COVAX: uma entidade global de múltiplas partes interessadas com potenciais riscos sanitários e políticos para os países em desenvolvimento e para o multilateralismo

Harris Gleckman*

Publicação original por Friends of the Earth International and Transnational Institute e adaptado pela Amigos da Terra Brasil (ATBr).

O COVID-19 deu origem a muitos desafios, um dos quais tem sido encontrar uma solução para a distribuição global de vacinas. Da perspectiva dos direitos humanos, significa como levar a vacina contra o COVID-19 às comunidades e pessoas nos países em desenvolvimento rapidamente, em segurança, com pouco ou nenhum custo, e sem discriminação política, de classe ou de gênero.

Acesse a publicação da Friends of the Earth International (em espanhol) e saiba mais sobre a COVAX.

Mas para grandes empresas e entidades como o Fórum Econômico Mundial (WEF) ou a Fundação Gates, o desafio é como levar a vacina contra o COVID-19 às comunidades e à população dos países em desenvolvimento sem perturbar o mercado farmacêutico global, por meio de um mecanismo que passa por cima dos sistemas de emergência humanitária multilateral, ao mesmo tempo que direciona as vacinas para parceiros preferenciais no mundo em desenvolvimento.

Isto é COVAX. E portanto, a principal motivação para criá-la não era ajudar a combater a COVID-19 nos países do Sul global. A COVAX foi estabelecida como uma entidade global de múltiplas partes interessadas que tem como objetivo servir como braço de entrega de vacinas de outro organismo múltiplo chamado Accelerating Access to COVID-19 Tools (ACT). A principal função da COVAX é gerir o financiamento para a compra de vacinas para combater o COVID-19.

Foi concebida para funcionar como um banco comercial, utilizando capital fornecido em grande parte pelos governos, para moldar a indústria mundial de fabricação de vacinas e o mercado consumidor no Sul. Foi planejada como uma associação comercial internacional comum, interessada em estabelecer este mercado de vacinas com base num sistema de pagamento por cuidados de saúde, um mercado sem aprovação médica nacional e sem responsabilidade ou responsabilidade do fabricante. É também constituída como uma entidade global de múltiplas partes interessadas, dirigida operacionalmente por outros dois organismos globais, a fim de marginalizar a OMS (Organização Mundial da Saúde) e evitar a responsabilidade pública na arena da governança global.

Este relatório foca nas implicações políticas e econômicas para o Sul global e na forma como o COVID-19 e a estrutura dessa entidade global de múltiplas partes interessadas, a COVAX, está conduzindo a uma transformação da  governança global.

A  governança implementada por esta entidade global não é a forma de gerir a distribuição, a produção ou a entrega de vacinas a toda a população mundial.

O regime desta governança multiparticipativa baseia-se na premissa de marginalizar os governos, inserindo os interesses corporativos das transnacionais diretamente no processo global de tomada de decisões e ignorando a responsabilidade delas. Não existem normas de responsabilidade ou de prestação de contas para as entidades globais de múltiplas partes interessadas. A multiplicidade de organismos estratificados “supervisionando” o programa de múltiplos intervenientes da COVAX torna extremamente difícil saber quem tem mesmo obrigações morais, embora a COVAX tome as decisões mais importantes para as vidas de centenas de milhões de pessoas.

“Como todo órgão de múltiplas partes interessadas, existem partes reais e partes ignoradas. No caso da COVAX, a fundação de Bill Gates e outros setores que representam as empresas transnacionais e os setores farmacêuticos são as partes reais e que de fato estão gestionando a entidade, desviando os fundos públicos que são oriundos (78%) de governos para interesses capitalistas. Enquanto que, nas partes ignoradas figura a Organização Mundial da Saúde que, de fato, não tem voz nem poder de decisão. COVAX não é solução real para a distribuição das vacinas, não é resposta para a crise sanitária que atravessamos. Pelo contrário, além de representar riscos sanitários por apenas resolver questões de mercado, também representa um grande passo na captura da governança global, na tomada de controle das empresas nos espaços de decisão sobre a vida das pessoas”, avalia Letícia Paranhos de Oliveira, coordenadora do Programa de Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo da Amigos da Terra Internacional.

Provavelmente, nunca antes foi fabricado um produto comercial cuja expectativa, desde os seus primeiros anos, é de que a sua base de consumidores seja o mundo inteiro. Como organismo multilateral, a COVAX é um ponto de encontro de interesses comerciais que, de outra forma, não seriam autorizados a planejar, conjuntamente, a comercialização, produção, investimento e distribuição do que, para eles, é um grande, evolutivo e muito rentável mercado global de vacinas. A probabilidade dos interesses comerciais se infiltrarem indevidamente nas decisões da COVAX é elevada.

QUEBRA DAS PATENTES PARA SALVAR A VIDA DA POPULAÇÃO MUNDIAL

A Amigos da Terra entende que a saúde é direito e não mercadoria e, por isso, somos sempre favoráveis à quebra das patentes. Nesse momento tramita uma proposta da Índia e da África do Sul no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) para suspender a propriedade intelectual de maneira temporária, enquanto vivemos a pandemia. É extremamente importante que nos mobilizemos para que os países apoiem essa proposta.

As patentes dão às transnacionais farmacêuticas o poder de determinar quais os países recebem ou não as vacinas. Com a quebra das patentes, muitos outros laboratórios poderiam produzir vacinas, aumentando a disponibilidade desse insumo tão fundamental para evitar mortes globalmente.

“Direito à saúde é um dos direitos humanos primordiais, por isso lutamos por um tratado juridicamente vinculante em matéria de direitos humanos e empresas transnacionais no âmbito das Nações Unidas, porque a saúde, assim como outros direitos, deve prevalecer acima do lucros das transnacionais. Por isso, lutamos por regras para as empresas e direitos para os povos” defende a coordenadora Letícia Paranhos.

*Sobre o autor: Harris Gleckman é membro sénior do Center for Governance and Sustainability da Universidade de Massachusetts Boston e director da Benchmark Environmental Consulting. Gleckman tem um doutoramento em sociologia pela Universidade Brandeis. Serviu no Centro das Nações Unidas sobre Empresas Transnacionais, chefe do escritório de Nova Iorque da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, e foi um dos primeiros membros do pessoal da Conferência de Monterrey de 2002 sobre Financiamento para o Desenvolvimento.

Na foto: Programa nacional de introdução de vacinas COVID 19 no Hospital Eka Kotebe em Adis Abeba, 13 de Março de 2021. UNICEF Ethiopia/2021/Nahom Tesfaye.

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