Em audiência pública, população de Montenegro (RS), comunidades vizinhas e organizações da sociedade civil se manifestam contrárias a projeto de aterro de resíduos industriais perigosos

O projeto em fase de licença prévia na Fepam propõe um aterro de Resíduos Industriais Classe I com vida útil de 26 anos. A população denuncia a falta de diálogo, inclusive sem respeitar o direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé dos povos atingidos pelo empreendimento, como o Povo Kaingang e a Comunidade Kuilombola CoMPaz

Na noite desta terça-feira (22), foi realizada Audiência Pública promovida pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) para diálogo com as comunidades do município de Montenegro (RS) e região sobre um projeto de em fase de licença prévia para receber, durante 26 anos, Resíduos Industriais de Classe I, ou seja considerados perigosos, num aterro localizados na comunidade de Pesqueiro, às margens do rio Caí.  Vale ressaltar que, de acordo com a ABNT na resolução NBR 10004/2004, são considerados resíduos perigosos aqueles que possuem características de: inflamabilidade, corrosividade, reatividade, toxicidade ou patogenicidade.

A audiência pública foi realizada para apresentação do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) durante mais de 3 horas com transmissão online pelo perfil no YouTube da empresa que pretende se instalar no município, a Fundação Proamb, com participação da comunidade através de uma reunião online. O projeto seria construído em uma área de 46 hectares, localizada a 850 m do entroncamento com a ERS-124, no município de Montenegro (RS). Para realização do aterro estão previstos mais de 40 impactos gerados na região e, como retorno para o município,  a geração de apenas 40 vagas durante a implantação do projeto, sendo 20 empregos na fase de operação. O investimento previsto no projeto chega a 5 milhões de reais.

Dispostos lado a lado, um grupo de representantes da Fepam e da empresa apresentaram a proposta. Davi Valduga, que coordena o processo de licença prévia e apresentou o andamento de avaliação do EIA/RIMA por parte da Fepam. A proposta foi apresentada pela empresa Fundação Proamb, junto às consultorias Bioarea Soluções Ambientais, representada pela bióloga Lisiane Ferri, que coordenou o EIA/RIMA, além do projeto de engenharia proposto pela empresa Vector Geo4D, representada pelo engenheiro Rovane França.

População não sabia da existência do projeto

Área da comunidade quilombola está localizada a cerca de 8 km do local pretendido para o aterro e não teve seu direito de Consulta Livre Prévia Informada e de Boa Fé respeitado. Imagem: reprodução

A transmissão manteve a participação de cerca de 70 pessoas do município que acompanharam diretamente de um salão paroquial na região de Pesqueiro, área próxima de onde se instalaria o aterro. Além disso, moradores da região, representantes de comunidades e organizações sociais inscreveram-se para participar online, realizaram perguntas e expressaram, em ampla maioria, posição negativa ao projeto. Um dos pontos de crítica por parte dos participantes, incluindo vereadores do município, foi a pouca divulgação sobre a realização da audiência, o que acarretou na baixa participação da população do município, incluindo relatos de que grande parte só soube da sua realização no dia, com o aluguel do salão paroquial. Montenegro possui uma população de 59 mil pessoas, segundo o último censo de 2010 do IBGE. 

Quanto à consulta à população, apenas 10 residências do entorno do local onde se instalaria o empreendimento foram consultadas, sendo 8 dentro do raio de 1km e 2 nas proximidades. A Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz) não teve seu direito de Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé respeitado, como prevê o artigo 6º da Convenção 160 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário e que encontra respaldo na Constituição Federal e ordenamentos legais do país. Questionados quanto a isso, a bióloga Lisiane Ferri argumentou que a comunidade está localizada a 8,374 km de distância do local em que se pretende construir o aterro e usou como fundamento o raio mínimo de influência apontado para empreendimentos considerados pontuais pela portaria interministerial nro. 060/2005, contudo não citou qual documento estabelece a distância de 8 km como limite para aplicação do direito à consulta prévia para comunidades e povos tradicionais. Tal informação não está descrita nas portarias do Ministério do Meio Ambiente (MMA)  274/2020, 280/2020 que dispõem sobre resíduos sólidos, ou mesmo na política sobre resíduos sólidos disponível no site do MMA. Érica Pastori, socióloga da Fepam, respondeu que pela proximidade de localização da CoMPaz ao limite de 8 km, a partir do marco utilizado, foi encaminhado junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) o preenchimento da Ficha de Caracterização de Atividade (FCA) e o processo está em andamento. 

Diversas foram as manifestações dos representantes da CoMPaz questionando o perímetro que viola o direito de Ser e Existir da comunidade para consulta segundo seus próprios protocolos comunitarios e posicionamento sobre a realização da proposta de aterro. Yashodhan Abya Yala destacou inclusive que houve a necessidade de inscrever-se para falar como organização não-governamental, pois nos critérios da Fepam não constava a possibilidade de inscrição para participar como comunidade tradicional e povos originários. Ela ainda destacou que os impactos gerados afetaram a toda a região: “nosso povo água não tem limites, nosso povo ar não tem limites, nosso povo terra não tem limites”. Além disso, somou críticas à forma com que a Fepam mediou a audiência, posicionando-se em defesa do projeto e dos empresários. Vale ressaltar que a relação de proximidade e parceria entre poder público e privado fica evidente já ao acessar a audiência que foi transmitida pelo perfil do YouTube da empresa que pretende se instalar em Montenegro.

Rafael José Altenhofen, presidente do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (COMDEMA), se pronunciou e informou que o órgão não foi consultado. “A Resolução 237/1997 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para esse tipo de licenciamento tem que haver um aval prévio do município atestando a viabilidade e conformidade do zoneamento, enfim. Não foi consultado o COMDEMA, a Câmara de Vereadores, não foi consultado o Conselho do Plano Diretor”, ele pontua. Durante a manifestação na audiência, Rafael sugeriu que, com o apoio popular demonstrado, os vereadores ali presentes propusessem uma legislação que proíba a instalação deste tipo de projeto, como o município de Estância Velha aprovou no final do último ano. O presidente do COMDEMA ainda lembrou que uma licença ambiental emitida pelo Executivo municipal que autoriza uma pedreira em área vizinha ao projeto: “Geraria instabilidade por explosões e britagem nesta área do aterro, ou seja são atividades incompatíveis”, complementa. 

Os representantes da Fepam foram questionados sobre o projeto de pedreira vizinho ao empreendimento pretendido e afirmaram desconhecer a proposta. “O sistema não está interligado entre município-Fepam-estado e nós não tivemos como fazer essa verificação em tempo e será feito agora e também essa licença foi emitida em 2021”, defendeu-se do desconhecimento o coordenador do processo de licenciamento Davi, tendo sua fala complementada por Rafael Volquinde, diretor da Fepam, que presidiu a audiência pública.

Representantes da empresa participaram de reunião com o prefeito
 do município – Foto: Prefeitura de Montenegro

Em 2020, uma certidão assinada pelo então prefeito, Carlos Eduardo Muller (PP), e pelo secretário de Meio Ambiente, Adriano Chagas, liberou a solicitação de licença prévia. No documento, a Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) expõe que “nada tem a se opor ao empreendimento” e autorizaria o recebimento de resíduos industriais inclusive de outros municípios. As informações foram compartilhadas pelo vereador Juares Silva, que exerce seu segundo mandato. Ele informou que não sabia do projeto ou mesmo das tratativas da antiga gestão com a empresa. Os demais vereadores presentes na reunião, Felipe Kinn, Paulo Azeredo e Ari Muller também informaram desconhecer a liberação do projeto por parte da antiga gestão.

Riscos do projeto

Outro ponto levantado, foi quanto aos riscos de contaminação ambiental de se ter um aterro de resíduos industriais tóxicos na região. Além de possíveis incidentes como os já ocorridos na unidade de Pinto Bandeira, administrada pela Fundação Proamb, em que dois incêndios ocorreram, em 2014, e o último, em 2020, que durou mais de 30 horas. Questionados, o representante da empresa afirmou que medidas foram adotadas para qualificar o monitoramento, mas defendeu que este tópico não era foco: “nosso objeto aqui é o novo empreendimento de Montenegro, não discutir questões operacionais lá de Pinto Bandeira”, afirmou Gustavo Fiorese, representante da Proamb.

São mais de 40 impactos possíveis gerados na região do município, entre eles a mortalidade da fauna, a perda da cobertura vegetação, contaminação das águas superficiais, além da redução da recarga e níveis freáticos, ainda risco de rompimento dos taludes do aterro e células dos resíduos. É importante destacar os possíveis incômodos da comunidade vizinha ao projeto com odor e aumento da frota de veículos pesados. Aos riscos do projeto apresentou planos de monitoramento.

São mais de 40 impactos contabilizados caso o projeto venha a se instalar na região. Imagem: reprodução

De forma praticamente unânime, os moradores se manifestaram contrários a instalação do aterro na localidade, com exceção de uma empresária da região que declarou apoio ao projeto. O argumento são os possíveis impactos ambientais que podem afetar as propriedades rurais locais, as águas de arroios e do Rio Caí, impactando com reflexos diretos e irreversíveis não apenas aos ecossistemas existentes, mas terras e comunidades que vivem e dependem da água do rio Caí e afluentes que tem suas nascentes na subacia alvo do projeto.

Apresentação do EIA/RIMA mostrou a proximidade com os corpos d’água da região. Imagem: reprodução

A Amigos da Terra Brasil posicionou-se durante a audiência pública representada por Fernando Campos. Ele destacou que vê com tristeza o projeto de instalação de um aterro na região: “a gente sabe do esforço que vem sendo construído na região metropolitana para construir um cinturão verde, uma área protegida, acabamos de conseguir derrotar a Mina Guaíba, que era um risco para toda a região, também conseguimos derrotar a exploração no rio Camaquã, que também foi uma vitória, a própria questão da deriva dos agrotóxicos também estamos tendo vitórias em Nova Santa Rita. Então, acreditamos sim que vamos ser vitoriosos em barrar esse empreendimento e que a região metropolitana vai ser livre de resíduos tóxicos e de contaminação e que a gente possa ter uma vida mais saudável dentro dessa realidade”. 

Fernando reforçou os comentários feitos pela população de que o papel da Fepam apresentava uma relação desigual entre os direitos da população e os interesses da empresa, já que a população não recebe o mesmo tratamento e atenção de diálogo que a empresa proponente: “Tratar desiguais como iguais é uma forma de desigualdade. O poder econômico das empresas é diferente do poder das comunidades. O papel da Fepam não é tratar todos como iguais”. Ele ainda fez um pedido para que os vereadores e a comunidade se articulem para barrar o projeto.

Ao fim da audiência foi reforçado o pedido de participação popular sobre a matéria. A Fepam receberá manifestações por escrito até 1 de março de 2022 por email rsi-montenegro@fepam.rs.gov.br.

No dia de hoje (24), uma carta escrita por moradores e apoiada por diversas comunidades e organizações da sociedade civil, articuladas na Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente (APEDEMA-RS), foi entregue à Prefeitura, Câmara de Vereadores e Conselhos Municipais de Montenegro 

Para subscrever, enviar mensagem para: movimento.toxico.aterro.nao@gmail.com 

Confira a íntegra da Audiência Pública: 

Casa de Reza de comunidade indígena Tekoá Pindó Mirim em Itapuã, Viamão (RS), é reconstruída após atentado que ocorreu em final de 2021

Reconstrução da Casa de Reza para a comunidade Tekoá Pindó Mirim são possibilitadas por meio de rede de solidariedade popular 

Uma rede de solidariedade popular, da qual a Amigos da Terra Brasil (ATBr) faz parte, estendeu apoio para a reconstrução da Casa de Reza e uma casa de convivência. A inauguração ocorreu no início de fevereiro com uma celebração que contou com a presença de pajés, porém em formato fechado para a comunidade, para minimizar o risco de contaminação por Covid-19. Roberto Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário da Região Sul (CIMI-Sul) que realizam um trabalho articulado em apoio às populações indígenas, indica para que foram usadas as doações: “Para a comunidade adquiriu-se telhas e madeiras que auxiliaram na construção de uma casa de madeira em anexo à ‘Casa de Reza’, que vem sendo reconstruída depois de um incêndio criminoso. Também compramos alimentos para as famílias que lá estão”. Os recursos também foram usados para prestar apoio às retomadas Mbya Guarani dos municípios de Canela e Cachoeirinha.

Relembre o contexto 

Na madrugada do dia 14 de novembro de 2021, lideranças Mbyá Guarani foram surpreendidas  por um atentado criminoso de invasores, que incendiaram a Casa de Reza da comunidade. De acordo com relatos dos indígenas, o fogo se alastrou rapidamente por conta do vento, deixando ínfima possibilidade de apagamento do fogo. Também foram incendiados dois carros. O território é considerado ocupação tradicional e originária do Povo Guarani e está na mira de grileiros, por ser bem localizado na região metropolitana. Essa disputa acirra as tensões em uma área que é dos povos Guaranis por direito.

 A forma de prestar apoio reforça o compromisso de entidades e de movimentos com os povos originários!

Reconstrução da Casa de Reza e compra de alimentos para a comunidade são possíveis por causa de redes de solidariedade popular. Fotos: CIMI-Sul/Divulgação
Reconstrução da Casa de Reza e compra de alimentos para a comunidade são possíveis por causa de redes de solidariedade popular. Fotos: CIMI-Sul/Divulgação
Reconstrução da Casa de Reza e compra de alimentos para a comunidade são possíveis por causa de redes de solidariedade popular. Fotos: CIMI-Sul/Divulgação

Alimentando corpos e sonhos: as Cozinhas Solidárias do MTST são estratégias de reparação social contra a inação dos governos frente ao aumento da fome

Sem políticas públicas efetivas para o aprofundamento das desigualdades, movimentos sociais e sociedade civil tem atuado para minimizar a crise

As Cozinhas Solidárias são um projeto do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST) e seguem na luta para alimentar quem mais precisa. Em Porto Alegre, a iniciativa está localizada no bairro da Azenha e soma as cozinhas existentes nos territórios em que o movimento vem atuando, nos condomínios Nosso Sr. do Bonfim e Irmãos Marista, resultado da remoção da Vila Nazaré na zona norte da capital gaúcha. Hoje, chega a cerca de 20 milhões de pessoas que passam fome no país. Uma população do tamanho do Chile passa até 24h sem se alimentar. Ainda em 2020, cerca de 55% dos brasileiros sofriam de algum tipo de insegurança alimentar (grave, moderada ou leve), segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Diante da inação do governo para agir a fim de minimizar o aprofundamento da fome no país e do desmonte de políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que adquirira alimentos da agricultura familiar e distribuía para escolas e organismos de assistência social, são os movimentos sociais, organizações e coletivos que seguem mobilizados e abraçam a lacuna que deveria ser ocupada pelo Estado.

Para que esse projeto continue funcionando e levando alimento e esperança às pessoas marginalizadas, é necessário um esforço coletivo dos movimentos, entidades, organizações que tem doado centenas de quilos de alimentos, além de uma rede articulada de apoiadores que todos os dias preparam e entregam as refeições. Já foram doados mais de 75 kg de alimentos e outras doações estão previstas para os próximos meses por uma rede articulada pela Aliança Feminismo Popular (composta por Amigos da Terra Brasil (ATBr), Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e MTST) em conjunto com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). 

Junto as demais Cozinhas Comunitárias do MTST são 1.500 refeições entregues a cada semana, no entanto para garantir a meta de 6 mil doações apenas neste mês de fevereiro ainda é necessária a doação de alimentos:

  • 690kg de arroz
  • 385kg de feijão
  • 230kg de massa
  • 125 litros de azeite
  • 60kg de cebola
  • 100kg de proteína de soja
  • 120kg de polenta/farinha de milho
  • Legumes e verduras em geral
Movimentos sociais e apoiadores da sociedade civil estão articulados em rede para atuar contra a fome. Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil

Cada pessoa que possa estender sua solidariedade seja com doações de alimentos, seja com seu tempo e energia faz com que esse projeto continue levando esperança para centenas de pessoas em situação de vulnerabilidade todos os dias. O ATBr se junta  a luta, lado a lado as companheiras e companheiros do MTST soberania alimentar, por moradia digna para todos, por valorização do SUS e pela educação, pela preservação do meio ambiente e pelo combate às injustiças causadas pelo avanço do neoliberalismo e das políticas de morte dos governos de Bolsonaro, Leite e Melo. Enquanto os desgovernos prometem apenas um Restaurante Popular para a população, os movimentos sociais colocam em prática o projeto das cozinhas solidárias que garantem o direito à uma alimentação rica em nutrientes para toda a população. As Cozinhas se consolidam na luta e na resistência pela vida para além de promover um local com apoio jurídico e de debates sobre a importância e a garantia de direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras, levando alimento e esperança para quem precisa.  

O projeto iniciou com a doação de 150 almoços diários, mas com o aumento da demanda a Cozinha Solidária da Azenha passou a entregar mais de 200 almoços por dia, de segundas-feiras às sextas-feiras. Entre os assistidos pela Cozinha Solidária estão pessoas em situação de rua, entregadores de aplicativos e pessoas em demais situações de vulnerabilidade social. É de extrema importância o apoio e ajuda de todas e todos para esse projeto seguir nutrindo corpos e sonhos. Toda doação é importante e faz a diferença na alimentação diária de centenas de pessoas.

A fome não tira férias. A Cozinha Solidária da Azenha também não!

Seguimos em luta ✊🏽🚩

Faça tua doação:

Estamos na Marcílio Dias, 1463, de segunda a sexta, das 9h às 13h. É só chegar!

Outras formas de ajudar:

📍Pix: rededeabastecimento@gmail.com

📍Apoia.se/cozinhasolidaria

Passados 2 anos da pandemia, o cerco à Amazônia continua

A federação internacionalista ambientalista Amigos da Terra, por meio do seu membro brasileiro, a Amigos da Terra Brasil, atua há anos em aliança com movimentos sociais, territórios e comunidades. Junto a muitos parceiros, estamos na luta popular contra o desmatamento, em defesa da água, da biodiversidade, da soberania alimentar dos Povos da Floresta e dos direitos dos povos – indígenas, quilombolas e camponeses e urbanos – em seus territórios na Amazônia. 

Toda a solidariedade e organização é necessária frente ao avanço do agronegócio, da mineração e dos grandes projetos de infraestrutura exportadora de commodities na região amazônica, uma das últimas fronteiras no país com mata e biodiversidade original preservadas pelos povos que a habitam, conhecem, respeitam e que seguem resistindo à destruição do capital. O compromisso permanente de buscar caminhos solidários e manter o apoio à organização dos povos em resistência às pandemias do neoliberalismo e na luta por justiça ambiental nos moveu a revisitar as situações denunciadas pelas vozes destes territórios, passados dois anos da conjuntura da covid, agravada pelas mazelas de um governo genocida que chega ao fim neste ano de 2022.

Em meados de 2020, publicamos, em conjunto com a organização Terra de Direitos e sindicatos de trabalhadores rurais da região de Santarém, no Pará, um documentário em três idiomas intitulado “A História do Cerco à Amazônia”. Contamos com os importantes apoios do Grupo Carta de Belém (GCB), da Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismo, da rede Jubileu Sul e dos grupos da Federação Amigos da Terra Internacional para produzi-lo. Neste material, denunciamos como os territórios amazônicos vêm sendo transformados em campos de cultivo para a expansão da monocultura da soja, principal commodity agrícola produzida para exportação, destinada especialmente à alimentação animal em outros países. 

Boa parte da cadeia global de produção da soja é controlada por grandes empresas transnacionais como Bunge, Cargill, Monsanto, Bayer, Syngenta entre outras. E está baseada no processo de grilagem de terras no Brasil, utilizando as queimadas e o desmatamento para “limpar” a terra, primeiro para a criação de gado e posteriormente para o plantio, e logo aumentando a pressão por estradas, portos e outros grandes empreendimentos para o seu escoamento. Também revelamos os impactos nas comunidades que residem ali há décadas sobrevivendo de suas lavouras, do extrativismo sustentável de produtos da floresta e da pesca. Quilombolas e trabalhadores rurais relataram a escalada de ameaças de serem expulsos de suas terras e os prejuízos econômicos em sua produção devido ao uso de agrotóxicos pelos fazendeiros e grileiros no entorno, bem como seus efeitos na saúde e no meio ambiente. 

A instalação da cadeia da soja na região de Santarém, no Pará, ocorre por completo. Empresas do agronegócio, com apoio das prefeituras municipais e do governo paraense, buscam implementar estrutura portuária privada para escoar a produção, não apenas da região amazônica, mas também do Centro-Oeste. A multinacional Cargill já tem um porto graneleiro na cidade de Santarém, o qual foi construído sem a realização de estudos de impacto ambiental, em cima de uma área de sítios arqueológicos. O porto causou danos ambientais na Praia de Vera Cruz e afetou a sobrevivência econômica de pescadores e moradores, que tiveram que deixar de se banhar no local. 

Um segundo projeto, da EMBRAPS (Empresa Brasileira de Portos de Santarém), no Rio Maicá, teve processo de licenciamento ambiental suspenso pela Justiça após as comunidades atingidas denunciarem que sequer teriam sido consultadas. Quando estivemos na região para a produção do documentário, no final de 2019 e antes do início das medidas de isolamento social impostas pela pandemia, em 2020, pelo menos mais outras duas empresas tinham interesse em instalar portos privados na área. Se já não bastasse a pressão do poder econômico sobre as comunidades e o meio ambiente, o agronegócio emprega a violência contra as lideranças e quem mais ousar resistir, até mesmo ameaçando de morte – e matando – quem não se cala.

Passados quase dois anos dessa ronda da Amigos da Terra Brasil e parceiros na Amazônia, os relatos das comunidades locais revelam que tudo o que estava acontecendo naquela época se mantém e que a pressão sobre os territórios está aumentando na região. Os garimpos ilegais, o desmatamento sem controle, a liberação de armas para os fazendeiros, a falta de políticas públicas que atendam parte das necessidades da população são alguns dos vilões dessa realidade. As consequências são o aumento da grilagem com facilidade, a fome, a violência no campo, entre outras violações de direitos, sem que o Estado tome alguma providência concreta para conter esses crimes.

Em conversa com a Amigos da Terra Brasil, o ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (STTR), Manoel Edivaldo Santos Matos (o Peixe), defendeu a regularização fundiária como uma das principais saídas para esse transtorno que há muito tempo sofrem os trabalhadores e as trabalhadoras rurais, povos indígenas e quilombolas. Sem isso, opinou Peixe, fica difícil pensar em outras políticas. “A regularização fundiária é a porta para uma reforma agrária de verdade, sem isso é ficar enxugando gelo”, argumentou.

Frente a um ano eleitoral, os povos da floresta têm reivindicações que consideram fundamentais a serem pautadas pelos candidatos que realmente querem se comprometer com a preservação da Amazônia e de suas comunidades. A reestruturação e o fortalecimento dos órgãos dos governos estão entre elas para responder às demandas dos povos. No caso dos agricultores e das agricultoras familiares, Peixe considerou como importante o resgate do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) e o funcionamento do MMA (Ministério do Meio Ambiente) para combater o desmatamento, mas que o governo também apoie as iniciativas de organização econômica da população. Para isso, é preciso a desburocratização a fim de acessar financiamento público voltado para aumentar a produção de alimentos saudáveis. 

No entanto, a liderança reforça a necessidade da regularização fundiária urgente por meio da demarcação de terras indígenas, titulação dos territórios quilombolas, os parques de extrativismo com suas comunidades tradicionais, assentamentos de Reforma Agrária,  terras coletivas fora do mercado imobiliário e de uso e garantia dos povos. Caso contrário, não tem como preservar as florestas e seus povos.

Abandono dos governos e expostos à violência do agronegócio

No início deste mês, estudo do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), com base nos dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), concluiu que o desmatamento no bioma foi 56,6% maior entre agosto de 2018 e julho de 2021 que no mesmo período de 2015 a 2018, com avanço evidente a partir do segundo semestre de 2018. No período analisado, mais da metade do desmatamento ocorreu em terras públicas, sendo 83% destas em áreas de domínio federal. No mesmo período, proporcionalmente à área dos territórios, terras indígenas (TIs) tiveram alta de 153% em média no desmatamento, o equivalente a 1.255 km², enquanto em unidades de conservação (UCs) o aumento proporcional foi de 63,7%, com 3.595 km² derrubados no último triênio. Para se ter uma ideia, a perda de florestas em TIs e em UCs foi de mais de 1,7% da área total do estado do Rio Grande do Sul somente nestes anos do Governo Bolsonaro.

Somado a isso, com a liberação de agrotóxicos e de uso de armas para os fazendeiros, a violência no campo na região amazônica aumentou ainda mais sobre os povos da floresta. Dados parciais da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam que em 2021 a destruição de casas, pertences, expulsão, grilagem, pistolagem e impedimento de acesso a áreas de uso coletivo até 31 de agosto de 2021 atingiu 418 territórios em todo o país e foi maior do que o verificado em todo o ano de 2020, sendo 28% destes território indígenas. Mortes em consequência de conflitos passaram de 9 em 2020, para 103 e, destas, 101 foram de indígenas Yanomamis. Mesmo diante desse terrível contexto, o presidente Jair Bolsonaro, em seu discurso a representantes do agronegócio em evento do Banco do Brasil no início deste ano, disse: “Nós praticamente anulamos as ações do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], tirando dinheiro que ia pra ONGs (…), estendemos a posse de arma de fogo com o apoio do Congresso Nacional (…) isso levou mais tranquilidade pra vocês (…), reduzimos em mais de 80% as ‘multagens’ [multas ambientais] no campo, não tivemos uma só demarcação de terra indígena no Brasil (…) e estamos trabalhando nesse sentido: devolver as terras da União para os estados e, consequentemente, para os senhores [do agronegócio]”.

As consequências do desmatamento e a violência atingiram terrivelmente os povos indígenas na Amazônia, que seguem com seus direitos ameaçados, mas organizados em resistência frente à pauta devastadora do Congresso Nacional prevista para esse ano. A resistência à devastação ambiental da Amazônia, a defesa da vida, do clima, da sua diversidade cultural, biológica, das suas águas, matas e mitos mostrou-se com força em 2021 com as mobilizações indígenas de Abril a Outubro nos acampamentos Levante pela Terra e Luta pela Vida, na II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas e no Fórum de Educação Superior Indígena e Quilombola. Segundo o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), foi a maior mobilização indígena pós-constituinte, apoiada pelos mais diversos setores populares e movimentos sociais, e resultou na retomada da organização dos povos originários e tradicionais do Brasil pelos seus direitos.

Trabalho em grupos na assembleia do Povo Madija que aconteceu em Janeiro deste ano, na Aldeia Estirão, em Eirunepé (Amazonas) / Lindomar Padilha

Um exemplo é a situação do Povo Madija no Acre e no Amazonas que, depois das inundações na época das cheias de 2021, enfrentava uma situação devastadora de probreza, discriminação e com casos alarmantes de suicídio entre os jovens, o que nos demandou um chamado de solidariedade internacionalista. Rosenilda Nunes Padilha, do CIMI Amazônia Oriental, relatou em entrevista que o Povo Madija passa por dificuldades. “Apesar de ter em torno de 150 anos de contato com a nossa sociedade, nunca assimilaram o capitalismo. São 100% falantes de sua língua materna. Mulheres e crianças não sabem falar português”, disse. 

No início deste ano, o Povo Madija realizou a sua assembleia. Ao denunciar constantes invasões aos seus territórios por madeireiros, caçadores, pescadores e outros, a falta de escolas, de contratação de professores indígenas e de merenda escolar nas aldeias e a falta de atendimento em saúde e de contratação de intérpretes da sua língua na FUNAI (Fundação Nacional do Índio), nos órgãos públicos e de assistência, entre outras violações, comunicou a todos os órgãos, instituições públicas e privadas e à sociedade em geral que: “NÃO SERÃO TOLERADAS nenhuma forma de discriminação, racismo, preconceito e, sobretudo, nenhuma forma de violência contra nosso povo ou qualquer pessoa de nosso povo. Utilizaremos de todos os meios necessários para que sejamos tratados com o mais absoluto respeito e dignidade, conforme nossos direitos assegurados”.

É desde os territórios e dos povos da Amazônia em resistência que vêm se semeando as mentes com demandas, propostas e soluções para um Brasil com mais dignidade, democracia e Justiça Ambiental. Essas serão as vozes a serem, mais que ouvidas, participantes na construção de um novo projeto político para o país.

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 28/02/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/02/14/passados-2-anos-da-pandemia-o-cerco-a-amazonia-continua . Crédito da foto de destaque: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Privatização: Cais Mauá demanda atenção popular

Com edital de concessão lançado, o cais será concedido por investimento inicial de 300 milhões de reais

Durante os primeiros dias do mês de fevereiro de 2022, chegaram às mãos do secretário estadual de Parcerias, Leonardo Busatto, os estudos  que detalham o modelo de parceria público-privada (PPP) para a revitalização do Cais Mauá, em Porto Alegre. O documento inclui o orçamento das obras, a expectativa de lucros para o futuro investidor, o projeto arquitetônico, os relatórios de engenharia, a modelagem jurídica e as minutas do edital de licitação e do contrato. Quem entregou o projeto foi o Consórcio Revitaliza, escolhido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) para dar segmento à estruturação do  negócio. 

Em entrevista concedida à Zero Hora no dia 4 de fevereiro, Busatto relata que a análise técnica do material entregue se dará ao longo de duas semanas e que, depois de pronta, será levada ao governador Eduardo Leite. O  governo do Estado tem como objetivo dar início à fase de consultas públicas a respeito da obra do Cais Mauá ainda neste mês, na qual será aberto um suposto espaço para que a comunidade faça sugestões, assim como as empresas interessadas na PPP. O modelo de concessão pretende ceder a apropriação do Cais Mauá à iniciativa privada por 35 anos. Durante este período, a empresa escolhida para tocar o projeto poderá interferir e explorar a área da forma que achar mais conveniente, sem intervenção do Estado. Há de se considerar o que uma proposta como esta significa na prática para a população porto alegrense. Em uma cidade na qual espaços públicos estão sendo cedidos para a gerência de empresas que não têm nenhuma preocupação com as pessoas em situação de rua, por exemplo, se percebe que a suposta ideia de “melhorar” um espaço é deveras setorizada. Afinal, quem vai de fato aproveitar a revitalização do Cais Mauá? Não será a população marginalizada. Será essa mais uma política higienista para o centro de Porto Alegre?

Cais Mauá aguarda por privatização oficial nos próximos dias. Foto: Tânia Meinerz / Brasil de Fato

No contexto da pandemia, A Covid-19 piorou ainda mais os índices de miséria em Porto Alegre, de forma que em 2021, foi registrado que, em um ano, a pandemia levou 280 mil moradores da região Metropolitana para a zona da pobreza, os dados são do Boletim Desigualdade nas Metrópoles, uma parceria entre PUCRS, Observatório das Metrópoles e RedODSAL. Isso significa dizer que é cada vez mais urgente que se tenha políticas públicas  para as populações mais pobres, não apenas na classe média que teria poder aquisitivo para dar o retorno financeiro esperado a este tipo de projeto. Um questionamento lógico é: dentre todas as escolhas políticas, o que torna este projeto prioridade frente a urgente necessidade de acesso à alimentação, moradia e transporte público de qualidade para a população de Porto Alegre?

Na primeira versão do Edital atualmente entregue, a principal exigência é de que o investidor selecionado conclua todas as obras de revitalização previstas, avaliadas em 300 milhões de reais, nos primeiros três anos de concessão. A requisição ousada possibilita que haja uma certa dificuldade em encontrar quem queira investir no projeto. Porém, como incentivo, a PPP concederá ao vencedor da licitação a propriedade definitiva do terreno das docas, na extremidade norte do Cais. O empreendedor que arrematar o projeto terá como prêmio a possibilidade de construir nove torres residenciais e corporativas, vender os apartamentos e faturar uma quantia que alcança a casa dos bilhões de reais.

Lançamento de Frente Parlamentar em defesa de um Cais Mauá para todos.  Foto: Isabelle Rieger/Amigos da Terra

No dia 25 de novembro de 2021, o governo do Rio Grande do Sul, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Consórcio Revitaliza apresentaram o projeto de revitalização do Cais Mauá. O principal objetivo da concessão é a suposta reintegração do rio Guaíba e do cais com o resto de Porto Alegre, principalmente com o Centro Histórico. Atualmente, o terreno é propriedade do Estado e apresenta 181,3 mil metros quadrados de área, divididos entre os armazéns, as docas e o Gasômetro. Como se pode observar, a iniciativa de concessão da área é a sua desestatização. A ideia é de que sejam investidos um total de 1,3 bilhão de reais ao longo de 15 anos. Inicialmente, os primeiros 300 milhões seriam colocados nos primeiros cinco anos, mas no atual edital, o prazo diminuiu para apenas três.

No dia 9 de dezembro de 2021, ocorreu um encontro para discutir propostas de ocupação para o Cais Mauá com movimentos sociais, entidades e população em geral, em Porto Alegre/RS, pois o projeto até então apresentado pela prefeitura não dialogava com a realidade da população porto-alegrense. Isso porque, não garantia o direito de acesso a esses espaços para toda a população.  O encontro foi chamado pela deputada Sofia Cavedon, pela Frente Parlamentar Estadual em Defesa do Cais Cultural, e do vereador Leonel Radde, pela Frente Parlamentar Municipal em Defesa do Cais Cultural que discute propostas de ocupação dos galpões e docas do Cais Mauá. “Quem é que vai chegar no Cais Mauá? Por mais que seja aberto, por mais que seja público, como é que sem passe livre, sem meio passe para os estudantes, quem é que afinal vai acessar o lugar no futuro?”, afirma Eduardo Osório, representante do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), de Porto Alegre. 

VITÓRIA CONTRA A MEGAMINERAÇÃO: projeto de construção da Mina Guaíba (RS) está suspenso

Projeto de construção da Mina Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre (RS), tem processo de licenciamento ambiental anulado pela Justiça.

 Protestos contra a instalação da Mina Guaíba ocorreram em Porto Alegre em 2019 | Foto: Heitor Jardim/Amigos da Terra Brasil

O projeto da Mina Guaíba, de responsabilidade da empresa Copelmi, previa a instalação de uma mina de carvão a céu aberto. A obra tinha previsão de ser implementada entre as cidades de Eldorado do Sul e Charqueadas, na região metropolitana de Porto Alegre. Hoje, dia 9 de fevereiro de 2022, após um longo período de tensão, é proferida a sentença julgando procedente a Ação Civil Pública – movida por indígenas Mbya Guarani, assessorados por advogados defensores das causas indígenas, quilombolas, da reforma agrária e ambiental – contra a Mina Guaíba. “Essa decisão é fundamental, porque  expressa, em definitivo, a necessidade de serem respeitados os direitos originários dos povos e comunidades, dado  que são amparados pela Constituição Federal de 1988 e pelos tratos e convenções internacionais”, sublinha Roberto Antônio Liebgott, do CIMI (Conselho Indigenista Missionário). A decisão declara a nulidade do processo de licenciamento da Mina Guaíba. “Pelo menos, agora nós vamos poder respirar um pouco aliviados sem a poeira do carvão e vamos ter as nossas águas limpas para podermos tomar, sem poeira, sem ruídos. Eu não tenho nem palavras pra descrever a desgraça que seria acometida para nós aqui e mais para o pessoal ao redor”, declara a moradora de Guaíba City, Sirlei De Souza. Este empreendimento minerário não apenas visava a exploração de carvão, como também seria o responsável por afetar diretamente as populações  dos municípios de Charqueadas, Eldorado  do Sul e Guaíba. Assim, o dia de hoje é uma vitória ambiental e social para o Rio Grande do Sul.

Na semana do dia 3 de outubro de 2021, às vésperas da Conferência do Clima da ONU (Organização das Nações Unidas) na Escócia, o projeto perdeu o apoio do governador do RS, Eduardo Leite (PSDB). O político chegou a afirmar na época, em entrevista ao Flow Podcast em São Paulo, que a mina não sairia, contudo até hoje, os integrantes do Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul esperavam que o governo de fato arquivasse e colocasse um fim ao projeto. O Governador chegou a admitir, durante a apresentação do Projeto Avançar na Sustentabilidade, transmitido ao vivo no Youtube em 26 de janeiro deste ano, que a energia a carvão mineral está com os dias contados. Desde 2014 a Copelmi buscava a LP (Licença Prévia) para o projeto da Mina Guaíba, mas é importante ressaltar que, se não fosse o arquivamento por via judicial do licenciamento, por iniciativa dos povos atingidos organizados em resistência nos seus territórios, a empresa teria, como constava em seu objetivo, avançado em instalar a maior lavra de carvão a céu aberto brasileira, ocupando uma área total de 5 mil hectares. “Onde já se viu nós perdermos, aqui em Eldorado do Sul, mais de 5 mil hectares de terra produtiva para a mineração, para um projeto de destruição? Então o que é mais importante hoje? Usar as terras para a produção de comida, que falta para muitos brasileiros, pois a fome voltou com tudo no Brasil todo, então temos que produzir comida, e não carvão poluente para a sociedade gaúcha”, opina o agricultor e morador do Assentamento Apolônio, Marcelo Paiakan. Felizmente, o resultado foi outro.

Movimentos sociais de todo o estado do Rio Grande do Sul mobilizados contra a mineração desenfreada. |  Foto: Heitor Jardim/Amigos da Terra Brasil

Em nota, o CCM-RS (Comitê de Combate à Megamineração no RS), explica que hoje, dia 9 de fevereiro de 2022, a 9ª Vara Federal de Porto Alegre aprovou a ação que tinha como objetivo a anulação do processo de licenciamento ambiental 6354-05.67/18-1. Ele foi aberto na Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental), a pedido da empresa Copelmi Mineração (ré), para a obtenção de uma Licença Prévia para o projeto da Mina Guaíba. “O grupo técnico transdisciplinar demonstrou as falácias técnicas do EIA-RIMA de que a mineração de carvão pode ser ‘limpa’ e socialmente justa. Pela primeira vez na história da exploração de carvão no RS, formou-se uma comunidade técnica transdisciplinar crítica à essa atividade de modo completo! O resultado é esse: tornar a mineração e uso do carvão obsoletos. O EIA-RIMA da Mina Guaíba é um documento incongruente e tecnicamente inepto”, explica a membro do Coletivo em Movimento de Viamão, Ilieti Citadin. O engenheiro ambiental e coordenador da AMA (Associação Amigos do Meio Ambiente) Guaíba e do Comitê de Combate à Megamineração no RS, Eduardo Raguse, explica que o EIA é o Estudo de Impacto Ambiental que as empresas que querem implantar alguma atividade potencialmente poluidora têm que elaborar para possibilitar o licenciamento ambiental desta atividade. Ele é analisado pelas equipes dos órgãos ambientais para emitir a licença. Já o RIMA é o Relatório de Impacto Ambiental,  algo como um resumo do EIA, em linguagem mais acessível à sociedade em geral para que as pessoas possam ler e entender o que acontecerá quanto o empreendimento for instalado.

A Ação Civil Pública contou com a participação de diversas entidades gaúchas e de fora do RS, por meio de uma coalizão formada pelo CCM-RS. A iniciativa foi de autoria da Associação Indígena Poty Guarani, da Associação Arayara de Educação e Cultura, com sede no Paraná, do Conselho de Articulação do Povo Guarani – RS e da Comunidade da Aldeia Guarani Guajayvi. “Deve se dar um destaque para este trabalho coletivo, não fosse isso, certamente as cavas das minas já estariam abertas. Esta decisão da Justiça é mais uma vitória que só foi possível com a resistência das comunidades locais, dos assentados da reforma agrária, dos Guaraní, dos movimentos socioambientais, que seguem atuando para  proteger nossos territórios, do trabalho das e dos técnicos e pesquisadores que compõem a Frente Técnica do Comitê, por todo compromisso e dedicação em demonstrar tecnicamente que este projeto não é um bom negócio para nossa gente e nossa qualidade ambiental”, sublinha Raguse. O objetivo foi impedir que sejam instaladas no Rio Grande do Sul minas de extração mineral que fossem possíveis agentes de uma crescente na poluição ambiental e nas emissões de gases de efeito estufa na atmosfera. No âmbito socioambiental, a efetivação dessas minas colocaria em risco importantes mananciais de água que garantem a sobrevivência de comunidades e a produção de alimentos. “Naquele local poderá continuar a produção de alimentos, sem expulsão de pessoas do local que pertencem e sem riscos de contaminação das nossas águas. O modelo exploratório representado pela megamineração e das megacorporações transnacionais, de lucro intenso e rápido para poucos, deve urgentemente ser desmantelado”, ratifica a engenheira ambiental e sanitarista e feminista na Marcha Mundial das Mulheres RS, Gabriela Cunha.

Cartazes de Comitê de Combate à Megamineração | Foto: Heitor Jardim/Amigos da Terra Brasil

A Copelmi ainda pode recorrer à decisão, contudo, “mesmo que eles recorram, a Copelmi sabe que esse EIA-RIMA foi mais furado do que uma peneira. Eles sabem que está tudo errado. Graças ao povo que travou essa batalha, podemos respirar aliviados”, diz Sirlei De Souza. Eduardo Raguse reitera que foi decisiva a construção da Frente Técnica, na qual profissionais de diferentes áreas analisaram o EIA/RIMA. Eles apontaram, por meio de pareceres técnicos, as omissões, falhas e lacunas dos estudos, culminando com a publicação do Painel de Especialistas, com a solicitação da FEPAM, ainda em 2019, de uma complementação de mais de 100 itens nos estudos (que a empresa COPELMI até hoje não respondeu). O agricultor Marcelo Paiakan declara que as populações do Assentamento Apolônio de Carvalho e de Eldorado e de Guaíba City consideram que qualquer decisão sobre a Mina Guaíba precisa ser coletiva: “a preservação ao meio ambiente, o compromisso com comida, o compromisso com o bem estar deve estar acima do projeto de destruição da Copelmi”. 

O ganho de causa conferido à anulação do processo é deveras importante e o primeiro passo em meio a uma vasta e coletiva caminhada. A Amigos da Terra Brasil celebra a conquista da anulação do processo de construção da Mina Guaíba e alerta para a importância da defesa do meio ambiente e da organização das comunidades locais na linha de frente demandando decisões, como esta, fundamentais para a justiça ambiental e climática.

POR MOÏSE, POR DURVAL, PELAS VIDAS NEGRAS

Ato do dia 5 de Fevereiro marca a luta contra o racismo e pelo fim dos assassinatos a pessoas negras

No dia 24 de janeiro de 2022, o congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi brutalmente espancado até a morte por três homens no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Os assassinos respondem por homicídio doloso duplamente qualificado, pois houve intenção de matar e a vítima foi impossibilitada de se defender. O jovem sofreu pauladas, golpes de taco de beisebol,  foi amarrado e sufocado. Após grande repercussão do caso, no dia 5 de fevereiro, as cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e mais 30 outras pelo país se somaram em atos contra o racismo e por justiça à Moïse e a Durval. 

A Orla Rio, concessionária responsável pela operação e manutenção de mais de 300 quiosques localizados nas praias do Rio de Janeiro, decidiu conceder à família de Moïse , o quiosque no qual ele trabalhava, para que pudessem tocar seu próprio negócio. Contudo, hoje, dia 8 de fevereiro, o atual dono do empreendimento, Celso Carnaval, de 81 anos, diz que pretende continuar como operador do local: “Vou devolver o que?”. O referido quiosque é alvo de processo judicial desde Junho de 2021 que envolve a concessionária e Carnaval, no qual a concessionária pede reintegração de posse por diversas irregularidades, incluindo a entrega da operação do estabelecimento a um estranho sem consentimento da Orla Rio. 

Registro do Ato realizado em Porto Alegre. Foto: Heitor Jardim

Os crimes de racismo neste breve início de 2022 não param por aí. Na última quarta-feira, dia 2 de fevereiro, o trabalhador brasileiro Durval Teófilo Filho, de 38 anos, foi morto ao ser baleado pelo Sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra, quando tentava entrar em seu edifício, em São Gonçalo, região Metropolitana do Rio. O assassinato se deu, segundo Bezerra – indiciado inicialmente doloso (sem inteção de matar) e apenas depois de o povo muito reclamar, por homicídio então culposo (quando há inteção de matar) – porque ele teria “confundido” Durval com um bandido. Tanto Durval quanto Moïse foram acometidos pelo mesmo mal: RACISMO. “Nossa origem é essa. Somos descendentes de africanos que foram sequestrados e a impunidade, a normalidade em uma sociedade que já tem quase 400 anos de violência colonial, racista e mais o período pós abolição, com o aumento da violência e do racismo é o caldo de cultura que banaliza os corpos e territórios negros”, declara o membro da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul (FQRS), Onir de Araújo. 

Os atos de sábado (5/02), realizados em diversas capitais, foram de extrema importância para denunciar e informar a população. “Houve grande participação da comunidade de imigrantes, que expôs todas dificuldades que eles sofrem ao ingressarem no Brasil: a falta de emprego, dificuldade de conseguir documentação, precarização do trabalho, violência, xenofobia, racismo”, explica a nutricionista e Pastoral Afro da Paróquia Mãe do Perpétuo Socorro, Conceição Vidal. O evento contou com a participação da comunidade congolesa, da associação de senegaleses, haitianos e angolanos, junto a  entidades e organizações do movimento negro e dos quilombolas, como relatou De Araújo. “É a barbárie de volta,  as pessoas perderam a noção de humanidade e veem um ser humano como uma barata, onde se possa eliminar! É ultrajante!”, diz a engenheira civil e co-fundadora do Catálogo Afro (grupo de pretas e pretas com graduação do Ensino Superior), Eliane dos Santos. Este início de ano marcado pelo sangue de pessoas negras inocentes é apenas a ponta de um iceberg que já vem se formando há muito tempo. “Os recentes acontecimentos nos fazem pensar como o processo de escravização no Brasil, que durou 300 anos, ainda está presente na sociedade brasileira”, destaca Vidal. Eliane dos Santos conta que, há 30 anos atrás, seu irmão estava indo para o colégio, num bairro de classe média alta onde eles moravam, com a pasta embaixo do braço, e a polícia o parou para revistá-lo, o agrediu e bateu nele. “Meu irmão foi preso, por desacato, pq tentou se defender das agressões! Uma tristeza na nossa família! Uma dor profunda que ficou em nós…”. 

Registro do Ato realizado em Porto Alegre. Foto: Heitor Jardim

O racismo estrutural é aquele que é considerado subliminar, o qual reside nas mentes das pessoas “elas olham pessoas pretas e veem perigo, ódio, desprezo!”, sublinha a co-fundadora do Catálogo Afro. É ele que sustenta  crimes como os que acometeram Durval e Moïse. De acordo com o censo do IBGE, a população negra equivale a 56% do contingente brasileiro, mas, mesmo sendo maioria , a discriminação que mata está presente no cotidiano dessas pessoas que até hoje “recebem o menor salário, tem dificuldade em acessar o sistema de saúde e de educação”, segundo Conceição Vidal. Onir Araújo, da FQRS, explica que são feitas hoje várias denúncias envolvendo relações de trabalho completamente fora de qualquer padrão humano aceitável. Ele também destaca que existe uma perseguição permanente a imigrantes que trabalham como ambulantes. “Há  ausência de uma política pública de acolhimento desses povos, em especial de imigrantes de origem africana, do Haiti e de países dessa esfera de objetos da exploração econômica, social e imperialista”. Ele conta ainda que a FQRS solicitou uma audiência pública em Porto Alegre para falar sobre as várias violações de direitos que os imigrantes estão sofrendo, sobre como os entes de justiça estão monitorando, acompanhando e garantindo a efetivação desses direitos, e também sobre a violência e letalidade das forças de segurança em relação à população negra em geral. O objetivo de ações como estas são em prol de um futuro mais justo e igualitário: “temos que pensar nas nossas crianças que estão vindo, elas têm que ter um futuro melhor que o nosso,  muito melhor!”, diz Dos Santos. 

 Registro do Ato realizado em Porto Alegre. Foto: Heitor Jardim

Entre tanta violência e racismo escancarado, o medo faz parte do cotidiano das pessoas negras: “É inconcebível que as coisas mais banais como ir ao supermercado, levar um filho ao colégio, se divertir no final de semana na frente de casa e ir ao trabalho sejam um risco de vida cotidiano”, diz Onir de Araújo. É por esse motivo que a educação é um importante elemento na luta por um futuro melhor, no combate ao racismo e na valorização das vidas negras: “Penso que temos que começar na educação, nas escolas. Desde pequenas, as crianças têm que ver o outro como igual. Precisamos continuar com a cotas nas universidades para termos uma margem maior de equiparação formando pessoas pretas instruídas, pois assim teremos mais mentes que pensem formas de combater esse racismo tão cruel que assola nossa sociedade!”, opina Eliane dos Santos.

Já basta de tanto racismo e violência. A Amigos da Terra Brasil repudia veementemente os atentados racistas cometidos contra Durval, Moïse e contra tantos outros que já precisaram morrer para que alguém os ouvisse. CHEGA! 

#VidasNegrasImportam

Diga NÃO ao Pacote do Veneno (PL 6299/02)!

Assine a petição pela aprovação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA) neste link: https://chegadeagrotoxicos.org.br/ 

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, irá colocar em pauta um Projeto de Lei (PL 6299/02) que  revoga a atual Lei de Agrotóxicos. Tal PL, atualmente sujeito à apreciação do Plenário em regime de prioridade a pedido do Ministério da Agricultura, já tramita no poder legislativo brasileiro desde 2002 e, até hoje, provoca divergências e discussões. Isso porque  o PL 6299/02 trata da alteração dos artigos 3º e 9º da Lei de nº 7.802, de 11 de julho de 1989, a qual regulamenta praticamente todas as demandas e ações relacionadas ao tema “agrotóxicos”. Ela delibera sobre  “a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização” de agrotóxicos, de acordo com os documentos disponibilizados pela Câmara Legislativa. Também chamado de “Pacote do Veneno”, o PL 6299/02, se aprovado, excluiria órgãos fundamentais do processo de avaliação e aprovação dos agrotóxicos, como a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Ministério do Meio Ambiente, de modo que todo o poder de decisão dependeria do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Ou seja, o Projeto pretende flexibilizar ainda mais a aprovação e o uso de agrotóxicos no Brasil, os quais já alcançam números alarmantes: existem hoje no país, 3.618 agrotóxicos comercializados, e desse total, quase a metade, 1.552 até o momento, foram aprovados só no Governo Jair Bolsonaro. 

Nesta luta para barrar o Pacote do Veneno, o PL 6299/02,  entidades e organizações da sociedade civil criaram uma petição online, que já conta com mais de 1,7 milhão de assinaturas. O abaixo-assinado é contra o PL articulado pelo agronegócio e pressiona pela aprovação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos, a PNARA (PL 6670/2016), projeto articulado nacionalmente por organizações civis e apoiado por parlamentares, que hoje também aguarda  apreciação do Plenário e ser colocado como prioridade. A PNARA   seria um “freio” no aumento agressivo no uso de agrotóxicos nas plantações brasileiras. Consequentemente, o Projeto atuaria nos territórios e comunidades rurais e urbanas na vizinhança das grandes monoculturas, assim como nos alimentos por nós ingeridos, e caminharia rumo a uma transição agroecológica com soberania alimentar no Brasil. O uso destes produtos químicos gera destruição ambiental, adoecimento e morte, desrespeitando a saúde de quem consome e os direitos sociais, ambientais, econômicos e culturais de quem produz alimentos saudáveis. 

A Amigos da Terra Brasil já assinou a petição online e faz parte desta iniciativa URGENTE de resistência, agora é sua vez! Venha, com a gente, se manifestar e lutar  por alimentos saudáveis e em defesa do meio ambiente e de nossa saúde e, consequentemente, de nossas vidas! 

Link para assinar a petição: https://chegadeagrotoxicos.org.br/

#AgrotoxicoMATA

Verde é a cor mais quente

No último período, temos assistido a uma corrida dos governos, de todas as esferas, em lançar planos ambientais e climáticos recheados de metas e de compromissos com o objetivo de aliar a prática econômica e a preservação do meio ambiente. O mais recente foi lançado na semana passada pelo governo do Rio Grande do Sul, mas encontramos propostas semelhantes em estados do Sudeste, Centro-Oeste e da Amazônia Legal.

Até mesmo o Governo Bolsonaro, o mais antiambiental da história brasileira, publicou em Outubro de 2021 o Programa Nacional de Crescimento Verde (PNCV), instituindo o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima e Crescimento Verde (CIMV) específico para prestar o apoio técnico e administrativo necessário à implementação do projeto. O programa federal é bastante vago, sem determinar metas e nem valores a serem empregados. No decreto Nº 10.846/2021 constam os objetivos do PNCV, entre eles aprimorar a gestão de recursos naturais para incentivar a produtividade, a inovação e a competitividade; criar empregos verdes; promover a conservação de florestas e a proteção da biodiversidade; reduzir a emissão de gases estufa, com vistas a facilitar a transição para a economia de baixo carbono; e captar recursos públicos e privados, sejam de fontes nacionais ou internacionais, a fim de desenvolver a economia verde. 

O programa também propõe incentivar a elaboração de estudos e a realização de pesquisas que contribuam para os objetivos propostos. A primeira vista pode parecer um escárnio, já que 10 dias antes de assinar o decreto do PNCV, o presidente Jair Bolsonaro havia sancionado uma lei que cortava R$ 690 milhões que seriam destinados para o financiamento de pesquisas e de projetos científicos do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações. O corte representou uma perda de cerca de 90% do orçamento da pasta. No entanto, a maior parte da verba foi redirecionada aos ministérios do Desenvolvimento Regional e da Agricultura e Pecuária, priorizando as atividades econômicas e do agronegócio, nada diferente da postura do governo federal.

Os discursos verdes dos governos talvez variem nas tonalidades da cor, mas todos partem de uma mesma essência: priorizar o mercado e não a proteção ao meio ambiente. Seus programas buscam adequar os setores econômicos, especialmente o da mineração e do agronegócio, às exigências internacionais para que não sofram sanções e evitar prejuízos com a redução da exportação, com ênfase nas commodities como soja e cana de açúcar, e no gado. A preservação ambiental é transformada em moeda de troca, numa lógica em que proteger o meio ambiente é necessário para o Brasil poder viabilizar a expansão e manter a competitividade internacional dessas cadeias econômicas. Estas estão entre as que mais poluem rios e córregos, desmatam, contribuem para o adoecimento de animais e da própria população com o uso intensivo de agrotóxicos, expulsam indígenas, quilombolas e pequenos agricultores de seus territórios. 

Nesta economia verde, a água potável, matas em pé e ar respirável são vendidos como mercadoria, cuja produção movimenta um grande mercado e gera muito lucro para grandes empresas, inclusive transnacionais. Por exemplo, empresas poluidoras podem “compensar” a degradação ambiental que provocam, comprando créditos de carbono de outras empresas que tenham em haver ou de grupos que “produzam” esses créditos, a partir da apropriação de territórios verdes, a maioria preservados por populações indígenas e povos tradicionais. Essa apropriação ocorre por meio de processos de grilagem, privatização, de conservação de áreas para a compensação ambiental de suas próprias atividades ou, ainda, de obtenção de concessões para a exploração econômica de florestas, parques e outras unidades de conservação. No caso dos bens naturais já poluídos ou degradados, os governos têm privatizado as empresas públicas e repassado a entes privados a prestação de serviços, como tem acontecido recentemente em diversos municípios e estados, com o tratamento do esgoto in natura e da água. Tudo é passível de gerar lucro a alguns poucos.

Discurso verde dos governos se apropria de lutas históricas dos ambientalistas para beneficiar o mercado

Durante quase uma hora, o governador gaúcho Eduardo Leite e seu secretariado apresentaram, no último dia 26 de Janeiro, a etapa da sustentabilidade ambiental do Programa Avançar. Foram anunciados R$ 193,2 milhões em recursos do Tesouro do Rio Grande do Sul (RS) para projetos voltados ao incentivo de energias limpas e renováveis, desenvolvimento sustentável, recuperação do patrimônio ambiental, redução do impacto ambiental no uso da terra e boas práticas para combater as mudanças climáticas.

Diferente do programa federal, o Avançar na Sustentabilidade está cheio de projetos, divididos em quatro eixos: clima, energia, água e parques. Segundo o governo, “todas as ações estão alinhadas aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU), e vão ao encontro das metas assumidas pelo governo gaúcho na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança no Clima (COP26) para neutralizar as emissões de carbono no RS em 50% até 2030”. Audacioso, o programa do Governo Leite quer alcançar o total zero na neutralidade de emissões até 2050.

O setor do agronegócio é bem importante para a economia gaúcha. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgados no Painel do Agronegócio do RS 2021 mostram que a agropecuária respondeu por 9% do Valor Adicionado Bruto (VAB) total gaúcho em 2018. Parece pouco, mas ganha mais importância ao vermos que as atividades industriais do agronegócio corresponderam a um terço (quase 33%) do Valor Bruto da Produção (VBP) do RS. Em 2020, foi responsável por 71,7% do total das vendas externas do Estado, sendo a soja, as carnes, o fumo e os produtos madeireiros os principais produtos exportados. 

O programa ambiental e climático verde lançado pelo Governo Leite não dá as costas a esta conjuntura e, como os outros, busca viabilizar um agronegócio mais sustentável. Boa parte dos projetos do programa gaúcho visam mitigar os impactos das cadeias do setor, que concentra a maior parte da emissão de gases de efeito estufa do Estado. Nesse sentido, destaca-se a produção de energias renováveis limpas (como biometano, hidrogênio e amônia verdes; aproveitamento da biomassa, energia solar, eólica e resíduos industriais e domésticos) e a modernização das pequenas centrais hidrelétricas (PHCs), que isoladamente – mas não quando considerados casos específicos ou o impacto cumulativo do seu conjunto numa mesma bacia – trariam teoricamente menor impacto às populações e ao meio ambiente em comparação às grandes hidrelétricas. Prevê a revitalização de bacias hidrográficas e a recuperação de espécies nativas da fauna e da flora dos biomas Pampa e Mata Atlântica. Para promover a proteção das unidades de conservação (UCs), a proposta é conceder a gestão de parte delas e dos parques à iniciativa privada.

Até mesmo a pauta sindical e ambientalista da “Transição Justa”, a qual visa apoiar trabalhadores e trabalhadoras das regiões carboníferas que sobrevivem da extração de carvão mineral a se qualificarem e se reposicionarem em outras atividades econômicas, consta no programa. Durante o lançamento, o governador admitiu que a energia a carvão mineral está com os dias contados, afirmação que ocorre somente após a Justiça ter suspenso o processo de licenciamento de dois projetos importantes: o da Mina Guaíba, entre os municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas, por falta de consulta pública junto a aldeias indígenas que serão impactadas, e o da Usina Termelétrica Nova Seival, entre as cidades de Candiota e Hulha Negra, no Pampa gaúcho. Projetada para ser a maior termelétrica a carvão mineral do Brasil, Nova Seival foi parada por uma decisão inédita da Justiça que, entre outras orientações, em primeira instância determinou que o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) incluísse diretrizes climáticas em processos de licenciamento ambiental de Usinas Termelétricas (UTE) no RS. Até então, o governador era um entusiasta da implementação de um Polo Carboquímico no estado. 

Na balança que o governo gaúcho diz querer equilibrar entre a sustentabilidade e o desenvolvimento econômico, o meio ambiente está perdendo faz tempo. O discurso verde de Leite é amplo; não enxerga contradição em ter liberado o uso, no território gaúcho, de agrotóxicos proibidos nos países em que são fabricados e em ter implementado o novo Código Ambiental, que enfraquece os mecanismos de proteção por meio de medidas como a permissão para o autolicenciamento ambiental. O governador também ignora a demanda por debater, com organizações ambientalistas, a implementação de uma reserva legal no Pampa, o que pode ajudar concretamente na recuperação ambiental deste bioma.

Não há desenvolvimento econômico sem meio ambiente e a população sadios e com suas sobrevivências garantidas. Exigimos a reparação das comunidades e do meio ambiente, bem como a garantia dos setores que os defendem a ter espaços cívicos de participação que não sejam limitados pelos 4 anos de governo. Queremos nossos direitos, nossa voz, autonomia e espaço de efetiva participação popular na construção das políticas ambientais, com o fortalecimento dos órgãos e servidores (as) públicos ambientais e em articulação com demais setores e movimentos sociais, para que de fato o direito constitucional ao meio ambiente equilibrado seja de todos e todas e resultado de uma ampla aliança em defesa da democracia, da soberania popular e da justiça ambiental. Afinal, os governos passam; nós ficamos, com a luta permanente por ecologizar a política e defender a sustentabilidade da vida.

* Artigo publicado no jornal Brasil de Fato em 1º/02/2022 neste link: https://www.brasildefato.com.br/2022/02/01/verde-e-a-cor-mais-quente Crédito da foto de destaque: Alan Santos/PR

BRASIL À VENDA

A avalanche de concessões de parques e praças brasileiros à iniciativa privada

A nível Federal, Estadual e Municipal, a elite brasileira, sob o verniz do patriotismo, decidiu confirmar a profecia de Raul Seixas e alugar o Brasil. Há uma engrenagem muito bem azeitada para realizar a venda dos bens comuns do país. Bens comuns, pois a biodiversidade e a natureza da qual fazemos parte é de todas e todos. Discordamos do ideal neoliberal de que elas possam estar a serviço do enriquecimento de alguns que, pelo uso da manipulação ou da força, dizem-se donos para pilhar e vender, frente à miséria da imensa maioria da população.

Brasil de Parcerias. Imagem: Portal PPI

O país é hoje cercado pelo projeto de entrega para a Iniciativa Privada de todos os lados. O portal do Programa de Participação e Investimentos do governo federal apresenta projetos em estudo e em andamento nas áreas de ferrovias, rodovias, aeroportos, portos, mineração, energia,  logística, pesqueira, portuária, de comunicações, passando por creches, presídios, empresas públicas como Dataprev, Telebras, Serpro em todos os estados, EBC, Eletrobras, Correios e, como foco desse material, a privatização de áreas públicas como florestas, parques nacionais e estaduais. No mapa são 117 projetos em andamento, os quais conferem uma ideia visual da entrega na gestão de áreas centrais para o país.

As Parcerias Público Privadas (PPPs) – contratos de prestação de serviços de médio e longo prazo (de cinco a 35 anos) firmados pela Administração Pública e regulados pela Lei nº 11.079/2004 – preveem a implantação de infra-estruturas necessárias para a prestação de serviços contratados pela Administração e dependem de iniciativas de financiamento do setor privado. Estas são, junto ao Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) – destinado à interação entre o Estado e a Iniciativa Privada por meio do estabelecimento de contratos de parceria para execução de empreendimentos públicos e medidas de desestatização –  manifestações do trabalho conjunto entre o Poder Público e Privado. Enquanto isso, as denominadas “concessões” – cedência de bens públicos ao setor privado – fecham o ciclo.                                    

Na esfera prática, entre as transições público-privadas, há o estabelecimento de programas como o “Adote um Parque”. Este, promulgado em fevereiro de 2021 pelo Governo Jair Bolsonaro, tem como objetivo a privatização de UCs (Unidades de Conservação) federais. É oportunizado, portanto, que pessoas físicas e jurídicas privadas “adotem” ou seja, paguem um valor de 50 Reais ou 10 Euros por hectare, assim se tornando os responsáveis pelo território adotado. Enquanto isso, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) vem desenvolvendo o “Programa de Estruturação de  Concessões de Parques Naturais”, o qual é voltado para a desestatização de serviços de visitação de parques naturais. Dessa forma, ele privatiza áreas naturais e “estrutura” o turismo em locais anteriormente protegidos e preservados. Para além desses dois programas a nível federal, nos quatro cantos do Brasil os espaços públicos nas cidades vem sendo privatizados. “Antes, o Adote um Parque era só Amazônia e o BNDES, era nacional. Mas agora o Adote um Parque já é nacional com a ampliação para o Cerrado”, explica o Coordenador do Programa Amazônia da Terra de Direitos, Pedro Martins.

 O governo brasileiro vem, nos últimos anos, adotando uma política geral de privatização dos bens nacionais, tanto de natureza, quanto de espaço público.  Por o país ser conhecido mundialmente por sua vastidão de recursos naturais, é de interesse de empresas transnacionais e internacionais a posse desses recursos e de recortes do território, um dos motivos pelos quais a Amazônia já foi tão desmatada. A alta do Dólar americano e a desvalorização do Real colocam o Brasil em dívida crescente e em uma onda de cortes de gastos, o que motivou o governo a tentar privatizar e extrair recursos financeiros de todas as formas possíveis, independentemente das consequências. Com a pandemia da COVID-19, a situação tomou uma gravidade ainda maior: “Como o Ministro Salles mencionou numa reunião ministerial: vamos aproveitando a pandemia para ir fragilizando essa legislação protetiva do meio ambiente. Poderíamos dizer que nós estamos no Brasil, especificamente em Porto Alegre (RS), também assistindo a passagem de uma enorme boiada urbanística”, diz a Diretora Geral do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), Betânia Alfonsin. 

O Programa “Adote um Parque”

O Programa “Adote um Parque” chega para contribuir com a perda de identidade original brasileira. “Ele já tem nove meses de funcionamento desde a sua criação, e agora está nesse momento importante de avanço dos protocolos de intenção firmados entre as empresas e o Ministério do Meio Ambiente. Ao mesmo tempo, ainda não se tem nenhum caso de iniciativa concreta de adoção de empresas em parques e/ou reservas extrativistas, ou qualquer outra modalidade de UCs”, destaca o Coordenador do Programa Amazônia da Terra de Direitos.

Com a adoção de Unidades de Conservação,  a pessoa física ou jurídica privada, grande parte no formato de empresas, como é o caso do Carrefour, ganham direitos. Elas precisam das chamadas “contrapartidas”, garantidas no decreto que firma o programa. “As grandes corporações como Coca-Cola, Carrefour e Heineken já deram largada nesse processo, mas outros investidores podem ainda estar sondando se o Programa Adote um Parque realmente vai prosperar e se ele vai ter benefícios concretos para as empresas”, explica Pedro Martins. Podem ser identificadas três formas de contrapartida criadas pelo programa. Primeira: IDENTIFICAÇÃO. O projeto prevê que as empresas que fazem essa doação de bens e serviços possam utilizar placas para atividades dentro das unidades de conservação. Segunda: PUBLICIDADE. Ou seja, tentam vender uma marca de sustentabilidade, um projeto de sustentabilidade da empresa. Terceira: USO DIRETO. O projeto prevê o uso direto da empresa na Unidade de Conservação adotada, e que está condicionada apenas à decisão do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e ao Plano de Manejo. Assim, a organização passa a depender da empresa adotiva para atuar e tomar qualquer decisão. “Ele foi pensado para transferir responsabilidade do Estado brasileiro, do Governo Federal, para empresas na gestão dos territórios. Pois, da feita que não há orçamento para gestão das UCs, mas o governo supostamente oferece uma alternativa, tudo o que vier de demanda desses territórios para a gestão das UCs, o Estado vai ter uma resposta que é o programa Adote um Parque”, sublinha Martins.

O Plano de Manejo é um documento político que traz as diretrizes norteadoras do uso do território das UCs. Se os mecanismos de gestão estiverem nas mãos das empresas, a autonomia de quem reside nos territórios, ou seja, os povos nativos e as famílias, não existiria mais. A lógica do projeto é tirar o ICMBio de cena. “Existe uma perda da autonomia das comunidades se tratando de como vão gerir seu território quando é uma empresa, ou seja, quando não é um ente estatal, que está intermediando essa relação”, destaca Pedro Martins.

O Brasil como um todo

A nível Federal, as FLONAS (Florestas Nacionais) localizadas nos municípios gaúchos de  São Francisco de Paula, de Canela e de Passo Fundo foram qualificadas no PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) e incluídas no PND (Programa Nacional de Desestatização) pelo CPPI (Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos) em 19 de Fevereiro de 2020 via Resolução CPPI n° 113. “Floresta Nacional é para uso de madeiras. Eles querem incrementar também o turismo nas FLONAS. Elas teriam menos restrição, permitem a retirada de madeira, principalmente de árvores exóticas. Essas florestas foram criadas para haver uma exploração florestal, mas dentro de um Plano de Manejo”, explica o doutor em Ecologia e Recursos Naturais, Paulo Brack. Como justificativa, o CPPI alega que a concessão desses bens públicos para a iniciativa privada levaria ao apoio à visitação, à conservação, à proteção e à gestão das unidades. “Nas FLONAS, existe uma dupla possibilidade dessa chegada mais incisiva do setor privado. Essas FLONAS do Sul estão com uma tendência de serem aproximadas do setor privado, no quesito do uso público, da visitação. Isso as assemelha ao processo de concessões que se vê em outros parques nacionais”, explica o analista ambiental, doutor em Ecologia Social, Professor de Desenvolvimento Territorial na UFRJ(Universidade Federal do Rio de Janeiro) e diretor da ASIBAMA-RJ(Associação dos Servidores Federais da Área Ambiental no Estado do Rio de Janeiro), Breno Herrera.

Contudo, vale ressaltar que a concessão não atribui nenhum direito sobre a titularidade da floresta concedida, ou seja, o patrimônio continua sendo da União. Cabe aos concessionários investir para melhorar as condições e a infraestrutura para visitação às Unidades de Conservação, o que será viabilizado, pelo menos em parte, pelo montante obtido com os ingressos cobrados para a visitação. “A elitização decorrente desses aumentos de tarifa incide diretamente na impossibilidade de acesso de pessoas de baixa renda aos parques nacionais”, sublinha Herrera. A iniciativa envolve investimentos da ordem de R$ 8,4 milhões para a Flona de Canela e R$ 6,2 milhões para a Flona de São Francisco de Paula, já nos primeiros dois anos de contrato, cujo prazo total é de 30 anos. 

Ainda em âmbito Nacional, os parques de Aparados da Serra (RS) e da Serra Geral (RS), ambos localizados na região de Cambará do Sul, têm suas concessões integradas ao PPI do Governo Federal. Entre elas, se aplicam a concessão de serviços de apoio à visitação, ao turismo ecológico, à interpretação ambiental e à recreação em contato com a natureza, segundo o Governo Federal. No dia 12 de agosto de 2021, em Brasília, tais Unidades de Conservação, que abrigam os cânions Itaimbezinho e Fortaleza, foram leiloadas e arrematadas à empresa Construcap. No dia 20 do mesmo mês,  estabeleceu-se que, a partir do dia 1 de setembro, a cobrança de ingressos no Parque Nacional Aparados da Serra passaria a vigorar. O valor inicial ficaria entre R$35 e R$55 nos primeiros três meses e, a partir de dezembro, subiriam  para  R$50 e R$80, quando até a concessão do espaço, a entrada era gratuita “As estruturas hoje previstas para serem construídas no Aparados da Serra são absurdas! São gigantescas, com muito concreto, com desmatamento, com vidro, acrílico, artificialização da paisagem… Isso atrai as pessoas que têm menor cultura pela natureza, porque por estarmos afastados dela, a gente acha coisas transformadas bonitas. Então eles vão investir em grandes estruturas que vão causar grandes impactos”, declara Paulo Brack.  

Como contrapartida,  desenvolveu-se um projeto com o objetivo de integrar as comunidades locais à rotina das UCs concessionadas. É uma forma de incremento econômico para essas pessoas que mais precisam e que legitimamente estão mais envolvidas na sociobiodiversidade. “Existem outras possibilidades de geração de emprego sem esse intermediário de grande porte como uma empresa privada. Alguns modelos são, por exemplo, a contratação direta de agentes temporários ambientais (ATAS). Tem também a possibilidade legal bem recente de uma lei publicada em 2018,  que ampliou o escopo dos chamados brigadistas, que são contratados já historicamente por parques e reservas para combater o fogo, ampliou o escopo para que os ATAS possam trabalhar com funções de apoio à gestão das UCs além do manejo do fogo”, diz Breno Herrera. Ele explica que outra modalidade seria o fomento ao cooperativismo local na operação de ecoturismo de uso público. Dessa forma, o governo poderia capacitar moradores locais, estimular a formação de associações ou cooperativas. Essas – formadas por pessoas da região, os chamados mateiros, ribeirinhos, quilombolas – podem operar diretamente o chamado “uso público”, fazendo ali a sua organização comunitária e continuando a zelar pelos espaços ancestrais,  os quais moram e protegem há  muitas gerações. 

Estados em transe

A nível Estadual, o “Programa de Estruturação de  Concessões de Parques Naturais”, do BNDES, marca presença. Para poder ser incluído no programa de concessões, os parques devem ser primeiramente adicionados ao PPI (Programa de Parcerias de Investimentos).  Essa tal “estruturação” é uma espécie de desestatização (também conhecida como privatização). “Lendo as minutas, dá pra ver que eles partem da lógica de olhar a Unidade de Conservação como uma oportunidade de desestatização. Eles entendem que com a concessão, existe menos carga atribuída ao Estado, e aí se tem uma oportunidade de negócios para o setor privado”, explica Paola Stumpf, analista ambiental da ASSEMA/RS(Associação dos Servidores da Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul). O programa usa como uma de suas justificativas a premissa de que os parques naturais brasileiros precisam desenvolver o turismo. Contudo, esses lugares englobam muito mais do que apenas a questão turística, tendo como característica a proteção à cultura e à sociobiodiversidade. “É claramente visível que quem constituiu aqueles documentos e trabalhou nessa modelagem não tem muito conhecimento do que é uma Unidade de Conservação e nem do que é uma  legislação que regra esse assunto”, destaca Rafael Caruso Erling, biólogo e analista ambiental da ASSEMA/RS. Por esse motivo, nota-se que o objetivo principal do programa é o lucro, como o de qualquer empresa. “Há todo um movimento de despossessão de populações de baixa renda e de compra e tomada de terras públicas, para justamente converter tudo isso em mercadoria”, explica Betânia Alfonsin. 

Conforme notícia do próprio BNDES, em Janeiro de 2021 o banco já havia assinado contrato com seis estados (Tocantins, Bahia, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul), totalizando um conjunto de 26 Unidades de Conservação e outros ativos correlatos que seriam concedidos à iniciativa privada. “Está existindo a participação dos técnicos de cada Estado, respectivamente. No Mato Grosso do Sul, o processo vai levar um pouquinho mais de tempo, justamente porque houve contribuição dos técnicos e analistas, e o processo está sendo corrigido/adequado, dentro do possível, para melhor trâmite”, relata Erling. Ele sublinha que a questão de o processo estar sendo centralizado e com pouca participação tanto dos analistas quanto da sociedade, é  característica exclusiva do Rio Grande do Sul.

 O BNDES ainda previa assinar contratos com outros estados em breve. Na época, 10 UCs de Santa Catarina, Amazonas e Goiás estavam em processo de análise para integrar o programa. Pelos contratos, o banco vai oferecer apoio, avaliação, estruturação e implementação de projetos visando à concessão dos parques. Contudo, as concessões não deixam claro quais os seus limites. O escopo do BNDES fala em desestatização, ou seja, o Estado cada vez tem menos ingerência na área. “O que acontece é que o programa de Estruturação de Concessões (BNDES) pode até ser mais violento, porque nele, a empresa realmente é a gestora, enquanto no Adote um Parque ela intervém na gestão”, explica Pedro Martins. Assim, a função de conservação acaba ficando diminuta dentro de um objetivo de ganhar dinheiro. “Eles falam assim: nós não vamos privatizar, vai continuar sendo patrimônio público, inalienável, mas nós vamos conceder. Na prática, isso é uma concessão, é uma privatização! Porque durante todo esse tempo, quem vai estar lucrando em cima dessas áreas naturais, é a iniciativa privada”, destaca a membro do Coletivo de Comunicação do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), Grasiele Be .

No Rio Grande do Sul, entre as 23 Unidades de Conservação existentes, cinco já integram o programa do BNDES: Parque Estadual do Caracol, Parque Estadual Delta do Jacuí, Parque Estadual Tainhas, Parque Estadual do Turvo e o Jardim Botânico de Porto Alegre. “O programa do BNDES é voltado estritamente para parques naturais, então já vem com uma ideia de que parques naturais no Brasil não impactam as populações. Porque eles são UCs de proteção integral, portanto não é pra ter pessoas morando nesses lugares. Acontece que vários deles tem conflito de sobreposição com outros territórios, sejam eles quilombolas, terras indígenas e outras comunidades tradicionais”, sublinha o Coordenador do Programa Amazônia da Terra de Direitos. A ONG Instituto Semeia é a principal parceira do banco nesse projeto das concessões. O apoio do BNDES envolve parques naturais – Unidades de Conservação de proteção integral reguladas pela Lei 9.985/2000 (Lei Federal que instituiu o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza) – e estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das UCs. “Uma empresa que foi concessionária de um parque, usando o exemplo do Parque Estadual do Turvo, vai querer impor que se faça o asfaltamento da estrada, coisa que não existe hoje. Aumentar a velocidade de automóveis poderia promover o atropelamento de animais, como onças que existem lá. O Turvo é o parque do Estado que, sob a ótica das concessões, possui a maior quantidade de espécies ameaçadas da fauna e da flora”, comenta Paulo Brack. 

Porto Alegre à venda

A nível municipal, na cidade de Porto Alegre, a concessão de parques e praças é uma crescente. “Isso é uma lei que foi aprovada na Câmara de Vereadores. O espaço público é público. Porém, não há nenhuma ingerência ou Plano Diretor com relação à concessão ou não dos espaços públicos”, explica o advogado Felisberto Luisi.

Entre as principais concessões já efetivadas,  encontram-se, por exemplo, o Parque Harmonia e o Parque Germânia. Este último, como explica Luisi, “é um parque privado, não é um parque público. Parque público é aberto, em que as pessoas podem entrar a qualquer hora, não há qualquer restrição de acesso, como é a Redenção, o Marinha e o Chico Mendes, que são parques abertos que a população entra a qualquer horário”. No caso do Harmonia, o Secretário Adjunto de Parcerias, Jorge Murgas, explica: “O Parque Harmonia basicamente hoje não tem muita atividade para que as pessoas possam utilizar aquele bem, com exceção da Semana Farroupilha. Então o município, na gestão passada, optou por  receber estudos através de um procedimento de manifestação de interesse, para modelar a concessão do Harmonia e aquele espaço se tornar mais qualificado, receber alguns equipamentos e os cidadãos possam usar ele”. Ou seja, os casos atuais podem ser vistos como exemplo daquilo que seria passível de acontecer com a concessão de parques e praças na cidade. Quanto aos últimos processos em execução, estão em voga  os parques Marinha do Brasil, Parcão e o Parque da Redenção. “Nós estamos estudando o Marinha, Orla Trecho 3, Parcão, Redenção. Mas tudo está numa fase muito inicial para se estudar  a possibilidade da concessão. Já estava no programa, já havia começado”, declara Murgas.

A ideia é que não sejam cobrados ingressos para circulação de público, mas, assim como no caso do Parque Harmonia, já privatizado, quem quiser usar a roda gigante ou consumir na churrascaria, por exemplo, vai precisar pagar. Desse modo, o parceiro privado tem o direito de instalar atividades econômicas dentro do espaço comprado.  “Nós tínhamos o orquidário, o único público de Porto Alegre, e aí o ex-prefeito Nelson Marchezan Jr. passou os tratores por cima. Agora vão ser colocados ali uns cinco ou seis contêineres. Um vai vender fruta, o outro vai vender flor, outro vai vender torrada, suquinho… Vai dar em tese uma socializada no parque? Vai. Mas nós continuamos achando que vamos sair perdendo. Gostaríamos que o nosso orquidário continuasse lá, mas, já que o prefeito de Porto Alegre, em acordo com a Câmara de Vereadores tiraram isso de lá, nós não podemos fazer nada”, relata o atual prefeito da Redenção, Roberto Ivan Jakubaszko. Segundo o Secretário Murgas, as concessões permitem o desenvolvimento de espaços de entretenimento, de forma que “no fim, o pessoal vai ter uma cobrança, mas não para acesso ao parque. Então, essa operação acaba sendo administrada pelo concessionário e nesse período ele vai obter resultado financeiro por administrar todo parque e implantar essas melhorias”.

Juridicamente falando, o processo de concessão de parques e praças é considerado algo novo, ainda estudado e sujeito a adaptações. “Conceder praças e parques é algo muito novo, é diferente da privatização. Precisa modelar ele economicamente para que  possa ser sustentável e para que esse parceiro possa fazer os melhoramentos. Então, não é algo muito simples”, explica Jorge Murgas. Em termos práticos, o Secretário Adjunto explica que a execução de concessões no município de Porto Alegre funciona da seguinte forma: primeiro, o estudo de proposta de local para concessão é recebido e analisado. Se viável economicamente, o poder público pode ter interesse em conceder aquele espaço por várias razões. “Entre elas, se pode considerar uma subutilização do espaço, a falta de equipamento público de qualidade para o cidadão utilizar… Quando o estudo é aceito, se começa a elaborar o edital”, explica Murgas. Geralmente no estudo já vem uma modelagem jurídica, onde estarão presentes as diretrizes do edital de concessão e os contratos. O edital de concessão, a partir daí, vai para o Tribunal de Contas do Estado, que o analisa e então se manifesta, fazendo as suas considerações ou não. A partir disso, o poder público licita a concessão por determinado período. A lei responsável pelas concessões é a Lei de Mobiliário Urbano 12518. Já a Lei 12559, de 2019, é a que  autoriza a concessão de praças e parques urbanos. Por último, mas não menos importante, a Lei 9875, de 2005, instituiu o Programa de Parcerias Público-Privadas e estabeleceu o Conselho Gestor de Parcerias, responsável por cuidar dos processos de concessão.

“No momento em que se começa a passar para a iniciativa privada, se ela não tem o olhar do ente público, ou do servidor público, ou do funcionário público, aquele que defende o interesse do cidadão, ela passa a defender o interesse privado. Quando isso acontece, o espaço começa a ser elitizado e a excluir as pessoas”, explica Felisberto Luisi. É sabido que quando um espaço se torna um disparador econômico, a parcela da sociedade que não se encaixa em seus padrões, como o caso de pessoas em situação de vulnerabilidade, são automaticamente excluídas ou deixam de frequentar o lugar voluntariamente, pois são comumente rechaçadas. “Ou seja, se acaba afastando mais as pessoas pobres, seja pela impossibilidade material de chegar, seja pelo constrangimento em espaços que tu não se sente à vontade de estar ali porque não se sente à altura daquele ambiente. Trata-se de uma questão de auto-estima em função dessas diferenças sociais impostas”, atesta o presidente do Instituto de Arquitetura Brasileiro do Rio Grande do Sul (IAB-RS), Rafael Passos. Tal constrangimento pode ser percebido factualmente na cidade de Porto Alegre: “Mesmo a Orla do Guaíba, que aparentemente é utilizada por uma grande massa das pessoas, é excludente, por mais que as pessoas digam que frequentam. Chega um determinado horário que eles tem que se retirar, não é um espaço livre. Se a pessoa quiser ficar até a meia noite, 1 hora da manhã, ela não consegue, uma hora ou outra chega os guardas da segurança privada. Então a permanência no parque é restringida”, sublinha Luisi.

A batalha pela administração de parques e praças no Brasil é densa e passível de muitos debates ainda nos próximos anos. O futuro do país é desconhecido, mas a firmeza do cidadão e dos movimentos sociais são as únicas capazes de mudar o curso da história.

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