Declaração das organizações populares é apresentada na Cúpula Social do Mercosul

Na manhã desta terça-feira (5/12), movimentos sociais e organizações populares leram a “Declaração das organizações populares na Cúpula Social do Mercosul”, durante encontro ocorrido no Rio de Janeiro, Brasil.

O texto inclui a posição histórica das organizações Amigas da Terra Brasil (ATBr), REDES (Red de Ecología Social) – Amigos da Terra Uruguai, Terra Nativa Amigos da Terra Argentina e Sobrevivencia Amigos da Terra Paraguai, que rejeitam os TLC (Tratados Livre Comércio) em defesa da integração dos povos, da soberania, da democracia e da participação social.


O espaço de debates presenciais da Cúpula Social foi retomado após sete anos de abandono, com uma clara defesa da integração regional e da participação social como caminho para a construção de políticas públicas regionais para os povos.

A Cúpula Social foi um momento chave para reiterar a rejeição contundente das organizações e movimentos sociais ao ACL #UEMERCOSUL , uma vez que significaria o aprofundamento de um modelo produtivo extrativista, colonial e racista, insustentável para o ambiente e para as pessoas.

Acesse a Declaração dos Movimentos Sociais na Cúpula Social do Mercosul e saiba mais 

 

Missão de Monitoramento no Vale do Taquari é marcada por relatos que expõem série de violações

Comitiva de entidades visitou as cidades de Lajeado, Roca Sales e Arroio do Meio nos dias 27 e 28 de novembro

Após visita a três cidades gaúchas fortemente impactadas pelas enchentes no Vale do Taquari, que contou com conversa com pessoas afetadas, a Missão de Monitoramento de Direitos Humanos realizou uma audiência pública para ouvir moradores de regiões atingidas pelas enchentes. Uma série de denúncias evidenciou o descaso do poder público municipal e estadual. Encerrando as atividades, a Missão realizou, no dia 28, uma reunião com representante do governo federal, movimentos sociais e moradores. Convidadas, as prefeituras locais não compareceram, se isentando do diálogo.

Em audiência, moradores da região relataram as dificuldades enfrentadas após as enchentes que atingiram o estado – Foto: Carolina Colorio
Moradoras atingidas pelas enchentes reivindicam os seus direitos | Foto: Carolina Colorio

A roda de diálogo contou com a participação de representantes de variados entes sociais: Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST-RS), Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), Amigas da Terra Brasil, Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS, Conselho Estadual de Direitos Humanos, Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES), Defensoria Pública do RS (DPE-RS), Ouvidoria da DPE-RS,  Conselho Estadual do Direito da Mulher, deputados e representantes de mandatos, Fórum Permanente de Mobilidade Humana (FPMH) do RS, Secretaria Estadual de Direitos Humanos, Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), Ministério do Desenvolvimento Social, Organização Internacional para Migrações das Nações Unidas (ONU-OIM), sindicatos e outros movimentos sociais.

Presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, a deputada estadual Laura Sito (PT) abriu o encontro falando sobre a escuta realizada com moradores atingidos pelas enchentes nas cidades de Lajeado, Roca Sales e Arroio do Meio, respectivamente nos bairros Conservas, Centro e Navegantes.

A parlamentar também citou a audiência realizada no dia anterior, ressaltando que a Missão convidou representantes das prefeituras locais e autoridades, que não compareceram ao debate. “Foi muito emblemático porque convidamos todas as prefeituras da região para acompanharem a nossa ação e a audiência pública. Chamamos para reunião de hoje. Nos causou bastante estranheza o descaso das prefeituras de responderem a um chamado sobre situações muito mais ligadas à sua atuação cotidiana. A única prefeitura que esteve na audiência foi a de Arroio do Meio”, afirmou.

Segundo Laura, a escuta foi permeada por relatos que se assemelham e entrelaçam, especialmente no tocante a questões estruturais ligadas à saúde, política de aluguel social, casas provisórias, acesso limitado à água potável, aumento na conta de luz e uma série de humilhações. “A RGE e a Corsan não respeitaram acordos com a Defensoria Pública, e as contas de água e de luz das pessoas aumentaram”, denunciou, mencionando o acordo de isenção de cobrança.

Também chamou atenção para a dificuldade do manejo de lixos e dejetos nos municípios atingidos, além da preocupação com as zoonoses (doenças transmitidas por animais). Quanto à educação, destacou a questão das escolas afetadas, da falta de infraestrutura adequada e das crianças que não conseguem dar continuidade ao ano letivo. Pontuou ainda que é muito preocupante a questão dos imigrantes. Muitas vezes refugiados de seus países, vêm ao Brasil em busca de melhores condições de vida, mas se deparam mais uma vez com um cenário de violações de direitos, desamparo e com a condição de refugiados climáticos. Laura relatou que foi até embaixadas buscando diálogo.

Outra violação constantemente presente nos relatos da população foi quanto ao atendimento socioassistencial, via Centros de Referência em Assistência Social (CRAS). O serviço não tem dado conta, o que gera uma série de humilhações e exaustão em quem busca atendimento.

“Justiça para limpar essa lama” | Foto: Carolina C.

Assista a integra da audiência aqui

Na sequência, o coordenador do escritório do governo federal em Lajeado, secretário de Comunicação Institucional da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Emanuel Hassen de Jesus (conhecido como Maneco), fez um relato sobre as ações do governo federal no atendimento à crise das enchentes no estado. Começou sua fala evidenciando a necessidade de olhar para o meio ambiente. “Temos que recolocar esse tema na pauta. Meio Ambiente não é só cuidar do desmatamento da Amazônia. Cada um de nós, como cidadãos, temos que colocar esse tema no nosso dia a dia, o da sustentabilidade. Ou eventos extremos serão cada vez mais frequentes, causando tragédias.”

Ex-prefeito de Taquari, Maneco lembrou que o governo federal realizou duas visitas ao Rio Grande do Sul. Ele apontou que, na região, 99% dos anúncios da União se realizaram ou estão para se realizar. “Na educação o dinheiro está lá, faltando o município licitar. Demora para a pessoa enxergar o livro de volta, o computador, tem um processo até ser comprado. Mas o dinheiro está garantido e os municípios estão trabalhando para ele ser viabilizado. Mesma coisa com o Minha Casa Minha Vida. Vamos enxergar as casas quando elas forem construídas. Em Lajeado e Encantado a tendência é que em 30, 45 dias comece a construção. Dois municípios que tiveram portaria publicada. Algumas prefeituras são mais rápidas, outras mais devagares”, comentou.

Entre as ações do governo federal, destaca-se a criação do “Minha Casa Minha Vida Rural Calamidades”. De acordo com o secretário, até a sexta-feira passada (24) haviam 110 casas cadastradas na região. Em relação à construção de omradias, a União dividiu a responsabilidade: o município providencia as áreas e o governo do estado constroi as casas temporárias, até o governo federal fazer a moradia definitiva pelo Minha Casa Minha Vida.

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O secretário também afirmou que mais de 52 milhões foram destinados à Defesa Civil aos municípios, recursos para sotuaçoes como abrigo ou aluguel social. “O governo deu tudo que os municípios tinham direito, conforme número de pessoas desabrigadas.”

Na saúde, afirma que o repasse foi de 100% do que os municípios pediram. “Vieram R$ 49 milhões na região para recursos em hospitais e reequipar postos de saúde, R$ 29 milhões para a educação, e todos os municípios da região que requisitaram recursos para reequipar Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) receberam 100% do que pediram”, disse.

Quanto à agilidade no processo de atendimento à população, Maneco mencionou que uma casa pode demorar mais de ano e meio para ficar pronta e que os processos demoram. Salientou, ainda, que não é papel do governo federal fiscalizar.

“Não é culpa de ninguém, é de todo mundo. Não tinha legislação e programas para momentos como a gente tá vivendo, de uma sequência de tragédias no país inteiro. Temos enchentes no sul, seca na Amazônia, incêndio no Pantanal, todo dia, toda hora. O Brasil chegou a ter quase 30% dos municípios em estado de calamidade. Precisamos melhorar, porque a tendência é essas coisas seguirem acontecendo”, defendeu.

As cidades ainda estão cheias de entulhos das enchentes / Foto: Carolina Colorio

Moradores relatam preocupações 

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Arroio do Meio, Astor Klaus, ressaltou que os pequenos agricultores perdem muito com as enchentes. “Se perdeu muita produção de alimentos, que replantamos depois da primeira enchente. A segunda enchente veio e foi-se de novo o plantio”, contou, questionando qual recurso para este tipo de situação.

Diego Alexandre Dutra, atingido da cidade de Cruzeiro do Sul, pontuou que tanto o governo federal quanto o estadual mandam recursos, contudo ele não chega até a população. “Eu fiz sete cadastros mas em nenhum deles eu fui contemplado, porque não tenho Bolsa Família. Mas a enchente não pegou só aqueles de baixa renda, na extrema pobreza. Cruzeiro do Sul está esquecida. Dinheiro chega, mas falta organização e principalmente transparência: onde o recurso está sendo utilizado, como?”

Bairro Centro, em Roca Sales. Novembro, 2023. Foto: Carolina Colorio

De acordo com ele, em relação à assistência social havia só uma pessoa para fazer o cadastro. ”Filas e filas e filas, pessoal reclamando e ninguém atendido. Pedimos atenção especial do poder público do estado, do poder federal”, adicionou. Pai de três meninas, Diego conta que essa é a primeira enchente que ele enfrenta, e que a enchente de setembro levou tudo. “Cruzeiro do Sul tem pouco maquinário, ninguém veio nos salvar. A Defesa Civil não tem um barco, um motor, nada. Fomos para o telhado na primeira enchente, amarraram cordas para o pessoal ir subindo. Cruzeiro precisa de muita atenção agora.”

Rever a política de assistência social

Carine Bagestam, consultora do Ministério de Desenvolvimento Social, em parceria com a ONU-OIM, mencionou ser nítido que as assistências sociais nos municípios são uma política fragilizada. “Antes da emergência tinha um déficit, sem equipe mínima”, disse. Para ela, especialmente agora, é fundamental uma reformulação dos critérios e cadastros. “Ontem tivemos reunião com a secretária do estado e reforçamos que tem que ter uma construção estadual e federal para rever a política de assistência social, especialmente em contexto de calamidade”, reiterou.

Ela também chamou atenção sobre a crise habitacional. “Não há informação clara sobre as casas provisórias. As famílias estão esperando, querem saber em quantos dias chega a casa e quem vai acessar.” Contou que o recurso da assistência social está em caixa, que os municípios receberam. “O que sentimos no Vale é que os alojamentos são muito provisórios. A maioria dos municípios começou a tirar pessoas dos alojamentos sem uma inspeção de segurança das casas e nem saber para onde essas famílias iriam, correndo perigo eminente dessas famílias voltarem para casas de risco”, sinalizou.

“Meio Ambiente não é só cuidar do desmatamento da Amazônia”, defende Maneco / Foto: Fabiana Reinholz

O perigo das barragens

A integrante do MAB, Maria Aparecida Castilho Luge reforçou a realidade dos atingidos pelas barragens na região. Ela salientou a necessidade de estudos em relação à questão. “É preciso transparência. De quem são essas barragens?”, questionou. Durante a visita da Missão às cidades, que antecedeu a audiência pública, foram inúmeros os relatos, em especial em Roca Sales, conectando as barragens aos impactos das últimas enchentes e alterações no fluxo das águas.

“Verificamos a falta de um sistema de alerta das enchentes, pois não existe um monitoramento dos rios na região. Isso poderia ser executado em parceria com as universidades”, sugeriu o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do RS (CEDH RS), Júlio Alt. Segundo ele, é imprescindível que haja mecanismos efetivos para reconhecer uma calamidade e alertá-la à população, o que passa por um esforço coletivo com estudos, envolvimento de universidades, municípios, poder estadual, coletivos e movimentos, para pensar alternativas desde a questão das barragens, seus impactos e a prevenção de seu uso.

Ainda no enfoque ambiental, Júlio reforçou que é necessária uma atuação drástica frente à catástrofe climática. “Que a gente possa pensar também em parcerias para recompor matas ciliares, a Mata Atlântica, pensar um regime ambiental. Sugerimos implementar um código ambiental nacional, para que a médio e longo prazo a gente possa arrefecer os impactos de calamidade pública”, disse.

Outros pontos destacados por ele foram a criação de grupos e comitês para fiscalizar onde está o recurso repassado pelo governo federal e a criação de um plano de trabalho. “Precisamos pensar alternativas desde a questão das barragens, dos impactos nos territórios.”

Na reunião moradores relataram as dificuldades enfrentadas / Foto: Fabiana Reinholz

Falta de sintonia entre governos prejudica população

Para o coordenador jurídico do CDES, Cristiano Muller, há uma dessintonia que faz com que os investimentos do governo federal não cheguem a quem realmente precisa. Ele propôs que o escritório do governo federal na região não seja fechado e que seja criado um canal de informação e participação dos atingidos, no sentido de que sejam feitas reuniões ampliadas de prestação de contas dos municípios para o governo.

“Foram R$ 29 milhões em recursos em educação e ontem ouvimos denúncia de creche fechada e crianças amontoadas em um salão. O que ficou claro na audiência pública é que no CRAS as pessoas são humilhadas, que pedem muitos documentos. Temos que entender as pessoas atingidas como todas que estão em situação de calamidade, não só as de baixa renda. Quem define quem foi atingido não é política pública, é a água. Não podemos excluir essas pessoas”, acrescentou.

Segundo observou Júlio Alt, muitas pessoas não sabem como acessar essas políticas, ou, quando tentam, é muito burocrático. Claudete Sillas, da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, reforçou a questão da saúde mental e da mobilidade, propondo CRAS móveis, tendo em vista que, para quem perdeu tudo na enchente, deslocar-se inúmeras vezes em busca de atendimento é mais uma violação de direito.

A saúde mental da população é outro tema que precisa de atenção, tendo em vista uma série de traumas causados pelas enchentes e da consequente falta de amparo. “As pessoas estão depressivas, precisam ser ouvidas, precisam ser aconchegadas. Há urgência de um atendimento de saúde mental e mudar um pouco desse esquema de saúde”, acrescentou.

A moradora do bairro Conservas, em Lajeado, Michele Siqueira, sente falta de comunicação com relação às enchentes. Ela também chamou a atenção para a situação das estradas que estão desbarrancando. “Na primeira enchente com imensa quantidade de água já desceu a parede de terra e colocaram pedras ali. A estrada está diminuindo. Não temos proteção naquela lateral, já começou a dar acidente pela quantidade de chuva, asfalto liso. É perigoso”, disse.

Michele mora a 500m do rio Taquari e contou que nunca tinha visto a água subir tanto. Com a enchente de setembro ela perdeu tudo. “Nosso bairro, Conservas, está uma bomba relógio. Não é só quantidade de chuva, é de água. A Defesa Civil encaminhou caminhões e eles se negaram a atender as pessoas porque a ponte estava trancada com o excesso de água”, relatou.

Bairro Centro, em Roca Sales. / Foto: Carolina Colorio

Orçamento 2024

Há muito tempo cientistas do clima e boa parte da militância socioambientalista alertam sobre a gravidade da emergência climática, denunciando o racismo ambiental e uma série de riscos. Sobretudo para as populações empobrecidas, periféricas, indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Mesmo assim, tanto as esferas municipais, quanto estaduais e federal, não apresentam soluções estruturais para o tema.

A aprovação do orçamento previsto para a adaptação climática no RS, em 2024, é um exemplo. Do total de R$ 80,348 bilhões, somente 157,933 milhões são para o tema: menos de 0,02% do orçamento total aprovado. Além disso, no eixo Sustentabilidade Ambiental no Plano Plurianual (2024-2027), consta a proposta de aplicar pouco mais de R$ 260 milhões, enquanto há um investimento previsto de mais de R$ 1,6 bilhão para o setor da agropecuária – atividade que, conforme dados de 2021 do Sistema de Estimativa de Emissão de Gases, é responsável por quase metade das emissões de gases de efeito estufa no estado.

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Levando em conta as enchentes e catástrofes climáticas, o investimento em Defesa Civil também deixa a desejar. Para o próximo ano, o governo gaúcho pretende realocar R$ 50 mil na Defesa Civil, que é a primeira a agir durante emergências e a responsável pelo resgate da população atingida. O montante total para um ano inteiro de atuação da Defesa Civil, que precisa urgentemente de melhorias na infraestrutura, compra de equipamentos e na contratação de profissionais, especialmente tendo em vista os inúmeros episódios catastróficos no estado, equivale a menos do que o preço de um carro popular.

Conforme dados de boletim do governo do estado, atualizado em 27 de outubro, chuvas intensas e enchentes impactaram 107 cidades, afetando até aquele momento 402.297 pessoas. Destas, 22.283 pessoas ficaram desalojadas,  5.216 ficaram desabrigadas, 943 feridas, seis desaparecidas e 52 morreram. Em novembro quase 700 mil pessoas foram afetadas, direta ou indiretamente.

Manifestação durante audiência / Foto: Carolina Colorio

Rede de solidariedade 

O representante MPA de Arroio do Meio, Lari João Hoftomer, destacou a importância da solidariedade. Desde a enchente de 2010, o movimento desenvolve ações neste sentido, levando sementes crioulas, mudas e ramas para famílias de agricultores que são atingidas.

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Sobre a última enchente, lembrou da visita de solidariedade. “Arrecadamos dinheiro onde era possível. Entregamos mudas, sementes e ramas de mandioca.” Ele alientou a importância de olhar para a agricultura familiar e para as sementes crioulas, que dentro do princípio da agroecologia são práticas de produção que causam menor impacto socioambiental, numa lógica oposta à do agronegócio – um dos maiores expoentes para a emissão de gases de efeito estufa no Brasil, devido a alteração do uso do solo.

Atuando desde setembro na região, o MAB tem feito o atendimento emergencial e de articulação junto às comunidades para acessarem as políticas públicas necessárias. Juntamente com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul (Consea-RS), o movimento montou uma cozinha solidária em Arroio do Meio, após a primeira enchente. Mais de 1,2 mil refeições chegaram a ser feitas por dia, além disso, o MAB tem apoiado mais de 600 famílias que já receberam 2.100 cestas básicas, milhares de litros de água e 500 kits com produtos de limpeza. O movimento segue com as doações.

:: Cozinha solidária em Arroio do Meio recebe apoio de atingidos por Mariana e Brumadinho ::

A coordenadora do MAB, Alexania Rossato, reitera relatos feitos na audiência, quando foi exposto que, em algumas situações, a entrega de cestas básicas distribuídas pelo movimento foi o único apoio que as famílias receberam. Ela também reforçou o desinteresse das autoridades locais em participar da missão. “Prefeitos convidados não compareceram e se negaram  a ouvir as demandas do povo, assim como se negam a caminhar onde o povo mora. O que ouvimos no mutirão que fizemos, durante todo o dia, é que essa  realidade se repete em todas as prefeituras.”

Alexania relembrou do documento com reinvindicações dos atingidos, entregue ao governo em setembro, após a primeira enchente. Durante a reunião de 28 de setembro, ela questionou se seria possível dar sequência ao que foi proposto, e exigiu respostas em relação à questão de moradia e segurança alimentar. Trazendo um pouco de esperança, a liderança destacou a aprovação do Projeto de Lei (PL) 2788/2019, que cria a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) e aguarda sanção presidencial.

“A sensação é que há uma naturalização da enchente, virou comum. Só que não é assim, quem vive, quem sofre a enchente, que tem que limpar suas casas de novo. Recomeçar. Não dá pra nós naturalizar a enchente na vida das pessoas e tratar como uma coisa comum”, pontou Alexania.

Sobre a Missão

Na Missão de Monitoramento de Direitos Humanos do Vale do Taquari foram checadas violações de direitos e como as ações de reparação às famílias atingidas são feitas, bem como as medidas tomadas para reconstruir os locais e as condições de vida e de trabalho das pessoas afetadas. Ela foi organizada em três momentos: o primeiro de visita a cidades afetadas e conversa com moradores em seus bairros, o segundo com audiência pública e o terceiro com reunião com autoridades.

A Missão foi organizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos, pelo CDES Direitos Humanos e pela Acesso Cidadania e Direitos Humanos.

Como encaminhamento da Missão, a Comissão de Direitos Humanos irá realizar um relatório das denúncias recebidas durante os dois dias. O documento será entregue ao Ministério Público do RS (MP RS) e ao Tribunal de Contas do RS (TCE RS). Também será solicitada uma audiência com o governo do estado.

Conteúdo também publicado no Jornal Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2023/12/03/rs-missao-de-monitoramento-no-vale-do-taquari-expoe-violacoes-a-familias-atingidas-por-enchentes 

Assembleia Geral Bianual da Federação Amigos da Terra Internacional (FoEi) reforça solidariedade com a Palestina e articulação regional

A Amigas da Terra Brasil esteve, em novembro, em Nova Orleans, nos Estados Unidos (EUA), participando da assembleia geral bianual da Federação Amigos da Terra Internacional (FoEi). Compareceram nossa conselheira Lucia Ortiz, que é membra do Comitê Executivo da FoEi, e a presidenta Letícia Paranhos, também coordenadora internacional do programa Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo (JERN) da federação.

Na assembleia, organizações ambientalistas de base de todo o mundo que integram a Federação Amigos da Terra debateram o plano quinquenal da organização, estabelecido de forma democrática para o período 2021-2026, e avaliaram sua caminhada em direção ao cumprimento dos seus 3 objetivos principais: organizar e mobilizar para construir o poder popular e a soberania dos povos; contribuir no desmantelamento de todas as formas de exploração e de opressão e o poder corporativo das empresas transnacionais; assegurar mudanças urgentes necessárias para abordar as crises sistêmicas desde uma perspectiva de justiça (ambiental, social, de gênero e econômica).



Dentre tantos compromissos firmados pela assembleia, está o de seguir em solidariedade com a Palestina. Nós do Brasil, saímos comprometidas, entendendo ainda mais a importância latino-americana nessa solidariedade, pois os companheiros da Palestina contam com a gente. Temos capacidade de fortalecer a Campanha BDS, que é um movimento não violento da sociedade civil palestina que pede Boicote, Desinvestimento e Sanções às empresas transacionais vinculadas ao Estado de Israel e seu projeto colonial, imperialista e genocida do povo palestino. Esse sistema que oprime os trabalhadores e os povos da periferia dos países do Sul é o mesmo que permite o apartheid e a destruição do ambiente e das possibilidades de sustentação da vida na região; que possibilita os ataques e a violência de Israel contra os palestinos, com grandes empresas que atuam em nossos países exportando armas de guerra, tecnologias de vigilância, técnicas de privatização e controle de águas e as bases ideológicas para a manutenção de um estado de guerra, com apoio das grandes potências do Norte global. Queremos e lutaremos pela liberdade do povo e da terra palestina!

As organizações do nosso continente também fortaleceram a articulação regional, a ATALC (Amigos da Terra América Latina e Caribe). Realizamos uma bonita homenagem à Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) no Brasil e integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), falecida neste ano. A atuação feminista da Nalu foi determinante a todas as organizações e movimentos sociais latino-americamos. Reforçamos o compromisso de seguir a marcha de Nalu, desmantelando o patriarcado e todas as formas de opressão!


#nalufariapresente #FoEi #ATBr  

A COP28 deveria proporcionar uma ação climática justa e equitativa, não falsas soluções, alerta a Federação Amigos da Terra Internacional (FoEi)

 

A Amigas da Terra Brasil publicou, recentemente, artigo no jornal Brasil de Fato sobre as negociações e cúpulas do clima. CLIQUE AQUI para acessar

English version: http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/11/09/where-do-we-go-with-climate-negotiations/

Versión española:
http://www.amigosdaterrabrasil.org.br/2023/11/09/adonde-vamos-con-las-negociaciones-del-clima/

 

Os países ricos, que são os mais responsáveis pelas mudanças climáticas, devem assumir a liderança em uma transição justa e equitativa para longe de todos os combustíveis fósseis e fornecer financiamento para os países em desenvolvimento, em vez de perder tempo com mercados de carbono, remendos tecnológicos arriscados e outras soluções falsas (1), afirma a Amigos da Terra Internacional (FoEI) no momento em que as negociações climáticas da ONU (Organização das Nações Unidas) são retomadas em meio a um contexto político global sombrio.

A maior federação ambiental de base do mundo está presente na COP28 (Conferência das Partes do Clima da ONU), em Dubai, para exigir uma ação climática baseada na justiça e na equidade, enfrentar os grandes poluidores e se solidarizar com os povos oprimidos nos Emirados Árabes Unidos, na Palestina e em todo o mundo.

A FoEI prevê que os países desenvolvidos, como os Estados Unidos (EUA), o Reino Unido e os Estados-membros da União Europeia (UE), continuarão tentando remover princípios fundamentais da conferência climática global, esquivando-se de sua responsabilidade por causar a crise climática e de sua consequente obrigação de reduzir suas emissões mais cedo e mais rápido do que quaisquer outras partes, bem como de fornecer financiamento climático para uma transição justa, para adaptação e perdas e danos nos países em desenvolvimento. Isso tem implicações para as discussões sobre praticamente todas as questões em negociação e, provavelmente, levará a conflitos e impasses nas salas de negociação.

Outro elemento que compromete ainda mais a possibilidade de se chegar a resultados justos é o fato de que os delegados ligados às principais empresas poluidoras de petróleo e gás do mundo participaram das negociações climáticas da ONU pelo menos 7.200 vezes nos últimos 20 anos e estarão presentes com força total na COP28 (2). O fato de o presidente da COP28 dos Emirados Árabes Unidos estar usando reuniões bilaterais com países na cúpula para promover acordos sobre combustíveis fósseis, como foi revelado recentemente, é muito alarmante e extremamente preocupante (3).

Lise Masson, da Federação Amigos da Terra Internacional (FoEi), disse:

“Enquanto os impactos climáticos estão ficando mais intensos, a COP28 está estendendo o tapete vermelho para os grandes poluidores, as estrelas da lavagem verde e das falsas soluções para as mudanças climáticas. Os mercados de carbono, as compensações e as remoções de carbono não serão a salvação – são de fato uma distração perigosa promovida pelos países ricos e pelos grandes poluidores corporativos, desesperados por manter os negócios como sempre”.

Em um contexto de extrema repressão estatal, a FoEI comparece à cúpula deste ano para levantar as vozes dos defensores dos direitos humanos, da democracia e da justiça ambiental em todo o mundo, incluindo muitos que optaram por não participar da COP28. Juntamente com outras organizações internacionalistas, a FoEI exige um cessar-fogo em Gaza e o fim do colonialismo de ocupação e do colonialismo climático em todo o mundo.

Abeer Al-Butmeh, da PENGON/Amigos da Terra Palestina, disse da Cisjordânia:

“Nossa luta contra o regime colonialista israelense está intrinsecamente ligada a todas as lutas por direitos humanos e justiça climática. Israel está usando a COP28 como uma ferramenta de lavagem verde para desviar a atenção das críticas à sua opressão sistemática do povo palestino e para se projetar como um salvador do clima, enquanto comete genocídio ambiental em Gaza. Como mulher palestina, em nome da justiça climática, não participarei da COP28”.

Lise Masson acrescenta: “O conflito, o colonialismo e o poder corporativo estão atiçando as chamas do colapso ambiental e destruindo vidas consideradas descartáveis, desde a Palestina até as que estão na linha de frente dos impactos climáticos no Sul. Estamos aqui para lembrar os líderes mundiais da urgência de agir, para seu próprio bem e pela justiça e equidade com que devem tomar todas as decisões”.

Notas aos editores:

A COP28 está se preparando para ser uma batalha e decisões sobre:

# A responsabilidade dos países ricos de financiar a ação climática nos países em desenvolvimento – e seus esforços para evitá-la;

# A governança do fundo de perdas e danos – que, de forma preocupante, provavelmente será gerenciado pelo Banco Mundial e dependerá apenas de contribuições voluntárias;

# Os detalhes de um mercado global de carbono nos termos do Artigo 6 do Acordo de Paris, que acelerará falsas soluções que não reduzem as emissões na fonte e causam sérios danos no Sul Global;

# Uma meta global de energia renovável – que, sem financiamento para implementá-la e sem salvaguardas para proteger as pessoas e os povos de uma nova onda de extrativismo, corre o risco de se tornar um novo fardo para os países em desenvolvimento;

# Tentativas de atrasar a eliminação gradual justa e equitativa dos combustíveis fósseis, incluindo brechas para permitir mais poluição;

# O “balanço global” dos esforços dos países, até o momento, para reduzir suas emissões – atualmente fraco, pois não aumenta a ambição nem inclui financiamento e apoio dos países desenvolvidos para ações climáticas nos países em desenvolvimento.

 

Referências:

(1) Veja os recursos recentes da FoEI sobre soluções falsas:

Position paper: Don’t be fooled by the hydrogen frenzy! (Documento de posicionamento: Não se deixe enganar pelo frenesi do hidrogênio) (novembro de 2023) >> https://www.foei.org/es/publicaciones/energia-del-hidrogeno/

Ferramentas para combater as falsas soluções climáticas (novembro de 2023) >> https://www.foei.org/es/publicaciones/herramientas-falsas-soluciones-climaticas/ 

Com Banco de evidências sobre os impactos negativos das “soluções baseadas na natureza”: Orientação sobre mercados de carbono e como se opor a eles; e Fichas técnicas sobre “soluções baseadas na natureza” e agricultura de conservação do carbono do solo e restauração do carbono do solo (julho de 2023) >> https://www.foei.org/es/publicaciones/mercados-de-carbono-del-suelo/

(2) Comunicado de imprensa da campanha Kick Big Polluters Out, 21 de novembro de 2023.

(3) Artigo da Climate Reporting e da BBC, 27 de novembro de 2023.

 

* COMUNICADO DE IMPRENSA divulgado pela FoEi na 4ª feira, 29 de novembro de 2023, Dubai, Emirados Árabes Unidos 

** Artigo traduzido em português com ajuda do tradutor deepL. Artigo publicado originalmente no site da FoEi em https://www.foei.org/es/cop28-comienza/

Lançamento do curta-documentário “Opy’i – fortalecimento do karai”, na Casanat, em Porto Alegre (RS)

Nenhum Guarani está sozinho. Quando se reza pedindo proteção para as crianças, para os mais velhos, não está pedindo só para a aldeia em que vivem, mas sim para os irmãos Guarani que habitam o Brasil, o Paraguai, o Uruguai e a Argentina. Essas fronteiras existem apenas para o homem branco, o “juruá”; os Guarani são um só povo!

Esse conhecimento foi dividido pelos caciques Timóteo, da retomada do Arado Velho, na zona sul de Porto Alegre, e Jaime, do Cantagalo em Viamão (RS), com quem esteve no lançamento do curta-documentário “Opy’i – fortalecimento do karai”; ou “Opy Nhombaraete Karai”, no idioma Guarani, no sábado à noite (25/11) na CasaNat, sede da Amigas da Terra Brasil.

Em pouco mais de 15 minutos, o curta registra a construção da OPY’I, casa de reza Guarani no Arado Velho, em meio ao modo Mbyá de viver, como a alimentação coletiva, a música e a relação com a natureza. Durante a conversa, Timóteo explicou que pela reza os Guarani se comunicam com os seus deuses e ancestrais, e por isso todas as aldeias têm uma OPY’I. A do Arado Velho vem para reforçar ainda mais este elo e a proteção do Povo Guarani.

Outro assunto comentado foi a violência sofrida por Timóteo e seus parentes na Ponta do Arado, área habitada por eles nas margens do Guaíba, que integra uma grande fazenda no bairro Belém Novo, a qual foi vendida e será loteada para construção de condomínios residenciais. Os indígenas já foram ameaçados, e apoiadores chegaram a ser criminalizados na Justiça pelo empreendimento, mas os Guarani resistem no local. Atualmente, aguarda-se a formação de um GT (grupo de trabalho) pela FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) para prosseguir com o pedido de determinação da terra indígena.

A cine conversa foi regada por pipoca e batata doce e milho assados ali na hora, como os Guarani fazem. As pessoas participantes puderam, ainda, apreciar o artesanato dos indígenas e ver uma amostra de fotografia dos bastidores do curta-documentário.

Agradecemos, de coração, a participação de quem esteve presente na CasaNat compartilhando o seu tempo com as sabedorias e as conquistas dos Guarani. Seguimos na luta!

Fotos: Carolina Colorio/ ATBr e Roberto Liebgott/ Cimi-Sul

Amigas da Terra Brasil

Declaração da Campanha Global sobre a Sessão de Negociações por um Tratado Vinculante sobre Direitos Humanos e Empresas na ONU

 

TRATADO VINCULANTE SOBRE EMPRESAS TRANSNACIONAIS E DIREITOS HUMANOS: OS PAÍSES DO SUL GLOBAL BLOQUEIAM O MOVIMENTO DAS POTÊNCIAS FORTES CONTRA O PROCESSO!

 

 

Declaração da Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade

Novembro de 2023

 

A 9ª sessão do Grupo de Trabalho Intergovernamental de Composição Aberta (OEIGWG, por sua sigla em inglês) para elaborar um Tratado Vinculante da ONU sobre Empresas Transnacionais (ETNs) e outras empresas de caráter transnacional com relação aos direitos humanos foi realizada em Genebra de 23 a 27 de outubro de 2023. Essa rodada de negociações representou um marco importante na luta contra a impunidade das ETNs por violações dos direitos humanos e do meio ambiente e foi concluída com uma mensagem clara: movimentos sociais, sindicatos, povos indígenas, comunidades afetadas e organizações da sociedade civil, juntamente com muitos estados do Sul Global, estão comprometidos em proteger esse processo dos interesses daqueles que insistem em colocar os lucros das empresas acima dos direitos dos povos e do planeta.

Como todos os anos, a Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade (Campanha Global) organizou uma semana de mobilizações com atividades dentro e fora do prédio da ONU (veja a agenda abaixo). Com uma delegação de 73 pessoas vindas da Ásia, África, América Latina, Estados Unidos e Europa, os membros da Campanha Global participaram de sessões, organizaram eventos dentro da ONU, uma exposição de fotos e manifestações, comprometidos com a elaboração de um ambicioso Tratado Vinculante que reflita as necessidades e os interesses dos povos afetados pelas violações das ETNs.


Um novo bloco de países do Sul Global enfrenta a Presidência

A abertura da semana de negociações começou de forma combativa: por mais de quatro horas, um grupo de países do Sul Global rejeitou a tentativa da presidência de impor um texto ilegítimo como base para as negociações. Conforme destacado pelo Grupo Africano, que representa os 54 Estados africanos, a minuta atualizada do tratado emitida em julho de 2023 pelo Presidente do OEIGWG, o Embaixador do Equador, foi construída de forma não transparente e não inclusiva, adicionando e/ou excluindo elementos e disposições sem critérios ou argumentos claros. Por esses motivos, o Grupo Africano exigiu que a minuta atualizada fosse retirada da mesa e que a terceira minuta revisada anterior fosse retomada como base para as negociações. Além disso, conforme consistentemente contestado por países latino-americanos, como Cuba, Honduras, Venezuela, Colômbia e Bolívia, e estados asiáticos, como Paquistão e Indonésia, juntamente com o Grupo Africano, o novo rascunho proposto pelo presidente procurou impor ao Grupo de Trabalho um escopo de aplicação do Tratado Vinculante fundamentalmente diferente daquele determinado pela Resolução 26/9, o documento que estabelece o OEIGWG que rege esse processo desde 2014. Essa Resolução define que o escopo de aplicação desse Tratado deve se concentrar nas ETNs e em outras empresas de caráter transnacional.

A maior parte do Sul Global falou em alto e bom som: esse processo foi iniciado com o objetivo de preencher a lacuna na legislação internacional que permite que as empresas transnacionais violem os direitos humanos e ambientais com impunidade. A expansão do escopo do Tratado para regular “todas as empresas”, conforme proposto pelo presidente e defendido abertamente pelos estados do Norte Global e pelos representantes do setor corporativo, contradiz a intenção original do processo. Com base nessa proposta, o Tratado estabeleceria disposições comuns para regulamentar empresas com estruturas e atividades muito diferentes, o que não seria apenas injusto, mas também tornaria a implementação complexa e ineficaz.


As negociações sobre o texto avançam, fortalecendo a Resolução 26/9

No final, o Presidente conseguiu rejeitar a solicitação do Grupo Africano de voltar à minuta anterior; no entanto, a pressão dos Estados do Sul Global prevaleceu para, pelo menos, usar a minuta atualizada em sua versão com acompanhamento de alterações (que inclui os elementos que foram arbitrariamente removidos da versão do Presidente). Muitos estados do Sul Global, juntamente com as organizações e movimentos da Campanha Global, continuaram a denunciar essas manobras e a questionar as intenções por trás delas.

Apesar desse primeiro dia agitado, as negociações do rascunho revisado começaram com uma participação forte e construtiva, sem precedentes, de Estados comprometidos com o mandato da Resolução 26/9, tanto em número quanto em qualidade das intervenções. Graças a essa participação, disposições importantes foram reintroduzidas no texto da negociação, tais como: obrigações diretas para as empresas transnacionais; a primazia dos direitos humanos sobre os acordos de livre comércio e investimento; a importância de reconhecer e incluir o conceito de comunidades afetadas; a importância de estabelecer que as empresas transnacionais não apenas abusam dos direitos humanos, mas também os violam; e a necessidade de fortalecer as disposições para estabelecer a responsabilidade da empresa matriz ao longo das cadeias de valor e produção.

Durante os intensos dias de negociações que ocorreram nos últimos dias de outubro, esses Estados adotaram uma linha dura e se mantiveram firmes, se apropriando legitimamente de um processo do qual fazem parte e defendendo firmemente a Resolução 26/9.

Uma nova tentativa de golpe

Antes do final da semana de negociações, o presidente do Grupo de Trabalho colocou na mesa uma proposta que parecia uma manobra maliciosa: como conclusão da semana, ele propôs que o OEIGWG solicitasse uma nova resolução ao Conselho de Direitos Humanos com o objetivo de renegociar o mandato do processo, argumentando que havia falta de consenso e de recursos financeiros. Essa foi uma manobra com o único objetivo de inviabilizar o processo do Tratado Vinculante (vale a pena observar que, em julho de 2023, durante uma consulta do Grupo Ocidental, foi discutida uma proposta para “esclarecer” o mandato do OEIGWG por meio de uma nova resolução). A nova resolução proposta foi recebida primeiro com surpresa e depois com rejeição total pelos Estados presentes na sala, com exceção dos representantes dos Estados Unidos e da União Europeia. Graças a essa rejeição categórica de vários Estados, a proposta não foi aprovada.

O compromisso ativo do bloco de países do Sul Global, movimentos sociais, comunidades afetadas, povos indígenas, sindicatos e organizações da sociedade civil com o processo estabelecido pela Resolução 26/9 e com os direitos dos povos e do planeta pôs fim a essa tentativa de golpe do Presidente. A suposta “falta de consenso” que ele usou para justificar a necessidade de uma nova Resolução simplesmente não corresponde à realidade: mais de 60 Estados se manifestaram em uníssono sobre a clareza do escopo da Resolução 26/9, com foco nas ETNs e em outras empresas de caráter transnacional.

Após intensa negociação entre os Estados na manhã de sexta-feira, as conclusões oficiais da semana foram uma vitória retumbante para os defensores desse processo histórico. Não apenas a proposta de uma nova resolução, que durou pouco tempo, foi abandonada, como também foi reafirmada a importância de continuar as negociações de acordo com os objetivos e as disposições estabelecidos na Resolução 26/9. Além disso, os Estados concordaram com a importância de encontrar novos recursos financeiros para avançar nas negociações, inclusive por meio de consultas inter-sessões transparentes em que todos os Estados discutam e concordem democraticamente sobre como continuar o trabalho no Tratado. Pedimos que o Grupo de Trabalho se afaste dos debates e discussões informados por “especialistas”, dos quais já estamos fartos. Em vez disso, acreditamos que as vozes e experiências das pessoas e comunidades afetadas pelas violações das TNCs devem ser ouvidas e priorizadas, e que elas são os verdadeiros especialistas.

E agora?

Muitos desafios estão por vir. Sabemos que um Tratado Vinculante forte e eficaz mudará o desequilíbrio de poder predominante que permite que alguns lucrem com a desapropriação e a morte de outros. A rejeição inequívoca de uma nova resolução foi uma vitória retumbante para os estados do Sul Global e para a Campanha Global, e um verdadeiro desafio para as potências que buscam minar o Tratado e que não ficarão paradas diante desse resultado das negociações.

Essas tentativas constantes de boicotar e corroer o Tratado são a prova de que as ETNs e seus agentes usarão todas as suas forças para tentar impedir que esse processo avance. O setor corporativo, os Estados Unidos (que nunca ratificam tratados de direitos humanos) e a União Europeia (que ainda não tem mandato para negociar esse tratado) estão totalmente empenhados em destruir, ou pelo menos diluir, o processo. Outros países do Norte Global (Suíça, Israel, Japão, Austrália, Canadá), bem como alguns países do Sul Global subjugados aos interesses corporativos e imperiais do Norte, estão seguindo o mesmo caminho. A batalha por um Tratado Vinculante digno desse nome será, portanto, intensa.

Essas constantes tentativas de boicotar e corroer o Tratado são a prova de que as ETNs e seus agentes usarão todas as suas forças para tentar impedir que esse processo avance. O setor corporativo, os Estados Unidos (que nunca ratificam tratados de direitos humanos) e a União Europeia (que ainda não tem mandato para negociar esse Tratado) estão totalmente comprometidos em destruir, ou pelo menos diluir, o processo. Outros países do Norte Global (Suíça, Israel, Japão, Austrália, Canadá), bem como alguns países do Sul Global subjugados aos interesses corporativos e imperiais do Norte, estão seguindo o mesmo caminho. A batalha por um Tratado Vinculante digno desse nome será, portanto, intrincada e não isenta de armadilhas e obstáculos.

Olhando para o futuro, a Campanha Global continua totalmente comprometida com o Tratado Vinculante, unindo as necessidades e aspirações dos movimentos, sindicatos e comunidades afetadas com a redação jurídica de um Tratado capaz de mudar o mundo como o conhecemos. Fazemos eco aos apelos dos Estados do Sul Global por transparência e por uma metodologia clara capaz de gerar consenso para as negociações, e não de impor caprichos.

Por fim, denunciamos a crescente securitização do espaço da ONU. De um fórum que supostamente busca proteger e promover os direitos humanos, ele se tornou, na prática, um espaço que criminaliza expressões de solidariedade e dissidência e exacerba vulnerabilidades. Agora é um espaço que ironicamente ignora as múltiplas estratégias que aqueles de nós que defendem os direitos humanos têm o direito de utilizar. As tentativas de silenciar o apoio à Palestina foram frequentes durante toda a semana, apesar do genocídio que se desenrola diante de nossos olhos.

A manifestação em frente à Broken Chair na segunda-feira, 23 de outubro, co-organizada pela Campanha Global, mostrou que o poder do povo pode ressoar na sala de negociações. Ela mostrou que não se pode brincar com a Resolução 26/9. Como Paula Goes, do Movimento dos Atingidos por Barragens do Brasil, declarou em nome da Campanha Global:

“A Resolução 26/9 é uma vitória histórica, resultado de anos de luta de milhões de pessoas cujos direitos humanos são sistematicamente violados por corporações transnacionais. Esse processo é, portanto, um mandato para aqueles que foram assassinados em Marikana por terem feito greve para exigir melhores condições de trabalho na Lonmin; para as crianças indígenas que estão morrendo de câncer no Equador por causa dos vazamentos de petróleo da Chevron; para as trabalhadoras assassinadas em Rana Plaza e para os milhões de pessoas atualmente presas em Gaza e submetidas a um genocídio diretamente auxiliado e incentivado por empresas transnacionais”.

As memórias dos nossos povos exigem responsabilidade e justiça para as violações dos direitos humanos cometidas pelas empresas e, graças aos esforços de muitos Estados, da Campanha Global e de seus aliados, essa possibilidade continua em nossas mãos. Ao marcarmos uma década dessa luta no próximo ano, estaremos marchando mais fortes e mais comprometidos do que nunca.

 

Atividades da Semana de Mobilizações 2023:

Segunda-feira, 23 de outubro

Evento paralelo: “Como o Tratado Vinculante pode apoiar o trabalho parlamentar para defender os Povos e o Planeta contra as violações das ETNs?”

Vídeo: https://justice5continents.net/fc/viewtopic.php?t=1155

Manifestação: Dance pela mudança, mova a cadeira

 

Terça-feira, 24 de outubro 

Evento paralelo: “Tribunal do Povo: Empresas transnacionais em julgamento”.

Vídeo: https://justice5continents.net/fc/viewtopic.php?t=1156

Exposição de foto-documentários da Assembleia de Mulheres Rurais

 

Quinta-feira, 26 de outubro

Evento paralelo: “Casos de violações de direitos humanos e destruição ecológica”.

Vídeo: https://justice5continents.net/fc/viewtopic.php?t=1157

 

Documentos úteis da Campanha Global:

 

Comunicado de Primeiras Impressões sobre o Projeto de Tratado Atualizado (setembro de 2023)

Fronteiras de um Tratado Efetivo (2023)

10 anos passados, 10 anos pela frente. A Campanha Global rumo a 2032 (2022)

Elementos-chave defendidos pela Campanha Global, com base nas experiências de resistência das comunidades afetadas pelas ETNs (2022)

Documento de elementos para um Tribunal Internacional sobre ETNs e Direitos Humanos (2022)

Proposta de Tratado sobre ETNs e Direitos Humanos (2017)

 

Para obter mais informações: https://www.stopcorporateimpunity.org/binding-treaty-un-process/

Amigas da Terra Brasil participa de Missão de Monitoramento dos Direitos Humanos de atingidos por enchentes no Vale do Taquari (RS)

Nestes dias 27 e 28 de novembro, acontece a Missão de Monitoramento dos Direitos Humanos no Vale do Taquari. Depois de duas grandes enchentes que atingiram a região, em menos de três meses, a Missão fará visitas em quatro municípios para verificar como estão sendo feitas as ações de reparação das famílias e a reconstrução das condições de vida e de trabalho dos atingidos.

As atividades estão sendo organizadas pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos, pelo CDES Direitos Humanos, pela Acesso Cidadania e Direitos Humanos e pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Além das visitas nos bairros de Lajeado, Cruzeiro do Sul, Arroio do Meio e Roca Sales, no dia 27 será realizada uma Audiência Pública no Seminário Sagrado Coração de Jesus, em Arroio do Meio, com a presença de atingidos de todas as cidades do Vale do Taquari e de autoridades. O objetivo é ouvir os relatos dos moradores da região sobre como estão sendo implementadas as políticas públicas e apresentar um relatório de monitoramento dos direitos humanos.

A Missão se encerra no dia 28 com uma mesa de diálogo com as autoridades locais para acompanhamento das ações que estão sendo realizadas e indicação de novas possibilidades para a reconstrução das regiões atingidas. Estarão presentes autoridades, entre elas a deputada estadual Laura Sito, presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, e representantes da Comissão de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado, da Ordem dos Advogados do Brasil e do Tribunal de Justiça do estado.

“As mudanças climáticas já são uma realidade presente no nosso cotidiano e no Vale do Taquari atingiram diretamente milhares de pessoas. O Estado brasileiro e os governos das esferas federal, estadual e municipais precisam proteger vidas”, disse Alexania Rossato, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens. “A Missão quer alertar para o problema, ouvir a população e fazer o monitoramento dos diretos humanos”, completou Júlio Alt, presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos.

Acompanhe a cobertura da missão pelas redes sociais da Amigas da Terra Brasil (ATBr):

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FACEBOOK: Amigas da Terra Brasil 

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Álbum de fotos da ATBR sobre a ronda no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, nos dias 27 e 28 de novembro de 2023.

*Texto do post é o relise enviado à mídia
** Foto: Carolina Colorio/ ATBr

Nota de solidariedade: Pela autogestão e autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre, dizemos NÃO ao PL 037/2023

O Projeto de Lei 037/2023 reflete exponencialmente o que tem sido a gestão  na prefeitura de Porto Alegre (RS) neste último período, durante o governo de Sebastião Melo (MDB). Uma prefeitura que demonstra uma aliança mais que evidente com o empresariado, governando para manter os privilégios e consequentemente o acúmulo de capital destes, às custas dos territórios e iniciativa dos povos, da classe trabalhadora, dos direitos humanos e da natureza. 

Para a prefeitura e para os ricos da cidade, assim como para o modelo neoliberal a qual ela governa, não é interessante que exista um processo auto-organizado, autogestionado da sociedade civil, que garanta os alimentos sadios pelas agricultoras e consumidoras por meio de laços de confiança que existem e se mantém ao menos há 30 anos – este exemplo não é bom para o projeto neoliberal de Melo e do empresariado. Por isso, existe a tentativa de eliminar a autonomia das feiras ecológicas. Feiras que há décadas realizam um trabalho que o Estado deveria dar apoio. Mas não, ele faz de tudo para atrapalhar. 

Este processo de interferência, de mercantilização da vida e fragmentação de espaços coletivos, infelizmente, se reflete em relação a cidade toda. Está presente quanto à moradia, a questão do saneamento, na lógica de privatizar o transporte público, água, saúde, educação e a economia. E esta mesma dinâmica violenta incide na questão das feiras ecológicas, que tem um histórico e uma característica importante de auto organização que perdura há décadas.  

No caso das feiras ecológicas de Porto Alegre, a sociedade civil se organiza a partir dos consumidores, dos produtores e de parceiros urbanos, em uma diversidade coletiva que torna a experiência não só uma das pioneiras na América Latina, como um espaço que pauta outras possibilidades de refletir sobre a alimentação, a cultura, o comum e a própria cidade.

Iniciativas assim, que trazem a imaginação política de que outros mundos são possíveis para além do reducionismo de “compra e venda” (numa lógica do cliente tem sempre razão ou de que “não tem almoço grátis, narrativas neoliberais), incomodam quem detém o poder político e econômico. O incômodo se deve, principalmente, ao fato de que são essas forças coletivas que  evidenciam o exemplo de que há como se organizar. De que é possível trilhar outros caminhos. E o Estado, que deveria apoiar essas construções, na verdade se empenha em criar barreiras para que essa coletividade aconteça.

Como apontou Fernando Campos, coordenador do Programa Soberania Alimentar e Biodiversidade da Amigas da Terra Brasil: “O PL 037/2023  diz muito sobre esse governo que privilegia o empresariado e desorganiza a sociedade civil em relação à incidência na auto organização, no processo organizativo. É importante para eles que não exista um bom exemplo para mostrar que a sociedade civil pode tomar iniciativas e ter as suas próprias soluções, e que o Estado tem que apoiá-la”. 

A Amigas da Terra Brasil apoia as pessoas produtoras de alimentos da zona rural e do urbano. Estamos ao lado do Conselho de Feiras, das feiras ecológicas de Porto Alegre e das iniciativas coletivas que rompem com o imperativo capitalista de reduzir todas as relações a práticas mercadológicas. 

Que a autonomia dos espaços coletivos seja preservada, para que alimentos saudáveis para as pessoas, territórios e planeta sejam uma realidade que se amplie a cada dia. 

Seguimos na luta construída nas bases, pela agroecologia, pelo fim da fome e pela soberania alimentar. 

Leia também: Audiência pública debateu projeto de lei da prefeitura que regulamenta e ameaça autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

O avanço da violência no campo no primeiro ano de Governo Lula

Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou recentemente os dados da violência no campo do primeiro semestre deste ano: foram registrados 973 conflitos, representando o segundo semestre mais violento dos últimos 10 anos, perdendo apenas para o ano de 2020, no qual foram registrados 1.007 conflitos. Em sua maioria, os conflitos envolvem a questão da terra e território. Segundo a CPT, ao todo foram assassinadas 18 lideranças até outubro deste ano, sendo que os números aumentaram exponencialmente neste mês. Apenas entre 10 e 11 de novembro, 8 assassinatos ocorreram num único final de semana: 4 quilombolas vítimas de chacina na Bahia; 3 sem-terra assassinados na Paraíba; 1 indígena assassinado no Pará. E durante a semana seguinte, mais uma morte indígena.

O retorno de um governo progressista e a possibilidade de retomada das políticas públicas para efetivação dos direitos constitucionais, tais como a concretização da reforma agrária, a demarcação das terras indígenas e a titulação dos territórios quilombolas, faz movimentar as forças de direita. Darci Frigo, coordenador-executivo da organização de direitos humanos Terra de Direitos, analisa que “quando o poder central está na mão dos setores mais progressistas, da esquerda, que não são de confiança das oligarquias, elas passam a atuar no âmbito local com a articulação de forças policiais dos governos dos estados ou das milícias privadas.

Esses setores não confiam no governo central, ainda mais com a possibilidade de efetivação de políticas públicas, como a regularização fundiária, reforma agrária, desintrusão e demarcação de terras indígenas, titulação de territórios quilombolas. Muitos assassinatos têm relação com possíveis limites à desenfreada expansão do agronegócio e seus grandes lucros com anos seguidos de altos preços das commodities agrícolas”.

Após derrubada do marco temporal, aumentaram casos de violência onde o agronegócio organizou ofensiva aos territórios indígenas – Luz Dorneles/ Arquivo ATBr

A oligarquia rural brasileira é conhecida pela sua violência. É comum haver uma influência desse setor sobre as forças de segurança pública estaduais e locais para realização de despejos e ameaças. Nesse sentido, o tema da violência no campo encontra o problema da segurança pública no Brasil. Vários dos conflitos agrários estão vinculados às atuações policiais envoltas em abuso de autoridade. Além disso, a oligarquia mobiliza forças de segurança privada, que atuam como verdadeiras milícias rurais, exterminando lideranças capazes de mobilizar a luta por direitos que afetem os interesses econômicos.

As movimentações políticas em Brasília afetam consideravelmente este cenário. Depois da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de derrubar a tese do marco temporal para a demarcação das terras indígenas, explodem conflitos nas regiões, nos quais o agronegócio organizou uma ofensiva aos territórios indígenas. As lideranças indígenas e quilombolas são as mais ameaçadas. A determinação do ministro Barroso para efetivação dos processos de desintrusão das Terras Indígenas Apyterewa e Trincheira Bacajá tampouco vem sendo fácil de executar pelo Ministério da Justiça. Inclusive, a possibilidade de avanço das titulações quilombolas gerou uma contra ofensiva, com as vidas ceifadas das lideranças quilombolas na Bahia e no Maranhão.

A violência refletida nos territórios está no Congresso Nacional. A força do agronegócio impõe violações aos direitos constitucionais, como nos questionamentos às decisões do STF, na reabertura do debate do marco temporal e nos projetos de lei de flexibilização do licenciamento ambiental. Sensível a aliança da bancada do boi com a da bala no apoio à proposta de nova lei das Polícias Militares (PL n.º 3045/2022, na mesa da presidência), que permite ainda menor controle e transparência da sua atuação.

Novamente, deparamo-nos com o cenário da violência no campo de 2003, quando a chegada do primeiro Governo Lula e a possibilidade de mudanças concretas na garantia de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais ao povo brasileiro fez insurgir a classe, até então dona do poder. Quando não controla o poder público federal, ainda que com sólidos braços no governo de composição, a oligarquia rural estende suas ações aos poderes locais, estaduais e municipais. Como enfrentaremos essa ofensiva?

Duas discussões centrais do governo para enfrentar o problema

O tema da segurança pública tem sido um desgaste na imagem do Governo Lula. Sem adentrar no vespeiro, interessa-nos refletir sobre as dinâmicas de controle interno e externo da atuação policial. A Polícia Militar no Brasil está mais associada ao militarismo que à segurança pública, assumindo uma inversão de poder; inclusive, algumas PMs sequer respondem aos governos estaduais. Há ausência de punição sobre os casos de infração, com muitos arquivamentos de inquéritos. Outro elemento é a falta de transparência da Instituição, não apenas quanto a sua atuação, mas também quanto ao orçamento. Igualmente, a responsabilização para os gestores que fazem uso político das polícias para efetivação de seus interesses.

A violência, a polícia e a responsabilização pelas infrações, especialmente o abuso de autoridade, precisam ser tratadas no país. A condução da segurança pública, com o aumento da militarização nos territórios, não é a resposta eficiente à crise. É preciso haver coragem para enfrentar uma reforma da organização das polícias Civil e Militar no país, e isso definitivamente não está na proposta atual de lei orgânica das PMs.

Outro tema importante é a política de defensores e defensoras de direitos humanos, dos povos e dos territórios. No país que figura como um dos que mais mata defensores e defensoras no mundo, o tema parece não ser uma prioridade. Desde as discussões do Grupo de Trabalho da Transição, o governo sabia da determinação judicial para formar um Grupo de Trabalho para reformular a política de defensores no país, com a missão de construir o Plano Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, do meio ambiente e comunicadores e o anteprojeto de lei.

Apesar disso, o Decreto com a criação do GT (Decreto n.º 11.562/2023)  saiu em 13 de junho de 2023. E a primeira reunião do grupo só aconteceu no dia 10 de novembro. Em meio a essa morosidade, vários defensores e defensoras vêm sendo assassinados. As respostas são a investigação criminal dos mandantes e executores, elemento muito importante para cessar a impunidade, contudo insuficiente. Enquanto as políticas de defensores não considerarem os aspectos coletivos da violação, e enfrentarem as questões estruturais que dão causa à ação dos defensores, as tragédias seguirão se repetindo.

A proteção da vida humana e da integridade física é obrigação inegociável do poder público. Não existem expectativas de que o atual governo resolva todos os problemas estruturais que como país enfrentamos; porém, se houver recuos em prol da conciliação com a barbárie da oligarquia agrária brasileira, processos políticos fundamentais na construção de outro país, de um Brasil sem fome e sem violência, não serão possíveis.

É urgente e necessário que os ministérios assumam a orientação de governo de construção popular e participativa de políticas públicas, para que nossos problemas sejam tratados entre nós, com seus limites e potencialidades. Avançar no desenvolvimento de perspectivas regionais e locais também é fundamental. Tanto para gestão da segurança pública como para a efetiva proteção dos defensores de direitos humanos, dos povos e dos territórios.

Esta coluna foi publicada originalmente na página do Jornal Brasil de Fato, em: https://www.brasildefato.com.br/2023/11/21/o-avanco-da-violencia-no-campo-no-primeiro-ano-de-governo-lula 

Audiência pública debateu projeto de lei da prefeitura que regulamenta e ameaça autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

Maioria dos agricultores expõe que a proposta de autoria do Executivo retira a autonomia do Conselho de Feiras, ameaçando a construção coletiva dos espaços, a autogestão dos feirantes e a produção ecológica de alimentos

A última terça-feira (14) foi marcada pela Audiência Pública virtual sobre o Projeto de Lei 037/2023, que ocorreu na Câmara de Vereadores de Porto Alegre (RS). O PL, proposto pela prefeitura, não está de acordo com o Conselho de Feiras Ecológicas de Porto Alegre (CFEPOA) e fere a cultura, autogestão, identidade e o acúmulo histórico das feiras, construído com esforços para garantir uma alimentação saudável para as pessoas e para os territórios. 

Na ocasião estiveram presentes presencialmente cerca de 90 pessoas, além de 160 pessoas por videoconferência. A presença física no espaço se deu via articulação de entidades ambientalistas, organizações da sociedade civil, parlamentares, movimentos sociais, produtores ecológicos/agricultores e parceiros urbanos. Isto devido a audiência ter sido marcada apenas de forma online pelas autoridades públicas – formato que inviabiliza a participação de agricultores e agricultoras do interior do estado, que ainda enfrentam dificuldades de acesso à internet. 

Mesmo com solicitação à presidência da Câmara para audiência híbrida, que permite a participação presencial da sociedade, as entidades não tiveram de pronto o retorno. Fato que também demonstra os reais interesses por trás do PL e a forma com que o debate vem sendo conduzido.  Mesmo assim, as articulações em defesa da autogestão e da autonomia das feiras ecológicas estiveram fisicamente presentes, ocupando o espaço.

A Audiência reuniu agricultores agroecológicos de diversos municípios, frequentadores das feiras, representantes de entidades e vereadores. Foi presidida pela vereadora Lourdes Sprenger (MDB), que fez a abertura dos trabalhos e passou a palavra ao secretário de Governança Local e Coordenação Política, Cássio Trogildo, que apresentou detalhes do projeto. Foram ouvidas cinco pessoas contrárias e cinco favoráveis ao PL 037/23. 

Em maioria, as pessoas presentes se posicionaram evidenciando que a proposta de autoria do Executivo retira a autonomia do Conselho de Feiras. O Conselho de Feiras Ecológicas é uma entidade que representa os produtores ecologistas do Rio Grande do Sul, o qual é constituído por produtores, consumidores, entidades da sociedade civil e órgãos públicos, como o Ministério da Agricultura, Associação Agroecológica do RS, entre outros.

Capital gaúcha tem as feiras ecológicas mais antigas do país – Foto: Elson Schroeder

Embora o Executivo afirme que o projeto foi construído com participação popular, grande parte dos participantes da Audiência criticaram o PL 037/23, sublinhando que ele é imposto sem diálogo com quem torna as feiras possíveis há décadas. Contrária ao PL, a agricultora familiar Franciele Bellé, cuja a família está na Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE) há 29 anos, evidenciou: “As feiras foram criadas pelos movimentos sociais, pela necessidade que a população de Porto Alegre tinha de consumir alimentos saudáveis”. Para ela, as feiras da Capital são referência pela relação produtor consumidor e o referido projeto vai contra isto, no intuito de instituir “uma norma de cima para baixo”.

Os participantes contra o PL da prefeitura estavam mobilizados reivindicando mais tempo para discussão e ao menos um novo encontro, em outra audiência pública de formato presencial, que ainda não teve data definida. 

Durante o encontro, foram salientados aspectos como a relevância da participação popular como parte da construção da agroecologia. Ponto que desembocou na reivindicação de mais espaço para participação de produtores que integram as feiras ecológicas na construção do PL. No sentido de levar em consideração os acúmulos, história e lutas por uma cultura que dissemine uma alimentação saudável para pessoas, meio ambiente e planeta.

 A pesquisadora em sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e conselheira do Conselho de Segurança Alimentar do RS, Potira Price, comentou que o poder público sempre teve uma participação muito tímida no fomento das feiras ecológicas. “As feiras são uma conquista social”, sintetizou. 

As feiras ecológicas resistem em meio às pressões do setor imobiliário, tanto na zona rural (com o avanço dos condomínios fechados, com a perda de área de plantio e a contaminação das águas), como no urbano, que privatiza os espaços públicos e avança sobre a cidade na lógica da especulação imobiliária e de transformar Porto Alegre em uma cidade “ctrl C+ ctrl V” de outras cidades, retirando a construção cultural e histórica das ruas e da memória do povo porto-alegrense. 

O desafio vai além de resistir a uma hegemonia marcada pela mercantilização da vida, pela redução dos espaços coletivos à ideia de compra e venda, pela fragmentação das coletividades e espaços dos comuns. Também é sobre pautar outras possibilidades e caminhos, o que as feiras ecológicas de Porto Alegre vem ensinando há décadas, sem se descaracterizar.  

Feiras ecológicas promovem debate sobre PL 037/23 e contam com abaixo assinado em defesa da autogestão das feiras. Crédito: Comunicação da FAE

Quanto ao PL 037/23, que em breve pode ser votado na Câmara Municipal, a base do governo tem maioria, podendo aprovar o projeto. Porém, entre feirantes e parceiros urbanos, é mínimo o setor que está de acordo com a proposta da prefeitura. O argumento contra o PL, advindo da maioria de feirantes/produtores, é de que o autocontrole, organização e consensos das feiras ecológicas sejam debatidos como vem sendo feitos desde o início: com autonomia, participação popular e na coletividade de quem constrói, de fato, os espaços. Hoje, da instalação de luz elétrica e das lonas para cada tenda, até toda a organização da feira, são afazeres realizados por feirantes. As pessoas produtoras que fazem tudo, a prefeitura só tem que ceder a rua. 

Parceiros urbanos se aliam aos feirantes, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que para além da luta por moradia constrói o sonho da soberania alimentar e do fim da fome no Brasil. Em 2021, na pandemia de Covid-19 e auge da fome, o movimento implementou um projeto nacional para garantir a alimentação de quem precisa: as Cozinhas Solidárias. Hoje, a Cozinha Solidária da Azenha, de Porto Alegre (RS), garante por dia em torno de 350 a 400 marmitas para a população, fazendo o que o Estado não faz.  

Unindo a produção de alimentos ecológicos com a distribuição de quentinhas, o MTST e a FAE se encontram na luta. E quanto ao PL 037/23, Eduardo Osório, da coordenação estadual do MTST, expôs: “O que está em jogo é uma disputa de modelo, uma disputa pela cidade. E a FAE, as feiras, sintetizam um sonho de uma outra sociedade, que aqui na cidade junta os urbanos e a turma do rural para garantir saúde, alimentação digna, dignidade do nosso povo. Nós do MTST estamos nessa disputa da cidade, pelo direito à cidade. Vivendo as expulsões do dia a dia nas ocupações, a negação do acesso aos serviços, com despejos administrativos e forçados, com a criação da periferia da periferia. E sempre contamos com a solidariedade e o apoio dos trabalhadores e trabalhadoras do rural, visionários, que há mais de trinta anos apostaram num modelo de agroecologia, sem uso de venenos, com uma outra relação com a natureza. E vem se provando que esse é um modelo de saúde, de futuro”.

Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), defendeu que as feiras não podem ter interferência da prefeitura. Apontou, ainda, o erro do PL em confundir os conceitos de orgânico e ecológico. “Temos que falar o que é ecologia, sobre a relação da vida com todas espécies e meios. E nesse sentido, já achamos que a lei tem que ser regulada. Precisamos de uma lei para as feiras, mas não essa da prefeitura”, mencionou. 

Finalizando a Audiência, foram debatidas as tentativas da prefeitura, fechada com empresários, de mercantilizar e privatizar os espaços coletivos. Além disso, o governo atua para dividir feirantes, incentivando a ideia da mercadoria como valor central, quando na agroecologia o valor está na vida e na diversidade das relações –  vai muito além do simples ato de comprar e vender. Foi pontuada também a necessidade de atenção a esses processos de fragmentação das lutas e coletividades, botando em prática uma ecologia da ação que paute outros horizontes de mundos. 

Leia também a matéria “Agricultores ecológicos criticam esvaziamento da autogestão em projeto de regulamentação do governo Melo”

O PL 037/2023 fere de morte as feiras ecológicas de Porto Alegre

Saiba o que é o PL 037/23 e quais são os pontos abordados em sua construção

Ato em defesa da autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre, que ocorreu no dia 28 de outubro de 2023. Crédito: MTST RS

Ferindo as feiras ecológicas, e até mesmo os princípios da ecologia, que se propõe a construções democráticas, diversas e plurais, o PL 037/2023 não contempla demandas importantes dos coletivos que compõem as feiras

Uma das principais críticas ao projeto de lei da prefeitura é o esvaziamento do protagonismo do Conselho de Feiras, que tem em si um acúmulo de décadas de organização coletiva e gestão. Da forma que as feiras funcionam hoje, tudo é debatido entre entidades e pessoas produtoras. Conforme a proposta do PL 037/23, as feiras ecológicas acontecerão em logradouros públicos municipais definidos pelo Executivo. E a ocupação das vagas disponíveis nas feiras ecológicas existentes, assim como nas futuras, serão preenchidas mediante edital de seleção publicado pela administração municipal. 

A proposta da prefeitura retira a autonomia da gestão de sete Feiras Ecológicas: Feira de Agricultores Ecologistas (FAE) José Bonifácio, quadra 1, Feira Ecológica do Bom Fim, José Bonifácio quadra 2, Tristeza, Três Figueiras, Auxiliadora, Rômulo Telles e Park Lindóia. Houveram várias tentativas de diálogo com a Secretaria de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV). Os participantes do Conselho das Feiras se reuniram com o prefeito Sebastião Melo e saíram com a promessa de avaliação e de participação para os próximos passos do PL. Só que a proposta acabou indo para o legislativo sem considerar o que havia sido acordado. O PL do Executivo foi protocolado em 19 de outubro, na Câmara Municipal de Porto Alegre (RS). 

O Projeto de Lei 037/23 está tramitando na Câmara de Vereadores e prevê que a SMGOV regule as Feiras Ecológicas realizadas nos espaços públicos do município. O que pode acarretar, ainda, em feiras menos ecológicas e mais voltadas para o mercado convencional de hortigranjeiros. 

Com esse PL, a atual administração do município pretende alterar vários pontos do funcionamento desses espaços, privilegiando produtores e fornecedores de Porto Alegre. Fator que implica na quebra da diversidade de alimentos da feira, tendo em vista que os produtores aqui da região não tem uma produção diversificada. 

“A gente quer muito que a prefeitura abra espaço. Mais uma vez a gente pede diálogo.  São 34 anos de construção de um trabalho que é reconhecido hoje nacionalmente, mundialmente, por ser berço de um movimento ecológico, um movimento de luta em defesa da agricultura sustentável e da agricultura saudável. Nós somos um pilar dessa força. Que permita que a nossa identidade seja preservada e essa gestão seja compartilhada de fato”, assinalou Ezequiel Cardoso Martins, agricultor do litoral norte gaúcho, da Banca das Raízes, que faz parte da FAE.

O PL segue para análise da Comissão de Economia, Finanças, Orçamento e do Mercosul (CEFOR). A relatoria ficará a cargo da vereadora Biga Pereira (PCdoB).

Confira o relato do agricultor Ezequiel, em defesa da autogestão das feiras. A entrevista foi realizada durante o ato do dia 28 de outubro, que ocorreu na FAE

Clique aqui e saiba mais sobre como foi a Audiência Pública 

Assine o abaixo-assinado em defesa da autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

Leia também a nota da Amigas da Terra Brasil sobre o PL 037/2023. Que defende a sociobiodiversidade e a autonomia das feiras ecológicas de Porto Alegre

 

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