelo produz.

Por que Isaac não se preocupa em questionar os danos ao meio ambiente de propriedades como da foto abaixo, produtora de gado e monocultivo de Pinus? Você vê algum animal mais que gado, alguma planta mais que Pinus? Ao cortar o Pinus, não fica nada. Foto tirada perto da Barragem do Blang, em São Francisco de Paula.

Foto Alass Derivas


Dos povos indígenas do Sul, os Xokleng foram os mais afetados pelos bugreiros e caçadores, recorte da história que relatamos no texto “Somos sementes prontas para germinar”. Reportagem publicada no dia 30 de dezembro, contando a história da retomada, da Flona e das perseguições ao povo Xokleng. Em nota sobre a reintegração de posse, o Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul destaca este processo, trazendo elementos sobre os caminhos dos Xokleng:

“A violência foi tanta que os poucos grupos que sobreviveram se refugiaram em Santa Catarina para não serem também exterminados. Durante esse processo violento, pequenos grupos de Xokleng se refugiaram nas matas da encosta da Serra, que sempre foi parte de seu território ancestral. Estiveram constantemente em movimento até se refugiarem na Serra de Santa Catarina, onde em 1914 os Xokleng entraram em contato com agentes do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (posteriormente SPI e em 1967, FUNAI). Desde então, tem se difundido o mito de que os Xokleng seriam “índios de Santa Catarina”, o que é uma invenção colonialista, pois para os povos indígenas as fronteiras entre os Estados nada mais são do que linhas artificiais desenhadas sobre seus territórios, além de esconder uma estratégia de apagamento e negação dos direitos desses povos”.

O coordenador do ICMBio pede documentos, desconsiderando que o próprio documento é uma arma de coerção, de desapropriação, de roubo de terras. Desconsiderando que na história deste país os documentos que promoviam a expulsão e extermínio dos povos eram o calibre das armas e a lâmina do facão. Hoje, a Polícia Federal apresenta armas semelhantes, aliados à caneta (e aos documentos) da Justiça.

Agentes do Grupo de Pronta Intervenção da Polícia Federal. Todos brancos, bem equipados. | Foto: Alass Derivas
Comunidade e apoiadores, com seus corpos e suas proteções. | Foto Alass Derivas

Na véspera de ano novo, dia 31 de dezembro de 2020, o presidente do STF, Luiz Fux, ministro plantonista, indeferiu o pedido de liminar, proposto pela Defensoria Pública da União, em nome da comunidade Xokleng. Fux desconsiderou a medida do colega Edson Fachin que impedia reintegrações de posse durante o período da pandemia. A ação de reintegração foi mantida, determinada pelos juízes plantonistas (primeiro Fernanda Cusin Pertile, no dia 23, e depois Patrick Lucca da Ros, no dia 29) da Justiça Federal de Caxias do Sul, a pedido do ICMbio. A assessoria jurídica da retomada ainda não teve acesso à decisão integral de Luis Fux, portanto a motivação é desconhecida.

Já no final da ação de intimação, um agente da Polícia Federal se aproximou e pediu um favor: se poderia ter as fotos daquela manhã enviadas por Whatsapp, pois nesta semana enviaria um relatório que ia direto para o Presidente da República Jair Bolsonaro. Destacamos o pedido do policial para lembrar que os serviços da área da Flona estão em vias de ser concedidos à iniciativa privada após Bolsonaro e o Ministro da Economia Paulo Guedes a terem incluído no Programa Nacional de Desestatização. No entanto, a chefe da Flona e o coordenador do ICMBio insistem em ressaltar no discurso que a Floresta não vai ser privatizada. Inclusive esta informação é destacada na nota do perfil do Facebook da Floresta Nacional de São Francisco de Paula que divulga a visita do Ministro Ricardo Salles, em 12 de abril de 2019.  Na comitiva do Ministro, estavam os deputados inimigos dos povos indígenas, Luis Carlos Heinze, Alceu Moreira e Marcel Van Hattem.

Foto divulgada no Facebook da Floresta Nacional de São Francisco de Paula.


440% da área da Flona tem árvores plantadas, que vão ser leiloadas pelo Estado, segundo Edenice e Isaac. O que será feito com esse dinheiro? O que será feito com a área liberada? Como o Governo Federal pretende “passar a boiada” nas Unidades de Conservação?

Se há um processo de reivindicação da área correndo na Funai desde 2011, os Xokleng deveriam ser considerados interessados prioritários na área e, portanto, seguindo recomendação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, deveriam ser consultados sobre a concessão. Ao ser questionado sobre isso, Isaac afirma que os indígenas foram convidados para a audiência pública que aconteceu em setembro. A comunidade que, hoje, retoma a Flona não recebeu nenhum contato. O Conselho Indigenista Missionário comentou o caso em nota do dia 14 de outubro de 2020, quando o Ricardo Salles lançou edital para concessão dos Parques Nacionais:

“Esta medida poderá afetar diretamente a comunidade Kaingang de Canela, já que reivindica a demarcação da Flona como sendo área de ocupação originária. Também afetará o povo Xokleng que reivindica a demarcação  de sua terra, sobreposta pela Floresta Nacional em São Francisco de Paula. Aguarda-se por uma intervenção do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União,  já que as privatizações dos parques atentam contra o meio ambiente, contra o patrimônio da União e contra os direitos constitucionais dos indígenas, dado que estes devem ser  consultados para atender as determinações da Convenção 169 da OIT- Organização Internacional do Trabalho, que determina haver a necessidade de consulta livre, prévia e informada quando medidas adotadas pelo Poder Público ou qualquer outro ente, afetem povos e comunidades indígenas e tradicionais”.

Depois de ver o envolvimento do ICMBio em diversas negociações de concessão para iniciativa privada de Unidades de Conservação,  alinhado às políticas do Ministro Ricardo Salles, é possível entender melhor a motivação das intransigências da coordenação da Flona e pressa na reintegração de posse dos Xokleng.

Enquanto isso, Kullung Vetcha Teiê, senhora de 63 anos, resiste com o próprio corpo, com sua família e seus parentes. Resiste a todo um esquema internacional de privatização de florestas nacionais. Amparados nos sopros que vem do grande espírito.

Kullug Vetcha Teiê e Woie Patté cantam após agentes púbnlicos se retirarem. | Foto Alass Derivas



A luta segue

Neste momento, é necessário fortalecermos a solidariedade e as estruturas do acampamento Xokleng em frente à Flona. Uma campanha de arrecadação está sendo organizada para viabilizar uma placa solar (assim como já existe na Retomada Guarani da Ponta do Arado) para trazer mais segurança e possibilidade de comunicação das famílias que está sem acesso a energia.

O frio das madrugadas na região serana do Rio Grande do Sul também traz a necessidade de moradias que deem proteção ao Xoklengs. Por isso, tábuas e telhas são fundamentais.

As doações podem ser encaminhadas para:

Conta: Banco do Brasil
ag: 5437-2
Cc: 5440-2
CPF: 06124632900
Nome: Woie Kriri Sobrinho Patté

Veja o vídeo “Retomada Xokleng Konglui Resiste”:

Mais fotos da Retomada:

Foto Alass Derivas


Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas
Foto Alass Derivas

“A gente tem pressa por ações concretas e reais, porque são os nossos que estão sendo sistematicamente assassinados”

Pouco mais de um mês após o assassinato de João Alberto pelos seguranças contratados pela rede Carrefour em Porto Alegre, Brasil, Patrícia Gonçalves, integrante do Conselho Diretor do Amigos da Terra Brasil e militante da Frente em Defesa dos Territórios Quilombolas no Rio Grande do Sul, analisa as medidas tomadas pela empresa e pela Justiça. Ela defende uma mudança de paradigma no tecido social no que diz respeito às comunidades pretas no Brasil.

No último 19 de dezembro de 2020, completou um mês do terrível crime cometido contra João Alberto. Esse episódio é reflexo do racismo estrutural e institucional vivenciado no Brasil. Beto, como era conhecido, foi brutalmente espancado até a morte pela segurança privada da rede de supermercados Carrefour e pela polícia militar. Para analisar  este caso  cruel e racista, conversamos com Patrícia Gonçalves, integrante do Conselho Diretor do Amigos da Terra Brasil e militante da Frente em Defesa dos Territórios Quilombolas no Rio Grande do Sul. 

O crime ocorreu um dia antes do dia da consciência negra, em Porto Alegre, uma das cidades brasileiras mais segregadas. Na mesma semana, se celebrava a eleição de uma banca negra na Câmara Municipal de Porto Alegre, fato até então nunca ocorrido. Patrícia relata que: “As pessoas estavam felizes com a eleição da bancada negra, e também com a questão de gênero elegendo muitas mulheres, tanto em Porto Alegre como em diversas cidades do Brasil. Estamos caminhando para uma transformação destes espaços que é muito necessário. E ao mesmo tempo que comemorávamos e celebrávamos, o racismo vem para colocar qual é a condição das pessoas negras, das pessoas não brancas aqui no Brasil.”

O caso do João Alberto ganhou grande impacto e mobilização nacional pela simetria com o assassinato de  George Floyd ( no dia 25 de maio de 2020, Floyd foi estrangulado por um policial branco que ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem, em Minneapolis, nos Estados Unidos) ganhando repercussão em diversos países com a campanha “Black Lives Matter” [Vidas Pretas Importam, na tradução literal]. Principalmente, o caso do João Alberto ganha grande repercussão porque isso exemplifica a realidade cotidiana de homens negros e mulheres negras.

Esse é o nosso cotidiano. Nós vivemos em um país que não nos reconhece enquanto humanidade, que não nos reconhece enquanto força potente de transformação social. Nós sobrevivemos ao imenso projeto de extermínio, genocídio e epistemicídio. Aqui no Brasil, além da escravidão, a colonização, por exemplo, financiou políticas eugenistas que projetaram em 100 anos a população iria embranquecer com a  vinda da imigração européia, e daí sim se tornaria uma população civilizada. Se investiu dinheiro público para isso, se defendeu essa ideia e, como consequência, ações de desterritorialização ainda maiores dos nossos povos originários e os povos negros que aqui estavam em função desta lógica que acredita em apenas um modelo de pensar  através dos corpos brancos do ocidente, é um modelo correto e civilizado. E a gente sobreviveu a isso! De forma habilidosa e estratégica, sobrevivemos a isso.”, descreve Patrícia.  

Este não é um episódio isolado. A rede Carrefour tem um histórico muito problemático, com casos de agressão física, violação de direitos, em todo o território brasileiro. Patricia nos descreve alguns exemplos: “temos o caso de uma funcionária que após receber tratamento racista dos colegas de trabalho, fez uma denúncia e o tratamento que a empresa deu foi a demissão. Também, temos o caso de um funcionário que faleceu em um estabelecimento de trabalho e a ação da empresa foi seguir as atividades normalmente, camuflando o corpo exposto, sem dignidade. O corpo negro não recebe nenhuma dignidade da empresa que usufruiu do seu trabalho por muito tempo. Temos casos de clientes que são perseguidos, violentados, que não podem transitar de forma digna nos estabelecimentos destas redes de supermercados porque sempre são vistos como suspeitos e violentados. E, agora, o caso do João Alberto que foi cruelmente assassinado.”

Além do caso Carrefour, outras redes do setor alimentício são violadoras de direitos aqui no Brasil. Em Porto Alegre, há outros casos envolvendo a disputa territorial com as comunidades quilombolas. Por exemplo, a rede Walmart, que é uma corporação que explora a mão de obra de trabalhadores, tenta desterritorializar a comunidade Quilombo dos Machados. Patrícia conta a história dessa comunidade e descreve como a comunidade sente os impactos do racismo institucional: “A comunidade tem uma história de vida muito anterior à chegada da rede Walmart e mesmo assim nosso sistema jurídico não consegue e não quer compreender isso. Atualmente, a comunidade precisa  investir muito tempo e energia numa disputa homérica para garantir que a justiça seja feita. E para nós, é muito difícil passar por esse crivo jurídico, conseguir se fazer desenvolver em um processo que dê retorno a nossa luta, nossa construção e nosso ideal de mundo. É extremamente complexo e difícil para uma comunidade quilombola ser avaliada e analisada por esse sistema. Mas, a regra que temos é que a propriedade da terra vale mais do que as pessoas e por isso se faz necessário enfrentar este cenário e espaço. E conseguir de diferentes formas e narrativas diversas disputar o que é um  território quilombola, o que é a constituição de um mundo possível nestes territórios, onde o próprio sistema renegou outras espacialidades e colocou essas pessoas nesses espaços onde se construiu e constituiu toda sua lógica de territorialidade”. 

Ela complementa: Por isso, é preciso enfrentar essas empresas e esse sistema jurídico racista com as nossas lógicas. Esse é um sistema que nos enxerga como invasores, como ocupantes de um espaço. Ele não consegue compreender que nós estamos operando em um projeto de retomada de território e retomada do que é nosso por direito em função das consequências de uma série de crimes que exerce desde a formação do Brasil contra os corpos negros e as formas de territorialização dos espaços negros. Um sistema que tem dificuldade em compreender o que é a lógica da retomada, da reconquista do que é nosso por direito. E essa é a  experiência que estamos vivenciando em Porto Alegre, onde existem 8 comunidades quilombolas reconhecidas e uma em processo de reconhecimento, no qual essas comunidades estão recontando a história, retomando o espaço e se afirmando diante de um sistema que é cego para reconhecer essa diversidade e que é racista em operar contra essa diversidade. 

A luta em defesa pela regularização dos territórios quilombolas e indígenas é urgente. Patrícia explica ainda o que compreendem por retomada e as intersecções entre a luta quilombola e indígena:A lógica das retomadas é um aprendizado que nasce a partir da relação com os povos originários, que seguem essa orientação de reconquistar seu espaço e de retomar o que é seu por direito por estarem habitando todo o território brasileiro. E quando chega a colonização européia, expropriando essas comunidades, afastando-as e desmembrando-as e por isso elas vem cobrar essa dívida do Estado brasileiro, que nunca reparou na sua total integridade. Diante da inação do estado, comunidades indígenas e quilombolas se unem e retomam seus territórios.”

A disputa é pela moralidade vigente

Assim como o racismo institucional, o racismo estrutural também é responsável por moldar as formas de violência contra os corpos negros: “Esse sistema jurídico racista, ele enxerga os nossos territórios como o lugar do bandido, o lugar do tráfico, o lugar das pessoas vulgares, das pessoas que podem ser violentadas. Também, enxerga nossos territórios como o corpo da mulher que está aberta à violação, a mulher que pode ser violentada pelo sistema. É uma composição do sistema racista e patriarcal que opera muito bem unificando lógicas de opressão – opressão contra nossos territórios. Além da agressão física que geram desterritorializações, também há uma desconfiguração destes territórios, ao qual buscam reforçar como espaços sem qualidades e despotencializados, e isso qualifica o modelo violador na disputa territorial, pois aqui no Brasil a disputa territorial não é apenas uma questão legal, ela também é uma questão moral. 

Então, se justifica expulsar e violentar o que é desqualificado. Há uma lógica de que os corpos negros, corpos indígenas, as mulheres recebem entonações de características que não são as características do que se considera pessoas de inteligência, com potencial, pessoas protagonistas de suas histórias, pessoas que precisam ser tuteladas para seguir sua vida em plenitude. E portanto, nós também precisamos combater isso, pois assim estamos combatendo uma questão moral, que tem essa parceria com questões de justificar atitudes violadoras.” 

Por isso, Patrícia pondera que é preciso enxergar nestes territórios as suas diversidades, as potencialidades e as formas diversificadas e sofisticadas que esses territórios operam e organizam a sua luta. “A partir do chão dos territórios, que a gente percebe o que está acontecendo, uma forma que atue considerando essa diversidade e essa complexidade que o jogo do viver nos exige. Sabemos que viver exige coragem, e viver uma luta antirracista exige muito mais coragem, muito mais atrevimento, muito mais posicionamento”. 

Ela faz ainda um chamado à escuta: “Pensamos que qualquer grupo ou organização política que está disposto, se colocando para somar neste enfrentamento, precisa, antes de qualquer coisa, precisa praticar uma  escuta sensível para o que está sendo dito a partir do chão do território. Escutar o que as pessoas estão experienciando as opressões e as violências, o que essas pessoas julgam que é necessário enfrentar e ser feito, quais são as técnicas seculares que elas estão utilizando para dar conta da vida. Não é mais possível, nós enquanto esquerda, não realizemos essa escuta. Não é mais possível acreditar que é preciso formar, colocando as lógicas ocidentais para dentro dos territórios como se as pessoas que vivem as lutas diárias não entendessem o que está acontecendo. As pessoas entendem. Cotidianamente, fazem escolhas complexas e difíceis. Portanto, enquanto esquerda precisamos praticar a escuta, a sensibilidade, a solidariedade com esses grupos, com essas articulações, para daí sim potencializar a luta”, completa.

Para pensar caminhos possíveis para transformar o atual modelo de sociedade em uma sociedade antirracista, Patrícia afirma que “é preciso realizar medidas concretas e reais de acordo com reparações históricas e humanitárias porque são crimes sistematicamente realizados contra as nossas humanidades. Então, a postura [do Carrefour] de apenas pedir desculpas e pagar milhões para fazer propaganda em horário nobre na televisão para tentar limpar o nome da empresa, não repara estes crimes. Pedir desculpas e dizer que não concorda com essas práticas, não promovem as ações transformadoras necessárias a uma postura antirracista. A gente tem pressa  por ações concretas e reais, porque são os nossos que estão sendo sistematicamente assassinados, são nossos sonhos que são despedaçados, as nossas famílias desmembradas, vitimadas por este projeto racista, que opera a mais de 5 séculos aqui no Brasil. 

Amigos da Terra Brasil, repudia a violência e o ato de assassinato do João Alberto, assim como de Marielle Franco, da Claudia Ferreira, do menino Miguel, de pessoas negras que são encarceradas aos montes dentro da lógica que vem operando há séculos neste país e que criminaliza corpos racializados. “Nós acreditamos que são muitos os responsáveis pelo exterminío dos sonhos negros no Brasil. Foram muitas mãos que espancaram João Alberto e executaram-o além da segurança privada do Carrefour e da polícia militar. Foram todas as mãos que pactuam com esse sistema racista. E essas mãos seguem violando a memória deste corpos, porque essas pessoas são violentadas e tem um tratamento que as julga na sua morte e as condena como criminosas. Então, é muito cruel o tratamento que o Brasil vem dando e colocando para as pessoas negras e as pessoas indígenas. E a cada dia que passa é mais perigoso ser negra e ser negro no Brasil. E por isso é preciso solidariedade, é preciso ações antirracistas, para que estes crimes parem de acontecer. E Amigos da Terra Brasil se colocam ao lado desses territórios nas suas lutas, se dispõem como companheiro e companheira de resistência. Aqui a gente faz uma aposta que tem por objetivo a vitória da vida, com tudo que ela capaz de trazer de potencialidade, de diversidade, de força, e acreditamos que estamos dando passos em uma caminhada bonita que materializa uma construção de confiança, com suporte técnico, com parceria política para a transformação antirracista.” 


A entrevista de Patrícia Gonçalves foi publicada pela Rádio Mundo Real e é possível ouvir abaixo:

“Somos sementes prontas para germinar”

A luta do povo Xokleng ao retomar seu território ancestral, em que agiram bugreiros no passado e onde hoje o Estado ameaça com reintegração de posse 

Há dois anos, Vetchá Teiê Xokleng Konglui morreu com aproximadamente 100 anos. Quando era um bebê de colo, foi expulso com a família do território indígena Xokleng, onde hoje é a Floresta Nacional (Flona), Unidade de Conservação Federal em São Francisco de Paula. O umbigo de Vetchá está enterrado neste solo. 

Kullung Vecthá Teiê | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Meu pai me trouxe aqui quando ainda era mata nativa e mostrou para mim e para os seus netos onde seu umbigo está enterrado” conta Kullung Vetchá Teiê, hoje com 63 anos. “No caminho ele vinha mostrando nossos antepassados. Vinha contando que lá dentro da Flona tem a oca dos nossos parentes, ferramentas, trilhas”.



Vetchá Teiê foi um dos inúmeros Xoklengs que nasceram nesta localidade e tiveram que sair para sobreviver à ação dos bugreiros, bandidos contratados pelo governo e por empresas colonizadoras para caçar os indígenas nas matas e liberar o território para alemães e italianos que chegavam no sul do Brasil. 

No dia 12 de dezembro deste ano, Kullung e Yoko, filhas do seu Vetchá, com suas famílias e parentes apoiadores ingressaram na Floresta Nacional para ficar. “No passado, mataram meus parentes, atropelaram, cortaram as mulheres grávidas, mataram as crianças, cortaram a orelha delas, acabaram com minha nação, aqui neste lugar. Mas graças a Deus sobrou um grupo, que antigamente era botocudo, hoje é Xokleng. Estamos vivos, estamos aqui!”, afirma Kullung. São cerca de 30 pessoas, sendo 14 crianças; as duas filhas de Vetchá e suas famílias; a família de Yoco Camlem, prima de Kullung, filha de Voia Camlem, que é irmão de Vetchá Teiê; a família de Woie Kriri Sobrinho Patte; e Merong Kamakã, guerreiro Patoxá Hã-hã-hãe que é solidário à luta dos parentes. Entre as crianças, está o tataraneto de Vetchá. Começava ali a retomada histórica do território ancestral do povo Xokleng, no Rio Grande do Sul. Uma ação direta, puxada por mulheres, de reparação histórica por parte dos Xoklengs contra as violências do Estado e seus ramos opressores: a justiça, a polícia, as milícias (como os bugreiros).  

Os anciãos Xonkleng Vetchá Teiê e Voia Camlem, nascidos na região da Flona e pais das mulheres que hoje promovem a retomada | Fotos: Arquivo Pessoal Kullung Vetchá Teiê
Entre as crianças, está o tataraneto de Vetchá | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

REINTEGRAÇÃO DE POSSE

Nos últimos dias, os descendentes do seu Vetchá ocuparam com barracos de lona uma pequena parte da Floresta Nacional de São Francisco de Paula, criada em 1968 e desde 2004 administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A área ocupada está na lateral direita da entrada do parque, perto da RS-484, solo coberto por plantação de Pinus.

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Após alguns dias de convívio pacífico com os funcionários da Flona e de tentativas de diálogo, em conjunto com o Ministério Público Federal, os indígenas Xoklengs foram surpreendidos pelas ações da coordenação da Unidade de Conservação, hoje chefiada por Edenice Brandão Ávila de Souza. Segundo os indígenas, a luz usada para carregar os celulares, na guarita de entrada da Flona, foi cortada. Nesta terça (29), a coordenação fez uma postagem com o título “combatendo Fake News”, em que informa sobre a distribuição de água, de luz e de internet. Na postagem, diz que a luz estaria disponível das 7h às 19h, enquanto houvesse vigilante na guarita. Na segunda-feira, enquanto estávamos lá, das 7h da manhã às 14h, foram poucos os momentos em que avistamos algum funcionário presente na entrada. 

Registro dos ancestrais de Vetchá Teiê e de Voia Camlem, indígenas nascidos na terra onde hoje é a Retomada Xokleng | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Em outro movimento não esperado pelos indígenas e até pelo Ministério Público, a coordenação da Flona solicitou à Justiça Federal de Caxias do Sul a reintegração de posse da área. No dia 23 de dezembro, véspera do Natal, a juíza federal plantonista, Fernanda Cusin Pertile, emitiu mandado favorável à retirada dos indígenas. Foi um final de semana de tensão.

“Nós queremos ser ouvidos, ter uma audiência com ICMBio, com Ministério Público, com a juíza”, reivindica Woie Kriri Sobrinho Patté, uma das lideranças da retomada Xokleng. “Nos ouçam porque estamos aqui! É fácil estar no escritório, atrás do computador e mandar uma reintegração de posse. Existem leis internacionais que o governo brasileiro aderiu [Conveção 169]. A Organização Internacional do Trabalho (OIT)  diz claramente que precisamos ser ouvidos”. 

Woie Kriri Sobrinho Patté fala sobre a situação na retomada | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

A ação de reintegração tinha como prazo a última segunda, dia 28, no entanto até o momento não ocorreu. Nos dias anteriores, a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) tentaram reverter a ação. O MPF entrou com agravo de instrumento, mas este foi indeferido pelo plantão do Tribunal Regional Federal da 4a Região. A DPU entrou com reclamação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) aludindo à decisão do Ministro Edson Fachin de não realização de reintegração de posse em terras indígenas durante a pandemia de Coronavírus para evitar que a doença se alastre. No dia 26, a Polícia Federal de Caxias do Sul se manifestou recomendando o adiamento da ação justamente devido à pandemia. 

A reintegração de posse não ocorreu até o momento, embora o STF não tenha dado nenhum retorno à reclamação da DPU até a publicação desta matéria.

“Eu não vou sair daqui. Vou ficar aqui. Hoje, se a Polícia Federal vir, eu deito no chão e podem me matar. Só saio daqui dentro do caixão”, bateu o pé a senhora Kollung.  

No dia 24 de dezembro, o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) se manifestou em nota recomendando a suspensão da reintegração de posse e o encaminhamento de uma solução negociada.  Desde o dia 23, os Xoklengs Konglui já receberam a visita da Polícia Federal, da Polícia Militar e do Oficial de Justiça Federal.  “Gostaria que o governo nos ouvisse, cara a cara, mas por enquanto só vejo ameaças contra nós. O que o governo está pensando? Nós somos raiz, nós somos donos desta terra”, insiste Kollung.     

No entanto, para além das intervenções do governo, também chegaram visitas de solidariedade. Nós da Amigos da Terra Brasil, articulado com o Conselho Indigenista Missionário, estivemos na segunda-feira no território retomado. Prontos para cobrir qualquer violação e produzir este conteúdo. Também subimos a serra com a solidariedade da Frente Quilombola RS. O Quilombo dos Machado, localizado na zona norte de Porto Alegre, enviaram alimentos e produtos de limpeza equivalentes há cerca de 5 cestas básicas. Produtos arrecadados através de doações para o Quilombo dos Machados. A retomada, também, tem recebido doações diretamente, através de articulação pelas redes sociais e pontos de coleta em Porto Alegre, Lajeado e São Francisco de Paula.

Os Xokleng Konglui enfrentam hoje esta possibilidade de reintegração de posse, que por trás, além do preconceito e violência histórica contra os povos indígenas, traz também os interesses da iniciativa privada. 

HISTÓRIA E FUTURO DOS XOKLENG NA FLONA

Neste registro, enviado por Kullung, Voia Camlem, Vetcha Teiê e Compacam, todos nascidos nesta região, voltam ao local e conversam sobre suas famílias. Kullung não soube informar a data exata desta conversa | Foto: Arquivo pessoal de Kullung Vectha Teie

A saída por sobrevivência da família de Vetchá Teiê, da família de Voia Camlem e de Compacam do território onde, hoje, é a Floresta Nacional de São Francisco de Paula não é exceção, tanto na região da serra gaúcha, como em todos os interiores deste Brasil. Em nota de solidariedade divulgada no dia 18 de dezembro pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o processo violento de colonização é destacado: “Por séculos os Xokleng foram vítimas de um brutal processo de colonização que quase levou ao completo desaparecimento do povo, que tradicionalmente ocupavam os territórios que estavam localizados no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná”. Desde a chegada dos portugueses em 1500, os povos originários sofrem com a violência, seja a direta, através das armas, seja através das doenças. No Rio Grande do Sul, muitas terras em que viviam indígenas (Kaigangs, Xoklengs, Minuanos, Charruas, Guaranis) foram doadas pelo Estado para os colonos italianos e alemães que recém chegavam. Os europeus que chegavam no nosso país,  mesmo que pobres, ganharam terras, enquanto negros alforriados foram jogados nas ruas sem nada, enquanto indígenas eram caçados e desterritorializados. Esta diferença histórica na territorialização do nosso país não pode ser perdida de vista nunca na interpretação da propriedade de imóveis hoje e na formação da sociedade como um todo.

 

No Rio Grande do Sul, os bandidos responsáveis por expulsar ou caçar os indígenas, especialmente os Xoklengs, ficaram conhecidos como bugreiros. Eram milícias financiadas pelo governo ou por empresas estrangeiras que preparavam o terreno para os colonos que chegavam.
Woie relembra, com indignação: “a saída do povo Xokleng deste território foi forçada brutalmente. Estes homens pegavam as mulheres grávidas, abriam a barriga da mãe, tiravam a criança e jogavam para cima, riam, diziam que parecia um macaquinho. Quando a criança caia, paravam ela com a ponta do facão, da foice. Matavam estas crianças. Foi muito triste todas estas violações. Então nós não saímos daqui porque a terra não prestava, não. Sair do território era questão de sobrevivência. Fomos para o alto vale de Santa Catarina, onde também fomos massacrados pelo Dr. Blumenau. Hoje muitos conhecem a cidade pela Oktoberfest, mal sabem que fazem festa em cima do cemitério dos nossos parentes, em cima de sangue indígena Xokleng”. Blumenau é a terra onde atuou um dos mais famosos assassinos, o Martinho Bugreiro, que dizia que não matou 100 indígenas, mas sim matou mais de mil. Junto com o seu bando, atuava como um “Esquadrão da morte” de indígenas. O povo Xokleng foi um dos principais alvos dos bugreiros, chegando quase à extinção. Hoje poucas famílias restam ou se identificam com este povo. Os que sobreviveram, sofrem com a falta de território ou vivem em territórios de outros povos, como dos Kaingangs.

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Já ouvi que ‘tivemos a pacificação do povo Xokleng’. Nada disso! Nós estávamos em paz.  Quem estava nos matando, nos aniquilando era o branco. Então eles que foram os pacificados”, corrige Woie. Para ele, o Estado concedeu aos alemães e aos italianos terras que já tinham donos. “Doaram território para ter progresso. Mas que progresso? Exterminar um povo para dar o sustento a outros? Progresso plantando soja? Toda plantação, soja, milho, é vendido para fora hoje. Progresso para 4, 5 famílias? Este tal de progresso matou muitos índios do Brasil. Então, não foi progresso não, foi extermínio!”

As retomadas de terras, que acontecem no sul do país desde a década de 1970, são uma forma de tentar reparar o extermínio não só da vida, mas do conhecimento indígena. “A terra é nossa mãe, toda medicina é da Natureza. Então nós queremos elas de volta”, explica Woie. Kollung conta como se deu a decisão de voltarem a São Francisco de Paula: “Eu disse para mim mesmo: antes do meu tio falecer, irmão do meu pai, eu vou me levantar e vou buscar aquelas terras para minha nação. Mostrei este território para eles como meu pai mostrou para mim. Daqui a pouco eu vou falecer, minha irmã também vai embora desta terra. Mas minha nação agora já conhece seu território. Hoje, estou aqui com o tataraneto do seu Vetchá”. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“A história é viva”, diz Woie. “Cada Xokleng que está aqui é uma história viva que voltou”.
 

Segundo Woie, os indígenas entraram com com pedido na FUNAI em 2011 para reconhecimento da área da Flona de São Francisco de Paula como território Xokleng, mas o processo está parado na instituição desde 2015. Com a iminência da entrega da Unidade de Conservação à Iniciativa Privada, os Xoklengs decidiram entrar na área no último 12 de dezembro. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

PRIVATIZAÇÃO 

Floresta Nacional de São Francisco de Paula (Flona) faz parte do município de São Francisco de Paula (RS) a 2h 30 min de Porto Alegre. A área é gerida pelo ICMBio e está em vias de ser concedida à iniciativa privada.

A Floresta Nacional de São Francisco de Paula se chama assim desde 1968. A área foi delimitada em 1945, quando o Instituto Nacional do Pinho (INP) criou um parque para experimento de plantação de árvores para extração de madeira. Segundo Vanesa Arduin, historiadora que pesquisou o tema no seu trabalho de conclusão na UFRGS, chamado “Floresta ‘Melhorada’: Uma análise sobre as políticas de Reflorestamento no Rio Grande do Sul (1934-1965), a primeira ação na região por parte do Instituto foi o corte de araucárias nativas e o estudo do plantio desta árvore. “Depois de vinte anos estudando o monocultivo da Araucária, viram que as condições não favoreciam seu principal interesse que era a produção da madeira em larga escala”, explica Arduin. Em 1968, durante a Ditadura Militar, o governo extingue o INP e funda o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (INDF), que renomeia o parque administrado pelo INP para Floresta Nacional de São Francisco de Paula. O INDF é criado com a missão de desenvolver intensos programas de incentivo fiscal para os produtores que quisessem investir no reflorestamento. “Hoje São Francisco de Paula é o município com segunda maior área dedicada ao plantio de árvores e o maior produtor de Pinus do estado, árvore escolhida nas serras de São Paulo ao Rio Grande do Sul, pelas condições de plantio e por sua celulose ser de fibra longa, a mesma da Araucária, utilizada para fabricação de papéis mais resistentes”, comenta a historiadora Vanesa Arduin.   

Diversos caminhões como este, carregados de madeira para venda, passaram em frente à retomada na manhã de segunda | Foto: Alass Derivas

A Flona possui 1617 hectares, sendo que, segundo o site do ICMBio, 600 deles são de árvores plantadas para comercialização de madeira (araucária, eucalipto e pinus) em cima de campos nativos, o que representa 40% da área total. Os 900 restantes são de mata nativa. Desde 2004, a Flona é gerida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 

A Floresta Nacional está em vias de ser concedida à iniciativa privada. Em 28 de maio de 2020, o Diário Oficial da União publicou o decreto 10.381, que qualifica a Floresta Nacional de Canela e a de São Francisco de Paula, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República – PPI e incluídos no Programa Nacional de Desestatização – PND, “para fins de concessão da prestação dos serviços públicos de apoio à visitação, à conservação, à proteção e à gestão das unidades.” 

No dia 11 de setembro de 2020, foi realizada uma audiência pública na Câmara de Vereadores de São Francisco de Paula para tratar da licitação da concessão dos serviços da Flona. A audiência está disponível na íntegra no canal do ICMBio no Youtube

Na divulgação da audiência pública, o site do ICMBio traz diversos argumentos defendendo a concessão à iniciativa privada, entre eles: “as concessões atraem mais visitação e contribuem para o desenvolvimento socioeconômico em todo o entorno, além de gerar emprego e renda”. A inspiração é o modelo de concessões de parques dos Estados Unidos da América

Até o momento, nenhuma empresa ganhou a licitação. Ou seja, a negociação está aberta. 

E os indígenas Xoklengs entraram na disputa:
“Estamos prontos para lutar e morrer pelo nosso território. Esta terra é uma herança nossa e herança não se vende, não se troca, não se dá”, defende Woie Patté. “O grande espírito nos chamou e nós estamos atendendo. Tem várias coisas que o branco não entende, como isso, o que é esse chamado. Ninguém é obrigado a entender, mas é preciso respeitar”. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Os indígenas Xoklengs estão acampados na região de entrada do Floresta, onde hoje é uma plantação de Pinus. Estas árvores são consideradas pelo governo e por muitas empresas como reflorestamento. Nem nós, da Amigos da Terra Brasil, nem os indígenas consideramos que monocultura de árvores seja floresta. A historiadora Vanesa Arduin lembra que o que muitos chamam de reflorestamento era plantio para a explorar madeira. “Hoje se chama Unidade de Conservação, mas não se fundou pra conservação da biodiversidade e sim para conservar a exploração a longo prazo”, destaca. São 40% de território com árvores plantadas, que inclusive precisam de manejo. O que será feito com esta área se a Floresta Nacional for realmente concedida à iniciativa privada?       

Apesar de estarem há poucos dias na área, as mulheres Xoklengs já buscam recuperar a flora nativa da região e cultivar sua medicina tradicional: “Nós cuidamos das matas, nós somos as matas. Da mata vem raízes, alimento, a taquara. Aqui não tem taquara, não tem mel de abelha, não tem fruta nem raiz nativa, a nossa medicina tradicional, que tinha aqui, não tem mais, só tem pinus de reflorestamento. Não se vê nem um pé de uma nativa para alegrar a gente, só tem esse pinus aí, plantado, para dar riqueza para o governo. Mas nós precisamos da mata, de onde vem nosso alimento. Acabou a mata, mas nós somos a nativa desta terra. Os nativos Xokleng estão aqui”

Kullung resguarda suas mudas de guiné | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Yoko Camlem é filha de Voia Camlem, prima de Kollung, sobrinha do Vetchá Teiê. Veio, com seu núcleo familiar, de Santa Catarina para se somar na luta. Trouxe consigo, mudas de bananeira e de guiné. “Eu trouxe para que possa servir a toda comunidade que venha morar neste lugar, pensando no futuro, pensando nos meus netos, bisnetos, para que eles possam em breve utilizar destas plantas”. 

Yoko Camlem veio, com seu núcleo familiar, de Santa Catarina para se somar na luta | Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Woie conta que os indígenas chegaram na retomada no dia 12, de corpo presente, mas sempre estiveram espiritualmente. “Então precisamos fazer a ocupação, a autodemarcação, com nosso corpo, para que sejamos ouvidos. A lei possui uma balança, mas porque quando é para o nosso lado o peso nunca vale?

Um exemplo de que a balança não é igual é a possibilidade do Supremo Tribunal Federal adotar, nos julgamentos, a tese do Marco Temporal. O parecer 001/2017 da Advocacia geral da União dita que povos indígenas só têm direito a reivindicar terras que já estavam ocupadas em 5 de outubro de 1988, dia em que a Constituição foi promulgada. Ou seja, todas retomadas que aconteceram depois de 1988 seriam despejadas. Até parece que indígenas não seguiram sendo expulsos de suas terras a partir de 1988, como é o caso dos Guaranis Kaiowás vítimas dos latifundiários no Centro-oeste; dos Yanomamis, atingidos pelo garimpo ilegal na Amazônia; dos Krenaks, com seus rios poluídos pela lama da mineradora multinacional Vale do Rio Doce. A votação do Marco Temporal foi adiada duas vezes este ano e ainda não tem nova data. Ela inviabilizou a demarcação de pelo menos 27 terras indígenas, que tiveram seus processos devolvidos do Ministério da Justiça e Segurança Pública para a Fundação Nacional do Índio (Funai). Além disso, outras 310 terras indígenas estão com processos de demarcação estagnados, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O tema chegou ao STF com o julgamento envolvendo justamente o território Ibirama Laklanõ, do povo Xokleng, que é alvo de uma ação de reintegração de posse – com base no “marco temporal” – movida pelo Estado de Santa Catarina. Há dois anos que indígenas e apoiadores estão mobilizados lutando pela não aprovação do Marco Temporal.

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Colocamos nosso corpo para tentar fazer com que esta balança da Justiça seja de igual para igual”, insiste Woie. Fizemos esta retomada neste momento porque não tivemos resposta da Funai e agora vem essa notícia da privatização. Não queremos desculpas, queremos a homologação, a demarcação”. Woie alega que não quer que seu povo seja apenas artigo de museu, história contada pelos brancos.“É fácil colocar turistas na sede e falar que era um território indígena, mostrar no museu. Mas aí quando chegamos aqui no parque fecham a porta na nossa cara, pedem reintegração de posse. Nossas próximas gerações precisam desta terra”.

Jovem liderança, estudante universitário, Woie Kriri Sobrinho Patté é consciente que a luta que seu povo está travando é arriscada. Sabe notícias de outros povos, sabe o país que vive, sabe a violência incrustada no nosso território. Por isso, faz um apelo. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

“Quero dizer a sociedade que ouçam nosso chamado, ouçam nosso clamor de sobrevivência. Que façam este governo nos ouvir e devolver para nós o que é nosso. Os governos internacionais precisam pressionar a respeitarem o que é nosso. Existem tratados internacionais que precisam ser válidos. A Constituição Federal precisa ser respeitada, precisam demarcar a nossas terras. Estes países europeus que ocuparam o Brasil precisam reparar nossas terras roubadas. A ONU precisa se posicionar. Porque nós não sabemos mais para onde correr. Porque quando uma liderança se levanta para defender seu povo, ele é criminalizado, processado. Processado é pouco, quando não é esperado em uma esquina, numa beira de estrada e morto, assassinado, e nunca acontece nada com quem mata. Foi acidente, atropelamento. Só lideranças são atropeladas? Hoje, sou eu que estou falando. Não tenho medo de morrer, tenho medo de perder nosso território. Pode me caçar, pode me mandar ameaças. Eu tenho dó dessas pessoas que não respeitam o seu próximo. Sou uma liderança Xokleng e vou lutar pelo povo Xokleng. Vou lutar para que a futura geração do povo Xokleng continue viva. O que eles não sabem é que quando matam uma liderança, tem várias outras para assumir o lugar. Podem derrubar um homem, mas há mil homens de pé para ocupar este espaço. Somos a natureza. Assim como uma árvore dá sua semente, nós damos a nossa, que já estão prontas para germinar”. 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil

Ao lado de guerreiros como Woie e Merong, as filhas de Vetchá Teiê e Voio Camlem, as duas Yoko e Kullung, colocam seus corpos por uma real conservação da mata nativa, o que, como disse Kulung, é o que ela se considera, uma mata nativa. Colocando seus corpos, reparam a história, reconfigurando o território injusto deste país e também semeando para todos um mundo em que seja possível respirar e ser livre. 

Veja mais fotos da retomada: 

Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
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Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
Foto: Alass Derivas/Amigos da Terra Brasil
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Amigos da Terra Brasil e mais de 100 Organizações e movimentos sociais brasileiros manifestaram oposição à assinatura do Acordo de Livre Comércio entre Mercosul e União Europeia

Hoje (17), mais de 100 organizações e movimentos sociais brasileiros manifestaram oposição à assinatura do Acordo de Livre Comércio entre Mercosul e União Europeia. O grupo assina carta em que expõe ponto a ponto as críticas ao acordo, em especial a falta de diálogo com a população sobre o que está sendo firmado. O lançamento da carta tem o objetivo de convocar a Câmara dos Deputados a debater com a sociedade sobre os impactos desse acordo.

Em junho de 2019, Mercosul e UE fecharam as negociações para um acordo comercial, que, hoje, está em processo de revisão e ratificação. Em outubro deste ano, o parlamento europeu rejeitou o texto como está expressando preocupação com a política ambiental do governo Brasileiro, em particular em relação à proteção da sociobiodiversidade e ao aquecimento global.

O acordo estimula a desindustrialização, às privatizações, contribui para o avanço do agronegócio e devastação do conjunto dos biomas brasileiros, mantém uma lógica neocolonialista em relação ao comércio e é insuficiente quanto às questões ambientais e climáticas, que não são elementos essenciais do acordo, estando subordinados à lógica comercial. A falta de transparência no processo dificulta à população entender do que se trata o Acordo de Livre Comércio entre UE-Mercosul. Sem transparência, não tem acordo!

Leia na íntegra:

FRENTE DE ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL BRASILEIRA CONTRA O ACORDO MERCOSUL-UE

As organizações da sociedade civil brasileira abaixo subscritas manifestam a sua oposição à assinatura do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia. Convocamos o Parlamento brasileiro a promover amplo debate com a sociedade sobre os impactos que o acordo poderá trazer aos povos, aos trabalhadores e trabalhadoras e aos territórios do país.

Ainda que o acordo Mercosul-UE seja baseado em três pilares, com base no conhecimento de outros acordos assinados com o bloco europeu ao redor do mundo, o pilar comercial tem primazia e os elementos ditos de proteção aos direitos humanos e ambiental ficam em segundo plano. Consideramos que a abertura comercial, nos termos deste acordo, trará impactos socioeconômicos, trabalhistas, fundiários, territoriais, ambientais e climáticos significativos para o Brasil, e os demais países do Mercosul, tendo como maiores beneficiários as empresas transnacionais interessadas na importação de matérias primas baratas, na privatização de serviços e na ampliação de mercado para seus produtos industrializados.

Ao trocar commodities agrícolas e minerais por produtos industrializados de maior valor agregado, o acordo estimula o aprofundamento da desindustrialização, da reprimarização da economia, da evasão de divisas e a sonegação de impostos nos países do Mercosul. A abertura do setor industrial aos países do bloco europeu, aumentará a importação de produtos similares aos já produzidos no Brasil, gerando impacto para o setor e mais desemprego. Ademais, reforçará a competitividade perversa, em que os ganhos que o agronegócio possa ter, implicarão em destruição ambiental e perdas para o setor industrial e para os direitos e renda dos trabalhadores/as, além de concentrar a produção em setores intensivos em energia e água.

No setor de serviços, além de transformar o direito ao acesso a serviços essenciais como água, energia, saneamento, saúde e educação, em mercadorias, observa-se o estímulo às privatizações. São muitos os exemplos de tragédias sociais em várias cidades e/ou estados brasileiros onde serviços essenciais foram privatizados, como no caso da água e saneamento em Manaus e do escandaloso caos que viveu a população do Estado do Amapá pela crise na energia elétrica, por falta de investimento de uma empresa privada – para garantia de mais lucros. Com o acordo há risco de seguir excluindo parcela crescente da população que não poderá pagar pelo serviço, gerando endividamento familiar e piora das condições de vida, em especial, da população negra, pobre e periférica nas cidades, sendo as mulheres, idosos e crianças sempre as mais prejudicadas. A liberalização dos serviços financeiros contribui para a desregulamentação financeira, que levou à crise anterior em 2008. Num contexto de crise econômica e social aprofundado pela pandemia de Covid-19 e pelo congelamento promovido pelo teto de gastos, esse processo fica ainda mais preocupante.

Do ponto de vista ambiental e climático, o acordo contribui para a devastação do conjunto dos biomas e regiões brasileiras: Amazônia, Pantanal, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica e Pampas, e a região do semiárido. O fim das alíquotas de exportação para variadas commodities agrícolas e minerais como o minério de ferro e a ampliação de cotas para carne, etanol e açúcar, por exemplo, vão gerar expansão da produção e dos corredores logísticos da pecuária, do complexo soja e cana-de-açúcar. O avanço do agronegócio viola os modos de vida dos povos indígenas e populações tradicionais e seus direitos territoriais. Nesse sentido, reforça os principais vetores de desmatamento e queimadas que vêm impactando os compromissos climáticos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris e as Metas de Aichi sobre proteção da biodiversidade.

O capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável não fornece mecanismos para sua exigibilidade. A menção neste capítulo da obrigatoriedade na implementação do Acordo de Paris é insuficiente, dada a não aplicação de soluções de controvérsias nesse capítulo e a fragilidade do próprio acordo climático em relação às suas medidas vinculantes e falsas soluções como o mercado de carbono. Além disso, as questões ambientais e climáticas não entram como elementos essenciais do acordo político. Por isso, as alusões a estas questões soam como retórica, tentando disfarçar como alguma preocupação ambiental os reais objetivos do documento: aumentar o comércio das grandes empresas exportadoras de bens, serviços e capitais.

O acordo incentiva a expansão do modelo biotecnológico agrícola baseado no uso extensivo de agrotóxicos. Esses produtos afetam diretamente a saúde dos trabalhadores rurais, da população do campo e da cidade, tanto do Mercosul como da UE. O caso do Brasil é emblemático, pois nunca foram aprovados tantos agrotóxicos e ingredientes ativos como nos últimos três anos. Muitos desses são proibidos na Europa. Isso gera questionamentos sobre a ausência do Princípio da Precaução no acordo Mercosul-UE no capítulo de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias, deixando em aberto se as empresas europeias seguirão com seu duplo padrão de atuação em países do Sul onde a população é tratada como cidadãos de segunda classe ou as populações europeias irão ter seus direitos do consumidor violados por padrões mais baixos de controle.

Na área de compras governamentais, o acordo prevê que pequenas e médias empresas locais devem competir em pé de igualdade com as multinacionais europeia, como se tratar igualmente os desiguais fosse justo para se tornarem fornecedores estatais abrindo um precedente para competir em licitações estaduais e municipais, restringindo a possibilidade de promover o emprego local como política pública no Brasil que passou recentemente a fazer parte da lista de países que integram o mapa da fome. Poderá ter impacto em políticas fundamentais para a agricultura familiar e camponesa como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com profundo impacto para as mulheres, já que a maioria das fornecedoras desses programas são agricultoras.

Consideramos preocupante que o acordo tenha sido negociado pelos governos do Mercosul sem nenhum mecanismo de transparência: não foram apresentados estudos de impacto e nenhum diálogo foi buscado com os setores afetados ou com a academia. Na Europa, existem profundos questionamentos aos estudos de impactos realizados, baseados normalmente em premissas favoráveis a conclusão dos acordos, sem analisar os impactos abrangentes de todos os capítulos sobre a saúde, os ecossistemas, o mundo do trabalho, os direitos humanos e territoriais, para as mulheres, para os agricultores e agricultoras familiares e camponeses/as, violando os modos de vidas e a dimensão sociocultural dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais do campo-cidade-floresta.

Os resultados esperados deste acordo são tão pouco promissores, que na Europa há um crescente questionamento por parte de governos, parlamentares e sociedade civil organizada, sobre sua aprovação. Nos países do Mercosul, porém, o apoio dos governos ao acordo parece tácito e mostra a falta de busca de alternativas reais de integração. No Brasil, em particular, o governo de Jair Bolsonaro tenta fechar o acordo para obter uma vitória no campo da política externa e reacomodar os interesses de setores empresariais pouco comprometidos com o país. O relatório “Avaliação de Impacto Sustentável” (AIS) publicado pela Comissão Europeia apresenta resultados preocupantes ao estimar que o acordo elevará em 0,1% o PIB da UE em dez anos, ao mesmo tempo em que recuará em 0,1% o PIB dos países do Mercosul.

Em um momento em que a crise e a recessão já estão instaladas no Mercosul, e ainda diante dos desafios impostos pela pandemia, aprovar um acordo assimétrico e que reproduz a lógica colonial de eternos fornecedores de matérias primas e importadores de bens industrializados seria um verdadeiro desastre. Rejeitamos que o Brasil assine esse acordo, que prevê enormes consequências negativas socioambientais ao mesmo tempo em que retrocede nos níveis econômicos e produtivos.

Brasil, 9 de dezembro de 2020

Plenária da Frente Brasileira contra o Acordo União Europeia-Mercosul e EFTA

1. ALTERNATIVAS PARA A PEQUENA AGRICULTURA NO TOCANTINS (APA TO)
2. AMIGOS DA TERRA BRASIL
3. ARTICULAÇÃO DE MULHERES BRASILEIRAS (AMB)
4. ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB)
5. ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA (ANA)
6. ARTICULAÇÃO PACARI RAIZEIRAS DO CERRADO
7. ARTICULAÇÃO ROSALINO DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS (AR)
8. ASSOCIAÇÃO AGROECOLÓGICA TIJUPÁ
9. ASSOCIAÇÃO ALTERNATIVA TERRA AZUL (TERRAZUL)
10. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ECONOMISTAS PELA DEMOCRACIA (ABED)
11. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ONGS NÃO GOVERNAMENTAIS (ABONG)
12. ASSOCIAÇÃO DE ADVOGADOS (AS) DE TRABALHADORES(AS) RURAIS DA BAHIA (AATR-BA)
13. ASSOCIAÇAO DE FAVELAS DE SAO JOSÉ DOS CAMPOS (AFSJC)
14. ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS (AGB)
15. ASSOCIAÇÃO XARAIÉS (XARAIÉS)
16. BRIGADAS POPULARES (BPS)
17. CAMPANHA NACIONAL EM DEFESA DO CERRADO
18. CAMPANHA PERMANENTE CONTRA OS AGROTÓXICOS E PELA VIDA
19. CASA 8 DE MARÇO – ORGANIZAÇÃO FEMINISTA DO TOCANTINS (ENCAMTO)
20. CENTRO DE AGRICULTURA ALTERNATIVA DO NORTE DE MINAS (CAA/NM)
21. CENTRO DE APOIO E PROMOÇÃO DA AGROECOLOGIA (CAPA)
22. CENTRO DE ASSESSORIA E APOIO A INICIATIVAS SOCIAIS (CAIS)
23. CENTRO DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS (HOMA)
24. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT)
25. COMITÊ DE ENERGIA RENOVÁVEL DO SEMIÁRIDO (CERSA)
26. CONFEDERAÇÃO DOS TRABALHADORES NO SERVIÇO PÚBLICO MUNICIPAL – CUT (CONFETAM/CUT)
27. CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES E TRABALHADORAS NA AGRICULTURA FAMILIAR DO BRASIL (CONTRAF BRASIL)
28. CONSELHO DE MISSÃO ENTRE POVOS INDÍGENAS (CIMIN)
29. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI)
30. CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS DO BRASIL (CONIC)
31. CONSELHO PASTORAL DOS PESCADORES (CPP)
32. COORDENAÇÃO NACIONAL DE ARTICULAÇÃO DAS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS QUILOMBOLAS (CONAQ)
33. COORDENADORIA ECUMÊNICA DE SERVIÇO (CESE)
34. DEFENSORES DO PLANETA
35. FEDERAÇÃO DE ORGÃOS PARA ASSISTÊNCIA SOCIAL E EDUCACIONAL (FASE)
36. FEDERAÇÃO DOS SINDICATOS SERVIDORES PÚBLICOS NO ESTADO DE SÃO PAULO (FESSP-ESP)
37. FEDERAÇÃO DOS TRABALHADORES NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL DO RIO GRANDE DO NORTE (FETAM/RN)
38. FEDERAÇÃO NACIONAL DO FISCO ESTADUAL E DISTRITAL (FENAFISCO)
39. FEDERAÇÃO NACIONAL DOS PSICÓLOGOS (FENAPSI)
40. FEDERAÇÃO NACIONAL DOS URBANITÁRIOS (FNU)
41. FÓRUM DA AMAZÔNIA ORIENTAL (FAOR)
42. FÓRUM DAS ONGS AIDS DO ESTADO DE SÃO PAULO (FOAESP)
43. FÓRUM DAS ONGS AIDS DO ESTADO DE SÃO PAULO (FOAESP)
44. FÓRUM ECUMÊNICO ACT BRASIL (FE ACT BRASIL)
45. FÓRUM MATO-GROSSENSE DE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (FORMAD)
46. FÓRUM MUDANÇAS CLIMÁTICAS E JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL (FMCJS)
47. FÓRUM NACIONAL DA SOCIEDADE CIVIL EM COMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS (FONASC.CBH)
48. FUNDAÇÃO LUTERANA DE DIACONIA (FLD)
49. GESTOS – SOROPOSITIVIDADE, COMUNICAÇÃO, GÊNERO
50. GRAIN
51. GRUPO CARTA DE BELÉM (GCB)
52. GRUPO DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO E MEIO AMBIENTE (GEEMA)
53. GRUPO SEMENTE SEMEANDO PARA O DESENVOLVIMENTO SOCIOAMBIENTAL (GRUPO SEMENTE)
54. GT BIODIVERSIDADE DA ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA (GTBIO)
55. INICIATIVA DIREITO À MEMÓRIA E JUSTIÇA RACIAL (IDMJR/RJ)
56. INSTITUTO AMAZÔNICO DE PLANEJAMENTO, GESTÃO URBANA E AMBIENTAL (IAGUA)
57. INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS (IBASE)
58. INSTITUTO CARACOL (ICARACOL)
59. INSTITUTO EQUIT- GÊNERO, ECONOMIA E CIDADANIA GLOBAL (INSTITUTO EQUIT)
60. INSTITUTO MAIS DEMOCRACIA
61. INSTITUTO POLÍTICAS ALTERNATIVAS PARA O CONE SUL (PACS)
62. INSTITUTO REGIONAL DA PEQUENA AGRICULTURA APROPRIADA (IRPAA)
63. INSTITUTOS DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (INESC)
64. INTERNACIONAL DOS SERVIÇOS PÚBLICOS (ISP)
65. INTERNATIONAL ACCOUNTABILITY PROJECT (IAP)
66. INTERNATIONAL RIVERS BRASIL
67. JUSTIÇA NOS TRILHOS
68. KOINONIA PRESENÇA ECUMÊNICA E SERVIÇO (KOINONIA)
69. MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES (MMM)
70. MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS (MMC)
71. MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS DA FLORESTA – DANDARA (MMNFDANDARA)
72. MOVIMENTO DE TRABALHADORES SEM TETO (MTST)
73. MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS (MAB)
74. MOVIMENTO DOS CONSELHOS POPULARES (MCP)
75. MOVIMENTO DOS PEQUENOS AGRICULTORES (MPA)
76. MOVIMENTO DOS PESCADORES E PESCADORAS ARTESANAIS (MPP)
77. MOVIMENTO PELA SOBERANIA POPULAR NA MINERAÇÃO (MAM)
78. MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST)
79. OBSERVATÓRIO NACIONAL DOS DIREITOS A ÁGUA E AO SANEAMENTO (ONDAS)
80. ORGANIZAÇÃO PELO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO E À NUTRIÇÃO ADEQUADAS (FIAN BRASIL)
81. PASTORAL OPERÁRIA NACIONAL
82. PROCESSO DE ARTICULACÃO E DIÁLOGO (PAD)
83. RED DE GENERO Y COMERCIO (RGYC)
84. REDE BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL (REBEA)
85. REDE BRASILEIRA PARA INTEGRAÇÃO DOS POVOS (REBRIP)
86. REDE ECONOMIA E FEMINISMO (REF)
87. REDE EMANCIPA MOVIMENTO SOCIAL DE EDUCAÇÃO POPULAR (REDE EMANCIPA)
88. REDE JUBILEU SUL
89. REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS (REDE SOCIAL)
90. SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA (SOF)
91. SERVIÇO FRANCISCANO DE SOLIDARIEDADE (SEFRAS)
92. SERVIÇO PASTORAL DOS MIGRANTRES (SPM)
93. SINDICATO DAS PSICÓLOGAS E DOS PSICÓLOGOS NO ESTADO DE SÃO PAULO (SINPSI-SP)
94. SINDICATO DE SAUDE DE GUARULHOS E REGIÃO (SINDSAÚDE GUARULHOS E REGIÃO)
95. SINDICATO DOS AGENTES FISCAIS DE RENDAS DO ESTADO DE SÃO PAULO (SINAFRESP)
96. SINDICATO DOS EMPREGADOS DOS ESTABELECIMENTOS DE SERVIÇOS DE SAÚDE DE CURITIBA (SINDESC)
97. SINDICATO DOS ENFERMEIROS DO RIO GRANDE DO SUL (SERGS)
98. SINDICATO DOS ENFERNMEIROS DO ESTADO DE SÃO PAULO (SEESP)
99. SINDICATO DOS METALÚGICOS DO ABC (SMABC)
100. SINDICATO DOS TRABALHADORES EM SAÚDE NO ESTADO DO PARÁ (SINDSAÚDE/PA)
101. SINDICATO DOS TRABALHADORES NAS INDÚSTRIAS DA PURIFICAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA E EM SERVIÇOS DE ESGOTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (SINDIÁGUA/RS)
102. SINDICATO DOS TRABALHADORES PÚBLICOS DA SAÚDE NO ESTADO DE SÃO PAULO (SINDSAÚDE-SP)
103. SOS CORPO INSTITUTO FEMINISTA PARA A DEMOCRACIA (SOS CORPO)
104. TERRA DE DIREITOS
105. VIA CAMPESINA BRASIL

Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo reúne movimentos sociais nas ruas de Porto Alegre

A ação reuniu diversos movimentos sociais e organizações de base que denunciaram o avanço dos projetos de morte e defenderam a necessidade de seguirmos em luta pela defesa da democracia e de um projeto radicalmente democrático e popular.

Na terceira quinta-feira de novembro (19) à noite, os moradores do Centro Histórico de Porto Alegre (RS) puderam escutar o toque de bateria, as falas, os cantos e gritos que vinham do carro de som na Rua Duque de Caxias – “mulheres contra o machismo, mulheres contra o capital, mulheres contra o machismo e o capitalismo neoliberal!”. Era o ato brasileiro da Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo, que ocupou a fachada dos prédios da Borges com projeções relembrando a importância de se defender o regime democrático, a soberania energética e alimentar dos povos, a moradia digna, entre tantas outras pautas em prol da cidadania popular abordadas pelos movimentos ali presentes.

Diversas falas relataram a dificuldade do atual momento vivido, hoje, no Brasil diante de uma continuidade do imperialismo estadunidense que interfere na soberania das nações da América Latina, da política de morte e destruição dos territórios e povos posta em prática pelo governo Bolsonaro, destacando que, apesar desse contexto de avanço do neoliberalismo e do pensamento fundamentalista e conservador declaradamente de ultradireita, não podemos perder a força do horizonte de nossas lutas.

Não podemos perder a força no horizonte já não tão distante assim. Nossos vizinhos, Chile e Bolivia, nos mostram que as mudanças não são impossíveis ou estão muito longe,  programáticas  vitórias eleitorais em 2020 nos inspiram e alimentam nosso esperançar (como nos diz Paulo Freire) pela construção coletiva de um projeto Continental radicalmente democrático e popular, um projeto negro, indígena e feminista.

A vereadora eleita, Laura Sito, esteve presente no ato. Foto: Heitor Jardim / Amigos da Terra Brasil

Elegemos mais mulheres de esquerda, negras e negros e em algumas cidades vamos ter uma bancada com a identidade das lutas antirracistas e preta, como é o caso de Porto Alegre. Muitas cidades do Brasil recentemente elegeram vereadores e vereadoras trans e travestis pela primeira vez, como Aracaju, Belo Horizonte e São Paulo. Como afirmou o companheiro Eduardo Osório, do MTST, “Nesse momento a gente tá tendo um suspiro, ventos de esperança que nos trazem um novo futuro, um novo rumo, não só em Porto Alegre com a eleição dos mandatos negros, mas também na América Latina com a população boliviana fazendo frente ao golpe”. São ventos de esperança que nos nutrem para seguir em marcha.

Ato marca os 5 anos da Jornada Continental pela Democracia contra o Neoliberalismo. Foto: Carol Ferraz/Amigos da Terra Brasil

Neste ato, que reuniu um pequeno grupo de cerca de 50 pessoas, que se esforçou por manter o distanciamento social, o uso de máscaras, álcool 70% para sanitizar o microfone entre as falas, os movimentos da Jornada Continental se esforçaram para demonstrar que, mesmo em período eleitoral nas cidades, a luta geral é contínua e a construção das alianças entre os partidos e movimentos progressistas deve se guiar pelo sonho e a utopia de um projeto político popular que coloque a vida no centro da política e da economia. Não será uma grave crise econômica e sanitária ou um momento histórico de recuo dos avanços democráticos que vai nos tirar das ruas e das lutas. Como Lembrou a Maria: “Essa crise não acontece só por causa da pandemia, ela começou por causa do capitalismo e da exploração dos povos que se dá por esse regime que nós temos estabelecido no nosso continente.” – Maria do Carmo, Marcha Mundial das Mulheres.

O ato realizado 10 dias antes do segundo turno das eleições chamou atenção para o contexto que nos avizinhava, e que hoje se torna futuro concreto: a vitória da centro-direita em capitais como Porto Alegre e São Paulo com políticos alinhados à necropolítica do governo Bolsonaro. A disputa política se dá a cada dia e não apenas nas eleições. Sabemos que estaremos em luta pela sociobiodiversidade e defesa das populações periféricas nas cidades, dos povos tradicionais Brasil e América Latina afora. Entre vitórias e perdas trazidas pelo processo eleitoral um caminho é certo: o fortalecimento das conexões entre lutadoras e lutadores por soberania popular. 

A ação reuniu diversos movimentos sociais e organizações de base, como: o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), o Sintrajufe/RS, o Movimento dos Trabalhadores sem Teto do RS (MTST RS), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Amigos da Terra Brasil (ATBr), a Marcha Mundial de Mulheres do RS (MMM), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Estadual de Estudantes do Rio Grande do Sul (UEE/RS), a Kizomba e o Levante Popular da Juventude/RS parte da ALBA Movimentos e o Coletivo Elis Vive.

Seguimos em luta! 

Foto: Carol Ferraz/Amigos da Terra Brasil

Carta Aberta contra o PL260/2020 de liberação de agrotóxicos no Rio Grande do Sul

O governo estadual de Eduardo Leite (PSDB) pretende aprovar em regime de urgência até dia 15 de dezembro um projeto de lei para liberar o uso de agrotóxicos proibidos em seus países de origem no Rio Grande do Sul.

O Projeto de Lei 260/2020 encaminhado em regime urgência pelo governador Eduardo Leite visa flexibilizar a legislação estadual no Rio Grande do Sul que dispõe sobre o controle de agrotóxicos e outros biocidas proibidos em seus países de origem.

A aprovação deste projeto representa um retrocesso às políticas ambientais estaduais, em especial da LEI Nº 7.747, DE 22 DE DEZEMBRO DE 1982, uma das primeiras legislações a tratar do tema no país, fruto das ações dos movimentos ambientalistas do estado.

Dizemos NÃO ao PL 260/2020 e SIM à vida e saúde da população e do meio ambiente! ✊

Junte-se à nossa movimentação nas redes com as tags #MaisSaúdeMenosVeneno #DigoNãoAoPL260 #NãoAoPLdoVeneno

Confira a carta assinada por mais de 170 entidades

Carta Aberta ao Governo do Estado do RS

Mais vida, menos veneno

Porto Alegre, 07 de dezembro de 2020

Excelentíssimo Senhor Governador Eduardo Leite,

O conjunto de entidades que subscrevem este requerimento, representantes de
conselhos estaduais, frente parlamentar, fóruns, associações, entidades de classe,
agricultores/as familiares, universidades, pesquisadores/as, especialistas, ambientalistas
e movimentos sociais vêm expressar relevante preocupação em relação ao PL nº.
260/2020, que propõe a alteração da Lei Estadual nº 7.747/82, permitindo o cadastro, no
RS, de agrotóxicos obsoletos sem autorização de uso no país de origem, e que tramita
em regime de urgência na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.

Por entendermos que a Lei Estadual nº 7.747/82, fruto de amplos e profundos
estudos, pesquisas e debates com diversos setores sociais após grande desastre
ambiental em decorrência de resíduos de agrotóxicos no rio Guaíba, é referência
nacional, colocando o Rio Grande do Sul como pioneiro no controle, cadastro e
procedimentos em relação aos agrotóxicos, a eventual aprovação do PL n. 260/2020 seria
um enorme retrocesso ao estado, que já sofre com as consequências do uso excessivo
de agrotóxicos, impactando diretamente na saúde, no meio ambiente e na qualidade e
produção dos alimentos.

Cabe ressaltar que a proteção dos Direitos Humanos possui estreita relação com a
dignidade humana e com o meio ambiente, dado que a degradação deste afeta
diretamente a qualidade da vida humana. Da mesma forma, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos prevê o Direito Humano à Alimentação Adequada. Em visita oficial ao
Brasil no ano de 2019, o Relator Especial para Resíduos Tóxicos da Organização das
Nações Unidas (ONU) destacou a necessidade de leis restritivas e o combate contra
medidas de precarização normativa.

Ao ampliar as hipóteses de liberação de agrotóxicos, o Governo do Rio Grande do
Sul atua em desacordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2, 3, 11
e 12, propostos pelas Organizações das Nações Unidas, do qual o Brasil é signatário,
prejudicando a sustentabilidade e a resiliência dos sistemas alimentares em um cenário
de pandemia, aumento da fome e intensificação de eventos climáticos extremos, falhando
na adoção de medidas adequadas e suficientes para garantir a não-repetição de danos
relacionados a resíduos tóxicos.

Outra preocupação é que o PL n. 260/2020 viola direta e materialmente a razão de
ser do art. 253 da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul, que veda a “produção, o
transporte, a comercialização e o uso de medicamentos, biocidas, agrotóxicos ou
produtos químicos e biológicos cujo emprego tenha sido comprovado como nocivo em
1qualquer parte do território nacional por razões toxicológicas, farmacológicas ou de
degradação ambiental”. Da mesma forma, ao tramitar em regime de urgência, viola o
Art.19 da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul, que estabelece que o Estado deva
observar o princípio da participação popular.

De acordo com a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei n. 11.346
de 2006), a segurança alimentar e nutricional sustentável abrange a conservação da
biodiversidade e a utilização sustentável de recursos, tendo como base práticas
alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e ambiental.
Causa também surpresa essa proposta ser apresentada concomitantemente ao
julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental n. 221 que julgará se a Lei Estadual n. 7.747/82 foi recepcionada
pela Constituição Federal de 1988.

Ainda, consideramos que não há justificativa para a tramitação em regime de
urgência revogando uma lei vigente há cerca de quarenta anos no Estado do Rio Grande
do Sul. Essa urgência suprime o necessário debate com a sociedade, que arcará com o
ônus da alteração em flagrante deterioração da equidade intergeracional.
Portanto, respeitosamente, pugnamos pela imediata ​retirada do regime de
urgência do PL N°. 260/2020, ​assim como, seja apresentado requerimento de retirada do
projeto na sua íntegra pelo Governo Estadual, o qual altera a Lei Estadual nº 7.747 de 22
de dezembro de 1982, que dispõe sobre o controle de agrotóxicos e outros biocidas em
nível estadual e dá outras providências.

Da mesma forma, ​demandamos que seja promovido amplo debate com a
população gaúcha, garantindo a análise ​, em especial, do Conselho Estadual do Meio
Ambiente (CONSEMA), do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande
do Sul (CONSEA-RS), do Conselho Estadual de Saúde (CES-RS), do corpo técnico da
Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA), da Secretaria Estadual da Saúde (SES) e
da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM), bem como das universidades e
das entidades de defesa do meio ambiente e da saúde.

Organize suas entidades locais e assine a carta neste link.

Agricultores orgânicos de Nova Santa Rita (RS) denunciam contaminação por pulverização de agrotóxico

Nova Santa Rita é conhecida como a Capital da produção Orgânica e possui 4 assentamentos onde dezenas de famílias de produtores agroecológicos estão sofrendo com o uso de venenos aplicado por avião em fazendas vizinhas. Pelo menos 3 denúncias já foram registradas em casos semelhantes na região desde 2017

Era um dia ventoso. Os moradores do assentamento Santa Rita de Cássia II, no município de Nova Santa Rita (RS) ouviram o avião sobrevoando a região e pulverizando, do alto, as plantações de arroz vizinhas ao assentamento. “Até dentro das estufas matou os tomates”, lamenta o agricultor José Carlos de Almeida. Ele conta que a pulverização aconteceu na semana antes das eleições do primeiro turno e, assim como outros agricultores, temem que o uso indiscriminado dos venenos tenha um caráter político contrário a produção orgânica.

Na semana do Dia Mundial de Combate ao Uso de Agrotóxicos, hoje, dia 03/12, os moradores do Assentamento Santa Rita de Cassia II se organizaram e entraram com uma denúncia na Câmara de Vereadores do município contra os ataques que vem sofrendo. Nova Santa Rita é conhecida como a Capital da produção Orgânica. O município conta com 4 assentamentos onde as famílias são produtoras de alimentos certificados como orgânicos. “As pessoas não se dão conta, por que não tem as hortaliças mortas no chão, mas tem pessoas na cidade que, provavelmente, também foram intoxicadas”, afirma Irma Ostrosky durante apresentação na Câmara do município, na última terça-feira (01), em nome da Associação Comunitária “29 de outubro”. Ela exigiu que a Câmara de Vereadores tenha empenho em cobrar averiguações sobre as denúncias registradas.

Em 2017, foram realizadas denúncias no Ministério Público do estado (MPRS) sobre situação de contaminação semelhante, que seguem tramitando e aguarda definição da Justiça. Novas ocorrências foram registradas também em 2019. Agora, novamente denúncias foram realizadas ao MPRS, Polícia Civil, Secretaria Estadual de Agricultura, e Ministério de Agricultura, que recolheram amostras para análises.

Assentados encaminharam denúncias e pediram providências, após a pulverização de veneno na região Foto: acervo pessoal

Um dos grandes medos dos produtores é a perda da certificação de orgânicos em caso de confirmada a contaminação. “Agora se der positivo para o que suspeita, provavelmente vão tirar o certificado de orgânico. Os outros que cometem o crime e nós que vamos ser condenados”, critica o agricultor ecologista, Olímpio Vodzik, do assentamento Itapuí .  As famílias fornecem alimentos para feiras de Porto Alegre e região metropolitana, oferecem para mercados institucionais e para merenda escolar.

A pulverização de agrotóxicos com uso de avião não é um fato novo, mas a ocorrência tem se ampliado nos últimas anos e preocupa as e os agricultores. Conta Olímpio: “a gente tem um trabalho de mais de 20 anos que, de repente, pode se perder e se continuar do jeito que está vai se perder tudo, né. É um sonho que de repente pode acabar, simplesmente pela pulverização aérea”.

A engenheira agrônoma e moradora do assentamento Belo Monte em Eldorado do Sul, Cecile Follet, conta que a região em que vive também sofre com a pulverização de venenos. Ela confirma que o medo da perda de certificação impede muitos produtores de denunciar as contaminações. “A perversão deste sistema é que o objetivo da certificação orgânica (paga pelo produtor) é a proteção do consumidor. [se confirmada a contaminação] a certificadora suspende o certificado e o produtor fica sem chão e sem proteção”, critica.

Olímpio produz mais de 20 variedades orgânicas na área que ocupa, mas quem mais sente são os morangos. Ele relata também de vizinhos, produtores convencionais, que chegaram a perder 9 mil pés de tomates. “Afetou uma imensidade de pessoas, não só os assentados”. O assentamento mais próximo está há cerca de 5 km do centro da cidade. Para ele só há um caminho: ”a solução é acabar com a pulverização aérea, porque acidentes acontecem. Daqui a pouco pode contaminar o Rio do Sinos… quantas milhares de pessoas dependem da água do Rio dos Sinos para beber, e aí?”, ele questiona.

Produção orgânica dos assentados foi prejudicada por pulverização em fazenda vizinha Foto: acervo pessoal

“Uma parte muito pequena do produto chega na planta. Tem estudos de que menos de 1% do que foi pulverizado chega na planta. Uma parte chega no solo e uma grande parte é levada pelo vento”, conta o  técnico agrícola da COOTAP (Cooperativa Dos Trabalhadores Assentados Da Região De Porto Alegre LTDA), Antônio Vignolo. Ele critica a dificuldade e falta de fiscalização dos venenos utilizados. “É uma coisa que não tem muito controle, é feito na fazenda há quilômetros da cidade. Sem falar dos produtos usados, muitas vezes banidos. É isso, uma família em uma área enorme e chega na casa das centenas de famílias que foram prejudicadas direta, ou indiretamente”.

“Nós não sabemos quais serão as reações nos corpos das pessoas que foram intoxicadas, podem haver problemas graves de saúde. Podemos ter nossas águas e solo contaminados também. Provavelmente não foi só a safra que a gente perdeu, podemos ter pedido muito mais”, reforça a assentada Irma Ostrosky.

Antônio Vignolo, conta que não há diálogo com os fazendeiros. Ele relata que os agricultores não assumem a contaminação, mas pressionam para que os casos não sejam denunciados e divulgados, tanto nos assentamentos de Nova Santa Rita, quanto em Eldorado do Sul. “Nós tivemos casos do pessoal [fazendeiros] ir nos assentamentos para tirar satisfação, no sentido de constranger, pra pressionar. Foi bem pé na porta mesmo”, relata. Em maio deste ano, os agricultores Adão do Prado, 59 anos, e Airton Luis Rodrigues da Silva, 56, foram assassinados por pistoleiros que invadiram o Assentamento Santa Rita de Cássia II.

Ao todo, em 2019, foram registrados 474 produtos, a maior quantidade dos últimos 14 anos. Deste número, 20% são considerados extremamente tóxicos. Em 2020, desde o início da pandemia de Coivd-19, ao menos 400 produtos tiveram os registros liberados.

Muitos destes venenos são banidos nos próprios países de origem, como é o caso do Glifosato. É o agrotóxico mais vendido no mundo. Ele é apontado como possível causador de câncer pela Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (IARC) da Organização das Nações Unidas (ONU).

No mesmo período, as empresas produtoras de pesticidas solicitaram ao Ministério da Agricultura a liberação de mais 216 produtos, que estão sendo avaliados agora pelo governo. De acordo com a Medida Provisória 926 e o Decreto 10.282, ambas de 20 de março, a prevenção, controle e erradicação de pragas e doenças, bem como as atividades de suporte e disponibilização dos insumos necessários à cadeia produtiva, que incluem os defensivos agrícolas, são consideradas atividades essenciais durante a pandemia e não devem ser interrompidas.

Defender a produção de alimentos agroecológicos é defender um sistema que coloque a vida no centro com uma perspectiva socioecológica. É possível e viável a produção de alimentos que não contaminem nossa água, solo e corpos. A produção agroecológica nutre práticas e construção de saberes que buscam valorizar a vida, colocando a soberania alimentar e o combate à fome no centro do debate. Não aceitaremos o envenenamento como política pública!

Aldeias Guarani do RS recebem 320 cestas de insumos que respeitam sua cultura

No Rio Grande do Sul (RS), uma articulação entre Amigos da Terra Brasil (ATBr), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Frente Quilombola do RS (FQRS), Associação de Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários (AEPIM), Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (COOTAP) e o Laboratório de Arqueologia e Etnologia da UFRGS (LAE-UFRGS) garantiu a entrega de cerca de 320 cestas básicas feitas especificamente para oito territórios Guarani do Estado, sendo sete aldeias – Tekoá Yy Rupá (Terra de Areia), Tekoá Pekuruty e Guavyju (Charqueadas), Tekoá Nhundy (Estiva), Tekoá Ka’agüy Porã (Maquiné), Tekoá Jatai’Ty (Cantagalo), Tekoá Yjere (Ponta do Arado) e Tekoá Pindo Poty (Lami) – mais o Centro de Referência Afroindígena do RS, que fica no centro de Porto Alegre.

Os produtos das cestas são agroecológicos e foram selecionados em respeito à cultura Guarani. Cada cesta contém: erva mate, farinha de milho, farinha de trigo, arroz, canjica, fumo, cebola, aipim, batata doce e batata inglesa. Na foto, entrega na aldeia Tekoá Nhundy (Estiva).

Esse ano chegou o momento em que essa Terra de Nhanderu, o criador para os Guarani, reagiu à destruição consumista do homem. A reação? Uma pandemia. E essa prejudicou bastante gente, sabemos. Inclusive aqueles e aquelas que, por sua cultura, vivem de forma mais harmoniosa, conectada e com cuidado e respeito à Terra. A principal fonte de renda dos indígenas Guarani é o artesanato que vendem em feiras e centros urbanos, e, por conta disso, o isolamento interferiu na possibilidade de muitos adquirirem seus mantimentos.

O que não faltou diante de tanta gente prejudicada pela pandemia foram também pessoas dispostas a ajudar através de campanhas de solidariedade, organizações comunitárias e orgânicas. No Rio Grande do Sul (RS), uma articulação entre Amigos da Terra Brasil (ATBr), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Frente Quilombola do RS (FQRS), Associação de  Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários (AEPIM), Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (COOTAP) e o Laboratório de Arqueologia e Etnologia da UFRGS (LAE-UFRGS) garantiu a entrega de cerca de 320 cestas básicas para 7 aldeias Guarani (as Tekoás) do Estado.

O diferencial das cestas é que não são alimentos produzidos pelo sistema agroindustrial global e pelo agronegócio, os mesmos que destroem nossas florestas e as culturas dos povos que ali vivem. Tanto os alimentos e produtos presentes em cada cesta quanto quem os produziu e de que forma foram considerações levadas em conta para realizar a ação de solidariedade aos Guarani. Tudo que estava na cesta foi produzido em moldes agroecológicos e disponibilizado pela COOTAP, e cada insumo representa alguma parte da história e da cultura Guarani: a erva mate, o fumo, as farinhas de milho e de trigo, o arroz, a canjica, a mandioca, a cebola e as batatas. 

Esta ação teve a contribuição de Global Greengrants Fund, que apoia as organizações e movimentos aliadas aos grupos-membros da Federação Amigos da Terra Internacional.

Audiência Pública da Câmara de Porto Alegre volta a discutir projeto ajuizado da fazenda Arado Velho

PLCL 16/20 retoma proposta do PL 780/2015, barrado na justiça, e propõe alteração do plano diretor para construção de empreendimento na fazenda Arado Velho

Na semana de eleição do segunda turno de Porto Alegre, a Câmara de Vereadores realizou Audiência Pública de forma virtual para debater o Projeto de Lei Complementar nº 16/20, proposta pelo vereador Wambert Di Lorenzo (PTB), ao apagar das luzes de seu mandato. O PLCL 16/20 busca alterar o plano diretor do município e possibilitar a urbanização da Fazenda Arado Velho, pertencente a empresa Arado Empreendimentos Imobiliários Ltda. O projeto recupera a redação da Lei nº 780/2015 que está na justiça (Processo no: 001/1.17.0011746-8) sob investigação do Ministério Público  e pela Delegacia do Meio Ambiente da Polícia Civil (Dema) que identificam inconsistências técnicas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) apresentado pela empresa.

A proposta trata de uma área de 426 hectares, a Fazenda do Arado, no Bairro Belém Novo. Com a mudança proposta no projeto a área passaria a ser caracterizada como urbana e poderia receber um complexo de empreendimentos imobiliários com “um polo tecnológico com a instalação de indústrias e escolas, além de hotel e marina”, como defendeu o arquiteto responsável pelo empreendimento, Rodolfo Fork. Segundo ele, no empreendimento estaria previsto um parque de proteção ambiental privado de 90 hectares geridos pela associação de moradores do condomínio. O terreno contém área de proteção permanente, com banhados que recebem as cheias do Guaíba, fauna e flora protegidos.

Wambert foi enfático ao defender o projeto: “O que me trouxe foi a ETA (Estação de Tratamento de Água), mas o empreendimento encheu meus olhos, ele é importantíssimo para o desenvolvimento da zona sul e de Porto Alegre”. O vereador destacou que dentre as contrapartidas do projeto estaria a doação de terreno para Estação de Tratamento de Água para abastecer a região. “A doação apresenta uma economia de R$ 10 milhões, mas a estação de tratamento será feita com a doação do terreno”, afirmou.

Contudo, a estação já está encaminhada com a primeira fase da obra em execução e não depende da aprovação do projeto, conforme divulgado pelo Diário Oficial do município no último mês e nas redes da prefeitura: “O novo Sistema de Abastecimento de Água (SAA) Ponta do Arado vai ampliar a capacidade de produção e distribuição de água potável das zonas Sul e Leste da cidade. O valor estimado para execução é de cerca de R$ 107 milhões, com recursos próprios e de financiamento com a Caixa Econômica Federal. A abertura da licitação será no dia 4 de dezembro, às 8h30”, informa nota da Prefeitura em 29/10 deste ano.

Enquanto, as falas decorriam, o chat da audiência pública virtual se manteve movimentado. Os comentários seguiam entre a defesa do “desenvolvimento” da região, junto a ofensas às famílias Mbya Guaraní da retomada Ponta do Arado. Em contrapartida, eram muitos os argumentos tanto no chat, quanto nas inscrições de fala quanto às fragilidades do processo, como as investigações que seguem ocorrendo em relação às informações apresentadas no EIA/Rima, a falta de diálogo com os moradores da região, as problemáticas ambientais que o empreendimento pode trazer, o atropelo da realização da audiência em formato virtual, durante o período de eleições e a falta de um posicionamento da Funai sobre a Retomada Mbya Guaraní da Ponta do Arado, já tendo sido declarada a existência de bens arqueológicos relacionados com a etnia Guaraní.

Desde 2018, os Mbya Guaraní da Ponta do Arado denunciam o isolamento involuntário e o monitoramento compulsório que vem sofrendo por parte da Arado Empreendimentos Imobiliários. Em 2019, foram ao menos dois ataques a tiros que as famílias Guaraní sofreram no território ancestral. Em janeiro do último ano — como relatado pela Amigos da Terra Brasil —  , os seguranças da Arado Empreendimentos invadiram a praia onde ficam os Mbya Guaraní e dispararam, na madrugada, mascarados, por cima da casa dos indígenas. Em dezembro, impuseram uma cerca física e instalaram o acampamento há poucos metros da última casa dos Mbya Guaraní. Em janeiro de 2020, a Justiça Federal determinou a retirada da cerca por considerar, na decisão do TRF4: “confinamento desumano”. A Justiça Estadual já havia garantido a manutenção da posse da área pelos indígenas, o que contempla, entre outros direitos, o de ir e vir, bem como o acesso a recursos diversos como a água. Recurso esse que os funcionários da Arado Empreendimento são acusados de contaminação da única fonte de água potável das famílias Mbya Guaraní.

Para Walmbert Di Lorenzo o projeto: “é profundamente sustentável, sou professor de ética ambiental, sei do que estou dizendo”, defendeu. No entanto, não foi o que sustentaram os participantes inscritos na audiência.

Mapa que explica o projeto proposto para a área da Fazenda do Arado. Extraído do site do Preserva Arado.

O vereador, professor Alex Fraga (PSOL), lembrou que aquela é uma área de amortecimento das cheias do rio Guaíba e que para haver construção seria necessário aterrar a região: “São muitos litros de água que são captados nessa região de várzea que poderão agravar as enchentes em outras regiões da nossa cidade”. Ele destacou ainda que Porto Alegre tem um crescimento desordenado para a região da zona sul e com a ampliação de vias e de condomínios de alto padrão na área haverá um aumento sensível de tráfego de carros.

A fazenda possui cerca da metade da área como Área de Proteção do Ambiente Natural (APAN) e constitui um terreno altamente sujeito às inundações. A expansão de novos empreendimentos imobiliários em regiões de extravasamento dos rios como essa pode agravar ainda mais a situação de cheias do rio Guaíba. Para algum lugar as águas irão correr: áreas como as ilhas, que já sofrem com inundações, e o centro da Capital podem receber esse aumento da volumetria. Além dos riscos que o empreendimento traria por interferir em uma área de banhado, há ainda a alteração da mata nativa presente naquela região. As áreas de várzeas e banhados têm a função de corredores ecológicos para a fauna, sobretudo de aves e mamíferos. Com a possível construção do empreendimento haveria uma fuga e mortalidade da fauna, hoje protegida.

Santiago Costa, do coletivo Ambiente Crítico, defendeu que o projeto não avance: “Se o vereador Wambert tomou conhecimento desse projeto semanas atrás, nós e os moradores do bairro Belém Novo estamos discutindo essa matéria há 5 anos. Tivemos falas dos inscritos todos contrários ao empreendimento. Nenhum dos que apoiam este empreendimento colocaram sua cara para defender esse projeto. Quem vive no Belém Novo sabe os impactos do Terraville, que inclusive trouxe aumento do aluguel para o bairro”.

A advogada e integrante do coletivo Preserva Belém Novo, Michele Rodrigues, defendeu que o projeto não avance: “Na minha visão é imoral estar querendo debater alteração de regime urbanístico no meio de uma pandemia, no meio das eleições, com um projeto que está judicializado. As obras para o novo sistema de abastecimento em Porto Alegre já estão acontecendo no bairro Belém Novo e o terreno já está em posse do DMAE. Caso o terreno não venha a ser doado pela empresa, já existe um valor para desapropriar aquela áreas, portanto querer vincular este projeto de lei para poder beneficiar aquela área é mentira”, declarou.

Na leitura de Iporã Possantti, do Coletivo Ambiente Crítico, este “é um problema do empresário, que comprou um terreno em área rural e quer alterar o Plano Diretor do município para poder ter rendimentos com o terreno. Esse é o problema que estamos discutindo, porque Porto Alegre não tem problemas de expansão urbana. Essa é uma área de várzea, uma área alagada e que se presta a essa função”.

Infográfico extraído do site da campanha Preserva Arado.

Justiça por Beto! – Amigos da Terra Contra o Racismo

Na noite de ontem (19), em Porto Alegre, Beto foi morto espancado e asfixiado nas mãos de um policial militar temporário e um segurança do Carrefour. Vamos às ruas por justiça e responsabilização da empresa transnacional!

 

Nesse 20 de novembro, dia da Consciência Negra, gostaríamos de somente exaltar a ancestralidade africana, valores de solidariedade e afeto presentes em cada Quilombo desse país, mas somos atravessados e atravessadas por um assassinato brutal e cruel. Na noite de ontem, em Porto Alegre, mais um corpo preto tomba nas mãos da polícia que mata em nome da proteção de uma empresa transnacional. Mais um, infelizmente, precisamos escrever: MAIS um. As cenas se repetem e também se repete nossa indignação diante de uma sociedade racista que engatinha no aprendizado que comunidades de negros e negras ensinam há séculos.

Uma sociedade que naturalizou a morte de negros e negras a ponto de saber que, a cada 23 minutos, um jovem negro é morto nesse país e, sabendo disso, nada ou pouco faz para reduzir os índices de violência racial. Índices que nunca serão somente números, são vidas, com suas complexidades, sonhos, desejos, afetos. Vidas interrompidas por um projeto político de sociedade – defendido por #ForaBolsonaro – que opera de forma genocida, justamente, ao não colocar no centro das necessidades a preservação da vida e a dignidade da pessoa humana.

Beto, como era conhecido no IAPI, morreu asfixiado depois de ser espancado por um policial militar temporário e um segurança do supermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre. Vídeos que mostram a violência e o pedido de Beto por ajuda circularam ontem à noite nas redes sociais e seguem circulando hoje. Um homem negro, um policial militar, asfixia, pedido de socorro. Não são coincidências. Assim também mataram George Floyd nos Estados Unidos, levando a população estadunidense às ruas na onda de protestos que internacionalizou a luta antirracista sob o grito: “VIDAS NEGRAS IMPORTAM”.

A pauta internacionalista chegou às ruas e às urnas também – em Porto Alegre, elegemos, pela primeira vez na história, uma bancada preta: quatro vereadoras negras e um vereador negro. E sempre dissemos que nossas lutas não cabem nas urnas, como as mortes e violências não constam nas urnas. Hoje prestamos solidariedade à família e amigos do Beto, e escutamos o desejo manifestado por seu pai: JUSTIÇA. Sairemos às ruas com toda nossa indignação – gritando em alto e bom som que RACISTAS NÃO PASSARÃO.

Amigos da Terra Brasil

📢 Nos vemos nas ruas!

  • 💪🏿  Porto Alegre – 18h – SEM JUSTIÇA NÃO HÁ PAZ  – em frente ao Carrefour Passo D’Areia
  • 💪🏿 Rio de Janeiro – 16h – Av. das Américas, 5150, Barra da Tijuca
  • 💪🏿 São Paulo – 16h – no vão do MASP até o Carrefour

#JustiçaPorBeto #VidasNegrasImportam #ConsciênciaNegra

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