A Crise da COVID-19 é um sinal de alerta para mudarmos o sistema

A crise do Coronavírus só pode ser enfrentada com a soberania dos povos e com justiça ambiental, social, de gênero e econômica

Amigos da Terra Internacional expressa sua profunda consternação e solidariedade neste momento em que o mundo enfrenta a crise da COVID-19, que já está afetando tantos povos ao redor do mundo, especialmente daqueles que sofrem o impacto das desigualdades estruturais. A perda dramática de vidas humanas nos comove profundamente, em um mundo que não estava preparado para enfrentar uma catástrofe como esta. Essa é uma crise que vai muito além dos incontáveis impactos sanitários da pandemia, revelando injustiças ambientais, sociais, de gênero e econômicas que são sistêmicas, além de causas e consequências políticas absolutamente nocivas.

Esta crise é alimentada pelo atual sistema político-econômico, que exacerba seus impactos e impõe obstáculos significativos para respostas estruturais. As horríveis consequências do Coronavírus são o resultado da crescente concentração de riqueza e da imposição de uma doutrina neoliberal que sacrifica a preservação da vida. Hoje está mais evidente do que nunca que a economia baseada no livre mercado é o problema, não a solução.

O neoliberalismo conduziu à privatização e ao sucateamento dos sistemas de saúde pública, seguridades social e dos serviços públicos, ao desmantelamento dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores e à precarização dos empregos e à maior exploração do trabalho das mulheres. Além disso, outorgou poderes e privilégios extraordinários às empresas transnacionais, ao mesmo tempo em que reduziu o papel e a posição do Estado, aumentando a vulnerabilidade de nosso mundo ante impactos da crise.

A pandemia está desvelando e agravando as violentas desigualdades do capitalismo entre e dentro dos países. Está debilitando nossas necessidades humanas básicas e deixando milhões de pessoas vulneráveis a uma perda repentina de acesso aos meios de sobrevivência. Muitas pessoas simplesmente não podem se isolar, cumprir o distanciamento social ou deixar de trabalhar. Os despejos serão a norma quando as pessoas não puderem pagar seus aluguéis ou prestações do Minha Casa, Minha Vida. As mais afetadas serão as classes trabalhadoras rurais e urbanas, as populações indígenas, as mulheres, os povos que sofrem com o racismo, as/os imigrantes, refugiadas/os, os povos em zonas de guerra e conflitos e os que vivem em países que sofrem com bloqueios econômicos. Será cada vez maior o número de trabalhadores que perderão seus empregos e de imigrantes que enfrentarão uma negação criminosa de seus direitos humanos, bem como muros mais altos e largos.

A COVID-19 está revelando a magnitude da crise do cuidado em nossas sociedades: uma crise que vem sendo gestada há séculos pela incapacidade do sistema patriarcal, racista e capitalista de cuidar dos povos, da natureza e dos territórios, por um lado, e porque se sustenta sobre o trabalho e os corpos das mulheres para compensar e reparar os danos provocados pelo sistema de exploração capitalista neocolonial, por outro. Por meio da divisão sexual do trabalho, as mulheres têm sido e continuam sendo socialmente responsáveis pelo trabalho de cuidado e suportando em seus ombros essa carga. As mulheres, mães solteiras e famílias da classe trabalhadora são forçadas a escolher entre o confinamento em suas casas ou trabalhar para alimentar suas famílias, sob risco de serem infectadas pelo vírus. Isso é particularmente verdadeiro para mulheres que sofrem com o racismo. Profissionais de saúde na linha de frente do combate ao Coronavírus, que são em sua maioria mulheres, estão encarando uma exploração ainda maior, com compensações financeiras inadequadas aos riscos que correm e às responsabilidades que têm pelos outros.

A globalização do sistema de livre mercado, no qual empresas transnacionais exercem um papel-chave, tem conduzido a uma ruptura devastadora entre nossas sociedades e a natureza. A crise do Coronavírus está desmascarando a real extensão do quanto o controle corporativo da alimentação, da energia, das florestas e da biodiversidade é a causa principal da destruição dos ecossistemas que está facilitando de patógenos que afetarão cada vez mais nossa saúde. O agronegócio e a produção de commodities agropecuárias geram enormes problemas de saúde pública mediante a destruição de habitats naturais e/ou a intensificação da criação de gado e outros animais. Aqueles que sofrem com problemas respiratórios ou imunológicos devido à energia suja e outras poluições industriais estão particularmente sob risco de infecção.

Os impactos devastadores das indústrias extrativistas nos territórios indígenas estão os tornando ainda mais vulneráveis à COVID-19. Seus sistemas e práticas de conhecimentos tradicionais, que incluem cuidados de saúde e de produção, armazenamento e consumo de alimentos estão sendo enfraquecidos. Eles continuam sendo excluídos dos sistemas de saúde e não se está disponibilizando informações culturalmente apropriadas sobre a crise.

A pandemia está agravando as consequências de décadas de inação dos países ricos frente as mudanças climáticas, assim como às suas políticas nocivas. Os olhos do mundo estão postos com razão sobre a crise sanitária atual; mas as catástrofes relacionadas com a injustiça climática, tal como o recente ciclone que atingiu Vanuatu, repetem-se sem parar e é necessário encará-las. Os povos do Sul Global mais fortemente atingidos pelos impactos climáticos estão agora extremamente vulneráveis a contrair e disseminar a COVID-19 e carecem de acesso a sistemas de saúde robustos.

Avizinha-se uma crise alimentar profunda, principalmente em países que dependem de importações e onde as terras têm sido destinadas à produção de commodities agropecuárias. À medida que os povos perdem suas fontes de renda e seus meios de sobrevivência, não poderão acessar economicamente os alimentos, que por sua vez estão cada vez mais expostos à especulação financeira. Em muitos países, o fechamento dos mercados locais impede que os alimentos da produção campesina familiar e artesanal cheguem à população, ao mesmo tempo em que privilegia grandes empresas que priorizam seus lucros acima do direito a uma alimentação saudável.

Fazemos frente a esta pandemia num contexto em que a democracia já vinha sofrendo ataques, com eleições manipuladas mediante o controle empresarial de nossos dados e dos meios de comunicação e, inclusive, com golpes de Estado em alguns países. A ascensão da extrema direita e do neofascismo, com seus discursos e políticas misóginas, xenofóbicas, militaristas e racistas, resulta em um ataque frontal a direitos duramente conquistados pelas classes populares e pelo movimento feminista. Muitos governos já começaram a silenciar vozes que defendem uma democracia real e o poder e a participação dos povos pela criminalização e tentativa de desmantelamento de organizações e movimentos sociais.

As mulheres estão enfrentando um aumento brutal da violência e dos feminicídios em todo o mundo. Orientações para ficar em casa estão aprisionando muitas mulheres e seus filhos em lares inseguros, na companhia de agressores e criminosos, sem qualquer lugar para onde ir, nem possibilidade de receber ajuda.

Em tempos em que o escrutínio público e a capacidade de mobilização e protesto se reduzem, enfrentamos ameaças ainda maiores de um incremento dos ataques criminosos contra defensoras/es dos territórios e dos direitos dos povos, assim como a imposição de novos projetos empresariais prejudiciais. Os países com pouca ou nenhuma soberania para produzir muitos insumos fundamentais estão vulneráveis. O risco de que corporações lucrem com essa crise é muito grande – especialmente por meio do controle sobre os sistemas de saúde, alimentação e produção de medicamentos. Soma-se a isso o perigo real de que se usem fundos públicos para salvar grandes empresas, tais como empresas de combustíveis fósseis, que destroem o clima e a biodiversidade.

Nossas Demandas

Para fazer frente a essa crise e suas causas estruturais, Amigos da Terra Internacional se soma ao movimento feminista, campesino, sindical, aos Povos Indígenas e a outros movimentos sociais para exigir que os governos cessem imediatamente a repressão, abandonem as políticas de austeridade, detenham os despejos e incrementem os orçamentos públicos, a justiça fiscal e a distribuição de renda. Fazemos eco, ainda, ao chamado para anulação da dívida externa.

A centralidade da vida e do trabalho de cuidado deve ser reconhecida, com regulações ambientais mais fortes, com o fim da divisão sexual do trabalho e com uma resposta sistêmica para a crise direcionada à justiça ambiental, social, de gênero e econômica e a uma economia feminista.

Governos devem assegurar que os direitos fundamentais à saúde, previdência social, moradia, energia, água, educação, transporte, alimentação e cuidados serão garantidos por meio de serviços públicos providos pelo Estado. Eles devem apoiar financeiramente as classes trabalhadoras e as comunidades. Qualquer dinheiro público deve ser utilizado para colocar os trabalhadores, o clima e a saúde de nosso planeta e nossos povos a longo prazo em primeiro lugar.

Os pacotes de estímulo e recuperação econômica e financeira internacionais e os governos nacionais devem mirar na criação de milhões de empregos decentes que contribuam para impulsionar uma transição justa que nos liberte do capitalismo e da economia dependente de combustíveis fósseis e assegurar a autonomia das mulheres. Os governos não podem oferecer salvamentos incondicionais para grandes poluidores, como empresas de combustíveis fósseis e de aviação. Não podemos retornar aos negócios de sempre após esta crise. Nós devemos estabelecer as fundações de um mundo melhor. Não podemos permitir mais um ciclo de capitalismo agressivo e políticas neoliberais que destroem as vidas dos povos e nosso planeta.

Os governos devem indispensavelmente fortalecer os sistemas alimentares locais, os mercados locais descentralizados e os programas de compras públicas diretas que contribuam para garantir a venda da produção campesina familiar e artesanal e a disponibilidade de alimentos para aqueles que mais necessitam. Os programas públicos direcionados à infância, às pessoas com deficiência e a todas as pessoas que sofrem com a fome devem ser melhorados e ampliados radicalmente.

Precisamos reverter imediatamente a tendência atual de aumentar o poder, os lucros e a impunidade das grandes corporações, o que inclui pôr fim a todas as negociações comerciais e investimentos que dão ainda mais poder às empresas transnacionais, assim como garantir um tratado juridicamente vinculante sobre empresas transnacionais e direitos humanos no âmbito da ONU.

Devem-se abolir urgentemente os mecanismos arbitrais de solução de controvérsias entre investidores e Estados, que permitem que corporações transnacionais processem governos por tomarem ações que protejam a vida, argumentando que essas ações de interesse público são discriminatórias ou uma expropriação indireta de seus investimentos.

Os meios médicos de enfrentamento ao Coronavírus, incluindo uma futura vacina, devem ser acessíveis a todas e todos, com uma suspensão imediata de qualquer direito de propriedade intelectual sobre suprimentos, equipamentos e tratamentos médicos, incluindo medicamentos e vacinas.

Nossas Ações

Nossas ações agora darão forma ao que virá após a crise. Amigos da Terra Internacional e nossos aliados conhecem o caminho a seguir. Nós devemos usar essa oportunidade para lutar e construir uma mudança de sistema, por meio do desmantelamento do patriarcado, bem como outros sistemas de opressão e poder corporativo. Nós precisamos fortalecer nossos esforços para avançar rumo à soberania dos povos e à justiça ambiental, social, de gênero e econômica.

Este é um momento de reafirmar a esperança, alimentando e fortalecendo novos paradigmas ecológicos e emancipatórios, centrados na justiça e na sustentabilidade da vida e em uma nova relação com os trabalhos de cuidado.

A solidariedade internacionalista entre os movimentos e através das fronteiras é fundamental, a medida que construímos uma resposta coletiva a esta crise, organizando e mobilizando nossas comunidades, organizações e movimentos para fortalecer nossas próprias iniciativas e lutar por nossas demandas.

Nossos grupos membros estão organizando e se somando a comitês locais de solidariedade para apoiar as/os mais afetadas/os. Estão somando-se, também, a plataformas políticas de movimentos sociais, junto a sindicatos, organizações campesinas e feministas, para lutar por respostas sistêmicas adequadas frente a esta crise e às múltiplas crises inter-relacionadas que enfrentamos – ambiental, climática e social. Nós seguiremos unidos aos nossos aliados para combater as injustiças que a COVID-19 tem revelado e exacerbado e para construir o mundo que necessitamos.

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